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lingÜística iii IARA BEMQUERER COSTA 2.ª edição 2009 Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Todos os direitos reservados. © 2008-2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autoriza- ção por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. Capa: IESDE Brasil S.A. Imagem da capa: Júpiter Images / DPI Images CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ C872L v.3 Costa, Iara Bemquerer. Lingüística III. / Iara Bemquerer Costa. – Curitiba, PR: IESDE, 2009. 256 p. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-0778-3 1. Socioingüística. 2. Fala. 3. Conversação. I. Inteligência Educacional e Siste- mas de Ensino. II. Título. 09-4215. CDD: 401.9 CDU: 81’42 Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Doutora em Ciências (Lingüística) pela Universidade Estadual de Campinas (Uni- camp). Mestre em Lingüística pela Unicamp. Graduada em Letras-Português pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Iara Bemquerer Costa Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Sumário Análise da fala e da conversação ........................................ 15 A conversação como objeto de estudo ............................................................................. 15 Propriedades definidoras da conversação ....................................................................... 16 Algumas modalidades de conversação ............................................................................ 19 Transcrição da fala..................................................................................................................... 22 Conclusão ..................................................................................................................................... 27 Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação ............................................ 35 A especificidade da conversação ......................................................................................... 35 Os turnos de fala ........................................................................................................................ 36 Tópico conversacional ............................................................................................................. 40 Pares adjacentes ........................................................................................................................ 43 A hesitação .................................................................................................................................. 47 Conclusão ..................................................................................................................................... 48 Estratégias de organização do diálogo ............................ 57 A paráfrase ................................................................................................................................... 57 A correção .................................................................................................................................... 60 A repetição ................................................................................................................................... 62 Os marcadores conversacionais ........................................................................................... 63 Conclusão ..................................................................................................................................... 68 Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br A aquisição da linguagem ..................................................... 75 Teorias de aquisição da linguagem .................................................................................... 76 A aquisição da fonologia ........................................................................................................ 83 Observações sobre a aquisição da escrita ........................................................................ 86 Conclusão ..................................................................................................................................... 87 Análise retórica da argumentação ..................................... 95 A Retórica Clássica e sua revitalização na Nova Retórica ............................................ 95 Conceitos fundamentais da Nova Retórica ....................................................................100 O ethos: imagem do autor projetada no discurso .......................................................107 Conclusão ...................................................................................................................................108 A teoria da argumentação na língua ...............................117 A contribuição de Oswald Ducrot para o estudo da argumentação ....................117 A pressuposição .......................................................................................................................120 O subentendido .......................................................................................................................122 Os operadores argumentativos .........................................................................................123 Conclusão ...................................................................................................................................127 Teoria da informação ............................................................133 Informação X redundância ..................................................................................................133 Contribuições da teoria da informação para o estudo das línguas ......................136 A informatividade como fator de textualidade ............................................................138 Fontes de expectativa para a avaliação da informatividade ...................................142 Conclusão ...................................................................................................................................143 Teoria dos atos de fala ..........................................................151 O conceito de atos de fala: origem, contribuições para a Lingüística e limites ......................................................152 Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br As enunciações performativas ...........................................................................................155 Tipos de atos de fala ...............................................................................................................156 Conclusão ...................................................................................................................................159 As máximas conversacionais ..............................................169 As relações entre a lógica e a conversação segundo J.P. Grice ...............................169 Princípios organizadores da conversação ......................................................................171 Implicatura conversacional ..................................................................................................178 Conclusão ...................................................................................................................................179Conceitos básicos da Análise do Discurso ....................187 Surgimento e consolidação da Análise do Discurso...................................................188 Formação ideológica e formação discursiva .................................................................191 O conceito de discurso ..........................................................................................................192 Discurso e interdiscurso ........................................................................................................194 Conclusão ...................................................................................................................................196 O sujeito na Análise do Discurso ......................................203 Condições de produção e jogo de imagens ..................................................................203 O conceito de sujeito na Análise do Discurso ...............................................................208 Sentido e efeito de sentido ..................................................................................................210 Conclusão ...................................................................................................................................211 Exemplos de Análises do Discurso ...................................221 Exemplo 1: A linguagem politicamente correta e a Análise do Discurso ...........221 Exemplo 2: O mito de informatividade, imparcialidade e objetividade em funcionamento nos comentários telejornalísticos ................226 Conclusão ...................................................................................................................................229 Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Gabarito .....................................................................................237 Referências ................................................................................247 Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Apresentação A Lingüística – ciência que tem como objeto o estudo da linguagem – foi criada e se consolidou a partir da obra genial de Ferdinand de Saussure, especialmente do seu Curso de Lingüística Geral, publicado em 1916. Alguns pressupostos assumidos por ele foram fundamentais para a delimitação do objeto de estudo da Lingüística e do método adotado para a análise das questões incluídas no campo de estudo circunscrito para a nova ciência. Para o estruturalismo, que caracteriza a Lingüística da primeira metade do século XX, a língua é concebida como um sistema de signos, e analisada a partir das relações de semelhança e diferença entre os elementos nos diversos níveis desse sistema: na fonologia, na morfologia, na sintaxe. A definição do objeto e do método de análise formulados pelo estruturalismo alavancou os estudos da linguagem e permitiu avanços consideráveis na análise tanto das línguas já estudadas há séculos – as européias, por exemplo – como de numerosas línguas americanas e africanas, que não contavam com descrições pré- vias nem dispunham de sistemas de escrita. No entanto, a definição do objeto pela Lingüística estrutural deixa fora do campo de estudo uma série de questões rele- vantes sobre a organização e funcionamento das línguas naturais. O estruturalismo parte da oposição entre língua (sistema de signos) e fala (uso da língua) e define a primeira como seu objeto de estudo. Conseqüentemente, ficam de fora todas as questões que envolvem a relação do falante com a linguagem, a ligação entre os fatos sociais e o uso da língua, as unidades lingüísticas maiores que a sentença. Este livro focaliza uma série de formulações teóricas e metodológicas poste- riores ao estruturalismo e que têm em comum a revisão dos limites do estudo da linguagem estabelecidos por uma concepção formalista. Algumas dessas refor- mulações são motivadas pela observação de propriedades das línguas naturais que uma abordagem formalista não capta. Exemplos dessas reformulações são: os estudos da argumentação na língua, que mostram que as expressões lingüísti- cas têm intrinsecamente uma carga argumentativa; a teoria dos atos de fala, que coloca em evidência a existência de ações que são realizadas pela produção de enunciados lingüísticos. Outras reformulações são motivadas pela incorporação de questões relevantes antes excluídas dos estudos lingüísticos, como o funcionamento da fala. A Análise da Conversação procura desenvolver uma metodologia adequada para a identifi- cação dos princípios que regem a interação entre os falantes quando fazem o uso mais trivial de sua língua: conversam no dia-a-dia sobre qualquer tema. Há também ampliações significativas dos estudos da linguagem motivadas pelo diálogo entre a Lingüística e outras áreas do conhecimento que também tratam de questões que têm reflexos no uso da linguagem. O diálogo com a Psi- cologia e as teorias de aquisição da linguagem formuladas por psicólogos como Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Jean Piaget foi fundamental para o desenvolvimento da Psicolingüística. A revita- lização da Retórica – a partir da releitura da Retórica Clássica – produziu uma série de estudos da argumentação. As contribuições da Sociologia, a partir dos estudos da ideologia, e da Psicanálise, que fornece elementos para uma compreensão do sujeito, alavancam o surgimento de uma área dos estudos lingüísticos muito pro- dutiva atualmente, a Análise do Discurso. A teoria da informação contribuiu para a compreensão do funcionamento dos textos. Nas 12 unidades deste volume, são apresentados os conceitos mais relevan- tes de cada uma dessas áreas, com o uso de exemplos que possam facilitar o seu entendimento e indicações de fontes às quais o estudante pode recorrer para o aprofundamento do estudo nas áreas que lhe despertarem maior interesse. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Raramente paramos para pensar na forma mais comum e trivial de uso da linguagem: a conversa informal, face a face com o interlocutor. É por meio da conversação que aprendemos a falar, que interagimos com os fa- miliares e os amigos em todas as fases da vida, que temos acesso aos demais usos da linguagem. Apesar da importância e onipresença da conversação, a Lingüística, ciência que tem como objeto o estudo da linguagem, de- morou meio século para focalizar sua atenção sobre essa modalidade. A conversação como objeto de estudo Ao propor os princípios nucleares da Lingüística em seu livro funda- dor, o Curso de Lingüística Ge ral, publicado inicialmente em 1916, Saussure (1975) dá prioridade ao estudo da língua, enquanto sistema de signos organizados que possibilitam os diferentes usos lingüísticos dos falantes. Considera esses usos – a fala – como manifestações individuais e mo- mentâneas dos falantes. A fala seria um ter reno dominado pelas caracterís- ticas individuais, liberdade, variação, ausência de princípios reguladores. Enquanto o modelo estruturalista foi predominante nos estudos lingüísti- cos, o interesse pela fala ficou limitado à busca de dados para o estudo da língua enquantosistema, em especial para o estudo da fonologia. A Análise da Conversação só se desenvolveu a partir da década de 1960, época em que ganha ram corpo várias áreas da Lingüística voltadas aos usos da linguagem: a Sociolingüística, a Psicolingüística, a Análise do Discurso. Essa nova área da lingüística procura identificar os conhecimen- tos que são compartilhados pelos falantes e que possibilitam a realização de interações bem-sucedidas entre eles. Um de seus pressupostos é que a conversação é regida por princípios de organização que apresentam regu- laridades que podem ser descritas e estudadas. A Análise da Conversação Análise da fala e da conversação Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 16 Lingüística III busca caracterizar as normas lingüísticas e socioculturais que subjazem às situa- ções concretas de interação. Em outras palavras, busca explicar como as pessoas se entendem nas suas conversas do dia-a-dia; como sabem que estão se enten- dendo e agindo de forma cooperativa, segundo as normas de convivência social aceitas tacitamente pelo grupo; como resolvem conflitos e disputas surgidas du- rante as interações. Propriedades definidoras da conversação Para encontrar respostas para as questões apontadas anteriormente, é necessário, em primeiro lugar, identificar as características básicas da conversa- ção. É o que Marcuschi (1986, p. 15) procura fazer quando reconhece que a con- versação apresenta cinco características essenciais: interação entre pelo menos dois falantes; � ocorrência de pelo menos uma troca de falantes; � presença de uma seqüência de ações coordenadas; � execução em uma identidade temporal; � envolvimento em uma “interação centrada”. � Algumas observações sobre essas cinco características constitutivas da con- versação são importantes. Para haver interação entre dois ou mais falantes, não é necessário que eles se encontrem frente a frente, pois o desenvolvimento de tecnologias de comunicação permite o diálogo entre pessoas distanciadas espa- cialmente. O recurso que possibilitou isso foi, inicialmente, o telefone, aparelho criado para possibilitar o diálogo entre dois interlocutores sem a necessidade de que estes estivessem em espaços próximos. O uso do telefone resultou no desen- volvimento de um conjunto de regras sociais definidas culturalmente para esse tipo de conversação: fórmulas de início e encerramento da interação, maneiras de cada falante se identificar para o interlocutor, convenções sobre a duração de uma ligação, sobre quem deve tomar a iniciativa de encerrar a conversa. A expansão do uso de programas de computador como o ICQ e o MSN Mes- senger veio permitir a interação entre duas ou mais pessoas com uso da mo- dalidade escrita da linguagem, em tempo real. Tal como em outras situações de conversação, as intervenções dos participantes se dão no que Marcuschi (1986, p. 15) chama de “identidade temporal”, ou seja, sucedem-se umas às outras em Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Análise da fala e da conversação 17 um período de tempo delimitado. O desenvolvimento tecnológico criou a pos- sibilidade de a conversação ocorrer na modalidade escrita, fato impensável há poucos anos. Também, nesse caso, a prática dos chats – ou bate-papos via internet – está produzindo um conjunto de normas de escrita compartilhadas pelos usuários. São normas que diferem da ortografia oficial da língua, repletas de abreviações e outros recursos, que buscam obter maior velocidade na produção escrita e incorporar novas formas de expressão. A exigência de que haja pelo menos uma troca de falantes mostra que nem todos os usos da linguagem oral podem ser considerados conversação. Um sermão ou uma conferência não são episódios conversacionais, ainda que se di- rijam a um grupo de interlocutores presentes; já uma compra no balcão da loja, uma consulta médica, uma entrevista radiofônica são exemplos de conversação. Essas situações apresentam as cinco características da conversação apontadas anteriormente. É importante destacar também a relevância do envolvimento em uma inte- ração