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Capítulo 1 Estudando o Sistema Nervoso Visão geral Neurociências envolve uma vasta gama de questões acerca de como se desen- volve e se organiza o sistema nervoso no homem e nos animais, e de como ele funciona para gerar um comportamento. Essas questões podem ser exploradas utilizando-se ferramentas da genética, da biologia celular e molecular, da anato- mia e da fisiologia de sistemas, da biologia comportamental e da psicologia. O maior desafio dos estudantes de neurociências é integrar conhecimentos oriun- dos de diversos níveis de análise em uma compreensão mais ou menos coerente da função e da estrutura do encéfalo (entenda-se “compreensão coerente”, pois muitas questões ainda permanecem não respondidas). Vários dos temas já ex- plorados com sucesso dizem respeito a como as principais células do sistema nervoso de todos os animais – neurônios e glia – realizam suas funções básicas em termos anatômicos, eletrofisiológicos, celulares ou moleculares. A diversi- dade de neurônios e células gliais de suporte já identificados agrupa-se em con- juntos chamados de circuitos neurais, e estes são os componentes primários dos sistemas neurais que processam tipos específicos de informação. Em contrapar- tida, esses sistemas realizam uma de três funções gerais: os sistemas sensoriais representam as informações sobre o estado do organismo e do ambiente; os sistemas motores organizam e geram ações, e os sistemas associativos conectam ambos os componentes sensorial e motor, propiciando a base das funções ence- fálicas “superiores”, como percepção, atenção, cognição, emoções, linguagem, pensamento racional, bem como estabelecendo a base dos processos neurais complexos centrais à compreensão dos seres humanos, seu comportamento, sua história e talvez seu futuro. Genética, genômica e o encéfalo O sequenciamento completo do genoma humano é, talvez, o ponto de partida mais lógico para estudar-se o encéfalo e o restante do sistema nervoso; afinal, essa informação herdada é também o ponto de partida de cada um de nós, como indivíduos. A relativa facilidade em se obter, analisar e correlacionar sequências gênicas com observações neurobiológicas em humanos e outros animais tem per- mitido uma riqueza de novos conhecimentos acerca da biologia do sistema ner- voso. Em paralelo aos estudos de sistemas nervosos normais, a análise genética de famílias humanas com doenças encefálicas diversas implica ser possível, em breve, entender e tratar doenças há muito consideradas além do alcance da ciência e da medicina. Um gene é uma sequência de ADN contendo os nucleotídeos adenina (A), ti- mina (T), citosina (C) e guanina (G). Dentro de cada gene, segmentos da sequência chamados éxons são transcritos em ARN mensageiro e, em sequência, em uma ca- deia de aminoácidos de uma dada proteína. Separando os éxons, há segmentos de sequências chamados de íntrons. Apesar de as sequências de íntrons serem remo- vidas do transcrito gênico final, elas influenciam, muitas vezes, o modo pelo qual os éxons são expressos e, assim, a natureza da proteína resultante. Além disso, o grupo de éxons que define o ARNm transcrito de um gene e a proteína resultante 2 Purves, Augustine, Fitzpatrick, Hall, LaMantia, McNamara & White apoia-se em sequências regulatórias (promotoras ou inibitórias) tanto a montante (5’) quanto a jusante (3’) que controlam o tempo, o local e o nível de transcrição de um gene. A maioria dos aproximadamente 25.000 genes do genoma humano são ex- pressos tanto no encéfalo humano em desenvolvimento quanto no adulto. O mes- mo ocorre em camundongos, moscas-das-frutas e vermes – que são as espécies comumente usadas na genética moderna e cada vez mais usadas em neurociências (Figura 1.1). No entanto, pouquíssimos genes são expressos única e exclusivamen- te em neurônios, indicando que células nervosas compartilham da maioria das propriedades básicas estruturais e funcionais de outras células. Assim, um grande número de informações genéticas “específicas do encéfalo” deve residir nos ín- trons e nas sequências regulatórias que controlam a quantidade, a variabilidade e a especificidade celular da expressão gênica a cada momento. Um dos dividendos mais promissores do sequenciamento do genoma humano tem sido a constatação de que um ou alguns genes, quando alterados (mutados), podem explicar pelo menos alguns aspectos das doenças neurológicas e psiquiá- tricas. Antes de o sequenciamento gênico tornar-se rotina, havia, em muitos casos, pouca percepção de como ou por que a biologia normal do sistema nervoso era comprometida nas patologias encefálicas. A identificação de genes relacionados a doenças como a doença de Huntington, doença de Parkinson, doença de Alzhei- mer, depressão e esquizofrenia tem sido um ponto de partida promissor para se entenderem esses processos patológicos de forma muito mais profunda e, por fim, se formularem terapias racionais. Entretanto, a informação genômica sozinha não pode explicar como o encéfa- lo trabalha em indivíduos normais, ou como os processos de doença perturbam funções normais do encéfalo. Para alcançar esses objetivos, necessitamos com- preender a biologia celular, a anatomia e a fisiologia do encéfalo tanto na saúde como na doença. Organismos modelos em neurociências Muitos dos objetivos das neurociências modernas concentram-se no entendimen- to da organização e da função do sistema nervoso humano, bem como das bases patológicas das doenças neurológicas e psiquiátricas. Esses temas, entretanto, são muitas vezes difíceis de alcançar por meio do estudo do encéfalo humano. Por- tanto, os neurocientistas têm utilizado os sistemas nervosos de outros animais em seus estudos. Durante os dois últimos séculos, informações fundamentais sobre anatomia, bioquímica, fisiologia e biologia celular dos sistemas neurais