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A Urgência Subjetiva na Saúde Mental1 (Uma introdução) Francisco Paes Barreto Palavras-chave: Urgência; Saúde Mental; Fragmentos clínicos Para introduzir a questão da urgência no campo da saúde mental pretendo estabelecer um paralelo entre a perspectiva médica e a perspectiva psicanalítica na abordagem do tema. Contraposição que pode ser lida de duas maneiras. Comparando-se ponto por ponto, fica evidenciada a diferença entre os dois discursos. Ou então, examinando-se os diversos pontos de um deles, pode-se considerar a sua coerência. O paralelo, além de objetivos didáticos, insiste na idéia de que o campo da saúde mental deve ser o lugar de muitos discursos. O que está em jogo, na urgência médica? Trata-se do corpo biológico, ou seja, do corpo tal como foi apreendido pelo discurso da ciência. Corpo-máquina, capturado pelos significantes da linguagem médica. Nesses termos, a crise que origina a urgência pode ser definida como uma ruptura aguda da homeostase e/ou da integridade física do organismo. No horizonte, como ameaça, está a invalidez ou a morte. Na perspectiva psicanalítica, o que está no âmbito do interesse é a urgência do sujeito, é a urgência subjetiva. Quem é esse “sujeito”? Não me deterei na questão; lembro, apenas, que não se trata do sujeito da consciência, mas do sujeito que se infere ou se depreende, por exemplo, a partir do ato falho, na neurose, ou da passagem ao ato, na psicose. Nessa perspectiva, a crise pode ser definida por uma ruptura aguda da cadeia significante. A urgência subjetiva é a impossibilidade, num momento dado, de significar minimamente pela fala um gozo que não encontra o significante necessário para transformá-lo.1 O que se apresenta não é o que se diz —diz-se muito pouca coisa, pois algo do dizer não se articula; o que se articula é um silêncio, um pranto ou um grito. Impossibilitado de situar-se no registro da palavra, o sujeito configura no seu horizonte a passagem ao ato homicida ou suicida. Na urgência médica, a demanda se relaciona à necessidade de um homem que sofre por sua ferida. O médico corre até seu paciente e o ideal, quando se considera o tempo, é que não haja intervalo entre chamado e resposta. Na urgência subjetiva, o analista espera que o paciente venha ou seja trazido. Existe o sofrimento de um homem ferido em sua necessidade por sua linguagem, mas a demanda de tratamento nem sempre está presente no início; com freqüência, é preciso ser ofertada e construída. Ou seja: passar da urgência segundo o Outro à urgência do sujeito. 1 Trabalho apresentado no XIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, no Rio de Janeiro, na plenária sobre O DISPOSITIVO: INVENÇÕES E INTERVENÇÕES, no dia 23 de abril de 2004. (Publicado na OPÇÃO LACANIANA —Revista Brasileira Internacional de Psicanálise— nº 40. São Paulo: Edições Eólia, 47-51, agosto de 2004) 1 Quanto ao tempo, importa assinalar que a perspectiva psicanalítica supõe a pressa, mas também a pausa.2 A pressa leva em conta a necessidade. Acontece, porém, que ali onde o sujeito se constitui mortificado pelo significante, a necessidade está perdida. E introduzir a pausa é importante quando se considera as vertentes do desejo e do gozo. Na urgência médica, o paciente é o objeto do trabalho do médico. Existem “coisas para fazer”. O clínico seleciona as coisas para fazer e simplifica a situação. No tempo da urgência, opera sem priorizar a questão da causa. O objetivo é restabelecer a homeostase e/ou a integridade física do organismo, num procedimento em que é de fundamental importância a experiência e o saber. A clínica da urgência subjetiva consiste, primeiramente, em introduzir a experiência da escuta. Parte-se do pressuposto de que existem “coisas para dizer”. O analista, destarte, procura complexar a situação multiplicando as coisas para dizer.3 Passo indispensável quando se procura estabelecer o contexto no qual se origina a crise. O analista trabalha para implicar o sujeito; em outras palavras, trabalha para que, do paciente-objeto, advenha o sujeito. Só é possível conceber urgência subjetiva quando se trata de um ser falante e ela pode ser caracterizada por uma redução drástica do tempo discursivo. Na crise perde-se, ainda, a noção de causalidade, prevalecendo a preocupação com a emergência avassaladora do gozo. Diferente da abordagem médica, a psicanalítica procura re- introduzir a dimensão do tempo e a consideração da causa, visando à transformação da urgência mediante sua inscrição na cadeia significante. Dizendo de outra maneira: tratar pela palavra o gozo que se apresenta sob a forma de um insuportável. Para a psicanálise, mais do que experiência, importa a abertura à surpresa, e mais do que saber importa a abertura ao sem sentido. Levarei em conta um último aspecto. Para a medicina, o seguimento da urgência tem por