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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação www.compos.org.br 1 A Atualidade Mediática: 1 o conceito e suas dimensões Luiz C. Martino2 Resumo: O conceito de atualidade tem sido empregado desde a origem dos estudos de comunicação. Este artigo revisa algumas fontes e principais acepções do termo. Discute criticamente a redução dessa noção à demanda de informação, enquanto uma qualidade intrínseca ao ser humano (curiosidade, sede de conhecimento), bem como a fatores estritamente de ordem da produção da notícia (atualidade jornalística). Propõe o conceito de atualidade mediática, entendida como um produto da atividade dos meios de comunicação em consonância com a organização social da sociedade complexa. Discute sua relação com o acontecimento e sua relação com a mediação tecnológica, destacando o papel estruturante dos meios de comunicação na produção do acontecimento social. Como conclusão indica as diferentes dimensões em que se desdobra o conceito (organização social, cultura, história, representação coletiva, tecnologia) e discute seu valor epistemológico para os estudos de comunicação como objeto desta disciplina. Palavras-Chave: Atualidade mediática, epistemologia da comunicação, objeto de estudo da comunicação. 1. Introdução A noção de atualidade não é nova, conta com uma história de cerca de três séculos. Segundo o prof. Wilmont Haacke, “pouco antes de 1700 já se formulava a experiência de atualidade” (p.180) e autores como Tobias Peucer (1690) e Caspar von Stieler (1695) já destacavam as funções das notícias e o papel do jornalismo na sociedade. Nas palavras desse último: Nós, pessoas honradas, que vivemos agora no mundo, devemos também compreender o mundo de agora... se quisermos ser sábios. Mas aquele que quer ser sábio e chegar a sê-lo – qualquer que seja a classe social em que viva, seja a do comércio, seja a da burguesia –, então deve conhecer os jornais, deve lê-los sempre, tê-los em conta, recordar o que dizem e saber como se servir deles (apud Haacke, p.180). 1 Versão revisada (novembro de 2012) do trabalho apresentado no Grupo de Trabalho “Epistemologia da Comunicação”, do XVIII Encontro da Compós, na PUC-MG, Belo Horizonte-MG, em junho de 2009. 2 Professor da Universidade de Brasília, pesquisador do CNPq, martino@unb.br. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação www.compos.org.br 2 Sabedoria e jornais começavam a ser associados à compreensão do mundo e ao conhecimento da realidade. Evidentemente, isto não significa produzir filósofos, no sentido acadêmico; tampouco cientistas. Não se trata de um apelo à educação de massa, ou a qualquer conversão do homem comum. Embora tenha repercussões importantes sobre estas duas esferas do conhecimento acadêmico (ver MARTINO, 2003), o conhecimento em jogo é de outra ordem, refere-se ao mundo imediato e a como se orientar nele. Portanto, diz respeito ao homem comum, ou seja, a todos nós, que vivemos em sociedade e precisamos de informações para desempenhar nossos papéis sociais. Informações que se encontram fortemente identificadas ao produto dos jornais (no entanto, sem reduzir-se a eles, como veremos mais adiante ao tratar a atualidade mediática como cultura do presente). Não obstante o reconhecimento de sua importância, a noção de atualidade não tem gerado muita polêmica e sua definição gira em torno de noções como as de: tempo presente, informação, novidade e notícia. Creio que as razões disso se devem a certa insistência e mesmo redução do termo à atividade jornalística; e de outra parte, à idéia, bastante difundida entre os teóricos, de que o fluxo de informações jornalísticas tem por base a curiosidade humana (avidez por notícias). Aqui, como em outros pontos relevantes para a fundamentação do saber comunicacional, certas evidências superficiais, assim como uma tentadora facilidade de compreender os fenômenos a partir de uma compreensão banal (senso comum) geram certezas aparentes (como, por exemplo, “o homem sempre comunicou” ou o homem é um ser curioso), que acabam se constituindo em verdadeiros obstáculos epistemológicos. 