centrada, em torno de tópicos, temas comuns, que sejam mantidos, ainda que possam ocorrer muitas digressões. Se observarmos um grupo de amigos em uma roda em que ocorram várias conversas simultâneas, sem um tópico comum, não é possível analisar essa situação como um caso de conversação. A conversa- ção requer uma interação cooperativa, em que as intervenções dos falantes se caracterizam pela manutenção dos assuntos em pauta. As relações entre os participantes de uma conversação podem ser simétricas ou assimétricas. Nos diálogos assimétricos, um dos participantes tem o direito de controlar os vários momentos da interação: definir tópicos, iniciar e terminar a conversação, controlar o tempo do outro. É o que se observa, por exemplo, em um debate televisivo entre candidatos a cargos políticos. As regras são previa- mente estabelecidas e o jornalista escolhido como moderador do debate tem a prerrogativa de decidir quem fala em cada momento, fazer perguntas ou per- mitir que outros se dirijam a um interlocutor determinado, controlar o tempo usado por cada um. Já nos diálogos simétricos, todos os participantes têm, em princípio, o mesmo direito à palavra. Isso não quer dizer que é colocado em prática esse direito. Sempre há os que disputam a vez de falar de forma mais efetiva, muitas vezes impedindo que os mais tímidos façam uso do seu direito igualitário à participa- ção na conversa. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 18 Lingüística III A organização global da conversação foi caracterizada por Adam (2001), que analisou o esquema prototípico de organização das diversas formas de realiza- ção dos diálogos. Segundo ele (apud BONINI, 2005), as seqüências dialogais, que são o componente principal da conversação em todas suas varian tes (ent- revista, telefonema, debate etc.), são organizadas em três partes principais: uma seqüência fática de abertura, um conjunto de seqüências transacionais e uma seqüência fática de encerramento. As seqüências fáticas são fórmulas usadas de uma forma ritual, conforme convenções aceitas por cada grupo, para esta- belecer o contato entre os falantes e indicar a intenção de iniciar ou concluir uma conversação. Veja o esquema da conversação elaborado por Adam: Esquema básico do diálogo segundo Jean-Michel Adam (B O N IN I, 20 05 , p . 2 25 )Seqüência dialogal Seqüência fática de abertura Seqüências transacionais Seqüência fática de encerramento A1 B1 A2 etc. As fórmulas usadas nas seqüências fáticas de abertura e encerramento variam conforme o grau de intimidade entre os interlocutores ou a semelhança de faixa etária ou posição social. Variam também conforme o grau de formalidade da situação em que ocorre a conversa. Todas as línguas dispõem de seqüências fáti- cas formais e informais. Seqüências fáticas de abertura e fechamento: Interação formal: A1 – Bom dia! B1 – Bom dia! [...] An – Até logo! Bn – Até logo! Interação informal: A1 – Oi! B1 – Oi! [...] An – Tchau! Bn – Tchau! Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Análise da fala e da conversação 19 Algumas modalidades de conversação Entre as diversas formas da conversação na sociedade, a de maior interesse para o estudo é a conversação informal, por ser a modalidade de uso da lingua- gem mais utilizada pelos falantes (organizamos a maior parte de nossas ativi- dades do dia-a-dia conversando) e por ser o gênero discursivo quedeu origem a vários outros. Na conversação, os participantes se alternam nos papéis de falante e ouvinte e cada mudança de interlocutor corresponde a um turno. A alternância entre os interlocutores – a mudança de turno – não acontece de forma caótica ou aleatória, mas obedece a regras socialmente estabelecidas. Marcuschi (1986, p. 19) define nos seguintes termos a organização da conversação: A regra geral básica da conversação é: fala um de cada vez. Pois, na medida em que nem todos falam ao mesmo tempo (em geral um espera o outro concluir) e um só não fala o tempo todo (os falantes se alternam), é sugestivo imaginar a distribuição dos turnos entre os falantes como um fator disciplinador da atividade conversacional. Com isso, a tomada de turno pode ser vista como um mecanismo-chave para a organização estrutural da conversação, para a qual podemos imaginar o seguinte roteiro: A: fala e pára; B: toma a palavra, fala e pára; A: retoma a palavra, fala e pára; B: volta a falar e pára; [...] Qualquer brasileiro que observe grupos de pessoas conversando pode perce- ber facilmente que esse princípio de organização da fala é freqüentemente des- respeitado. Isso não quer dizer que não existam regras. Muitas vezes as pessoas percebem que as convenções de uso da palavra estão sendo desobedecidas e fazem intervenções para “colocar ordem” na conversação, com expressões como: “espera aí”, “deixa eu falar”, “por favor”, “um de cada vez”, “deixem X completar o raciocínio dele”. Em outras formas de conversação, as regras são estabelecidas e respeitadas com mais facilidade. Por exemplo, na conversação telefônica há princípios de organização em geral respeitados pelos participantes. Quem faz a ligação tem a obrigação de se identificar e de verificar se está falando com o interlocutor desejado. Quem faz a chamada tem prioridade para indicar o tema da conver- sação (“liguei para...”) e também para assinalar que tem a intenção de encerrar a ligação. As seqüências fáticas de abertura e fechamento são bastante conven- cionais, especialmente em ligações comerciais ou profissionais. Em situações de entrevista transmitida tanto pelo rádio como pela TV, a con- versação é organizada de forma muito mais rígida. O entrevistador estabelece Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 20 Lingüística III uma conversa com um especialista em algum tema e organiza a interação com forma predominante de perguntas e respostas. Nesse tipo de interação há uma relação assimétrica, em que o entrevistador define os temas, a seqüência em que serão abordados, faz intervenções quando o entrevistado fala demais e define o momento de conclusão da entrevista. Essa forma de organização da entrevista está relacionada ao caráter público de sua realização: entrevistador e entrevis- tado não conversam simplesmente um com o outro, mas falam também para o público que ouve rádio ou assiste televisão. Uma forma de conversação que tem atraído a atenção de vários pesquisa- dores nos últimos anos é o chat, ou conversação via internet, que se desen- volveu a partir da criação de tecnologias para a comunicação on-line, como os programas ICQ e MSN Messenger. A primeira questão que se coloca é se é pos- sível considerar “conversação” uma forma de interação que utiliza um registro escrito e não-oral. A própria designação escolhida pelos usuários dessa forma de interação já dá uma pista para incluí-la entre as modalidades de conversação: a palavra chat surgiu da abreviação do vocábulo inglês chatter, que significa “jogar conversa fora”. A denominação chat concorre com bate-papo. Além disso, se observarmos os chats a partir dos cinco critérios usados para caracterizar a conversação (apresentados no segundo item desta aula), podem- os perceber que essa forma de comunicação incorpora todas as características definidoras de uma conversação: apresenta a interação entre pelo menos dois falantes, com pelo menos uma troca de papéis; os participantes interagem em uma seqüência de ações coordenadas, em que cada um leva em conta a inter- venção do outro para direcionar suas intervenções subseqüentes; há uma inte- ração centrada, ou seja, a manutenção de temas comuns ao longo da interação; a conexão pela web permite também que a interação se dê em tempo real. Uma questão interessante em relação a essa forma de conversação é que os próprios usuários – em geral jovens – criaram convenções de escrita particulares. São convenções que: aumentam a velocidade da escrita mediante a abreviação das palavras de � uso mais freqüente, por exemplo: pq (porque), bjs (beijos), mt (muito); inserem várias expressões convencionalizadas para representar sons da � fala que não correspondem a palavras do vocabulário da língua, por ex- emplo: pff, hehehe; Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Análise da fala e da conversação 21 incorporam recursos gráficos diferentes da escrita usual, como os ícones � de emoção – ou emoticons1 – usados para expressar emoções como, por exemplo: :-) (alegre) ;-) (piscando o olho) :-o (assustado) :-( (triste). Além dessas convenções, em geral os chats se dão em uma variedade infor- mal da língua portuguesa, com expressões e construções sintáticas característi- cas da oralidade. Na conversação pela internet os próprios usuários criaram um sistema de registro escrito com modificações da escrita convencional. É o que se pode perceber neste trecho de conversação entre dois adolescentes: A eu vo B hum B Onde q eh isso? A Nem sei A Não lembro B Pff B Hehehehe B Perdidos nós? B Hehehe B Na verdade eu não sei c vou mesmo... pq a ..certeza c vão ou não e como eu não conheço mt gente lá do posi A Ta A To saindo A Vo no supermercado com meu pai A Dpois t explico onde que eh A Bjs :* B *: Até daqui a poucoopoo O estudo dos chats a partir dos mesmos critérios usados para estudar outras formas de conversação permite colocar em evidência suas semelhanças e difer- enças com outras formas de conversação. Observe, por exemplo, que os interloc- utores não esperam a resposta do outro para fazer novas intervenções. Observe também que preferem usar frases curtas, com muitas informações implícitas. Mesmo assim os interlocutores se entendem, não há nenhum indício de mal- entendidos nesse trecho. 