têm sido Número de genes 0 40.00030.00020.00010.000 Humano Camundongo D. melanogaster C. elegans Figura 1.1 Estimativas do número de genes no genoma humano, bem como nos genomas do camundongo, da mos- ca-das-frutas Drosophila melanogaster e do verme nematódeo Caenorhabditis elegans. Note que o número de genes não se correlaciona com a complexidade do organismo; o nematódeo, mais simples, possui mais genes do que a mosca-das-frutas, e a análise corrente indica, de fato, que camundongos e humanos possuem mais ou menos o mesmo número de genes. Muito da atividade genética é dependente de fatores de transcrição que regulam quando e em que extensão um dado gene é expresso. Neurociências 3 deduzidas a partir do estudo dos encéfalos de uma grande variedade de espécies. Diversas vezes, a escolha das espécies estudadas decorre de suposições sobre ca- pacidades funcionais aumentadas dessas espécies. Por exemplo, entre as décadas de 1950 e 1970, foram realizados estudos pioneiros sobre as funções visuais em gatos. Eles foram escolhidos por serem animais altamente “visuais”, e, portan- to, esperava-se que tivessem as regiões encefálicas dedicadas à visão bem desen- volvidas – regiões essas similares àquelas encontradas em primatas, incluindo os humanos. Muito do que se sabe hoje sobre a visão humana tem base nos estudos realizados em gatos. Estudos em invertebrados, como a lula e o molusco do mar Aplysia californica, levaram a conhecimentos que são também muito importantes na biologia celular básica dos neurônios, da transmissão sináptica e da plastici- dade sináptica (a base do aprendizado e da memória). Em cada caso, o animal estudado mostrou vantagens que possibilitaram responder questões decisivas das neurociências que abordamos neste livro. Hoje, estudos bioquímicos, celulares, anatômicos, fisiológicos e comporta- mentais continuam a ser conduzidos em uma vasta gama de animais. Entretanto, o sequenciamento completo do genoma de um pequeno número de espécies de invertebrados, vertebradose mamíferos levou à adoção informal de quatro orga- nismos-“modelo” por muitos neurocientistas. Eles são o verme nematódeo Cae- norhabditis elegans; a mosca-das-frutas Drosophila melanogaster; o peixe-zebra Danio rerio, e o camundongo Mus musculus. A despeito de certas limitações em cada uma dessas espécies, sua relativa facilidade de manipulação e análise genética, bem como a disponibilidade de suas sequências genômicas completas, possibilita a pesquisa de um grande número de questões neurocientíficas em níveis molecular, celular, anatômico e fisiológico. Outras espécies, claro, também são estudadas. Aves e anfíbios, como galinhas e rãs, continuam a ser particularmente úteis para estudar o desenvolvimento neu- ral nas suas fases iniciais, e mamíferos, como o rato, são usados com frequên- cia em estudos neurofarmacológicos e comportamentais da função encefálica no adulto. Por fim, primatas não humanos (em particular o macaco rhesus) permitem oportunidades de estudo de funções complexas que muito se assemelham àquelas realizadas pelo encéfalo humano. Os componentes celulares do sistema nervoso Já no início do século XIX, a célula foi reconhecida como a unidade fundamen- tal de todos os organismos vivos. No entanto, foi apenas mais recentemente – durante o século XX – que os neurocientistas chegaram a um consenso de que o tecido nervoso, como os demais órgãos, também é constituído por essas uni dades fundamentais. A principal razão para isso é que a primeira geração de neurobiólogos “modernos” no século XIX, com os microscópios e as técni- cas de tinção até então disponíveis, tinha dificuldades para identificar a natu- reza unitária das células nervosas. As for mas extraodinariamente complexas e as intensas ramificações de células nervosas individuais – todas agrupadas e difíceis de serem distinguidas umas das outras – dificultaram a observação de suas semelhanças com outras células geometricamente mais simples de ou- tros tecidos (Figura 1.2). Assim, alguns biólogos da época concluíram que cada célula nervosa estava conectada a suas vizinhas por uniões protoplasmáticas, formando uma malha contínua de neurônios, o “retículo” (do latim, reticulum). Foi o patologista italiano Camillo Golgi quem articulou e defendeu essa “teoria reticular” da comunicação de células nervosas. Golgi fez muitas contribuições importantes às ciências médicas, incluindo a identificação da organela celular que finalmente foi denominada aparelho de Golgi; o descobrimento da técnica de impregnação celular, de fundamental importância, que leva seu nome (Fi- gura 1.2), e a compreensão da fisiopatologia da malária. Entretanto, sua teoria reticular do sistema nervoso, por fim, sucumbiria, sendo substituída por outra que veio a ser chamada de “a doutrina neuronal”. Os principais proponentes da doutrina neuronal foram o neuroanatomista espanhol Santiago Ramón y Cajal e o fisiologista britânico Charles Sherrington. 4 Purves, Augustine, Fitzpatrick, Hall, LaMantia, McNamara & White O debate acalorado ocasionado pelas visões contrárias representadas por Golgi e Cajal no início do século XX estabeleceu o curso das modernas neu- rociências. Com base em exames ao microscópio óptico do tecido nervoso im- pregnado com sais de prata, de acordo com o método pioneiro de Golgi, Cajal argumentava de modo persuasivo que as células nervosas são entidades distin- tas e que se comunicam por meio de contatos especializados, que Sherrington chamou de sinapses. A despeito do triunfo máximo do entendimento de Cajal sobre o de Golgi, ambos foram laureados com o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina por suas contribuições decisivas na compreensão da organização básica do encéfalo. Os trabalhos subsequentes de Sherrington e outros demonstrando a trans- ferência de sinais elétricos em junções sinápticas entre células