2. A demanda de Informação Não obstante o fato de que importantes teóricos da atualidade tenham focado a curiosidade humana como o impulso que leva as pessoas a buscarem informação, tal formulação se revela pouco adequada para entender a atualidade. Segundo Haacke, Todos os homens estão providos de qualidades inatas, indispensáveis para sua conservação. Uma destas características é a curiosidade. Quem tem que cuidar de uma comunidade tem que recolher notícias, a cujo conteúdo deve conformar seu comportamento, deste modo a protege a ela e a si mesmo. Estar bem inteirado dos últimos acontecimentos pode ter um efeito decisivo sobre o que esta por vir (p.170). O autor não se refere apenas aos profissionais da notícia, mas aos indivíduos em geral. “Para que o homem não perca seu caminho neste labirinto do atual, ele foi dotado com o dom da curiosidade” (p. 171). Trata-se de uma qualidade necessária à existência, pois é através da curiosidade que o indivíduo percebe a atualidade, de modo que sua ausência nos deixaria “inertes frente aos golpes da fatalidade, sem proteção em seu presente, nesse ‘espaço do destino’, segundo denomina Hans Freyer” (p. 171). Ángel Benito, professor da Universidade Complutense de Madrid, seguindo Haacke, evoca esta mesma curiosidade para marcar a competência do profissional da notícia, que recolhe e transmite a informação. Mesmo aqueles que chegam a esboçar uma crítica, como Mittechel Stephens, restam ambíguos: Os sociólogos Harvey Molotch e Marilyn Lester atribuem o interesse em notícias a uma ‘necessidade invariável de relatos acerca de coisas desconhecidas’. Os humanóides em que nossos genes se desenvolveram, devem ter sobrevivido parcialmente porque eram curiosos em relação ao ‘desconhecido’, com suas Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação www.compos.org.br 3 ameaças potenciais e suas potenciais recompensas. Nosso interesse compulsivo pelos acontecimentos na aldeia ao lado pode ter surgido dessa curiosidade instrumental, mas se transformou numa necessidade generalizada de permanecer consciente (p. 46-47). Stephens transfere para a necessidade de “estar-se consciente” o estímulo que impulsiona as pessoas às notícias, mas entende está última como “sede de conhecimento” (idem), um termo próximo, senão sinônimo de curiosidade (Haacke também destaca a “ânsia do conhecimento”). Se neste contexto curiosidade significa a atitude de um ente que se orienta a partir de informações extraídas de seu ambiente, então o ser humano não é muito diferente de inúmeros outros entes que possuem consciência. Mesmo máquinas auto- reguláveis são capazes de ajustarem seu comportamento às modificações do ambiente. Contudo, o conceito de atualidade não se aplica à Biologia, nem a sistemas artificiais, como aqueles estudados pela Cibernética. Afinal de contas, todo ser consciente, por definição, é um ser “informado”, construído dinamicamente pelas informações que retira de seu ambiente e as representações que produz. Sem dúvida o conceito de curiosidade pode ser interessante para expressar o impulso ou a motivação que conduz o indivíduo a buscar informação, mas deixa muitas lacunas e não traz nenhuma precisão sobre a natureza do processo em jogo. Ao invés dessa observação genérica, acredito que seria de mais proveito observar que a curiosidade invocada não é qualquer curiosidade, mas aquela que se aplica à vida social. De outra parte, sabemos que há muitos tipos de informação: lendas, boatos, conhecimento científico,filosófico, técnico, as diversas formas de arte, inclusive a literatura. Genericamente falando, todos eles são informações, contudo, o tipo que nos interessa é a notícia, uma forma histórica, que se expressa como um tipo de conhecimento da vida social. É esta relação entre uma forma de sociedade e um certo tipo de informação que nos interessa. O conceito de atualidade articula estas duas instâncias, ele designa a arquitetura da informação ou o sistema de comunicação próprio à sociedade complexa, na qual o indivíduo necessita orientar-se em múltiplas dimensões e para além de seu ambiente imediato. Por isso de nada nos servem as tentativas de explicar a atualidade por uma demanda inata ao homem e fazer das tecnologias da comunicação um simples meio para satisfazê-la. É preciso ter-se em conta a especificidade tanto da informação quanto do ambiente em questão. O duplo movimento de naturalização – da informação e das funções das tecnologias de comunicação –, além de ser inexato, embota o problema da atualidade, esconde sua dimensão histórica: “os homens sempre se