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1 A dignidade humana frente à dramaticidade do aborto Fr. Carlos Paula de Moraes, osm*1 Resumo: o presente capítulo tem a intenção de apresentar a relação entre bioética e os fundamentos conceituais da dignidade humana no ocidente para refletir tais conceitos a partir do prisma da mãe e do feto. Ressaltando ainda que na dramaticidade do aborto não se tem, como se pode pensar, somente dois “sujeitos” diretos (mãe e feto), mas esse drama é vivido por um grupo bem maior de pessoas, como o pai e a mesma comunidade. Para tanto, far-se-á um levantamento histórico-cultural das fontes conceituais da dignidade humana ocidental, propondo uma linha interpretativa, que não tem a intenção de ser a única via, mas um ponto de vista, que o autor retém como possível e capaz de fazer uma ponte de diálogo entre os posicionamentos divergentes em relação ao aborto. Palavra Chaves: aborto, dignidade humana, bioética. 1 O autor é frei da Ordem dos Servos de Maria, graduado e pós-graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Graduado em Teologia pela Pontifícia Faculdade Marianum de Roma, com Master em Bioética Pelo Ateneo Regina Apostolorum de Roma, mestrado e doutorado pela Accademia Alfonsiana de Roma. Atualmente é professor da Universidade Federal do Acre- UFAC; Faculdade Diocesana São José- FADISI. E-mail: profcar@bol.com.br. 2 INTRODUÇÃO Dentro das discussões sobre bioética, um dos temas mais debatidos, nos dias de hoje, é o conceito de “dignidade humana”. Ainda que exista diversidade de interpretações, seja no campo jurídico como no campo da bioética, tal conceito é fundamental para a defesa da vida e da proteção do ser humano. Até mesmo as intervenções do magistério católico, no que diz respeito à bioética, se justificam com base numa certa interpretação do que seja a dignidade da pessoa humana. Muitas diferenças ideológicas entre os militantes “pró ou contra” o aborto se deve a uma visão antropológica divergente, muito mais do que uma posição “teológica”. É claro, no entanto, que as raízes dos diversos modelos antropológicos, não estão isentas de influências dos vários contextos da existência humana, entre eles, também o teológico. De forma geral, encontramos “militantes” dos “direitos da escolha”, que são muito perspicazes ao defender o direito das mulheres nas questões do aborto, como se o feto fosse um “órgão” da mãe, podendo ela se desfazer quando convier. Como se a questão da maternidade, fosse algo extremamente personalizado, deixando de se frisar outros fatores preponderantes e decisivos para o processo de maternidade, como a figura do pai, da família, da comunidade e até mesmo do Estado. Em direção extremamente oposta, encontramos alguns movimentos organizados e “militantes” do “direito à vida”, que congregam, no Brasil, um número crescente de membros religiosos. Tal perspectiva frisa de forma contundente o direito de nascer, do feto, onde não se considera tanto os conflitos psicossociais que a mãe pode estar passando, mas se frisa muito mais a dignidade da vida ameaçada, ou seja, do feto e do seu direito de nascer. A posição do magistério da Igreja, ao contrário do que se poderia pensar, foi sempre de uma firmeza da condenação do aborto, mas nunca da mulher ou da mãe que praticou o aborto, como penalidade isolada. De fato, no próprio Direito Canônico da Igreja, o crime do aborto tem sua penalidade a todos que estiveram direta ou indiretamente envolvidos no aborto, isso inclui o pai, que não assumiu sua responsabilidade, como também os médicos, e pessoas envolvidas que se omitiram. Assim, o cân. 1041 afirma: “Quem tiver praticado homicídio voluntário, ou provocado aborto, tendo-se seguido o efeito, e todos os que tiverem cooperado positivamente”; e o cân. 1398 apresentará a condenação da 3 excomunhão Latae Sententiae, para quem provocar o aborto. No próprio Catecismo da Igreja, também se relata: A colaboração formal num aborto constitui falta grave. A Igreja pune com a pena canônica da excomunhão este delito contra a vida humana. Quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito («effectu secuto») incorre em excomunhão latae sententiae (49), isto é, «pelo facto mesmo de se cometer o delito» (50) e nas condições previstas pelo Direito (50). A Igreja não pretende deste modo, restringir o campo da misericórdia. Simplesmente, manifesta a gravidade do crime cometido, o prejuízo irreparável causado ao inocente que foi morto, aos seus pais e a toda a sociedade (cf. CIC n. 2272). O drama do aborto não deve ser tratado como se existissem somente dois “personagens”, ou seja, a mãe e o feto, mas é um drama que conta com um número bem maior de participantes! 1. O CONCEITO DE DIGNIDADE HUMANA NOS VÁRIOS HORIZONTES CULTURAIS Depois do nascimento das ciências humanas, não se pode mais ignorar a influência do meio cultural nas diferentes visões de mundo. Por isso, faremos de forma sintética uma rápida ponderação sobre alguns aspectos culturais que pode influenciar na axiologia das diferentes concepções da dignidade da pessoa humana. A escolha de “alguns desses lugares culturais” se deve pela influência que exercem, ainda hoje, na cultura ocidental, ou seja, o contexto hebraico-cristão e o greco-latino. 1.1 O horizonte cultural hebraico-cristão, o homem como: Imagem e semelhança O mundo como criação (ex-nillo) é uma categoria teológica de origem hebraica, diferente do referencial grego de “natureza”, de matriz mais filosófica. A narrativa bíblica apresenta duas grandes versões da origem do homem, a primeira (sacerdotal) é colocada depois da criação de todas as coisas (Gn 1,26- 27) e a segunda (“tradição javista”) o ser humano teria sido criado antes dos animais e das plantas (Gn 2,7). Na primeira versão, se frisa mais a natureza em função do homem e na segunda a relação de responsabilidade de cuidar ou administrar o dom recebido, a criação como dom de Deus ao homem, único criado a sua “imagem e semelhança”. 