objetivo —entre outros— a consideração da causa, quer dizer, a identificação e o tratamento dos fatores determinantes. Para a orientação psicanalítica, o seguimento da urgência é a construção do caso clínico, que busca, em poucas palavras, abrir caminho ao desejo, na neurose, e à estabilização, na psicose. URGÊNCIA PERSPECTIVA MÉDICA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA Em jogo: o corpo biológico Em jogo: o sujeito Crise: ruptura aguda da homeostase e/ou da integridade física do organismo Crise: ruptura aguda da cadeia significante No horizonte: invalidez, morte No horizonte: passagem ao ato Que não haja intervalo entre chamado e resposta Importa a pressa, mas também a pausa Paciente: objeto do trabalho do médico Que do paciente-objeto advenha o sujeito Coisas para fazer Coisas para dizer Objetivo: restabelecer a homeostase e/ou a integridade física do organismo Objetivo: transformar a urgência mediante sua inscrição na cadeia significante Seguimento: tratamento das causas Seguimento: construção do caso clínico 2 FRAGMENTOS CLÍNICOS Fragmento clínico nº 1 4 (De autoria de Maria Elizabeth Bastos Khoury Sabino) T. aparece no Centro de Saúde para marcar uma consulta com a clínica geral. Ao se dirigir à recepção para agendar é cumprimentada por uma funcionária que lhe pergunta: —Você está boa? Inesperadamente, T. começa a gritar palavrões e a desafiar todos os que estão presentes, repetindo sem parar que não é doida. Ela havia “escutado” a funcionária perguntar: —Você está doida? É este o momento em que chego ao Centro de Saúde. E é esta a cena que me surpreende: T. transtornada, colérica e agressiva. Ao me aproximar, ela percebe que tenho a intenção de abordá-la e me faz ameaças. Continua xingando, mas diminui o tom de voz, num esforço para escutar o que digo em um tom propositadamente mais baixo. Tomando a urgência da crise como urgência de coisas para dizer, convido T. a falar sobre sua história. Ao fechar a porta do consultório ela pergunta: —E você, não tem medo de mim? Respondo: —Você acha que eu deveria ter medo de você? T. começa a chorar e dizer que não agüenta mais ser tratada como doida. Diz que sua família quer enlouquecê-la. Relata maus tratos pelos pais e irmãos, dizendo que sempre foi espancada por eles. Conta que a família chama a polícia e eles a levam para a delegacia, onde apanha mais. Volta a repetir que não é doida e justifica que resolveu agir de forma a confirmar o rótulo. Interrompe sua fala e decide sair. Pergunto-lhe se concordaria em voltar a conversar comigo. Ela novamente se emociona, chora e pede desculpas pelo seu comportamento. Decide, então, avisar-me “quando tiver um tempo disponível”, tomando o controle da situação. T. reaparece no dia seguinte e daí em diante freqüenta regularmente as sessões, fazendo coincidir “seu tempo disponível” como meu. Sua temática será sempre esta: “medo de enlouquecer”. Fragmento clínico nº 2 5 (De autoria de Ana Amélia Oliveira Reis de Paula) A secretária do ambulatório, ansiosa e apreensiva, pede-me para atender o seu sobrinho, que está bastante perturbado depois de ter acompanhado, muito de perto, a doença de uma parente, recentemente falecida. Informa-me que ele está trazendo muita preocupação para a família —e de fato, logo após a primeira entrevista, um colega, com quem eu já havia trabalhado, telefona-me, querendo informações e dizendo-me que o paciente é parente próximo de sua esposa. 3 Em nosso primeiro encontro, G. entra no consultório visivelmente assustado, demonstrando muita necessidade de falar e de pedir ajuda. Tenta dizer, com muita pressa, as coisas que viveu nos últimos dias e seu sofrimento por não estar entendendo nada do que se passa. Diz-me que sua vida mudou muito, desde que teve um “susto”. Relata-me o que chama de susto: sentiu, repentinamente, que o coração havia parado de bater. Ficou desesperado, achando então que estava morto. Chorava e dizia para sua mãe que não estava sentindo seu coração bater, que estava morrendo ou estava morto! Passou a dormir no quarto e na cama de sua mãe. Dormia abraçado a ela, tamanho era o medo de morrer, de sentir seu coração parando. G. chora e me diz que, ali mesmo, naquela hora, não está sentindo seu coração bater. Sua cabeça está muito leve, parecendo que não tem nada. É um vazio muito grande, acha-se muito diferente de antes... Foi ao médico e este lhe disse que não havia nada de errado com o seu corpo ou com a sua saúde. Palavras que o tranqüilizaram; entretanto, as sensações persistiram. Sugiro-lhe relatar como tudo isso começou. A madrasta de sua mãe estava muito doente e ele começou a acompanhar o sofrimento dela, até o seu falecimento. Ficava impressionado de ver como era uma mulher forte. Vivia sozinha e não aceitou que ninguém morasse com ela, mesmo no momento em que mais estava precisando de cuidados. Recusou-se a fazer qualquer