interessaram por notícias”; “as notícias sempre existiram e os meios de comunicação evoluem no sentido de fazer isto melhor e mais rápido”. Nada mais simples, mas nada tão superficial. É preciso entender e contextualizar esta demanda no quadro sócio-histórico equivalente à própria historicidade dessa forma particular de informação que é a notícia. A desnaturalização da “curiosidade”, ou da “sede por informações”, equivale a entender que não são apenas os recursos dos meios de comunicação que se encontram em mudança, o próprio sentido da tecnologia, bem como a função que os meios encontram nas sociedades concretas possuem sua historicidade. Naturalizar a informação ou sua demanda se encontra em franco desacordo com os dados históricos. Do lado da informação, os historiados do jornalismo têm destacado o percurso, que nos leva do jornalismo antigo para o moderno, ao longo do qual a notícia é construída e assume seu lugar na atividade jornalística. A presença de notícias não constituía a tônica dos jornais anteriores ao século XIX. Lembremos também que as técnicas jornalísticas não nasceram prontas e acabadas. Reportagens, entrevistas, cobertura de Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação www.compos.org.br 4 acontecimentos, narrativa... foram sendo desenvolvidas pouco a pouco e caracterizam o jornalismo moderno (por exemplo, EMERY, 1965). Do lado da demanda, as explicações que evocam qualidades inatas (curiosidade, sede de saber) chegam a ser desconcertantes. A atualidade mediática está intimamente ligada ao processo de emergência da sociedade complexa. A Revolução Industrial, a instituição do regime democrático, a economia de mercado, a formação da cultura de massa e tantos outros traços característicos desse tipo de sociedade coincidem com o limiar de aparecimento do jornalismo moderno e da cultura de massa na segunda metade do século XIX. Sociedades anteriores podem ter se servido de tecnologias de comunicação, mas quase sempre este uso esteve voltado para informações administrativas ou comerciais – como atestam os primeiros usos da escrita na Antiguidade ou na Idade Média (Renouard, 1961) – e mesmo outros usos, como a geração de informações acerca de deslocamentos de grupos hostis ou catástrofes naturais, mas não para representar e sondar a vida social. Não serviam de apoio à ação individual, mas a funções pontuais do Estado e da religião. O que caracteriza a notícia, não é, portanto, exclusivamente de ordem da informação. Ela emerge em um mundo unificado pelos impérios, pelo comércio, pela cultura... ela ganha seu sentido pleno como um tipo de conhecimento correlato ao da complexificação da sociedade e seu corolário, a autonomia do indivíduo. Por conseguinte, em consonância com a natureza da notícia, a necessidade de informar-se diz respeito ao ambiente social e não a um meio ambiente natural. A informação em questão é aquela relativa a um mundo globalizado (unificado, universalizado) e às demandas do indivíduo moderno, tornado relativamente autônomo em relação ao coletivo como exigência do processo mesmo de constituição da sociedade complexa. Neste tipo de organização social a integração do indivíduo à sociedade requer atividade, iniciativa, nos mais diversos âmbitos de sua existência social. Todos os papéis sociais são relações que o indivíduo estabelece com outros, a informação do ambiente social nada mais é que a contrapartida necessária desta ação, que caracteriza o indivíduo moderno. Enquanto informação, a atualidade mediática corresponde aos dados e representações necessários à redução da complexidade, de modo a viabilizar a existência em um ambiente multidimensional e complexo, exigindo a intervenção individual em muitos planos de ação, decorrentes de uma existência desdobrada pelos papéis sociais. Todas as informações constantes nos jornais e revistas, nas rádios e telejornais, fornecem subsídios ao indivíduo enquanto agente social: emprego e negócios, para o agente econômico; notícias políticas para o cidadão e eleitor (agente político); shows, programação de cinema, exposições, restaurantes e esporte, para o lazer e a cultura (agente cultural). A informação mediática, da qual a notícia é uma parte importante, mas não sua totalidade (é preciso incluir todos os produtos da indústria cultural), é o correlato da ação, é a contrapartida da necessidade do