nervosas propor- cionaram forte fundamentação à doutrina neuronal, apesar de algumas objeções ocasionais à ideia de autonomia dos neurônios. Apenas com o advento da mi- croscopia eletrônica na década de 1950 que foi possível acabar com as dúvidas sobre a individualidade dos neurônios. As fotografias de altas amplificação e re- solução obtidas com o microscópio eletrônico (veja Figura 1.3) estabeleceram, de forma clara, que células nervosas são unidades com funções independentes. Essas micrografias também permitiram identificar as junções celulares especializadas Axônio Corpo celular Dendritos Dendritos (C) Célula ganglionar da retina (F) Célula de Purkinje cerebelar Axônio Corpo celular (A) Neurônios no núcleo do nervo craniano V, no mesencéfalo Axônios * * Corpos celulares (B) Célula bipolar da retina DendritosDendritos Corpo celular Axônio Corpo celular Axônio Corpo celular Dendritos (D) Célula amácrina da retina (E) Célula piramidal cortical * * Figura 1.2 Exemplos da rica varieda- de morfológica das células nervosas en- contradas no sistema nervoso humano. Os desenhos são das células nervosas verdadeiras coradas pela impregnação de sais de prata (a tão conhecida técni- ca de Golgi, método usado nos clássicos estudos de Golgi e Cajal). Asteriscos indi cam que o axônio vai muito além do que o mostrado. Note que algu mas células, como a célula bipolar da retina, têm um axônio muito curto e que ou- tras, como a célula amácri na da retina, não têm axônio. Os desenhos não es- tão todos na mesma escala. Neurociências 5 que Sherrington chamou de sinapses. Entretanto, talvez como um consolo tardio a Golgi, esses estudos de microscopia eletrônica também demonstraram continui- dades intercelulares especializadas entre neurônios – embora relativamente raras – chamadas de junções comunicantes (gap junctions), similares àquelas encontra- das entre células epiteliais, como no intestino e no pulmão. De fato, essas junções permitem a continuidade citoplasmática e a transferência direta de sinais elétricos e químicos entre células no sistema nervoso. Os estudos histológicos de Cajal, de Golgi e de muitos sucessores levaram ao consenso de que as células do sistema ner voso podem ser divididas em duas am- plas categorias: células nervosas (ou neurônios) e células de suporte ou sustenta- ção chamadas de células neurogliais (ou simplesmente glia). As células nervosas são especializadas na sinalização elétrica em longas distâncias. Compreender esse processo representa uma das histórias de sucesso mais impressionantes da bio- logia moderna, sendo o tema da Parte I. As células gliais, ao contrário, não são capazes de sinalização elétrica significativa. Elas possuem, no entanto, funções essenciais nos encéfalos em desenvolvimento e no adulto, bem como contribuem para a regeneração do sistema nervoso lesionado – em alguns casos, promovendo novo crescimento de neurônios lesionados e, em outros, impedindo essa regene- ração (veja Parte IV). Neurônios e glia compartilham das mesmas organelas presentes em todas as células, incluindo retículo endoplasmático, aparelho de Golgi, mitocôndrias e uma variedade de estruturas vesiculares. Em neurônios, entretanto, essas organelas muitas vezes são mais evidentes em algumas regiões. Mitocôndrias, por exemplo, tendem a se concentrar nas sinapses, enquanto organelas de síntese proteica, como o retículo endoplasmático, estão quase que ausentes em axônios e dendritos. Em adição à distribuição de organelas e componentes subcelulares, neurônios e glia são, em certa medida, diferentes de outras células quanto às proteínas tubulares ou fibrilares especializadas que constituem o citoesqueleto (veja Figura 1.4). Ape- sar de muitas dessas proteínas – isoformas de actina, tubulina, miosina e várias outras – serem encontradas em outras células, sua organização diferenciada nos neurônios é fundamental para a estabilidade ea função dos processos neuronais e das junções sinápticas. Os diversos filamentos, túbulos, motores subcelulares e proteínas de arcabouço do citoesqueleto neuronal regem numerosas funções, in- cluindo o crescimento de axônios e dendritos; o tráfego e o posicionamento apro- priado de componentes de membrana, organelas e vesículas, e os processos ativos de exocitose e endocitose subjacentes à comunicação sináptica. Compreender as formas como os componentes moleculares são usados para garantir o desenvol- vimento apropriado e as funções de neurônios e células gliais ainda permanece como foco principal da neurobiologia moderna. Neurônios Neurônios são claramente diferenciados por serem especializados em comuni- cação intercelular. Esse atributo é evidente em sua morfologia geral, na orga- nização específica de seus componentes de membrana para a sinalização elé- trica e nas complexidades funcional e estrutural dos contatos sinápticos entre neurônios (Figura 1.3). O mais óbvio sinal morfológico de especialização para comunicação através de sinais elétricos é a intensa ramificação dos neurônios. O aspecto mais saliente dessa ramificação por células nervosas típicas é a elabora- da arborização dos dendritos que emergem do corpo celular neuronal na forma de ramos dendríticos (ou processos dendríticos; veja Figura 1.3E). Dendritos são o alvo primário de sinais de entradas sinápticos oriundos de outros neurônios, diferenciando-se por seu alto conteúdo de ribossomos, bem como de proteínas específicas do citoesqueleto. O espectro de geometrias neuronais inclui desde uma pequena minoria de células que não possuem dendritos até neurônios com ramos dendríticos que ri- valizam com a complexidade de uma árvore madura de verdade (veja Figura 1.2). 