4 Segundo Raponi (1980, p.215), a distinção entre imagem e semelhança seria uma preocupação de alguns padres da Igreja. Irineu de Lion e Clemente de Alexandria seriam mais favorável a uma visão que a semelhança é mais perfeita, pois tem a capacidade de elevar a imagem ao estado de perfeição. A imagem seria permanente e, mesmo depois da “queda” (pecado) não perderia sua condição de divinizar-se ou assemelhar-se. No entanto, a patrística não diferenciou de forma clara estes dois termos, mas conservou o binômio, o sentido de divinização. Já Simonetti (1968, p. 221) Orígenes, por exemplo, defendia que a passagem da imagem para a semelhança se daria na imitação de Deus, ou seja, agindo segundo a vontade de Deus. De forma geral, no horizonte cultural hebraico, o homem foi criado segundo a vontade divina. Cabendo a ele progredir rumo à perfeição a qual foi chamado. Nesse empenho, o Espírito Santo teria, dentro da visão antropológica cristã, uma função especial. Segundo Souza (2009, p. 132), os Padres da Igreja, de maneira particular, Irineu de Lion, atribuem a terceira pessoa da Trindade um papel fundamental. O sopro de vida e o Espírito Santo são questões importantes da antropologia antiga, pois tocam na questão do Espírito Santo e da Trindade, duas realidades que repercutem na característica própria da fé cristã. 1.2 O horizonte cultural grego Mesmo tendo presente todas as diferenças filosóficas do mundo grego, pode-se afirmar também que a base filosófica ofereceu um referencial de pessoa, e consequentementede “dignidade da pessoa humana”. Se o horizonte hebraico era permeado pela força da religião, o horizonte grego será permeado pela força da filosofia, ainda que não tenha uma unidade filosófica total, oferece- nos uma base que a partir de Platão se fundamenta e segue influenciando o ocidente. De fato na obra Crátilo, de Platão temos: Dir-te-ei. O nome antropos indica que os outros animais não investigam ou consideram, ou examinam quaisquer das coisas que veem, ao passo que o ser humano tão logo vê algo, ou seja, examina e considera o que viu. Portanto todos os animais, exclusivamente o ser humano é corretamente chamado de antropos (=voltado para o que vê) porque examina o que viu (Platão, Grátilo n. 399c). Wanderlei Nota A vida humana é digna por ela ser a imagem semelhança de Deus. E pesar do que houver com o indivíduo , ele ainda será o que Deus criou. Wanderlei Nota Aqui o homem e digno por ser o único capaz de se indagar sobre os fenômenos do seu redor. 5 Para Palumbieri (2000, p. 24), partindo da compreensão socrático- platônica, se tem uma visão do ser humano como um ser capaz de perceber as coisas, se dar “conta” e que pede “conta” das coisas na busca do sentido do que ele vê. Teria assim a capacidade de consciência e valorização de tudo o que lhe vem ao campo da visão. Teria o “poder” da consciência e da autoconsciência. Porém, para Palumbieri, a origem da palavra antropos, se explicaria melhor na raiz de “én-trépo-phós”, ou seja, literalmente, como: ser que se orienta verso a luz, ou voltado para a luz. Dai se daria ênfase à posição ereta do homem e da sua necessidade de iluminação. De qualquer forma, nas duas raízes gregas, se evidencia o aspecto positivo da capacidade humana em relação aos outros seres, não por ser imagem e semelhança de algo maior, mas por ser ele mesmo, uma “fonte” em si de diferença. Na visão de Brugnera (1998, p. 91), uma das grandes dificuldades na filosofia antiga grega é justamente o conceito de “natureza humana”. Parece que a noção de natureza humana deveria ser ligada a elementos sociais, políticos e culturais presentes em determinada forma de comunidade ou sociedade. A questão da escravidão natural em Aristóteles também era um diferencial que representa, de forma emblemática, a cultura grega, que tanto defendeu o aspecto positivo do Logos humano, ou seja, da razão, mas que defendeu também a natureza da escravidão. Para o homem livre, este não poderia ser um escravo ontológico, em si mesmo, pois este teria um valor em si, que seria independente do reconhecimento do outro. No entanto, defendia, também, a existência de classes de homens, que mesmo sendo racionais, não possuíam esse mesmo direito. De fato, na obra, Política, de Aristóteles, pode se ler: Pois é naturalmente escravo quem é capaz de ser de outro (e por isso é realmente de outro) e participa da razão na medida suficiente para reconhecê-la, porém sem possuí-la, enquanto que os demais animais não se dão conta da razão, senão que obedecem a seus instintos. Na utilidade diferem pouco: tanto os escravos como os animais domésticos subministram o necessário para o corpo” (Política, 1254b). O livre rege o escravo de outro modo que o varão à fêmea e o homem ao menino; em todos eles existem as partes da alma, porém de modo distinto: o escravo carece em absoluto da faculdade deliberativa; a fêmea a tem desprovida de autoridade; o menino a tem, porém imperfeita” (Política, 1260a.). Wanderlei Realce 6 As definições aristotélicas de homem mais comuns são as de animal racional e animal político. Porém, sabe-se que apenas uns 10 a 12 % da população ateniense poderiam gozar desses atributos de “cidadãos”, o que deixava de fora as mulheres, mesmo as livres, da questão dos direitos de cidadania. Somente por influência do próprio cristianismo, é que as categorias de dignidade humana serão alargadas, de forma popular, a todos, onde não existirá mais escravo ou livre, homem ou mulher, mas todos iguais em dignidade, por serem filhos de Deus e redimidos por Cristo (Cf. 1 Cor 1, 17-25). 