indivíduo se orientar em um ambiente complexo, como o da cultura contemporânea e da sociedade complexa. Ela viabiliza a administração de si, num mundo onde os papéis sociais se multiplicaram e o indivíduo ganhou uma relativa autonomia em relação ao coletivo. Do lado da tecnologia, não foi diferente. Tomados como “algo que serve para comunicar”, os meios de comunicação, foram naturalizados, eles teriam guardado sempre a mesma função, o que impede de ver aquilo que realmente interessa, suas diferentes funções sociais segundo o tipo de sociedade. É preciso urgentemente resgatar esta dimensão histórica dos meios de comunicação (ver MARTINO, 2006). Se as comunidades primitivas conheciam tecnologias da comunicação, nunca chegaram a realmente integrá-las como instrumentos para Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação www.compos.org.br 5 a organização social. Um esboço disto somente começaria a aparecer com o surgimento da escrita. A utilização desta, como vimos acima, esteve restrita a funções pontuais do Estado e da religião e apenas indiretamente repercute sobre a organização de sociedades de tipo tradicional. Aliás, como indicado por sua designação, estas sociedades continuam tendo por referência a tradição. Apenas as sociedades complexas integraram os meios de comunicação em sua organização social. O que fica claro quando os indivíduos passam a servir dos meios de comunicação para ter uma representação do social e sondar este social, reduzindo sua complexidade. Então, ao contrário do que pensam alguns de nossos melhores teóricos do assunto, a atualidade não pode ser reduzida a uma faculdade intrínseca à natureza humana. Pelo menos não podemos fazer isso sem perdemos o sentido histórico da atualidade mediática, esvaziando este conceito ao entendê-lo como correlato de uma curiosidade natural. Neste caso, toda a singularidade do jornalismo moderno e da estrutura de informação e de comunicação contemporâneas ficariam por conta dos avanços tecnológicos. Em outros termos, seria difícil escapar do determinismo tecnológico, superestimando o poder dos meios de comunicação. Na verdade, em sua primeira relação ao tempo, a atualidade mediática se expressa como um período ou uma singularidade histórica, caracterizados pelo forte vínculo entre que se estabelece entre a organização social e os meios decomunicação. Particularmente na produção do acontecimento mediático como matriz social. 2. Atualidade e Acontecimento O conceito de atualidade mediática que adotamos aqui deve ser distinguido de alguns outros encontrados na literatura específica. Principalmente em relação a aquele de atualidade jornalística, que é, de longe, o sentido mais empregado. Embora Haacke assim como Benito se esforcem em apresentar uma variedade de usos, repertoriando o termo entre os filósofos ou em diferentes campos das ciências humanas, a verdade é que, até então, o termo atualidade não chega a ter muita importância fora da questão do jornalismo. Segundo Benito, “o conceito de Atualidade jornalística faz referência à essência da missão informativa: comunicar as novidades mais recentes (...)”. Mas não vemos razão para limitar a noção de atualidade à produção e circulação da notícia. A atualidade não se resume a notícias, embora tenha uma relação visceral com esta. Ela é o produto da atividade mediática como um todo; antes de mais nada, ela se expressa como uma dimensão virtual, que interliga e unifica as existências individuais. Como tal, ela abrange os produtos da indústria cultural e da cultura em geral, na medida em que são mediatizados ou que fornecem a matéria para a atualidade. Objetos artísticos, peças de teatro, obras literárias, filmes, músicas, peças publicitárias, etc. povoam e fornecem os conteúdos para a atualidade. O importante não é exatamente a natureza desses produtos ou sua qualidade intrínseca. Tais como os fatos jornalísticos, eles valem por seu potencial de mediação, pela capacidade de concentrarem a atenção coletiva e tornarem-se matrizes sociais. Enquanto tal, a atualidade guarda uma relação muito direta com a produção e difusão do acontecimento social. O artigo de Haacke fornece um amplo e valioso panorama das idéias sobre a atualidade, muitas das quais diretamente relacionadas ao acontecimento. Neste trabalho singular ele se concentra na apresentação e crítica de vários autores de