6 Purves, Augustine, Fitzpatrick, Hall, LaMantia, McNamara & White Mitocôndria Retículo endoplasmático Axônios Ribossomos Aparelho de Golgi Núcleo Dendrito Soma (A) (B) Axônio (C) Terminais sinápticos (botões terminais) (D) Axônios mielinizados (G) Axônio mielinizado e nodo de Ranvier(F) Corpo celular neuronal (soma)(E) Dendritos F E B D G C Figura 1.3 Principais características de neurônios em microscopia óptica e microscopia ele- trônica. (A) Diagrama de células nervosas e suas partes componentes. (B) Seg mento inicial do axônio (azul) entrando na bainha de mielina (bronze). (C) Bo tões terminais (azul) carregados com ve sículas sinápticas (cabeças de setas) for mando sinapses (setas) com um dendrito (púrpu- ra). (D) Secção transversal de axô nios (azul) embainhados pelos processos dos oligodendrócitos (dourado). (E) Den dritos apicais (púrpura) de células piramidais corticais. (F) Corpos de células nervosas (púrpura) ocupados por gran des núcleos redondos. (G) Porção de um axônio mielini- zado (azul) ilustrando os intervalos entre segmentos adjacentes de mielina (dourado) referidos como nodos de Ranvier (setas). (Micrografias de Pe ters et al., 1991.) Neurociências 7 O número de entradas que um neurônio recebe depende da complexidade de sua arborização dendrítica; células nervosas que não possuem dendritos são inerva- das por poucas, senão por uma única célula nervosa, enquanto neurônios com ramos dendríticos muito elaborados podem ser inervados por um número muito maior de neurônios. O número de entradas para um único neurônio reflete o grau de convergência, enquanto o número de alvos inervados por um dado neurônio representa sua divergência. Os contatos sinápticos sobre dendritos (e, de modo menos frequente, sobre corpos celulares neuronais) consistem em uma elaboração especial do aparelho secretório encontrado na maioria das células epiteliais polarizadas. Em geral, o terminal pré-sináptico está imediatamente adjacente à especialização pós-si- náptica da célula-alvo. Na maioria das sinapses, não há continuidade física entre esses elementos pré e pós-sinápticos. Outrossim, os componentes pré e pós-si- nápticos comunicam-se pela secreção de moléculas a partir do terminal pré-si- náptico, que se ligam a receptores na especialização pós-sináptica. Essas molécu- las devem atravessar um intervalo de espaço extracelular entre os elementos pré e pós-sinápticos, chamado de fenda sináptica. A fenda sináptica, entretanto, não é somente um espaço vazio a ser atravessado; ela é o sítio de proteínas extracelu- lares que influenciam a difusão, ligação e degradação das moléculas secretadas pelo terminal pré-sináptico. O número de entradas sinápticas recebidas por cada célula do sistema nervoso humano varia de 1 a cerca de 100.000. Esse limite re- flete o propósito fundamental das células nervosas, que é integrar informação de outros neurônios. O número de contatos sinápticos de diferentes neurônios pré-sinápticos sobre qualquer célula em particular é, portanto, um importante determinante da função neuronal. A informação conduzida pelas sinapses sobre os dendritos neuronais é in- tegrada e “lida” na origem do axônio, a porção da célula nervosa especializada em transmitir sinais elétricos (veja Figura 1.3B). O axônio é uma única extensão a partir do corpo celular do neurônio que pode viajar desde poucas centenas de micrômetros (µm, também chamados de mícrons) até muito além, dependen- do do tipo de neurônio e do tamanho da espécie. Além disso, o axônio possui um citoesqueleto distinto cujos elementos são decisivos para sua integridade funcional (Figura 1.4). Muitas células nervosas do encéfalo humano possuem axônios com não mais do que poucos milímetros de comprimento, e alguns sequer possuem axônios. Axônios relativamente curtos, no encéfalo, são uma característica de neurô- nios de circuito local, ou interneurônios. Os axônios de neurônios de projeção, entretanto, estendem-se para alvos distantes. Por exemplo, os axônios que vão da medula espinhal humana até os pés podem ter cerca de 1 m de comprimento. O evento que transporta sinais por tamanhas distâncias é uma onda de atividade elétrica autorregenerativa chamada de potencial de ação, que se propaga do pon- to de iniciação no corpo celular (o cone de implantação) até o terminal axonal, onde acontecem os contatos sinápticos As células-alvo dos neurônios – sítios onde os axônios terminam, e as sinapses são feitas – incluem outras células nervosas do encéfalo, da medula espinhal e dos gânglios neurovegetativos, bem como células musculares e de glândulas por todo o corpo. Os processos químicos e elétricos por meio dos quais a informação codificada por potenciais de ação é passada adiante nos contatos sinápticos para a célula seguinte constituem a chamada transmissão sináptica. Terminais pré-sinápticos (também denominadas terminações sinápticas, terminais axônicos ou botões terminais; veja Figura 1.3C) e suas especializações pós-sinápticas são geralmente sinapses químicas, o tipo de sinapse mais abundante no sistema nervoso. Outro tipo, a sinapse elétrica (facilitada pelas junções comunicantes já mencionadas), é muito mais raro (veja Capítulo 5). As organelas secretórias no terminal pré-sináptico das sinapses químicas são as vesículas sinápticas, estruturas esféricas que contêm moléculas de neurotrans- missores. O posicionamento das vesículas sinápticas na membrana pré-sináptica e sua fusão, que inicia a liberação de neurotransmissor, são regulados por um gru- 8 Purves, Augustine, Fitzpatrick, Hall, LaMantia, McNamara & White (A) (B) (C) (D) (E) (G) (F) (H) (I) (J) (K) Figura 1.4 Os arranjos distintos dos elementos do citoesqueleto de neurônios. (A) O corpo celular, axônios e dendritos são distinguidos pela distri- buição de tubulina (verde por toda a célula) versus outros elementos citoesqueléticos – nesse caso, a proteína ligante do microtúbulo, tau (vermelho), que é encontrada somente em axônios. (B) A localização da actina (vermelho) nas extremidades emcresci- mento de processos dendríticos e axonais é aqui