1.3 O horizonte cultural latino Para Palumbieri (2003, p. 70), o pensamento latino designa a realidade humana com o termo “homo”, que se faz derivar da raiz latina de “humus” (terra molhada). Coloca-se em evidência, neste horizonte cultural, a fragilidade humana, a sua limitação, condição de instabilidade no tempo e espaço. Colocada como um paradoxo, os horizontes culturais das duas definições (antropos e homo) representam a evidência da dialética humana, o homem é luz e sombra, é ser e não ser ainda, ser chamado ao transcendente e limitado também pela imanência da vida. Segundo Dias (2009, p.42), os filósofos estóicos, do ponto de vista intelectual, foram os primeiros teóricos da doutrina da igualdade entre os homens na sua antropologia e na sua ética. A ideia principal seria a da existência do “reino da razão” junto à comunidade real. Mais tarde, sob a influência do Império Romano, os principais conceitos estóicos conheceriam uma reelaboração e uma concreta aplicação política pelos intérpretes da cultura grega. Entre eles, podemos citar Marcus Tullius Cicero (103-43 a.C) e os estóicos romanos Lucius Annaeus Seneca (4-65 d.C). Ainda na visão de Dias (2009, p. 40), Aristóteles afirmava a desigualdade entre os homens e os povos, justificando assim, a atitude dos gregos para com os “bárbaros”. Os autores do horizonte latino sustentavam uma natureza humana comum, uma relação de igualdade com a inteira espécie humana. Nessa visão, todo homem também seria unido aos outros mediante o Direito, devendo seguir a própria natureza humana. Para Cícero, o homem pertenceria à “Civitas Maxima”, composta pela humanidade inteira, dotada de ratio. A Lex naturae, enquanto verdadeira Lex, sempre teria existido, antes mesmo que surgisse o Direito positivo Wanderlei Nota Os romanos viam os homens como seres frágeis, pois não viam o como um ser inabalável. Wanderlei Realce Wanderlei Realce Wanderlei Nota Faz parte do homem ele ser frágil. Wanderlei Nota o direito é necessário para proteger o mais fraco.null 7 e fosse fundado o Estado. Talvez por este substrato, o da necessidade de tutelar este bem, o homem e sua “fragilidade”, é que a cultura latina desenvolveu e aprimorou tanto o Direito positivo. Na visão de Dias (2009, p. 53), para se compreender a gênese e a evolução da categoria filosófica dos direitos humanos, se faz necessária uma referência a Santo Agostinho (354-430), já que tal categoria filosófica residiria tanto na doutrina do Direito, revestida pelo Estoicismo, quanto nas reinterpretações agostinianas das questões da política e do Estado. Para o referido autor, na visão agostiniana da defesa da Lex naturalis, o mesmo defendia que está não é sobrenatural, mas está escrita em maneira natural e indelével no coração de cada homem, em outras palavras, na sua ratio. Para fundamentar essa interpretação, é apresentado um fragmento da obra: “De Ordine”, onde Agostinho afirmava que na razão de todo homem que já seja livre de querer surge uma lei já impressa, por natureza, no seu coração que o admoesta de não fazer aos outros aquilo que não quer que lhe seja feito. A Lex naturalis seria então o fundamento da igualdade, natural, de todos os seres humanos, impressa em cada um, seja, cristão, hebreu ou pagão. Dias (2009, p. 54) cita, ainda, a importante contribuição de Santo Tomás de Aquino (1225-1274), para o aprofundamento filosófico do conceito de dignidade humana. A apropriação operada por ele de alguns temas fundamentais do direito estóico-aristotélico, aponta o homem como um ser dotado de razão e na lexnaturalis o seu elemento de participação à Lex Aeterna. Giovanni Reale (2007, p. 228) interpreta a relação entre a Lex Aeterna, lex naturalis, lex humana e lex divina, no pensamento tomista, apresentando uma relação e certa autonomia entre estas leis. Ou seja, a Lei eterna é dada pela própria natureza, por exemplo, é natural de o fogo queimar e ser “quente”; a lei natural está incluída dentro da lei eterna, que por sua vez é diferente da lei divina. A lei eterna é gerada da lei divina, mas não se confunde com esta. A lei humana é tipicamente da sociedade humana, que legisla sobre os assuntos da sociedade. Porém, será ilegítima se for contra a natureza dos seres que vivem na sociedade. Seria completamente ridículo o ser humano fazer uma lei humana que determinasse a proibição do fogo de queimar! Na interpretação de Dias (2009, p.55), foi Santo Tomás que, recorrendo à ideia clássica da consciência, desenvolverá o conceito de pessoa capaz de Wanderlei Riscado Wanderlei Texto digitado Lei eternanull Wanderlei Riscado Wanderlei Texto digitado Lei Naturalnull Wanderlei Realce Wanderlei Realce Wanderlei Realce 8 autônoma decisão moral. Maturando o conceito de autonomia pessoal como elemento fundamental da dignidade pessoal de todo homem. O homem não deveria agir contra a própria consciência, como suprema instância ética, nem obedecer a nenhuma outra ordem. Essa mesma visão poderá ser “sentida” durante todo o percurso da tradição cristã, do período medieval até o século XX, no Concílio Vaticano II, principalmente no documento Gaudium et Spes n. 16. Apesar das limitações do pensamento tomista quanto à legitimidade da escravidão, que custou muito aos negros e indígenas da América, não se pode negar que foi nesse período da Idade Média que se operou uma importante mudança quanto à liberdade. Esta deixava de ser um tema metafísico e passava a ser faculdade pessoal do ser humano, em sua dimensão social. Ficando estipulados os três direitos de liberdade, ou seja, o da propriedade, à pessoa e à vida, fundamento de todo o poder justo. 