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A liberdade de fazer mal a si mesmo (1)

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A liberdade de fazer mal a si mesmo
(fonte: Filosofia Ciência e vida Nº 47 - Ano 2010)
	
	
	
	
REVISTA FILOSOFIA
Olho Grego
A liberdade de fazer mal a si mesmo
Lei antifumo e a Filosofia: onde está e qual é o limite da liberdade de fazer mal a si mesmo?
Renato Janine Ribeiro
Com a lei antifumo, o debate filosófico se instala: qual é o direito das pessoas, sabendo sobre os males do cigarro, de querer fumar mesmo assim? Qual o limite de uma pessoa que não ultrapassa o direito do outro?
Tem o poder público direito a limitar a liberdade das pessoas de fumar, beber, em suma, de se fazerem mal, mesmo que elas queiram fumar, beber, fazer-se mal? Essa discussão reaparece sempre que uma medida legislativa coíbe o fumo ou a bebida. Vale a pena tentar esclarecer o que está em jogo.
Comecemos com uma distinção básica. Ninguém em sã consciência negará o direito – e mesmo o dever – do poder público a proibir o que faça mal a uma outra pessoa. A questão filosófica é se ele pode impedir que eu faça mal a mim mesmo. Essa distinção é fundamental porque, no debate sobre a lei seca (federal) e a lei antifumo (paulista), os dois assuntos foram constantemente confundidos.
Assim, se a lei proíbe uma pessoa com álcool no sangue de guiar, não a está impedindo de fazer mal a si mesma. Está dificultando que faça mal a outras pessoas. Essa lei, portanto, não entra no caso que estamos discutindo. Ninguém perdeu o direito de beber "até cair", como dizia a canção de carnaval. O que não vale é guiar bêbado porque, assim, se pode ferir ou matar alguém. Também a proibição de fumar em lugares públicos não é uma proibição de fazer mal a si mesmo. Ela impede que os não fumantes sejam convertidos, contra a vontade, em fumantes passivos. Continuo podendo escolher fumar, isto é, ser fumante ativo. Mas devo respeitar o direito dos outros a não fumar, ativa ou passivamente. Como a Ciência prova que a saúde piora já por aspirar a fumaça do cigarro alheio, isso está certo: o fumante pode fumar, mas não deve causar doenças em outras pessoas.
O DEBATE FILOSÓFICO. Onde está a proibição de fazer mal a si mesmo? Ela está numa justificativa que apareceu na lei proibindo a propaganda do fumo na televisão. Foi uma iniciativa do então Ministro da Saúde, José Serra, atacada porque impediria as pessoas de, livremente, escolherem se querem fumar – e, se quiserem, por que não poderiam causar mal a si próprias? Aqui, estamos no debate filosófico.
A questão é se eu, ciente de que uma droga (cigarro, bebida ou qualquer outra) me faz mal, posso escolher usá-la e abusá-la, desde que com isso não prejudique ninguém mais? Essa questão exige um comentário e uma pergunta.
O COMENTÁRIO: é difícil distinguir exatamente o que é fazer mal a si e ao outro. Fumantes e alcoólicos costumam ter mais doenças do que não fumantes e abstêmios. Por isso, eles usam a rede pública de saúde ou a de seu convênio mais que os outros. Mas pagam o mesmo que sua faixa etária. Suas despesas são maiores, e parte delas é financiada pelos outros. Esse é um assunto delicado, que talvez leve, no futuro, a calcular seguros de saúde pelo perfil do segurado – como já sucede com os carros, dado que rapazes de 18 anos pagam mais que senhoras de 40 anos, respectivamente a faixa que causa mais acidentes e a que causa menos. Esse é um exemplo da complexidade do assunto.
Já a pergunta filosófica sobre a liberdade é: será a pessoa realmente livre para escolher? As fábricas foram acusadas de incluir, no tabaco, elementos químicos que induzem à dependência. Nesse caso, é óbvio que o adicto não é um sujeito abstratamente livre, pois terá sido drogado.
No fundo, a questão da liberdade de fazer-se mal coloca frente a frente dois personagens: por um lado, um sujeito humano livre, que escolhe, a despeito das pressões, o que prefere; por outro, um conjunto de pressões – econômicas, sociais e até químicas – que influenciam sua ação, privando-o parcial ou totalmente da liberdade. Toda a questão está no equilíbrio entre um fator e outro.
Se der peso demais à liberdade individual, desprezarei os condicionamentos sociais. Se valorizar muito estes, a liberdade pessoal será um mito. Mas esses são dois extremos. Na prática, temos que ver caso a caso. Vejamos uns exemplos.
EXEMPLOS. O cigarro tem elementos químicos que induzem à dependência. Além disso, a propaganda já o associou à juventude, ao glamour e, espantosamente, até à saúde. Sabemos que é difícil parar de fumar. Daí que seja justo o poder público proibir a propaganda, impedir o acesso dos adolescentes ao fumo, questionar os elementos químicos que incitem à dependência e estudar o custo adicional para as redes de saúde. Mas, se tudo isso for acertado, quem quiser fumar e com isso não causar mal a outrem, que o faça.
Vamos complicar a questão da liberdade. Contarei uma história pessoal. Lecionei numa universidade norte-americana. Havia o mito de que o professor homem deveria evitar ficar sozinho numa sala com uma aluna, porque depois ela poderia acusá-lo de assédio sexual. Mas, quando recebi o manual de procedimentos da universidade, vi que relações românticas entre professores, funcionários e alunos não preocupavam a instituição. O manual dedicava maior espaço a casos em que um rapaz saía com uma moça, talvez disposto a uma aproximação romântica, entretanto transavam depois de se embriagarem. Às vezes, a moça se arrependia e reclamava que não escolheu livremente. As consequências podem ser ruins, para ela, se ficar com uma má lembrança – ou para ele, que eventualmente pode até ser expulso da universidade.
O que há em comum nos dois exemplos? Eu apenas quis mostrar que o formato da questão é igual. Posso dizer que tabagistas tanto quanto jovens fazendo amor escolheram livremente seus atos – ou que foram manipulados pela propaganda, o meio social, a euforia do momento... Ora, se o modelo da questão é análogo, é sinal de que não há resposta pronta para a pergunta. Depende de cada caso. Em certas ocasiões, é preciso proteger as pessoas, que só aparentemente são livres para escolher. Em outras, fazer isso é uma intromissão absurda na liberdade de cada um. Como estabelecer a fronteira?
Ou fast food. Sabe-se que faz mal. Deve ser proibida? Devem ser impedidas suas lojas de aliciar crianças com brindes? Deve-se permitir a atividade, mas retirando o glamour adicional e cativante? Tolerar sua ação incontrolada contra pessoas vulneráveis é insensato. Mas proibir as pessoas de escolher, a pretexto de não saber o que fazem, pode levar a um policiamento intolerável de nossas vidas. Em suma, o que podemos fazer aqui é apresentar argumentos. A escolha entre eles é sempre difícil. Mas quem disse que a Ética é coisa fácil?

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