mostrada em neurônios do hipocampo cultivados. (C) Por outro lado, em uma célula epitelial em cul- tura, a actina (vermelho) encontra-se distribuída em fibrilas que ocupam a maior parte do corpo celular. (D) Em células astrogliais em cultura, a actina (ver- melho) é vista também em feixes fibrilares. (E) Tubuli- na (verde) pode ser vista no corpo celular e ao longo de dendritos neuronais. (F) Apesar de a tubulina ser um componente importante de dendritos e esten- der-se para os espinhos, a cabeça do espinho é rica em actina (vermelho). (G) A tubulina que compõe o citoesqueleto em células não neuronais distribui-se em redes filamentosas. (H-K) Sinapses possuem um arranjo distinto de elementos do citoesqueleto, re- ceptores e proteínas de arcabouço. (H) Dois axônios (verde; tubulina) originários de neurônios motores são vistos emitindo dois ramos cada para quatro fi- bras musculares. O vermelho mostra o agrupamen- to de receptores pós-sinápticos (nesse caso, para o neurotransmissor acetilcolina). (I) Uma visão de alta resolução de sinapse de neurônio motor mostran- do a relação entre o axônio (verde) e os receptores pós-sinápticos (vermelho). (J) Proteínas no espaço extracelular entre o axônio e seu músculo-alvo são marcadas em verde. (K) Proteínas de arcabouço (ver- de) localizam receptores (vermelho) e os conectam a outros elementos do citoesqueleto. A proteína de arcabouço mostrada aqui é a distrofina, cuja estru- tura e função estão comprometidas em muitas for- mas de distrofia muscular. (A é cortesia de Y. N. Jan; B é cortesia de E. Dent e F. Gertler; C é cortesia de D. Arneman e C. Otey; D é cortesia de A. Gonzales e R. Cheney; E, segundo Sheng, 2003; F, segundo Matus, 2000; G é cortesia de T. Salmon et al.; H-K são cortesia de R. Sealock.) Neurociências 9 po de proteínas localizadas dentro ou associadas às vesículas. Os neurotransmis- sores liberados pelas vesículas sinápticas modificam as propriedades elétricas da célula-alvo por meio da ligação a receptores de neurotransmissores, localizados principalmente na especialização pós-sináptica. A intrincada e coordenada atividade de neurotransmissores, receptores, ele- mentos do citoesqueleto e moléculas de transdução de sinais são a base da co- municação das células nervosas entre si e com as células efetoras em músculos e glândulas. Células neurogliais Células neurogliais – também chamadas de células gliais ou, simplesmente, glia – são muito diferentes das células nervosas. No encéfalo, células gliais estão em maior número do que neurônios, suplantando-os em uma razão provável de 3 para 1. Apesar de sua superioridade numérica, a glia não participa de modo direto nas interações sinápticas e na sinalização elétrica, ainda que, em suas funções de suporte, auxilie na definição de contatos sinápticos e na manutenção das habi- lidades sinalizadoras dos neurônios. Células gliais também possuem processos complexos estendendo-se a partir de seus corpos celulares, mas esses processos são, em geral, menos importantes do que os ramos neuronais e não servem aos mesmos propósitos de axônios e dendritos. O termo glia (em grego, “cola”) reflete o fato de se ter presumido, durante o século XIX, que essas células “mantinham o sistema nervoso unido” de alguma forma. A palavra sobreviveu apesar da ausência de qualquer evidência de que células gliais mantenham as células nervosas coesas. As funções gliais de fato bem estabelecidas incluem manter o ambiente iônico das células nervosas, modular a velocidade de propagação do sinal nervoso, modular a atividade sináptica por meio da captação de neurotransmissores na fenda sináptica ou próximos a ela, for- necer arcabouço estrutural durante alguns aspectos do desenvolvimento neural e auxiliar (e, às vezes, impedir) a regeneração neural após lesão. No sistema nervoso central maduro, há três tipos de células gliais: astrócitos, oligodendrócitos e células microgliais (Figura 1.5). O astrócitos, restritos ao siste- ma nervoso central (i. e., encéfalo e medula espinhal), possuem processos locais (B) Oligodendrócito(A) Astrócito Corpo celular Processos gliais (D) (E) (F) (G) (C) Célula microglial Figura 1.5 Variedades de células neurogliais. Desenhos de um astrócito (A), de um oligoden drócito (B) e de uma célula microglial (C) visualizados utilizando-se o método de Golgi. As imagens estão aproximada mente na mesma escala. (D) Astrócitos em cultura de tecido, marcados (vermelho) com um anticorpo contra uma proteína especí- fica de astróci to. (E) Células oligoden- drogliais (verde) em cultura, marcadas com um anticorpo contra uma pro- teína específica de oligodendrócito. (F) Axônios periféri cos embainhados pela mielina (marcada em vermelho), exceto nos nodos de Ranvier (veja Figura 1.3G). A marcação verde indica canais iônicos concentrados no nodo; a marcação azul indica uma região molecular distinta chamada de paranodo. (G) Células mi- crogliais da medula espi nhal, marcadas com um anticorpo especí fico para o tipo celular. Em detalhe: imagem de alta am- plificação de uma única célula microglial, identificada com marcador seletivo para macrófagos. (A-C confor me Jones e Cowan, 1983; D, E são cortesia de A.-S. LaMantia; F é cortesia M. Bhat; G é cor- tesia de A. Light; imagem em detalhe, cortesia de G. Matsushima.) 