tratamento —mesmo estando com câncer. Brigou até o fim... e as coisas aconteceram do jeito que ela queria. Era mulher difícil, intransigente, terrível! Da parte de G., apesar de tudo, havia grande admiração. Queria abraçá-la, cuidar dela, mas ela não permitia a aproximação de ninguém.. Sua mãe sofria muito, pois, entre outras acusações, sua madrasta se dizia roubada por ela. G. chora ao dizer que a velha definhou-se na cama e que nada puderam fazer, pois, mesmo sentindo dor, ela se recusava a qualquer intervenção médica. Fala do quanto ficou chocado ao ver a dureza daquela mulher. “Ela, na cama, comandava tudo e todos da família! Era incrível, mas muito cruel...” Nas sessões seguintes, retorna mais calmo, sorridente. Numa das sessões, sua irmã também vem: queria conhecer a pessoa que havia feito seu irmão melhorar tão rapidamente, com apenas uma sessão... Fragmento clínico nº 3 E quando a urgência consiste numa crise de agitação psicomotora ou de agressividade num psicótico? Sabe-se da ineficácia do significante nesse caso. Para ser mais preciso, é exatamente a ruptura do tecido simbólico que propicia a invasão desenfreada do gozo, que com freqüência resulta na passagem ao ato. A intervenção psicanalítica conhece aqui o seu limite. A escuta continua tendo o seu lugar, mas a prática clínica inclui o recurso à contenção farmacológica ou mesmo à contenção física. É outra a possibilidade do psicanalista; por exemplo, evitar que as coisas cheguem a tal ponto. Pode-se conseguir isso de várias maneiras. Indicarei aqui uma delas: a manobra da transferência. É um modo do analista lidar com a transferência psicótica. Consiste em sair do lugar persecutório ou erotomaníaco em que o psicótico o coloca, buscando um lugar vazio de gozo. Trarei um fragmento clínico privilegiado: uma manobra da transferência realizada pelo próprio Lacan! Trata-se de entrevista conduzida por Jacques Lacan, com um paciente psiquiátrico hospitalizado, um paranóico, diante de grupo de psiquiatras e psicanalistas. 4 É importante assinalar que o paciente —que teve seu nome alterado por Jacques-Alain Miller para Gérard Primeau— tinha Lacan em alta conta, motivo pelo qual concordou em conversar com ele. Ou seja, a transferência estava lá. Vamos ao fragmento que nos interessa e que ocorreu pouco após o início da apresentação. “Dr. Lacan – Sim. Então vamos conversar mais especificamente, se você quiser, sobre as sentenças emergentes (falas impostas). Desde quando elas emergiram? Esta não é uma questão idiota (...) G. Primeau – Não, não. Desde que (...) fui diagnosticado como tendo crises paranóicas em março de 1974. Dr. Lacan – Quem disse isto? G. Primeau – Um médico àquela época. Essas sentenças emergentes...” Nesse momento, Lacan observa que o paciente está olhando de modo desconfiado para uma pessoa da platéia. Não perde tempo. “Dr. Lacan – Por que você se volta para este homem aquí? G. Primeau – Senti que ele estava zombando de mim. Dr. Lacan – Você sentiu uma presença zombadora? Ele não está em seu campo de visão. G. Primeau – Estava ouvindo um som e senti (...)” Lacan confirma, assim, a atribuição persecutória. O que ele diz, em seguida, é o que pode ser caracterizado como manobra da transferência. “Dr. Lacan – Ele não está certamente brincando com você. Conheço-o bem e ele seguramente não está brincando com você. Ao contrário está muito interessado. Foi por esta razão que fez barulho. G. Primeau – A impressão de sua compreensão intelectual (...) Dr. Lacan – Sim, penso assim, isto é mais como ele é. Eu lhe disse que o conheço. Além disto, conheço todas as pessoas que estão aqui. Elas não estariam aqui, se não tivesse total confiança nelas. Bem, continue.”6 E o paciente continuou até o fim uma longa entrevista. A manobra da transferência muito provavelmente evitou a eclosão de uma crise persecutória. 5 1 FREDA, F-H. Urgence subjective et urgence sociale. In: Supplément au nº 15 de Confluents. Paris: Association de la Cause freudienne, 1994, pp. 40-1. 2 DREYZIN, A., Ed. La Urgencia. El Psicoanalista en la Práctica Hospitalaria. Buenos Aires: Ricardo Vergara Ediciones, 1988, pp. 11-20. 3 LEGUIL, F. Reflexiones sobre la urgência. In: La Urgencia. Op. cit., pp. 23-28. 4 Extraído de caso clínico apresentado por Maria Elizabeth Bastos Khoury Sabino à Supervisão Clínica no CERSAM Noroeste, em 14 de fevereiro de 2001. Fragmento aqui incluído com a sua gentil autorização. 5 Extraído de caso apresentado por Ana Amélia Oliveira Reis de Paula no dia 23 de agosto de 2002, durante Supervisão Clínica instituída pela Coordenadoria de Psicologia do Hospital das Clínicas da UFMG. Fragmento aqui incluído com a sua gentil autorização. 6 LACAN, J. Uma psicose lacaniana: entrevista conduzida por Jacques Lacan. In: Opção Lacaniana, nº 26/27. São Paulo: Edições Eólia, abril de 2000, p. 6.
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