2. OS CRIMES CONTRA A HUMANIDADE E A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS 2.1 As raízes da declaração universal dos direitos humanos Para Ribeiro (2007, p. 26), o cristianismo foi fundamental para que não só do ponto de vista político, como no campo geral das valorações, se fundasse a dignidade do homem como ser individual, racional e livre, criatura de Deus, chamada a uma vida sobrenatural e imortal. Tal fato se fundaria na doutrina cristã do homem como imagem e semelhança de Deus. Outro fato teria sido a defesa da igreja de que todo o poder derivaria de Deus e, dessa forma, para qualquer outro tipo de poder existiria limites. No entanto, não podemos ignorar a história, que nos revela que em alguns momentos críticos, até mesmo sociedades ou poderes tidos como “cristãos” desrespeitaram a dignidade da pessoa humana. O caso da inquisição, da conquista das Américas, são casos emblemáticos das contradições humanas. Até mesmo as revoluções sociopolíticas se dão quando a consciência de direitos desrespeitados ou da dignidade violada atinge um grau de insatisfação, gerando a mobilização social e a consequente transformação ou, até mesmo, a ruptura de paradigmas. De fato, o homem na sua dignidade não constitui uma entidade isolada; não pode viver e desenvolver todas as suas potencialidades fora de um Wanderlei Realce Wanderlei Realce Wanderlei Nota Dignidade para o Latino é a a fragilidade única dele. 9 “ambiente humano” digno. O homem é um ser dependente do social e da comunidade humana para ser plenamente humano! A sociedade tem direitos e deveres sobre o ser humano, mas a recíproca também é verdadeira. Por isso se justifica uma declaração universal dos direitos do homem, uma tentativa de salvaguardar esse compromisso que cada vez mais consegue a adesão da sociedade contemporânea. Para Ribeiro (2007, p. 35), a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948, foi fruto de um longo processo de amadurecimento da consciência de igualdade entre todos os seres humanos. O cenário dos horrores da II Guerra Mundial serviu para aflorar ainda mais a urgente necessidade de tutelar a existência humana, garantindo ao homem o direito à vida, à liberdade, à propriedade, à segurança, à plena igualdade, à presunção de inocência, ao lazer, à saúde, do acesso à justiça, entre tantos outros. Entretanto, a mera enumeração e declaração formal dos direitos humanos não garantiram a efetividade da proteção, pois esta depende de cada país e comunidade. Hoje, em muitas partes do mundo, existem pessoas sendo desrespeitadas, e até mesmo dentro de países que se dizem defensores dos direitos humanos, ou se apresentam como “modelos de democracia”. É uma contradição conceitual desmembrar dignidade humana de vida humana. A base da dignidade do ser humano engloba também a vida humana vivida e defendida na sua integridade. Os vários ordenamentos jurídicos se baseiam na Defesa dos Direitos Humanos, porém, dependendo da cultura e dos agentes formadores de opinião, a interpretação dessa defesa pode assumir um caráter de total contradição e oposição, como no caso das legislações pró ou contra o aborto, por exemplo. 2.2 As críticas do islamismo Segundo Rouland (2003, p. 278), o diálogo com o Islã parece difícil quando tocamos no tema dos direitos humanos e nos restringimos, erroneamente, aos manifestos radicais. Estes impressionam a opinião pública nos países ocidentais. As dificuldades são significativas. Algumas provêm de diferenças de costumes a priori inconciliáveis, a condição da mulher, por exemplo, ou a influência de uma visão teológica nos aspectos jurídicos. Dentro dessa visão, apenas os religiosos teriam plena proteção da Lei divina, pois esta não se aplica aos politeístas e aos ateus. Wanderlei Realce Wanderlei Realce 10 Nos dias de hoje, a acentuada extensão da ordem islâmica, inquieta ainda mais os ocidentais, mormente quando estes constatam que numerosos Estados muçulmanos não aplicam os direitos do homem definidos por nossa modernidade. Enfim, os fundamentos atribuídos aos direitos do homem parecem profundamente divergentes dentro da tradição ocidental e Islâmica. Na primeira, seria o império da razão “à teológica”, uma razão “liberta das coerções da tradição religiosa”, uma razão fundada somente no poder do Estado. Na visão Islâmica, a lei e os direitos do homem só podem encontrar sua fonte na revelação divina. A garantia deles resulta da obediência à Palavra de Deus, não ao Estado. Segundo a Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos de 1981, se percebe que os juristas islâmicos, que criticaram várias vezes a Declaração Internacional dos Direitos Humanos “ocidentais”, reelaboraram uma declaração que contempla os direitos básicos: à vida; à liberdade; igualdade; justiça, etc. Porém, não se pode negar que as interpretações são complicadas quando o reconhecimento dos direitos das “mulheres casadas” e do grande silêncio sobre a igualdade dos gêneros. A pretensa declaração islâmica, é na realidade uma tentativa de oferecer uma outra base de “dignidade” que pode ser perigosa no processo de crescimento do respeito por qualquer ser humano, seja, homem ou mulher, crente ou não. 2.3 As críticas à “igreja” por não respeitar a dignidade humana “moderna” Na visão de Fontanella (2006, p. 28), é necessária a delimitação conceitual entre: Direitos Humanos e Direitos Fundamentais. Tal distinção seria importante, pois existiria na seara doutrinária certa confusão entre os dois termos.Os Direitos Fundamentais são os direitos reconhecidos e positivados pelo Direito Constitucional de um Estado. Os Direitos Humanos guardam relação com o Direito Internacional, posto que se faça referência a uma validade universal. Sendo assim, a