10 Purves, Augustine, Fitzpatrick, Hall, LaMantia, McNamara & White elaborados que lhes dão uma aparência estrelada. Uma das principais funções dos astrócitos é manter, por diversos mecanismos, um ambiente químico propício à si- nalização neuronal. Além disso, observações recentes sugerem que um subgrupo de astrócitos no encéfalo adulto pode conservar certas características de células- -tronco neurais – isto é, a capacidade de entrar em mitose e gerar todos os tipos celulares encontrados no sistema nervoso (veja Parte IV). Os oligodendrócitos, que também são restritos ao sistema nervoso central, depositam um envoltório laminado, rico em lipídeos, chamado de mielina, em torno de muitos (mas não de todos) axônios (veja Figuras 1.3D,G). A mielina pos- sui efeitos importantes sobre a velocidade de transmissão de sinais elétricos (veja Capítulo 3). No sistema nervoso periférico, a mielina é elaborada pelas denomina- das células de Schwann. Finalmente, as células microgliais são derivadas principalmente de células precursoras hematopoiéticas (apesar de algumas poderem ser derivadas de modo direto de células precursoras neurais). As células microgliais compartilham mui- tas propriedades comuns a macrófagos de outros tecidos e são fundamentalmente células “recicladoras” (scavengers) que remo vem os restos celulares de locais le- sionados ou da renovação celular normal. Além disso, a microglia, assim como os macrófagos, secreta moléculas sinalizadoras – em particular, um vasto grupo de citocinas, também produzidas por células imunológicas – que podem modular a inflamação no local e influenciar a sobrevivência ou a morte celulares. Alguns neurobiólogos, inclusive, preferem classificar a microglia co mo um tipo de macró- fago. Após uma lesão encefálica, o número de células microgliais no local aumenta de forma considerável. Algumas dessas células proliferam a partir da microglia residente no encéfalo, enquanto outras provêm de macrófagos que migram para a área lesionada e penetram no encéfalo a partir de pequenas rupturas na micro- vasculatura cerebral. A diversidade celular no sistema nervoso Apesar de os constituintes celulares do sistema nervoso humano serem, sob mui- tos aspectos, semelhantes àqueles de outros órgãos, eles são incomuns por sua quantidade extraordinária. Estima-se que o encéfalo humano contenha 100 bilhões de neurônios e muitas vezes esse valor como células de suporte. Mais importante,o sistema nervoso contém uma variedade maior de tipos celulares – ou categori- zados por morfologia, indentidade molecular ou por atividade fisiológica – do que qualquer outro órgão (um fato que presumivelmente explica por que tantos genes diferentes são expressos no sistema nervoso, como foi mencionado no início deste capítulo). A diversidade celular de qualquer sistema nervoso responde, sem dúvida, pela capacidade do sistema de formar redes cada vez mais complexas e de mediar comportamentos progressivamente mais sofisticados. Na maior parte do século XX, os neurocientistas dependeram do conjunto de técnicas desenvol- vidas por Cajal, Golgi e outros pioneiros da histologia e da patologia para des- crever e categorizar os diversos tipos celulares do sistema nervoso. O método de tingimento desenvolvido por Golgi permitiu a visualização de células nervosas individuais e de seus processos que tinham sido impregnados de sais de prata de forma aparentemente aleatória (Figura 1.6A,B). Em uma contrapartida moderna, corantes fluorescentes e outras moléculas solúveis injetadas em neurônios indivi- duais, muitas vezes após identificação da função da célula por registro fisiológico, fornecem abordagens alternativas para visualizar células nervosas de forma indi- vidual e seus processos (Figura 1.6C,D). Como complemento a essas técnicas (que fornecem uma amostra aleatória de apenas poucos neurônios e células gliais), outros corantes são usados para demonstrar a distribuição de todos os corpos celulares – mas não de seus proces- sos ou suas conexões – no tecido neural. O método de Nissl, usado amplamente, é um deles. Essa técnica cora o nucléolo e outras estruturas (p. ex., ribossomos), onde se encontram o ADN e o ARN (Figura 1.6E). Essas colorações demonstram Neurociências 11 que o tamanho, a densidade e a distribuição da população total de células nervosas não é uniforme, de região para região, dentro do encéfalo. Em algu- mas regiões, como o córtex cerebral, as células estão organizadas em camadas (Figura 1.6F, G), sendo cada camada reconhecida por diferenças distintas na densidade celular. Estruturas como o bulbo olfatório mostram arranjos de corpos celulares ainda mais complicados (Figura 1.6H). Abordagens adicio- nais, detalhadas mais adiante neste capítulo, têm possibilitado definir mais diferenças entre neurônios de região para região. Essas incluem a identifica- çao de como subgrupos de neurônios são conectados uns aos outros e como diferenças moleculares posteriormente distinguem classes de células nervo- sas uma variedade de regiões encefálicas (veja Figura 1.11). Circuitos neurais Neurônios nunca funcionam de forma isolada. Eles são organizados em con- juntos denominados circuitos neurais que processam tipos específicos de in- formação e provêm as bases das sensações, da percepção e do comportamento. As conexões sinápticas que definem os circuitos neurais são normalmente fei- tas sobre um denso emaranhado de dendritos, terminais axônicos e processos gliais que, juntos, constituem o que se denomina neurópilo (da palavra grega pilos, “feltro”; veja Figura 1.3). O neurópilo constitui as regiões entre os corpos das células nervosas onde a maioria das conexões sinápticas ocorre. Apesar de o arranjo dos circuitos neurais variar enormemente de acordo com a função a ser realizada, algumas características são comuns a todos eles. Em qualquer circuito, é obviamente essencial, para entender seu propósito, saber-se a direção do fluxo de informação. Células nervosas que transportam informação da periferia em direção ao encéfalo ou medula espinhal (ou mais profundamente dentro da medula espinhal e do encéfalo) são chamadas de neurônios aferentes; células nervosas que levam informação para longe do encéfalo ou medula espinhal (ou para longe de um circuito em questão) são chamadas de neurônios eferentes. Interneurônios (neurônios de circuito local; veja acima) apenas participam das porções locais de um circuito, em virtude (E) (A) (B) (C) (D) (F) (G) (H) Figura 1.6 Visualização de células nervosas e suas conexões. (A) Neurônios corticais corados utilizando-se o método de Golgi (impregnação com sais de prata). (B) Células de Purkinje do cerebelo coradas por Golgi. As células de Purkinje têm um único dendrito apical, altamente ramificado. (C) A injeção intracelular de corante fluorescente marca dois neurônios da retina que variam de forma significativa quanto ao tamanho e à extensão de suas arborizações den- dríticas. (D) A injeção intracelular de uma enzima marca um neurônio em um gânglio do sistema nervoso neurovegetativo. (E) O corante cresil violeta tinge ARN em todas as células de um tecido, marcando o nucléolo (mas não o núcleo), assim como o retículo endoplasmático, rico em ribossomos. Os dendritos e axônios não estão marcados, explicando os espaços “em branco” entre os neurônios. (F) Secção corada por Nissl do córtex cerebral, mostrando corpos celulares arranjados em camadas de diferentes densi- dades celulares. (G) Uma maior amplificação de área do córtex cerebral, mostrando que diferenças na densidade celular definem os limites entre as camadas desse córtex visual. (H) Bulbos olfatórios corados por Nissl reve- lam distribuição distinta de corpos celulares, em especial daquelas células arranjadas em anéis na superfície externa do bulbo. Essas estruturas, incluindo o tecido com esparsas células contido dentro de cada anel, são chamadas de glomérulos. (C, cortesia de C. J. Shatz; todas as demais são cortesia de A.-S. LaMantia e D. Purves.) 12 Purves, Augustine, Fitzpatrick, Hall, LaMantia, McNamara & White das distâncias pequenas pelas quais seus axônios se estendem. Essas três classes funcionais – neurônios aferentes, eferentes e interneurônios – são os constituintes básicos de todos os circuitos neurais. Um exemplo simples de circuito neural é aquele responsável pelo reflexo miotático espinhal, comumente conhecido como reflexo patelar (Figura 1.7). Os neurônios aferentes que controlam o reflexo são neurônios sensoriais cujos cor- pos celulares encontram-se nos gânglios das raízes dorsais dos nervos espinhais, cujos axônios periféricos acabam em terminações sensoriais nos músculos esque- léticos. (Os gânglios que servem a essas mesmas funções na maior parte da cabeça e do pescoço são chamados de gânglios dos nervos cranianos; veja o Apêndice.) Os axônios centrais desses neurônios sensoriais aferentes penetram na medula espinhal, onde terminam em uma variedade de neurônios centrais dedicados à regulação do tônus muscular – de forma mais clara, sobre neurônios motores que determinam a atividade dos músculos relacionados. Esses neurônios moto- res constituem os neurônios eferentes. Um grupo de neurônios motores no cor- no ventral da medula espinhal projeta-se aos músculos flexores do membro, e o outro, aos mús culos extensores. Interneurônios da medula espinhal constituem o terceiro elemento desse circuito. Os interneurônios recebem contatos sinápti cos de neurônios sensoriais aferentes e estabelecem sinapses com neurônios mo tores eferentes que se projetam para os músculos flexores; assim, eles são capazes de modular a relação entre entrada e saída dessas projeções. As conexões sinápticas excitatórias entre aferentes sensoriais e neurônios motores eferentes extensores causam a contração dos músculos extensores. Ao mesmo tempo, interneurônios inibitórios ativados pelos aferentes diminuem a atividade elétrica em neurônios motores eferentes flexores, causando uma menor atividade dos músculos flexores. O resultado é uma ativação e uma inativação complemen tares dos músculos ago- nistas e antagonistas que controlam a posição da perna. Axônio sensorial (aferente) Interneurônio Axônios motores (eferentes) Receptor sensorial no músculo Músculo flexorMúsculo extensor 2C 2B 2A 1 3A 3B 4 A batida do martelo distende o tendão, que, por sua vez, distende receptores sensoriais no músculo extensor da perna. A perna se estende. (C) O interneurônio estabelece sinapse com o neurônio motor do músculo flexor e o inibe. (B) O neurônio sensorial também excita um interneurônio espinhal. (A) O neurônio sensorial estabelece sinapse com o neurônio motor na medula espinhal e o excita. (B) O músculo flexor relaxa, pois a atividade de seus neurônios motores foi inibida. (A) O neurônio motor conduz potencial de ação para sinapses sobre fibras do músculo extensor, causando sua contração. 1 2 3 4 Secção transversal da medula espinhal Figura 1.7 Um circuito reflexo sim- ples, o reflexo patelar (de modo mais formal, o re flexo miotático), ilustra mui- tos pontos so bre a organização funcio- nal dos circuitos neurais. A estimulação dos sensores peri féricos (um receptor de estiramento mus cular, nesse caso) inicia potenciais de receptor que disparam potenciais de ação que rumam pelo centro, ao longo dos axô nios aferentes, dos neurônios sensoriais. Es sa informa- ção estimula neurônios moto res espi- nhais por meio de contatos sináp ticos. Os potenciais de ação disparados pelo potencial sináptico em neurônios mo- tores rumam pela periferia em axônios eferentes, originando contração mus- cular e resposta comportamental. Um dos objetivos desse reflexo particular é o de ajudar a manter uma postura vertical em face de alterações inesperadas. Neurociências 13 Um quadro mais detalhado dos eventos que transcorrem durante o refle xo miotático ou em qualquer outro circuito pode ser obtido por registros eletrofi- siológicos. Há duas formas de se mensurar a atividade elétrica de uma célula nervosa: o registro extracelular, em que o eletrodo é colocado próximo à célula nervosa de que se queira detectar a atividade, e o registro intracelular, em que o eletrodo é colo cado dentro da célula. Regis tros extracelulares funamentalmente detectam potenciais de ação, as alterações tudo-ou-na da no potencial (voltagem) de membrana de células