língua alemã, Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação www.compos.org.br 6 compreendidos entre 1900 e 1945, período que, segundo ele, a noção deixa de ser simples referência e passa a ter um tratamento mais sistemático. Entre estes autores destaca-se Paul FECHTER (Poesia e Jornalismo, 1924), para quem o jornalismo é um processo de “socialização continuada e crescente” (p. 187). Ao transformar o acontecimento em informação, ele se torna “um fator da união e incorporação do indivíduo na grande marcha da generalidade que mostra a vida e a existência de todos nós” (p. 187). Walter Hagemann (Princípios de Publicística, 1947) se interessou pela forma como os respectivos meios de comunicação trabalham o espaço e o tempo até atingirem a simultaneidade completa do acontecimento e sua recepção pelo público. Ele também propõe a diferença entre atualidade primária e secundária para marcar a diferença entre o acontecimento em si mesmo e o acontecimento mediatizado. O que torna possível admitir que, não somente os acontecimentos presentes, mas também passado e futuro possam se tornar atual. Esta afirmação está de acordo com as idéias de Demetrius GUSTI (Os Conceitos de Fundamentais do Direito de Imprensa, 1909), para quem a noção de atualidade não expressa os acontecimentos em si mesmos, mas o interesse que temos neles. Por conseguinte, “a atualidade só pode existir na consciência” (p.187), ou como forma da consciência e não no mundo enquanto tal. Não são fatos naturais, mas fatos sociais, construções coletivas. Para Erich EVERTH (A Opinião Pública na Política Exterior, 1931), a noção de atualidade expressa uma dinâmica dos acontecimentos que ultrapassa um recorte temporal, não estando presa ao presente ou aos acontecimentos diários. Ernst Herbert Lehmann (Manual da Ciência do Jornalismo, 1940) completa este raciocínio ao sustentar que o lapso entre o acontecimento e sua divulgação tem apenas valor relativo, já que os acontecimentos, enquanto tais, não configuram a atualidade; é o interesse que lhes devotamos que os fazem atuais. Enfim, o próprio Haacke também está entre aqueles que enfatizam a atualidade não é sinônimo de presente ou de acontecimento: Que é, pois, o que se entende por atualidade? Ocorre um acontecimento. Informa-se sobre ele. A informação é acolhida. Ela modifica o estado do “eu” que a compreende, bem como do grupo que a recebe e das multidões influenciadas por ela. Desta maneira modifica o acontecimento, fazendo-o passar, graças ao meio transportador – os meios de comunicação de massa –, em lugares concretos, mas em um tempo indeterminado, aos homens e a sua existência no mundo (Haacke, 1969: 187). O conjunto das afirmações acima converge no sentido de que o problema da atualidade deve ser situado como uma relação particular da dinâmica dos acontecimentos, sem reduzi-los ao tempo presente ou aos acontecimentos do mundo. A relação entre atualidade é, portanto, bastante estreita. Robert Park, em artigo de 1940, já havia chamado a atenção para a notícia como uma forma de conhecimento e para as funções que desempenha na sociedade. No entanto, coube a outro acadêmico estadunidense, o historiador Daniel Boorstin, introduzir o conceito de pseudo-acontecimento, o qual nos levaria a aprofundar a relação entre acontecimento e atualidade mediática. Logo de saída, o problema da atualidade não fica restrito à atividade jornalística e se estende a toda atividade cultural. A indústria da fantasia, tida como da mais alta importância, sem que isso impeça a crítica radical que o autor lhe reserva. Sobretudo do lado da demanda3 3 Boorstin não faz uma análise mais acurada da demanda de informação e pode inscrever-se no rol dos que a naturalizam. Seu tratamento é retórico e moralístico, assumindo o tom de uma crítica da sociedade estadunidense. Ela simplesmente representa a pressão dos indivíduos por mais notícias e que leva à produção dos pseudo-acontecimentos. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação www.compos.org.br 7 de informação e de cultura. Sem fazer uma análise sobre sua gênese, Boorstin propõe uma avaliação da desmesura dessa demanda, que força uma grande produção de conteúdos, alterando radicalmente o sentido destes. Os jornais não podem mais se limitar a recolher e espelhar os acontecimentos do mundo, faz-se necessário sua fabricação para atender a avidez do público. Daí a emergência do conceito de pseudo-acontecimento, que permite ao autor desenvolver a análise da dinâmica do acontecimento e sua difusão. Vejamos dois exemplos propostos pelo autor. No primeiro, com o qual exemplifica e tipifica o conceito de pseudo-acontecimento, Boorstin analisa a necessidade de um hotel de se promover. Entre as opções estão uma reforma ou um novo chefe de cozinha. Mas aconselhado por um expert, o hotel promove uma grande festa de aniversário4. O importante é que esta festa é inteiramente organizada tendo por único princípio e objetivo a difusão pelos meios de comunicação e a conseqüente publicidade do hotel, de modo que a difusão é a razão de ser e a medida do sucesso de um pseudo-acontecimento. Em outra passagem menos detalhada o autor cita o famoso caso do aviador Lindbergh e sua travessia do Atlântico Norte, saudada pela imprensa da época como a primeira travessia em avião. Não obstante o fato disto não ser correto, a façanha de Lindbergh foi intensamente vivida pelas pessoas dos dois continentes. Na verdade ela não tinha sido a primeira travessia, dois aviadores ingleses já haviam cruzado o Atlântico oito anos antes. O problema é que os meios de comunicação não divulgaram o acontecimento. E isto muda tudo, como mostra claramente este celebre episódio.Boorstin não se dá conta da diferença dos dois casos. O exemplo do hotel faz do pseudo-acontecimento uma estratégia. Evoca uma intencionalidade (no caso, uma intencionalidade comercial, mas que facilmente poderia ser de outra esfera, como a intencionalidade política, por exemplo), que diz respeito a uma ação voltada para a inserção de determinado objeto (hotel) na dimensão da atualidade (entendida como um valor, prestígio e convertível em dinheiro). Já no exemplo do caso Lindbergh não há, propriamente falando, uma intencionalidade. Esta é substituída por uma dialética entre imprensa e público, de modo que se estabelece um processo em espiral, com níveis crescentes de implicação recíproca entre a difusão e a demanda de informação. Esta distinção tem um importante alcance epistemológico. Se o primeiro exemplo extrapola o campo comunicacional, colocando em jogo interesses inerentes à publicidade (comércio, política, ideologia...), no segundo, o conceito de pseudo-acontecimento coloca um problema estritamente comunicacional, que não pode ser reduzido à economia ou à política. Trata-se de uma autonomia do fenômeno comunicacional, com princípios próprios à mediação. No primeiro caso, a comunicação é uma ciência aplicada, no segundo um saber autônomo, que tem um objeto singular e relevante, condições necessárias e suficientes para formar um domínio de estudo especializado. Contudo, o passo decisivo é dado por Pierre Nora, em seu famoso artigo O Acontecimento Monstro (1972), ao identificar o social com o mediático: só temos acontecimentos sociais se forem mediatizados. A adoção, aprofundamento e desenvolvimento deste ponto de vista permitem caracterizar, a nosso ver, a especificidade dos trabalhos em comunicação, pois coloca a mediação tecnológica, tal como realizada pelos meios de comunicação, como condição e expressão do social. A atualidade mediática, conseqüentemente, assume o valor de objeto de estudo para uma nova disciplina que trará uma outra perspectiva sobre o social, diferente daquela da sociologia. 4 O exemplo de Boorstin é retirado de Edward L. Bernays no seu manual "Como cristalizar a Opinião Pública" (1923). Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação www.compos.org.br 8 Curiosamente, Pierre Nora não reconhece a contribuição de Boorstin, a qual critica por empregar o prefixo pseudo. Na verdade, a noção de pseudo-acontecimento se refere ao papel fundamental da mediação para a constituição do acontecimento. Se ultrapassarmos as diferenças e contradições dos exemplos de Boorstin podemos ver que o acontecimento mediático se constitui pelo primado da mediação técnica. Esta se torna a razão de ser ou o princípio que estrutura, dá sentido e valor ao acontecimento. A mediação tecnológica atravessa e enquadra a realização do acontecimento, que por isso pode ser chamado de acontecimento mediático, não somente porque é veiculado, mas inteiramente organizado pela mediação tecnológica. Para me expressar em linguagem aristotélica, esta se torna a causa eficiente, formal e final do