criação dos Direitos Fundamentais e a correspondente positivação nas primeiras Constituições nascem na esteira das transformações ocorridas pelas necessidades da sociedade em razão das transformações sociopolíticas e tecnológicas. Esse fato torna-se emblemático, pois não é difícil perceber em alguns campos atuais, seja sociopolítico ou, até mesmo, de certos “cientistas” a crítica à Igreja como uma grande ameaça aos direitos humanos. Wanderlei Realce Wanderlei Realce Wanderlei Realce Wanderlei Realce 11 Basta participar de um debate com alguns grupos de minorias, ou até mesmo, nos debates políticos que envolvam questões polêmicas como o aborto, por exemplo. A Igreja, sendo caracterizada com a tradição, passa em alguns setores a ser identificada como retrógada e conservadora. Na visão de Dias (2009. Fundamentação ôntico-teológica dos Direitos humanos, p. 369), historicamente a Igreja Católica não foi a primeira, nem esteve em primeira linha em enunciar e reivindicar os direitos humanos, sobretudo certos direitos, como a liberdade. Os seus documentos orgânicos são muito posteriores às declarações dos estados ou dos organismos internacionais. Principalmente a partir da encíclica Pacem in terris de 11 de abril de 1963, do Papa João XXIII. Porém, não podemos esquecer que apesar do “aparente atraso” da Igreja no campo da defesa dos direitos humanos, ela nunca deixou de se preocupar e defender o homem concreto, o seu “Ser” individual, a sua dignidade humana, as suas finalidades e os seus valores. O Magistério eclesiástico ordinário e extraordinário sempre defendeu o homem das manipulações e das degradações, defende inclusive hoje. Neste sentido, podemos dizer que seu “silêncio”, por décadas, se explica como um silêncio da defesa quanto à parte “teórica”, mas que quanto à prática essa nunca ficou silenciada totalmente. Sendo assim, os que criticam a Igreja por “não respeitar os direitos humanos”, como afirmam alguns grupos das “minorias”, na realidade o que seria mais correto afirmar é que a visão da Igreja não é de acordo com a interpretação dos direitos humanos de tais correntes, que muitas vezes negam uma ontologia positiva, aberta ao transcendente do ser humano. Uma prova material que denuncia essa distorção é o fato de, às vezes, os grupos que se dizem defensores dos direitos humanos, com uma visão a-religiosa, estarem mais propensos em apoiar os grupos abortistas. 3. OS DOIS GRANDES MODELOS DE PESQUISA EM BIOÉTICA E A ÁREA DA SAÚDE Segundo Calvetti (2008, p. 115), o modelo de bioética que é empregado nas intervenções em psicologia da saúde e que deveriam nortear a assistência e a pesquisa do profissional da saúde diante das questões da vida humana, seriam: beneficência, não maleficência, autonomia e justiça. Tais princípios são válidos e de eficaz emprego na prática da saúde, como também se pode pensar que 12 estejam subjacentes nos vários Códigos de Ética Profissional da saúde. No entanto, tais princípios não são únicos, e talvez fosse necessária uma complementação com base no modelo de bioética do, assim chamado, personalismo ontologicamente fundado, já que os atuais Códigos de Ética indicam claramente suas preocupações com a defesa dos direitos e integridade da pessoa humana nas várias pesquisas que o mesmo é envolvido. 3.1 Princípios da Bioética Norte Americana Na literatura específica em temas de bioética, sobretudo naquela de língua inglesa, é fácil encontrar referimento aos princípios que deveriam guiar os médicos e os profissionais da saúde na sua relação com os pacientes e, em geral, em qualquer escolha no campo biomédico, chegando a constituir a própria “base para o juízo ético ou bioético”. Os princípios frisados seriam: Primeiro, o princípio da autonomia, tratando com respeito à pessoa envolvida na experimentação, que implicaria tratá-la como sujeito autônomo, entendendo por autonomia a capacidade de agir conscientemente e sem constrições, tutelando a um responsável quando tal autonomia é totalmente ausente. A consequência mais imediata desse modelo é o famoso “consenso informado”, onde o profissional da saúde deveria seguir a orientação de sua ação de acordo com a vontade do paciente. O segundo seria o princípio de beneficência nas intervenções experimentais, isto é, de não produzir danos, procurando minimizar os riscos e maximizar as vantagens, considerando previamente a relação risco/ benefício em cada experimentação; quanto ao terceiro, é conhecido como princípio de justiça, que atuaria na divisão das despesas e dos riscos das experimentações. Esses princípios ficaram conhecidos como linha “principialista de bioética”, com o passar do tempo o segundo princípio se “desdobrou em dois”, gerando o de “não maleficência”, assim ficaram ao todo quatro princípios (Autonomia, beneficência, não maleficência e justiça), porém, para os estadunidenses o princípio “rei” é o princípio da autonomia. A aplicação prática do modelo de bioética americana é caracterizada pelo consenso informado, essencial nas pesquisas em saúde. O princípio da beneficência, não maleficência e justiça também estão presentes nas áreas de saúde, porém, uma das características gerais desse modelo, é o caráter de 13 prevalência da “autonomia”, que é empregada, em alguns casos, como uma garantia do respeito pela pessoa humana, no direito da pessoa de decidir. Chega a quase identificar pessoa humana com a capacidade de autonomia, mas esse entendimento entra em crise nos casos de perplexidade, ou seja, nos casos que o grau de autonomia é incerto, principalmente no início e no fim da vida humana. O “Testamento em vida” tem sido uma das consequências da aplicação desse modelo, ou seja, o doente (ou qualquer pessoa) poderia registrar um testamento manifestando a sua vontade, em casos extremos, para garantir sua autonomia e aspiração, em casos de acidentes ou doenças degenerativas. 