1 A palavra emoticons vem do inglês emotion+icons. São combinações de caracteres do teclado do computador usados pelos participantes dos chats para fazerem o registro das emoções durante a interação. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 22 Lingüística III Transcrição da fala O primeiro desafio da Análise da Conversação é definir uma forma de fazer um registro escrito que permita destacar as informações da oralidade considera- das essenciais para seu estudo. Quando nos comunicamos oralmente, fazemos uso de um conjunto de recursos além das palavras: a expressão facial, os gestos, o tom de voz, a velocidade, a ênfase. Além disso, a conversação está repleta de hesitações, repetições, retificações, pausas, interrupções dos interlocutores, su- perposições de fala. Assim, ao registrar a conversação, deparamo-nos com vários recursos expressivos que não têm correspondentes no sistema gráfico desen- volvido para a comunicação escrita. Alguns desses recursos só podem ser observados a partir de uma documen- tação em vídeo, mas a maioria deles pode ser documentada a partir de grava- ções em áudio, com o uso de convenções estabelecidas pelos estudiosos da conversação. Há vários sistemas de transcrição criados para registro escrito da conversação, cada um ligado a um projeto de pesquisa específico.Em princípio, não há um sistema de transcrição melhor que outro. O importante é o pesquisa- dor definir previamente quais são os seus interesses, o que pretende observar na conversação, para escolher uma transcrição que atenda às suas necessidades. Conforme o tópico escolhido para estudo, é necessário partir de um registro em vídeo e definir as formas de transcrição das informações relevantes para o estudo. Suponhamos que o pesquisador parta da seguinte hipótese: em uma conversação de que participem três ou mais pessoas, se aquele está com a pala- vra dirigir seu olhar a um participante, este terá prioridade para tomar a palavra na seqüência. Para verificar se essa hipótese se sustenta, o estudioso teria de documentar as conversações em vídeo e registrar na transcrição a direção do olhar de quem está com a palavra a cada momento. Uma forma de transcrição largamente adotada nos estudos sobre a con- versação no Brasil foi desenvolvida pelo projeto Norma Urbana Regional Culta (Nurc). Trata-se de um projeto desenvolvido na década de 1970, em cinco capi- tais brasileiras – Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife – e que resultou em vários estudos sobre a conversação, entre os quais destacam-se os oito volumes da Gramática do Português Falado, publicados pela Editora da Unicamp. Como essa é a transcrição mais usada nos estudos sobre o português brasileiro, vamos apresentar as principais convenções adotadas no âmbito desse projeto, conforme Pretti (1995). Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Análise da fala e da conversação 23 Convenções gerais O sistema de transcrição da conversação utiliza-se da ortografia da língua es- crita padrão, mas procura reproduzir as frases tal como foram efetivamente pro- duzidas, com as hesitações, repetições, superposições de fala etc. As pronúncias não-padrão – como “muié” (mulher), “falô” (falou), “peraí” (espera aí) – não pre- cisam ser registradas, a menos que o pesquisador esteja investigando variações fonológicas como essas. Se esse não for o foco do estudo, basta fazer o registro na ortografia corrente. Os falantes são indicados com letras escolhidas aleatoriamente ou por qualquer convenção adotada no estudo. Em geral, as transcrições se utilizam de linhas curtas, para permitir melhor visualização do texto. Não se usam maiúsculas no início de frases ou de turnos, apenas nos nomes próprios e nas siglas. Veja um exemplo2: L1 você vê, né? o mundo quer que nós conservemos a... Amazônia para controlar a poluição mundial... que que você acha disso aí? L2 não entendi bem a pergunta... L1 o mundo aí o:: ... última exposição que houve agora aí ... – nosso Ministro do Interior foi representando – eles não querem que devastem áreas amazônicas... devido às:: vastas florestas tudo por causa da poluição... você acha que seria justo nós conservarmos aquilo o::u... L2 precisa manter o oxigênio do mundo né? ((risos)) L1 e nós é que deveríamos conservar? ... que que você acha? o pessoal todo mundo cortou progrediu... No exemplo acima, os dois interlocutores foram indicados como L1 e L2. A transcrição da fala coloca em evidência que as pessoas conseguem se entender ao conversarem, mesmo que a interação se dê com várias frases incompletas, hesitações, correções. A maioria dos eventos de conversação apresenta essas car- acterísticas, que são o resultado da simultaneidade entre o planejamento da fala 2 Os exemplos usados para ilustrar as normas de transcrição foram retirados de entrevistas do projeto Nurc – São Paulo e de entrevistas do projeto Varsul (Variação Lingüística Urbana na Região Sul do Brasil), realizadas em Curitiba (PR). Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 24 Lingüística III e sua realização. Observe como a segunda intervenção de L1 está repleta de hesi- tações, retificações, frases incompletas. Mesmo assim, L2 entende perfeitamente o que L1 falou e faz um comentário pertinente para a continuidade da conversa. A transcrição da fala é feita com o uso de várias convenções pelas quais é possível representar características importantes da conversação que estão pre- sentes na maioria dos eventos observados. Apresentamos a seguir os principais sinais adotados no sistema de transcrição do projeto Nurc. Principais sinais usados na transcrição As normas de transcrição adotadas pelo projeto Nurc, como as normas de outros projetos, têm como ponto de partida a ortografia oficial da língua por- tuguesa, acrescida de um conjunto de sinais disponíveis no teclado dos com- putadores. São normas simples, facilmente aplicadas por quem faz a transcrição e para quem consulta um texto transcrito e pode, muitas vezes, se valer da sua experiência como leitor de textos grafados na escrita convencional. Superposição, simultaneidade de vozes Quando os dois interlocutores falam ao mesmo tempo, usa-se o sinal ligan- do as linhas no ponto em que se inicia a fala simultânea. A. B. A. B. na casa da sua irmã... sexta-feira? fizeram lá... cozinharam lá? Pausas longas ou breves Todas as pausas são assinaladas com reticências, qualquer que seja sua duração: P. e ela contou como é que foi... bem aquele jeitinho dela de conversar... ((risos de P.)) Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Análise da fala e da conversação 25 Comentários do transcritor Ao fazer a transcrição de eventos de conversação, o pesquisador pode fazer comentários diversos, com o objetivo de descrever comportamentos dos falan- tes ou acontecimentos diversos que possam interferir no fluxo da conversação: os latidos de um cachorro, o choro de uma criança, a queda de objetos, o toque da campainha ou telefone, o desligamento do gravador, tosse, espirro, riso. Esses comentários são colocados entre parênteses duplos. F. o... que a gente mais... mais gostava era de uma professora gostava de ver ela de... hum... ela ia de saia... AH... fazia tudo pra mexer ((risos)) com essa professora... Hipótese sobre o que se ouviu Muitas vezes, ao transcrever a gravação da fala, há trechos em que o pes- quisador não consegue discriminar claramente aquilo que algum dos partici- pantes falou em determinado ponto. Quando há apenas uma hipótese sobre o que se ouviu, mas não a certeza, os trechos duvidosos são registrados entre parênteses: I. e tinha outros perigos que a gente (imaginava) à noite, né? Prolongamento de vogal ou consoante Quando alguma vogal ou consoante (como o /s/ ou /r/) for pronunciada com uma duração bem maior que o normal, essa pronúncia é assinalada com duas ou mais seqüências de dois pontos, dependendo da duração em cada caso. T. ai... me de::u uma crise de cho:::ro daí... Entonação enfática Os trechos pronunciados de forma enfática são transcritos com o uso de maiúsculas. S. ontem passou ATÉ NO FANTáSTICO... ontem... Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 26 Lingüística III Citações literais ou leitura de textos durante a gravação Se durante uma conversação, algum dos participantes fizer uma citação direta, seja reproduzindo a fala de alguém, seja lendo algum texto, esta citação é destacada entre aspas. A. é... diz que ela dizia... “meu Deus do céu... leve tu::do que você quer...mas só não faça mal pro Laurinho”... o jeito dela né? Interrogação As interrogações são reconhecidas pela entonação com que a frase é pronun- ciada. Para indicá-las na transcrição, é usado o mesmo sinal adotado na escrita. E. ela é irmã do seu Ivo? F. é irmã do Ivo... é... Palavra ou trecho incompreensível Ao realizar uma transcrição,é comum haver trechos incompreensíveis, por terem sido produzidos com voz muito baixa, pela rapidez de sua realização, pela superposição da fala com algum ruído do ambiente. Quando o pesquisador não consegue nem formular hipóteses sobre o que ouviu, a indicação de que há um trecho incompreensível é feita mediante o uso de parênteses não preenchidos: ( ). Veja um exemplo. V. É... por aqui não tem favela né? nunca vi pelo menos... ( ) onde eu conheço aqui ( )... As convenções usadas para a transcrição da fala são um instrumento para o estudioso fixar no papel características da fala que são relevantes para o estudo, mas não são, em geral, observadas pelos falantes. Estes ficam apenas com uma impressão geral, vaga, sobre a forma como ocorreram as conversas de que par- ticiparam. Em geral, o falante consegue parafrasear os temas tratados em um evento conversacional, consegue relatar aos outros quais foram os assuntos co- mentados, qual a posição de cada participante sobre esse assunto, quem partici- pou mais ativamente etc. A transcrição revela detalhes que passariam desperce- bidos caso não fossem registrados de forma sistemática. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Análise da fala e da conversação 27 Conclusão O estudo da conversação pode revelar muito sobre as normas sociocul- turais de interação entre os indivíduos na sociedade. Essas normas apresentam variações segundo o grau de formalidade da situação de interação, o nível de conhecimento recíproco entre os participantes e as relações hierárquicas entre eles. Estudar a conversação é ampliar o conhecimento sobre a sociedade, pois é através da conversação que os laços sociais são estabelecidos, consolidados e modificados. Texto complementar A conversa na sociedade (MATTOS,1998, p. 15-21) Para que existe a conversa quotidiana na sociedade? Que objetivos ela tem? Para iniciarmos nosso estudo, partimos da hipótese de que a conversa na sociedade, a conversa quotidiana, existe para manter em funcionamento as relações interpessoais, isto é, ela não se dá “em vão”, mas para estabelecer, conservar e transformar relações entre amigos, parentes, fregueses, conheci- dos, desconhecidos. Não sendo a conversa quotidiana sustentada por uma instituição formal, ela manifestará marcas do relacionamento, que, por sua vez, traz em si um pouco das instituições sociais em que os interlocutores se representam como povo, estudante, pai, filho, padre, pastor, comerciante etc. A conversa, a fim de manter as relações entre os interlocutores, exibirá índices de poder, didatismo, demagogia, superstição, misticismo, camara- dagem etc. É na realidade social que se centra a conversa quotidiana, e, dessa forma, uma larga dimensão do social que vai se constituindo às margens das instituições sociais se instala como base de uma situação que não se enquadra inteiramente em nenhuma instituição social formalizada, ou seja, é fundamentada numa situação marginalizada que se dá a conversa quotidiana. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 28 Lingüística III A conversa na sociedade transita entre as diferentes formas institucionais de discurso: o discurso jurídico, o escolar, o religioso, o político etc. Por não pertencer exclusivamente a nenhuma das instituições sociais que a susten- tam, a conversa no quotidiano da sociedade pode ocorrer sem que haja um objetivo imediato e prático “normatizado”. Algumas das questões que nos colocamos: como é que a conversa reco- lhe seus dados e suas estruturas do social? Como é que a conversa acolhe, sem que isso seja inadequado, discursos mais confidenciais ocorrendo em situações de contato passageiro e discursos mais utilitários em situações de contato mais duradouro entre pessoas? Função social Se a conversa quotidiana não se revela como imediatamente utilitária, onde ela encontra suas “regras” de funcionamento? Se não é o fim que a define, como ela se estrutura? Talvez a conversa quotidiana seja lúdica3 na medida em que, nela, não há interesse em direcionar o objeto do discurso para fins imediatos (e nisso se opõe à polissemia contida do discurso autoritário); talvez igualmente seja lúdica na medida em que, nela, não importa, no limite, a relação com a referên- cia (e nisso se opõe à disputa pela referência própria do discurso polêmico). Sabemos que todo discurso mantém uma relação constitutiva com a sua exterioridade, já que, na materialidade do discurso, há a explicitação do modo de existência – existência histórico-social – da linguagem. Ora, no dis- curso quotidiano, é a situação (situação imaginária, quer a pensemos em sua determinação social, histórica ou interacional) o elemento das condições de produção que, perante os demais (referente, interlocutores), constitui a mais significativa relação do discurso com o social. Poder-se-ia concluir levianamente que, no caso do discurso quotidiano, have- ria referência imediata e necessária à situação de fala em que ele se dá. Devemos observar, entretanto, que, nessa forma de discurso, a situação atua de um modo especial: não pelo espaço físico em que se dá (casa, meio de transporte, comér- cio, trânsito, aglomeração urbana) mas pelo que nela se realiza socialmente, seja no espaço de uma casa, com amigos, seja num ônibus, com desconhecidos. 3 Estamos aqui usando a tipologia proposta por Eni Orlandi (A Linguagem e seu Funcionamento, p. 9, 22 e 142) que toma como base a relação dos interlocutores entre si e com o objeto do discurso. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Análise da fala e da conversação 29 É importante observar aqui que o social de que tratamos na Análise do Discurso é o social discursivo e não o físico, tampouco o sociológico; não estamos aqui nos referindo ao social enquanto característica de uma comu- nidade ou de um estrato da sociedade. A nossa referência é aquele limite do discurso enquanto forma lingüística e prática social. [...] A função social constitui-se na situação e com ela é que se constitui o sen- tido. Ela faz parte da situação; não é algo anterior, a delimitar de fora o tipo de conversa; não é, portanto, apriorística. Se a função social é aquilo que se espera que a conversa quotidiana cumpra, então nós a encontraremos ao se criar um liame entre pessoas des- conhecidas, ao se manter a amizade, ao se fazer com que o tempo passe, ao se exibir um confronto entre pessoas etc. Mas como é que se produz no interior da situação a função social? Se ela não é exterior nem anterior à situação, onde é que ela se formula? Situações semelhantes resultariam sempre em funções sociais semelhantes? Vejamos uma situação hipotética de conversa que poderá guiar um pouco nossa reflexão sobre a elaboração da função social: o caso em que, numa situa- ção de espera, uma conversa de entretenimento entre dois sujeitos inicialmen- te desconhecidos entre si passasse a ser uma con versa mais envolvente, mais íntima. Poder-se-ia dizer que teria havido um desvio inadequado no rumo da conversa, mas seria possível também ver nesse caso – e é essa interpretação que nos interessa aqui – o índice de que a situação é que teria se transformado no decorrer da conversa, transformando, ao mesmo tempo, sua função social: ao conversar, os interlocutores criaram uma ligação entre si e, a partir daí, a conversa terá servido para manter e reforçar essa ligação recém-criada. Queremos mostrar com isso que a situação não determina “de fora”, mas faz parte da conversa, e tem uma dinâmica tal a ponto de se modificar no interior da própria conversa; nesse processo dinâmico, ela traz modificações à função social ou melhor, ela inauguraránova função social à conversa. Há, assim, uma ligação necessária entre situação e função social: com a institui- ção de uma situação imaginária, é instituída necessariamente uma função social da qual dará conta um determinado tipo de conversa. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 30 Lingüística III Estudos lingüísticos 1. Para esta atividade, é necessário um gravador. O grupo deve gravar uma conversa entre duas ou três pessoas. A gravação pode ser feita em qualquer lugar: no pólo de estudo, em uma loja, em casa etc. Feita a gravação, o grupo deverá fazer a transcrição de um trecho da conver- sação, correspondente a uma página. A transcrição deve ser feita com o uso das normas do projeto Nurc apresentadas na aula. 2. Observe o seguinte trecho de uma conversação na internet entre dois ado- lescentes. Preste atenção às semelhanças e diferenças entre a conversação à distância, com uso do MSN Messenger, e a conversação oral, face a face. Se os dois colegas estivessem conversando frente a frente, você acha que a seqüência entre os turnos na conversação seria semelhante ao que ocorreu no chat? A. (:: tu já fez a pasta de redação? A. (:: já fez o indice? ;x: A. (:: ei, tem que fazer uma técnica artística nos textos né? :BB B. agora to no ultino B. o texto do chefe e do empre- gado B. e ainda tem a charge B. o que falta pra ti faze é o do maiakowski do exercicio de recuperaçao? B. era recuperaçao da prova B. prova sobre o poema B. lembra? B. é recuperaçao da prova B. tirei 3.5 na prova A. (:: á, e nao fiz a recuperação nao :D Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Análise da fala e da conversação 31 3. Reflita, a seguir, sobre cada uma das situações descritas a partir do conjunto de propriedades definidoras da conversação. Indique em que casos há uma conversação. a) Na abertura do congresso, o professor X fez uma conferência sobre as representações da mulher na literatura brasileira. Ele falou durante uma hora para uma platéia de aproximadamente 300 pessoas. No final do evento os organizadores recolheram as questões que os participantes fizeram por escrito e escolheram duas para o conferencista responder. b) S. e R. moram juntos, mas trabalham e estudam em horários diferentes e quase não conversam durante a semana. Para resolver os problemas práticos de administração da casa, compras, pagamento de contas, co- municam-se com bilhetes colocados sempre na porta da geladeira. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 32 Lingüística III c) L. ganhou de presente uma roupa que não serviu e deixou passar o prazo previsto pela loja para efetuar a troca. Quando foi à loja, teve de explicar primeiramente o caso ao vendedor, que a encaminhou para o gerente, que a mandou de volta ao vendedor. Este, finalmente, fez a troca do produto. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Análise da fala e da conversação 33Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br A primeira questão que surge quando anunciamos a apresentação de conceitos fundamentais para a Análise da Conversação é se haveria real- mente a necessidade de conceitos específicos para o estudo dessa moda- lidade de uso da língua. A conversação não poderia ser estudada com o uso dos mesmos conceitos teóricos e metodologias de análise desenvolvi- dos pela Lingüística Textual para a análise de textos orais ou escritos? Para justificar a necessidade de formulações teóricas e metodológicas específicas para o estudo da conversação, é interessante chamar a aten- ção para algumas propriedades do texto conversacional que o distinguem de outros tipos de texto. A especificidade da conversação A propriedade mais evidente da conversação é que os interlocutores alternam-se nos papéis de falante e ouvinte. Assim, o estudo do texto con- versacional deve necessariamente contemplar o estudo das formas de al- ternância dos papéis no diálogo e da atuação conjunta dos interlocutores para a construção de um texto coerente. Deve levar em conta também que a conversação, ao contrário de outros textos, é produzida sem um planeja- mento prévio. Mesmo que um dos interlocutores defina antecipadamente o que pretende falar, há sempre a necessidade de rever seu planejamento a cada intervenção dos demais participantes, para que suas intervenções constituam uma seqüência adequada às falas anteriores. O texto falado deixa transparecer o processo de sua construção, como explica Koch (2006, p. 45): [...] ao contrário do que acontece com o texto escrito, em cuja elaboração o produtor tem maior tempo de planejamento, podendo fazer rascunhos, proceder a revisões e correções, modificar o plano previamente traçado, no texto falado planejamento e verbalização ocorrem simultaneamente, porque ele emerge no próprio momento da interação: ele é o seu próprio rascunho. Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 36 Lingüística III Koch (2006, p. 46) usa também a metáfora do quadro e do filme para compa- rar a recepção do texto oral ou escrito: Para o leitor, o texto se apresenta de forma sinóptica: ele existe, estampado numa página – por trás dele vê-se um quadro. Já no caso do ouvinte, o texto o atinge de forma dinâmica, coreográfica: ele acontece, viajando através do ar – por trás dele é como se existisse não um quadro, mas um filme. As várias peculiaridades da conversação justificam a adoção de conceitos específicos que ajudam a compreender tanto os princípios que organizam a al- ternância de papéis entre os interlocutores quanto as formas de planejamento/ construção textual na conversação. Estas distinguem-se das formas de planifica- ção e produção de outros textos: pela simultaneidade entre planejar e executar – na conversação, os par- � ticipantes não têm tempo para elaborar esquemas prévios. pelo caráter coletivo da construção textual – ao contrário da maioria dos � gêneros textuais, em que o texto é produzido por um autor único, a con- versação resulta das contribuições de pelo menos dois autores. pelo fato de a conversação ser resultado de um planejamento coletivo – � cada pessoa, ao tomar a palavra, tem de levar em conta as contribuições anteriores dos demais participantes da conversa. Para dar conta do estudo dessas especificidades, a Análise da Conversação formulou um conjunto de conceitos que permitem a análise de eventos con- versacionais. Neste capítulo, vamos apresentar quatro conceitos que são instru- mentos importantes para esse estudo: os turnos de fala, o tópico conversacional, os pares adjacentes e a hesitação. Os turnos de fala Uma das formas de compreender como a conversação é organizada é ob- servar como se dá a alternância entre os participantes. Para isso, a Análise da Conversação incorporou e adaptou o conceito de turno, usado em diversas situ- ações: num jogo de xadrez, nos plantões de profissionais da saúde, em corridas de revezamento, enfim, qualquer situação em que o indivíduo disponha de um tempo, cuja duração pode ser ou não predeterminada para a realização de de- terminada tarefa. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação 37Na conversação, entende-se por turno qualquer intervenção dos interlocu- tores, independente de sua extensão. Segundo Galembeck (1995, p. 60): O conceito de turno [...] valoriza todas as intervenções dos interlocutores, tanto aquelas que possuem valor referencial ou informativo (ou seja, que desenvolvem o assunto tratado num fragmento de diálogo), como aquelas intervenções breves, sinais de que um dos interlocutores está “seguindo” ou “acompanhando” as palavras do seu parceiro conversacional. Os turnos resultam da aplicação de um princípio válido em todas as cultu- ras: fala um de cada vez. O turno de fala é, portanto, aquilo que cada falante diz enquanto está com a palavra, havendo mesmo a possibilidade de que a pessoa fique em silêncio em alguns turnos. Estamos acostumados a assistir reportagens na TV em que os repórteres “bombardeiam” as pessoas com perguntas inconve- nientes e não recebem resposta alguma. Dirigir uma pergunta ao interlocutor é uma forma de indicar que ele deve assumir o turno de fala em seguida. Em casos específicos, a pessoa que deveria fazer uso do turno conversacional prefere ficar em silêncio. A alternância de papéis entre os participantes não se dá de maneira caótica. Em qualquer cultura há normas que organizam o diálogo. A mudança de turno (passagem de um participante a outro) ocorre basicamente de duas formas, que são relevantes especialmente em conversas de que participam mais de duas pessoas. O falante pode escolher quem deve assumir a palavra em seguida e encerrar seu turno por meio de alguma indicação de que tem a expectativa de que o outro assuma o papel de falante (uma pergunta dirigida especificamente a um dos participantes; a menção do nome do interlocutor escolhido) ou pode concluir sua participação e esperar que alguém tome a palavra. Nesse caso, se houver mais de dois participantes na conversação, há um processo de auto-es- colha, ou seja, fala quem quiser tomar a palavra no momento. Se a conversação se der entre duas pessoas apenas, quando um interrompe a sua participação, o outro está automaticamente convidado a assumir o turno. A forma mais evi- dente de indicação do responsável pelo turno seguinte é fazer uma pergunta. Segundo as regras de interação, a pergunta cria a obrigação de uma resposta. Vejamos um exemplo de identificação dos turnos em um trecho de conversação1: L1 então o desen/ o desenvolvimento é bom porque ele dá chance de em-prego para mais gente... Turno 1 1 Dados do projeto Nurc de São Paulo. As entrevistas do projeto foram realizadas na década de 1970. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 38 Lingüística III L2 mas você está pegando uma coisin::nha assim, sabe? um cara que esteja desempregado também eu posso... usar o mesmo exemplo num num sentido contrário... o cara que está desempregado porque não con- segue se empregar né? na verdade não quer ou um outro que:: assim... muito bem empregado executivo-chefe de empresa e tal mas cheio das neuroses dele eu não sei qual está melhor... Turno 2 L1 então você tem que abstrair desse aspecto porque você pode ter am- bos os ca::sos... você tem que pegar na média esquecendo esse aspecto particular... Turno 3 Nesse trecho de conversa entre L1 e L2 observa-se uma participação equili- brada entre os falantes. Os dois se alternam e cada um espera que o outro con- clua sua intervenção para assumir a palavra e apresentar sua contribuição para o tema da conversa – a relação entre desenvolvimento e nível de emprego. No turno 1, o primeiro participante apresenta sua opinião sobre o tópico tratado e afirma que o desenvolvimento abre possibilidade de emprego para mais gente; no turno 2, o segundo participante contrapõe-se ao primeiro, apontando casos particulares que enfraquecem a argumentação apresentada no primeiro turno; no terceiro turno, o primeiro participante contesta a observação do seu inter- locutor, e insiste para que ele observe a média, não os casos particulares. Os três turnos trazem contribuições para o conteúdo informacional que está sendo desenvolvido. Além disso, não há superposições entre as falas dos dois inter- locutores: as trocas de turno se dão em momentos em que cada um conclui seu raciocínio e faz uma pausa. Casos de conversação como esse, em que os participantes contribuem efe- tivamente para o desenvolvimento do tema, são chamados de conversação simétrica. Os turnos conversacionais podem também indicar uma interação assimétrica. Nas conversações assimétricas, um dos participantes apresenta as contribuições efetivas para o assunto tratado, os demais simplesmente dão sinais de que estão acompanhando a conversa, mediante o uso de intervenções curtas de assentimento, de estímulo para o falante continuar sua exposição. Galembeck (1995, p. 60) apresenta o seguinte esquema para caracterizar as con- figurações básicas dos turnos nos eventos conversacionais: Simetria – ambos os interlocutores contribuem para o desenvolvimento do tópico conversacional. Assimetria – um dos interlocutores desenvolve o tópico; o outro “vigia” ou “segue” o seu parceiro. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação 39 Galembeck reconhece dois tipos de turnos: turnos nucleares e turnos inseri- dos. Nos nucleares observa-se uma contribuição informacional clara do falante. Já nos turnos inseridos, a participação do falante não traz contribuição informa- cional para o tópico da conversação, mas apenas indica que o participante está acompanhando o raciocínio do seu interlocutor. É o que acontece em geral com o uso de expressões curtas como: tá, certo, sei, é, hum hum, ahn ahn ou com a repetição de palavras usadas pelo interlocutor Mas há também casos em que um participante, mesmo diante de sinais claros de que tem o direito (e o dever) de falar, mantém-se em silêncio e, quando muito, faz algum gesto indicando que não vai fazer uso do turno que lhe é pro- posto pelo interlocutor. Nesses casos, a análise das motivações para o silêncio é também muito interessante. Veja, por exemplo, o trecho de uma entrevista real- izada em Salvador entre uma professora universitária (L1) e um menino morador de rua (L2)2: L1 É bom uma pessoa ter família? Turno 1 L2 É. Turno 2 L1 É? Por que que uma família é bom pra pessoa? Diga aí o que é que você acha assim por que que ter família é bom pra pessoa? Turno 3 L2 É... Turno 4 L1 Que é que você acha? Turno 5 L2 [silêncio] Turno 6 L1 Não tem importância da forma como você fale, o que você achar você diz. Turno 7 L2 [silêncio] Turno 8 L1 Você acha que um garoto como você, uma menina da tua idade, mais velho, mais novo, pra essas pessoas, pra gente, é importante ter famí- lia? Turno 9 L2 [gesto] Turno 10 L1 É. Por quê? O que que a família faz pra gente? Turno 11 L2 [silêncio] Turno 12 2 Dados de Machado (2003, p. 66-7). A transcrição adotada nesse estudo – e mantida na citação – é diferente da utilizada nos estudos do Nurc. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 40 Lingüística III L1 Você não sabe? Não tá querendo falar? Turno 13 L2 [silêncio] Turno 14 L1 O que é uma família? É pai, mãe, né isso – você não tem pai que seu pai morreu, sua mãe tá viva – irmãos, como é que os irmãos, a mãe podem ajudar a gente? Turno 15 L2 [pausa] Trabaiando [voz fraca] Turno 16 L1 Trabalhando? E aí? Turno 17 L2 [silêncio] Turno 18 L1 Quem trabalhando? A gente ou eles? Turno 19 L2 Eles e a gente. Turno 20 Esse trecho de conversação mostra uma interação assimétrica entre os par- ticipantes. L1 é adulta, com escolaridade alta, professora universitária. L2é cri- ança, morador de rua atendido por um programa assistencial, o Projeto Axé. Na interação entre essas duas pessoas observa-se que todos os turnos de fala de L1 são encerrados por perguntas, que são uma forma de passar o turno ao interlocutor, de indicar explicitamente que ele tem a obrigação de dar uma res- posta. No entanto, L2 recusa-se a fazer uso dos turnos que lhe são concedidos, certamente porque não quer falar sobre o tema proposto – a importância da família para a criança. É um menino que tem uma experiência de convívio fa- miliar muito diferente do modelo divulgado pela sociedade, tanto que trocou a casa da família pela rua. Tópico conversacional Imagine uma situação trivial: um grupo de amigos seus está conversando, você se aproxima e quer participar do bate-papo do grupo. Para conseguir se integrar rapidamente, sua estratégia é perguntar: “Sobre o que vocês estão conversando?” A resposta a essa questão será o tópico conversacional, ou seja, o assunto sobre o qual o grupo fala naquele momento. Mesmo que você não dirija ao grupo uma pergunta direta, que leve algum dos participantes a explici- tar o tópico, basta escutar a conversa durante alguns minutos para identificar o tópico, pois a percepção do tema da conversação é uma condição para que cada um possa se engajar na conversação e fazer intervenções adequadas. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação 41 Favero (1995, p. 39) afirma que o conceito de tópico conversacional (ou dis- cursivo) é nuclear para compreensão de como os participantes de um evento interativo organizam, gerenciam suas intervenções no diálogo: O tópico é, assim, uma atividade construída cooperativamente, isto é, há uma correspondência – pelo menos parcial – de objetivos entre os interlocutores. A noção de tópico é de fundamental importância para o entendimento da organização conversacional e é consenso entre os estudiosos que os usuários da língua têm noção de quando estão discorrendo sobre o mesmo tópico, de quando mudam, cortam, criam digressões, retomam etc. Identificar o tópico de uma conversação é uma tarefa simples, basta re- conhecer e sintetizar o assun to sobre o qual os participantes falam. Observe o seguinte trecho de uma conversa: L2 a sua família é grande? L1 nós somos:: seis filhos L2 e a do marido? L1 e a do marido... eram doze agora são nove L2 ahn ahn L1 quer dizer somos de famílias GRANdes e::... então ach/ acho que::... dado esse fator nos acostumamos a:: muita gente L2 ahn ahn L1 e:: L2 e daí o entusiasmo para NOve filhos L1 exatamente nove ou dez L2 ( ) L1 é e:: mas... depois diante da dificuldade de conseguir quem me ajudasse... nó::s para-mos no sexto filho L2 ahn ahn L1 não é?... e estamos muito contentes e... Nesse trecho de conversa, o tópico conversacional é o tamanho da família. O desenvolvimento desse tópico se faz principalmente nos turnos ocupados por Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 42 Lingüística III L1: é ela quem dá informações sobre a composição de sua família, da família do marido, sobre o projeto do casal de ter nove ou dez filhos, sobre as razões que a le- varam a ter menos filhos do que o planejado. As intervenções de L2 também estão centradas no mesmo tópico: ela incentiva L1 a continuar falando sobre o tema e, com suas perguntas e comentários, direciona a interlocutora para a apresentação de novas informações, fazendo progredir a conversa em torno do tópico. O tópico é fundamental na organização da seqüência de turnos da conversa- ção. Jubran (2006, p. 89-90) destaca: [...] importa salientar inicialmente que a quase simultaneidade entre a elaboração e a manifestação verbal, característica das interações face a face, particularmente da conversação, não afasta o teor de organização do texto falado, então processado. Desenvolvida com base em troca de turnos entre pelo menos duas pessoas, a conversação implica uma construção colaborativa, pela qual um turno não é simples sucessor temporal do outro, mas é produzido, de algu ma forma, por referência ao anterior. Há, portanto, uma projeção de possibilidades que um elemento no turno antecedente desencadeia no turno seguinte. A organização seqüencial dos tópicos ao longo de um evento conversacional pode assumir configurações diversas, relacionadas a dois fenômenos básicos: a continuidade e a descontinuidade. Observa-se a continuidade quando os tópicos na conversação se organizam em uma seqüência linear: cada tópico é iniciado, desenvolvido e concluído antes da introdução do tópico seguinte. Imagine uma conversa entre amigos em que tenham sido tratados os seguintes tópicos: A: o aniversário de W; B: o início do namoro entre V e Y; C: a ida de W ao shopping para fazer a troca de dois presentes; D: o show musical anunciado para o fim de semana seguinte. Haverá relação de continuidade entre esses quatro tópicos se os interlocu- tores encerrarem o tratamento de cada um antes de darem início ao seguinte. Ou seja, se um tópico como A (o aniversário de W) não voltar a ser abordado a partir do momento em que os interlocutores passarem a conversar sobre o tópico B (o início do namoro entre V e Y). Cada tópico é concluído antes da in- trodução do tópico seguinte. Podemos representar a relação de continuidade entre os quatro tópicos pelo seguinte esquema, em que a abertura dos parênte- ses indica o início de um tópico, o fechamento dos parênteses seu encerramento e a seta a seqüência linear entre os temas. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação 43 (A) → (B) → (C) → (D) Mas pode haver entre esses tópicos uma relação de descontinuidade. Pode acontecer, por exemplo, que um tópico seja anunciado na conversação, mas inter- rompido por alguma razão. Esse tópico pode retornar depois ou não. Pode ocor- rer também que um tópico seja interrompido pelo surgimento de outro e depois os interlocutores o retomem para continuar falando sobre ele até esgotá-lo. Os mesmos quatro tópicos apresentados acima poderiam surgir na conver- sação em uma relação de descontinuidade. Imagine o seguinte: o grupo inicia a conversa falando sobre o aniversário de W, mas interrompe o tratamento desse tema para falar sobre o início do namoro entre V e Y. O tema A (o aniversário) volta à conversa, mas é interrompido novamente pela inserção da narrativa sobre a ida de W ao shopping para fazer a troca dos presentes. A conversa sobre o aniversário retorna e, depois de encerrado o tratamento desse tema, o grupo passa a falar sobre o show musical do fim de semana. Teríamos aí o seguinte esquema, em que foram introduzidas as reticências para indicar a interrupção de um tópico: (A... → (B) → ...A... →(C) → ...A) → (D) A descontinuidade entre o tratamento dos tópicos pode assumir várias formas. Uma forma comum de realização da descontinuidade é a inserção de uma digressão, ou seja, a introdução no meio do tratamento de um tópico de uma conversa não relacionada com o tópico em andamento. Terminada a di- gressão, o tema da conversa é retomado. O esquema da digressão seria: (A... → (B) → ...A) Pares adjacentes Ficou suficientemente claro, a partir do exposto até aqui, que a conversação é construída de forma colaborativa. Essa característica do texto conversacional tem várias conseqüências na sua organização. Uma delas é a presença de se- qüências de turnos altamente padronizadas quanto à sua estruturação. Todas as línguas apresentam pares de turnos, que aparecem juntos (um segue imedi- atamente o outro) e que são fundamentaisna organização local da conversação. A produção do primeiro elemento do par por um dos falantes desencadeia a produção do segundo elemento por outro falante, como uma regra social de conversação praticamente obrigatória. Schegloff (1972, p. 346-348) denominou Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 44 Lingüística III essas seqüências de turnos de pares adjacentes, expressão incorporada aos estu- dos da conversação. Veja alguns exemplos de pares adjacentes: a produção de um � cumprimento por um dos falantes conduz a um cumpri- mento do interlocutor; o uso de uma expressão de � despedida desencadeia outra expressão de despedida; se um dos falantes fizer uma � pergunta, o turno seguinte deve conter uma resposta; se um interlocutor der uma � ordem, o interlocutor deve em seguida apre- sentar uma indicação de execução; se fizer um � pedido, a seqüência deve indicar o atendimento do que foi so- licitado ou uma desculpa pelo não-atendimento; se fizer um � convite, deve vir em seguida a aceitação ou a recusa; um � xingamento tem como resposta uma defesa (ou outro xingamento); uma � acusação leva a uma defesa ou a uma justificativa; um � pedido de desculpas é normalmente seguido do perdão. Os turnos que constituem pares adjacentes têm algumas características que justificam o seu estudo como um fenômeno especial na organização da con- versação. Trata-se de seqüências de dois turnos produzidos por falantes difer- entes. As duas partes dos pares adjacentes têm uma ordenação predeterminada (o perdão não pode vir antes do pedido de desculpas, nem a defesa antes da acusação, por exemplo). A primeira parte do par adjacente seleciona o próximo falante e determina sua ação. Entre os pares adjacentes mais estudados e mais relevantes para a construção conversacional estão o cumprimento–cumprimento, despedida–despedida e a pergunta–resposta. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação 45 Seqüências fáticas de abertura e fechamento: pares adjacentes de cumprimento e despedida Se pensarmos sobre as formas de que o português dispõe para os falantes iniciarem e encerrarem uma conversa, veremos que há uma diversidade bem grande: bom dia, boa tarde, boa noite, oi, olá, alô, tchau, até logo. O falante que dá início à interação escolhe, entre as possibilidades que a língua lhe oferece, uma forma de assinalar sua disposição para o diálogo. Mas sua liberdade de escolha é muito restrita. A seleção da forma do cumprimento tem uma função fática na conversação, ou seja, serve para assinalar que os interlocutores estão em con- tato e marcar o início ou o fim do diálogo. A escolha dessas formas é regida por regras sociais. Um dos critérios para a escolha é a formalidade da situação: iniciar uma ent- revista na televisão cumprimentando o entrevistado com um “oi” é inadequado, considerado uma falta de polidez. Mas em situações informais (num bar, numa festa, numa academia de ginástica, num salão de beleza) essa forma de cumpri- mento é aceita e esperada. Outro critério é a simetria ou assimetria da relação entre os interlocutores. Na interação entre pessoas da mesma faixa etária ou do mesmo grupo social, os cumprimentos e despedidas mais informais são esperados. Quando o falante escolhe a forma de cumprimentar seu interlocutor, ele de- termina, de certa forma, o turno seguinte: A oi, tudo bem? B tudo bem! R bom dia! V bom dia! F alô! J alô! Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 46 Lingüística III H até logo! Y até logo! Os pares adjacentes de cumprimento–cumprimento ou despedida–despedi- da tendem a ser selecionados de forma espelhada. Quando o falante dá início à conversação, ele seleciona uma maneira de cumprimento a partir de sua avalia- ção do grau de formalidade daquela situação e de sua relação de simetria ou as- simetria com o interlocutor. A seleção feita determina a forma a ser usada pelos demais participantes da conversação. O segundo turno de um par adjacente de cumprimento ou despedida é determinado pelo turno anterior, ao qual faz eco. O par pergunta/resposta As seqüências de perguntas e respostas estão entre as formas mais comuns de fazer progredir uma conversação. A pergunta seleciona o responsável pelo turno seguinte, marca o final de um turno e define o tema e a forma do turno seguinte. A pergunta pode ser: Direta ou indireta Reconhecemos como perguntas tanto as formulações feitas sob forma inter- rogativa quanto aquelas que usam uma forma indireta: Perguntas diretas: “Você encontrou o Carlos ontem?”, “O professor já chegou?”, “Ainda está chovendo?” Perguntas indiretas: “Não sei se você sabe o nome do livro que o professor recomendou.”, “Quem sabe você me diz onde guardou a chave.” Aberta ou fechada As perguntas abertas em geral solicitam alguma informação, levam o inter- locutor a falar sobre um tema específico. É comum conterem expressões como: Quem? Qual? Como? Por quê? Onde? Quando? D quanto tempo demora... essa refeição? Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br Conceitos fundamentais para a Análise da Conversação 47 L ah essa refeição demora... normalmente leva meia hora mais ou menos... porque eles comem bastante coisa realmente... quer dizer que então:: é demorado... depois ainda tem que escovar dente pra sair... Já as perguntas fechadas podem ser respondidas com “sim” ou “não”. Em por- tuguês, é mais comum que a resposta afirmativa seja formulada com a repetição do verbo ou de outra expressão importante contida na pergunta. Em várias outras línguas, a resposta típica é um sim. A Você já leu o livro? B Já. R Sua irmã gostou do vestido? P Gostou muito. A hesitação Ao observarmos um evento conversacional, podemos perceber a presença de várias hesitações, que se distribuem de maneira diferenciada entre os partici- pantes. Há aqueles que falam pausadamente, com várias hesitações na formula- ção, e há também os que revelam um grande controle sobre seu ritmo de fala e apresentam poucas hesitações. A questão que surge inicialmente é: a presença de hesitações na conversação seria um indício de um problema cognitivo ou interativo do falante? A Análise da Conversação dedica-se ao estudo dessa questão e conclui, conforme mostra Marcuschi (2006, p. 48), que “a hesitação é intrínseca à com- petência comunicativa em contextos interativos de natureza oral e não uma disfunção do falante.” A hesitação tem um papel importante no processamen- to da conversação: como o planejamento das intervenções do falante se dá de forma simultânea a sua produção, as tomadas de decisão do falante resultam, muitas vezes, em hesitações na fala. São decisões relativas, por exemplo, à es- colha das palavras mais adequadas para fazer uma afirmação naquele momen- to; ou sobre a seqüência em que as afirmações serão organizadas; ou a escolha do modo mais adequado de comunicar algo aos interlocutores que participam da conversação. Esse material é parte integrante do Curso de Atualização do IESDE BRASIL S/A, mais informações www.iesde.com.br 48 Lingüística III Pode-se dizer que a hesitação tem um papel importante no processamento textual. Ela funciona como um indicador de que o falante está organizando seu texto ao mesmo tempo em que o produz, é uma pista para o processo de plane- jamento que possibilita a organização do tópico conversacional. A hesitação se manifesta no texto através das pausas, dos alongamentos vocálicos, de expressões típicas de hesitação (é..., ah..., ahn...),
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