acontecimento. E numa esfera mais polêmica e ambígua, também a causa material, no sentido que o acontecimento não existe fora de suas condições materiais de circulação (meios de comunicação, infra-estrutura tecnológica). Notemos que o valor inerente à atualidade, isto é, a visisbilidade, a notoriedade, o status e o reconhecimento social, também são decorrentes da veiculação e a concentração de atenção social proporcionada pela mediação tecnológica. O mesmo pode ser dito em relação à questão da dimensão do tempo presente, que não é exatamente o presente cronológico ou uma propriedade que emana do mundo, mas uma sincronização das experiências individuais. Em suma, o saber comunicacional se volta para um objeto inteiramente atravessado pela mediação tecnológica, constituindo a esfera da atualidade como expressão dessa atividade mediática. Inclusive enquanto fato comunicacional, já que a difusão massiva é ela mesma um acontecimento. Como observa Jacques Durand (1981), os telejornais nos informam diariamente os principais acontecimentos do dia, salvo talvez aquele de maior proporção, que milhões de indivíduos estão diante de seus aparelhos, interconectados por uma esfera comum. Em síntese, podemos dizer que o conceito assume diversas dimensões. A atualidade é algo que emerge com a complexificação da sociedade e o desenvolvimento das tecnologias da comunicação. Em seus traços descritos, sucintamente se apresenta como o produto da atividade mediática, gerando uma dimensão virtual, que unifica o campo das existências dos indivíduos, permitindo ultrapassar o espaço-tempo de seus canais sensorais. Com isso também se torna possível ultrapassar o plano comunitário e ascender ao plano social propriamente dito. De outra parte, enquanto instância de visibilidade, a atualidade cumpre a função de reduzir a complexidade, permitindo a integração dos indivíduos à sociedade e à cultura. A atualidade mediática diz respeito a muitas dimensões: ! fenômeno social: unifica o campo da existência e permite o estabelecimento de novos elos sociais. Neste sentido é uma matriz social. ! fenômeno cultural: porque esta dimensão se expressa como valor; gera valores que deslocam aqueles da tradição, fazendo com que o presente se torne o sistema de referência, o centro em torno do qual gira a vida social. ! fenômeno de representação: geração de uma representação social dinâmica, de acesso universal, servindo de base para a vida social. Neste sentido, é tanto fenômeno de representação social como representação social do fenômeno. ! fenômeno histórico: inscrito na história, mas com historicidade própria, já que altera a nossa relação com ela. ! fenômeno técnico: a atualidade mediática se encontra no ponto de conjunção de duas linhas de evolução da técnica: tecnologias de ação e tecnologias de Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação www.compos.org.br 9 representação. Fenômeno singular, na medida em que a tecnologia de comunicação começa a compor a organização social e surge um novo tipo de meio de comunicação, os meios-máquina. Dimensões que, bem entendido, não expressam nenhuma interdisciplinaridade, mas a reorganização necessária do espaço das ciências humanas com a emergência de uma nova disciplina. Interlocução necessária (nada nova ou revolucionária) entre os saberes. Neste sentido, a atualidade também expressa uma dimensão epistemológica: liberação de um fenômeno singular, que se torna o objeto de estudo do saber comunicacional. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação www.compos.org.br 10 Referências BENITO, Ángel. La invención de la actualidad: técnicas, usos y abusos de la información. Madri: Fondo de Cultura Económica, 1995. BOORSTIN, Daniel. L’Image : un guide pour le pseudo-événement. Union Générale d’Éditions, Col. 10/18. Paris, 1971. CAXITO SANTOS, Alexandre. Atualidade na Comunicação, trabalho de conclusão de curso. Universidade de Brasília, 2006, não publicado. DETIENNE, Marcel. Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica. Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 1988. DURAND, Jacques. Les Formes de la Communication. Dunod/Bordas. Paris, 1981. DURKHEIM, E. Les Formes Élémentaires de la Vie Religieuse. Libraire Générale Française. Paris, 1991. EMERY, E. História da Imprensa nos Estados Unidos. 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