3.2 Alguns princípios da bioética personalista Para Screccia (2003, p. 105), o personalismo ontologicamente fundado, apresenta alguns princípios e orientações muito úteis para uma proposta de bioética verdadeiramente personalista, ou seja, que defenda a vida da pessoa humana nas intervenções do homem sobre a vida humana em campo biomédico. Estes princípios englobariam e alargariam os horizontes da própria bioética principialista americana, sendo focada, não simplesmente em “princípios” abstratos, mas na pessoa humana concreta. De certa forma, os católicos (mas não só estes) se identificaram muito com essa visão de bioética, uma das razões pelas quais hoje, no mundo, principalmente europeu, se está desenvolvendo pesquisas na tentativa de aplicar o “modelo personalista” nas decisões médicas, filosóficas, psicológicas e jurídicas, o que proporcionou uma tomada de posição diferenciadora dos adeptos de tal visão em temas polêmicos, como aborto e eutanásia. Dentro dessa visão, os “princípios” são fundamentados na pessoa humana, na sua existência concreta e dando todas as possibilidades de esta se desenvolver. Identificando vida humana com a pessoa humana, daí a o nome de “personalismo ontologicamente fundado”. Até o momento, esta linha da bioética ficou caracterizada pelos seguintes princípios: em primeiro lugar, o princípio da defesa da vida física; segundo, princípio de liberdade e responsabilidade; e terceiro, o princípio da totalidadeou terapêutico. A aplicação prática desse modelo busca trabalhar com a formação de uma consciência nas pessoas, estruturada em três pontos. Primeiro, o ponto de vista verdadeiramente científico (tentando eximir-se ao máximo das ideologias 14 que imperam também no campo científico); segundo, focar sempre a dignidade do ser humano concreto que está em situação de maior necessidade e fragilidade; terceiro, o horizonte de sentido, ou seja, o porquê da ação ou intervenção, qual o sentido maior, quem será mais beneficiado ou prejudicado. Dentro dessa perspectiva, o valor básico a ser assegurado seria o da vida física, depois da liberdade e responsabilidade, e por fim o da totalidade ou terapêutico. Uma das reivindicações em ascensão desse modelo é o do “Estatuto Jurídico dos Embriões”. 4. A DIGNIDADE HUMANA NA DRAMATICIDADE DO ABORTO, QUEM MERECE PROTEÇÃO? Na visão de Faggioni (2006, p. 263), ainda que de maneira não científica, as preocupações com a vida, saúde e direitos do embrião fazem parte da história da humanidade. Como também, no mesmo horizonte, faz parte dessa história o debate sobre o aborto, prática bastante corrente nas várias culturas. Com este quadro de fundo se entende melhor a força com a qual o “estatuto do embrião” vem se impondo nas discussões de cunho ético. Subjacente a esta problemática encontra-se a intrincada questão de precisar quando a vida merece o qualificativo de “humana”. O presente capítulo não pretende apresentar um tratado sobre o início ou fim do qualitativo de uma “vida humana”, deseja apresentar um rápido panorama dos “focos” de debate neste campo. Diniz (2008, p.16), citando a constituição federal do Brasil, afirma que os bioeticistas devem ter como paradigma o respeito à dignidade da pessoa humana, que é o fundamento do Estado Democrático de Direito e o cerne de todo o ordenamento jurídico. A pessoa humana constitui fundamento e fim da sociedade e do Estado. Sendo assim, a bioética e o biodireito passam a ter um sentido humanista, estabelecendo um vínculo com a justiça. Os direitos humanos, decorrentes da condição humana e das necessidades fundamentais de toda a pessoa humana, referem-se à preservação da integridade e da dignidade dos seres humanos e à plena realização de sua personalidade. Tal compreensão está na base, não só da legislação brasileira, mas da grande maioria das legislações ocidentais, até mesmo as que são pró ou contra o aborto possuem a mesma base. Wanderlei Realce Wanderlei Realce 15 O que difere nas várias legislações, é quem se considera “pessoa humana”, já que em algumas legislações, como no Brasil, os embriões não são considerados “pessoas”, têm apenas os chamados direitos do “nascituro”, que garantem em certa medida o direito à vida que é protegida por norma jurídica penal, uma vez que o aborto, com exceção de alguns casos particulares (como estupro e risco de vida, agora também entra nesses casos a limitação do próprio feto, ou seja, o caso das crianças com má formação cerebral) é proibido por lei. Nos três casos, que no Brasil se permite o aborto, se observa uma crescente visão unilateral da questão, ou seja, a partir do prisma das mães que sofreram uma violência física, o risco de vida, e agora o da violência psicológica de saber que seu filho está condenado a morrer. Este mesmo princípio poderá chegar a justificar a eliminação de qualquer criança, feto ou nascituro que tenha algum problema de má formação, tudo isso escondido num falso manto de “caridade”. É claro que do ponto de vista antropológico, o estupro, o risco de vida e os traumas psicológicos são questões sérias que devem ser olhadas com caridade e despertar em todos, os melhores sentimentos de sustentar quem sofreu estas violências. Até mesmo o Estado é chamado a sustentar e ajudar a estas pessoas, utilizando todos os meios disponíveis para preservar a vida em todas as suas formas, com apoio psicológico, auxílio médico e social. Porém, às vezes, os Estados se preocupam somente com a saída mais fácil, ou seja, não oferecem verdadeiro auxílio e decidem apoiar a via mais econômica do aborto. Para Faggioni (2006, p. 236), antes de se fazer a afirmação que o embrião é uma pessoa, se faz necessária uma passagem delicada do considerado “humano” em sentido biológico, um sujeito aparentemente da espécie humana homo sapiens, para o considerado “humano”, em sentido ontológico, sujeito de natureza racional. Então, seria uma passagem do plano empírico da aparência aquele ontológico, do ser em si, no qual nenhum estágio teria uma pretensão de definição completa, mas seria marcado pela transcendentalidade do seu próprio ser. Na prática, estabelecer o que seja uma pessoa e quem mereça ser considerada pessoa é mais fácil no caso de um adulto sadio e inteligente, porém, quanto maior a fragilidade do ser, suas limitações da ordem da autonomia e racional, como no caso do embrião, ou de um adulto em estado vegetativo, ou 16 mesmo um doente terminal, este limite se torna muito variado na literatura bioética moderna, principalmente entre os dois grandes modelos de bioética, ou seja, o norte americano com sua bioética “principialista”, dos quatro grandes princípios: autonomia, beneficência, não maleficência e justiça, e os princípios da bioética de inspiração do personalismo ontológico: defesa da vida física, liberdade e responsabilidade, totalidade ou terapêutico. 5. A DIGNIDADE HUMANA A PARTIR DO JURAMENTO HIPOCRÁTICO Na visão de Reale (2007, p.121), o nascimento da medicina como saber autônomo tem sua origem na Grécia, como símbolo desse saber é apresentado o grande médico grego Hipócrates (século IV a.C), cujo juramento, até os dias de hoje, ainda é feito pelos profissionais da saúde. De fato, no juramento hipocrático se faz um referimento claro contra o aborto e a eutanásia. Tal juramento tem exercido, inegavelmente, uma influência real através dos tempos, passando pelo período do Império Romano, com Galeno (século II d. C), outro grande médico que repropôs a volta dos grandes valores morais da medicina, que deveriam primar pela excelência e compromisso com a vida dos pacientes. A influência da teoria hipocrática exerceu um real fascínio sobre as gerações de médicos de todas as nações, revelando a elevação de seus conceitos e a pureza de suas intenções, que dignificam a profissão médica. Porém, é verdade que hoje, devido aos desafios de uma sociedade consumista, todas as profissões sofreram certos desgastes nos valores e se encontram um tanto nubladas pelos interesses econômicos. Até mesmo a medicina, hoje, vive certo conflito entre o bem dos pacientes e a exploração dos mesmos por profissionais que não se preocupam com o bem do próximo, mas pretendem se servir do próximo ao invés de servir ao próximo. O juramento hipocrático está passando por certas críticas próprias do nosso tempo, algumas até justas, como é o caso de algumas controvérsias a respeito do segredo profissional e a questão da autonomia do paciente que não é considerada no corpus hipocraticum. Cabe, no entanto, um sério questionamento sobre o conceito que parece ser decisivo para o respeito da dignidade humana na área da saúde, ou seja, o que se entende como autonomia? Pode existir algo verdadeiramente autônomo? Ou, a autonomia não seria sempre relativa e limitada? 17 6. A AUTONOMIA KANTIANA: UM DIÁLOGO ENTRE OS DOIS GRANDES MODELOS DE BIOÉTICA Segundo Queiroz (2005, p.10), é comum ver atribuída a primeira enunciação teórica do princípio da dignidade humana “moderna” ao pensamento de Kant. Tal afirmação deve ser localizada no sentidode Kant ser considerado por muitos autores como o “pai” do princípio da autonomia, hoje tão empregado na bioética americana, como em toda a área da saúde e da pesquisa com seres humanos. O pensamento kantiano é apresentado como fundamento teórico a reconhecer que ao homem não se pode atribuir valor, assim entendido como preço, justamente na medida em que deve ser considerado um fim em si mesmo e em função da sua autonomia enquanto racional. Para Cunha (2005, p. 85), o próprio sistema internacional de proteção aos direitos humanos, estaria fundado na liberdade inerente aos seres humanos, enquanto entes racionais submetidos a leis morais, ou seja, na personalidade humana. Por essa razão, a filosofia kantiana seria identificada como a mais radical dos pensadores modernos que serve como base para a construção da contemporânea filosofia dos direitos humanos. A dignidade seria inerente aos seres humanos enquanto entes morais: na medida em que exercem de forma autônoma a sua razão prática, constroem distintas personalidades humanas, cada uma delas absolutamente individual e insubstituível. Consequentemente, a dignidade seria inseparável da autonomia para o exercício da razão prática, sendo por este motivo que apenas os seres humanos seriam dotados dessa especial dignidade. Independente do reconhecimento social, a dignidade seria intrínseca, não depende do outro, mas esta é ontológica. Sendo assim, é reconhecida a vida humana como dignidade ontológica, muito próxima ao que se defende na visão do modelo de bioética do personalismo ontologicamente fundado. (...) O imperativo universal do dever poderia também exprimir-se da seguinte forma: age como se a máxima da tua ação devesse se tornar, pela tua vontade, lei universal da natureza. (...) Uma pessoa que, por uma série de adversidades, chegou ao desespero e sente desapego à vida, mas está ainda bastante em posse da razão para indagar a si mesma se não será talvez contrário ao dever para consigo atentar contra a própria vida. Procuremos, agora, saber se a máxima de sua ação se poderia tornar em lei universal da natureza. A sua máxima, contudo, é a seguinte: por amor de mim mesmo admito um princípio, o de poder 18 abreviar a minha vida, caso esta, prolongando-se, me ameace mais com desgraças do que me prometa alegrias. Trata-se agora de saber se tal princípio do amor de si mesmo pode tornar-se lei universal da natureza. Mas logo, se vê que uma natureza cuja lei fosse destruir a vida em virtude do mesmo sentimento cuja determinação é suscitar sua conservação se contradiria a si mesma e não existiria como natureza” ( Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, 2004 p.52). Kant, na mesma obra, também acentua ainda mais a sua proximidade com uma visão do personalismo ontologicamente fundado, quando afirma: Segundo o conceito do dever necessário para consigo mesmo, o homem que anda pensando em se suicidar indagará a si mesmo se a sua ação pode estar de acordo com a idéia da humanidade como fim em si mesma. Se para fugir a uma situação penosa, se destrói a si mesmo, serve-se ele de uma pessoa como de um simples meio para conservar até ao fim da vida uma situação tolerável. Mas o homem não é uma coisa; não é, portanto, um objeto passível de ser utilizado como simples meio, mas, pelo contrário, deve ser considerado sempre em todas as suas ações como fim em si mesmo. Não posso, pois, dispor do homem em minha pessoa para mutilar, degradar ou matar (Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, 2004, p. 59). Do exposto acima, pode-se pensar que a filosofia kantiana necessita ser estudada também no prisma, não só da bioética principialista americana, mas que oferece base sólida também para a reflexão do personalismo ontologicamente fundado, esclarecendo que os dois grandes modelos de bioética não precisam ser contrapostos, mas que o ideal seria uma relação dialética dos dois modelos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Na busca de ser fiel aos vários Códigos de Ética e legislações ocidentais, que indicam como princípio fundamental a defesa do ser humano, cabe a reflexão, mas qual ser humano é considerado para a decisão de ser pró ou contra o aborto? Qual dos dois modelos de bioética existentes hoje é mais prático para a proteção do ser humano e de seus direitos inalienáveis? Da análise de alguns Códigos de Éticas, bem como dos documentos da Organização Mundial da Saúde, pode-se intuir que até o presente momento, o modelo principialista da bioética americana é preponderante, mas isso não significa a impossibilidade de uma maior reflexão, por parte dos mesmos profissionais da saúde sobre esse tema. A aplicação do modelo de bioética principialista americana é geralmente mais tendenciada a considerar o aborto como um “direito de decisão” da mãe, a autonomia é interpretada somente no sentido e na perspectiva da mãe, o feto é 19 “considerado” quase como um órgão do qual a mãe pode dispor. Se, no entanto, fosse aplicado o princípio do personalismo ontologicamente fundado que defende a concomitância entre vida humana e a dignidade da pessoa humana, com sua natureza racional e substância individual, o feto passaria a ser tutelado, daí a procura da tutela jurídica do “Estatuto do Embrião”. A dramaticidade no caso do aborto, dentro do personalismo ontologicamente fundado é encarada a partir da perspectiva do embrião, o qual passa por um momento dramático de vida ou de morte. O Estado, na sua função de defender a vida seria, dentro dessa visão, encarregado de proteger os mais indefesos. No debate sobre o aborto, não se poderia usar os casos individuais como “exemplos” para fortalecer as fileiras dos “prós ou contra” o aborto. Mas acolher cada pessoa que vive ou passou pelo drama do aborto, para ajudá-la na difícil decisão de defender a vida. O respeito pela consciência (GS16) deve ser essencial para salvaguardar a dignidade humana, também, nas posições divergentes, mas sem com isso favorecer a omissão. A tradição personalista funda suas raízes na razão do homem e no coração de sua liberdade: o homem é pessoa porque é o único ser que conhecemos em quem, a vida é capaz de “reflexão” sobre si mesma, em certo caso de “autodeterminação”; é o único ser vivente em grau de acolher e descobrir o sentido das coisas e de dar sentido as suas expressões e a sua linguagem consciente. A distância ontológica e axiológica, que diferencia a pessoa humana dos animais, não é comparável com aquela que diferencia a planta do réptil ou a pedra da planta. Em cada homem se engloba o sentido do universo e todo o valor da humanidade, pois cada pessoa é um ser diferente e especial. A pessoa humana é uma unidade, um todo e não uma parte do todo. A mesma sociedade tem como ponto de referência a pessoa humana: a pessoa é fim e fonte para a sociedade e deve ser respeitada. Essa realidade do personalismo vale para a mãe e o feto. A pessoa humana como fim e nunca como meio. O personalismo clássico, sem negar o componente existencial, ou a mesma capacidade de escolha, em que consiste o destino e o drama da pessoa, entende afirmar também, e prioritariamente, um estatuto objetivo e existencial (ontológico) da pessoa. A pessoa é antes de tudo um corpo “transcendentalizado”, que vale pelo que é e não somente pelas suas escolhas. Onde, cada escolha, a pessoa a toma dentro do contexto da escolha, ou seja, entra em jogo o mundo dos valores, 20 das informações, das limitações, as quais, porém, não determinam e não mudam o valor ontológico da pessoa em si. A vida humana não perde sua dignidade, mesmo nas várias situações dolorosas de uma doença terminal ou na fragilidade dos primeiros estágios de uma gestação.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Bittar, Eduardo C.B. (2003). Curso de filosofia aristotélica: Leitura e interpretação do pensamento aristotélico, Barueri-SP: Manole. Brugnera, Nedilso Lauro. (1998). A Escravidão em Aristóteles, Porto Alegre: Edipurs. Calvetti, P. 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