nervosas que conduzem informação de um ponto a ou- tro no sistema nervoso. Potenciais de ação são descritos em detalhe no Capítulo 2. O registro extracelular é particularmente útil para detectar padrões temporais na atividade dos potenciais de ação e relacionar esses padrões à estimulação por outras entradas, ou a eventos comportamentais específicos. Os registros intrace- lulares podem detec tar e graduar as menores mudanças de potencial que servem para desencadear potenciais de ação e assim permitem uma análise mais deta- lhada da comunicação entre neurônios dentro de um circuito. Esses potenciais graduados de disparo podem tanto originar-se de recepto res sensoriais quanto de sinapses, sendo chamados, respectivamente, de poten ciais de receptor ou de potenciais sinápticos. Para o circuito miotático, a mensuração da ativida de elétrica pode ser tanto intracelular quanto extracelular, assim definindo as relações funcionais entre os neurônios dentro do circuito. Com eletrodos colocados próximos, mas ainda fora de células individuais, o padrão de atividade de potenciais de ação pode ser regis- trado, fora da célula, para cada elemento do circuito (ou seja, aferências, eferên cias e interneurônios) antes, durante e após um estímulo (Figura 1.8). A com paração entre o início, a duração e a frequência da atividade dos potenciais de ação em cada célula nos permite compreender a organização funcional do circui to. Como resultado do estímulo, o neurônio sensorial é levado a disparar em fre quências mais altas (ou seja, mais potenciais de ação por unidade de tempo). Por sua vez, esse aumento dispara, com maior frequência, potenciais de ação tan to nos neurô- nios motores extensores quanto nos interneurônios. De modo concomitante, as sinapses inibitórias estabelecidas pelos interneurônios sobre neurônios motores flexores promovem um declínio na frequência dos potenciais de ação nessas célu- las. Empregando-se registros intracelulares, é possível observar, de modo direto, as mudanças no potencial de membrana subjacentes às conexões sinápti cas de cada elemento do circuito do reflexo miotático (Figura 1.9). A organização do sistema nervoso humano Quando considerados em conjunto, circuitos que processam tipos semelhantes de informação compõem sistemas neurais que servem a propósitos comporta- mentais mais amplos. A distinção funcional mais geral divide esses conjuntos em sistemas sensoriais, que adquirem e processam informação do ambiente (p. ex., o sistema visual ou o auditivo, ambos descritos na Parte II), e em siste- Axônio sensorial (aferente) InterneurônioAxônios motores (eferentes) Neurônio motor (extensor) Interneurônio Neurônio sensorial Batida do martelo A perna se estende Neurônio motor (flexor) Figura 1.8 Frequência relativa dos po tenciais de ação (indicada pelas linhas verticais individuais) em diferen- tes componen tes do reflexo miotático quando a via reflexa é ativada. Note o efeito modulatório do interneurônio. 14 Purves, Augustine, Fitzpatrick, Hall, LaMantia, McNamara & White mas motores, que respondem a essas informações gerando movimentos e ou- tros comportamentos (Parte III). Existe, entretanto, grande número de células e circuitos que se situam entre esses dois bem-definidos sistemas de entrada e saída. No seu conjunto, eles são chamados de sistemas associativos e são responsáveis pelas funções encefálicas mais complexas e menos bem-caracte- rizadas (Parte V). Além dessas distinções funcionais mais abrangentes, os neurocientistas e neurobiólogos convencionaram dividir o sistema nervoso dos vertebrados, sob a forma anatômica, em componentes central e periférico (Figura 1.10). O sistema nervoso central, geralmente chamado de SNC, compreende o encéfalo (hemisfé- rios cerebrais, diencéfalo, cerebelo e tronco encefálico) e a medula espinhal (veja o Apêndice A para mais informações sobre as características anatômicas do SNC). O sistema nervoso periférico (SNP) inclui os neurônios sensoriais que conectam os receptores sensoriais da superfície ou os de dentro do corpo com circuitos de processamento relevantes no sistema nervoso central. A porção motora do sistema nervoso periférico consiste em dois componentes. Os axônios motores que conec- tam o encéfalo e a medula espinhal aos músculos esqueléticos formam a divisão motora somática do sistema ner voso periférico, enquanto as células e os axônios que inervam os músculos lisos, o músculo cardíaco e as glândulas formam a divi- são motora neurovegetativa ou viceral. Os corpos celulares das células nervosas do sistema nervoso periférico estão localizados em gânglios, que são simplesmente acúmulos locais de corpos de cé- lulas nervo sas (e células de apoio). Os axônios periféricos estão agrupados em nervos, que são feixes de axônios, muitos dos quais envolvidos pelas células gli ais do sistema nervoso periférico, as células de Schwann, antes mencionadas. (C) Interneurônio Interneurônio Neurônio sensorial (A) Neurônio sensorial Neurônio motor (flexor) (D) Neurônio motor (flexor) Neurônio motor (extensor) (B) Neurônio motor (extensor)Microeletrodo para medir o potencial de membranaRegistro Registro Registro Registro Po te nc ia l d e m em br an a (m V ) Po te nc ia l d e m em br an a (m V ) Po te nc ia l d e m em br an a (m V ) Po te nc ia l d e m em br an a (m V ) Tempo (ms) Sinapse excitatória ativada Sinapseexcitatória ativada Sinapse inibitória ativada Potencial de ação Potencial de ação Potencial sináptico Potencial de ação Potencial sináptico Figura 1.9 Respostas registradas dentro da célula durante reflexo miotático. (A) Potencial de ação medido em um neurônio sensorial. (B) Potencial de disparo pós- -sináptico registrado em um neurônio motor extensor. (C) Potencial de disparo pós- -sináptico registrado em um interneurônio. (D) Potencial pós-si náptico inibitório em um neurônio motor flexor. Esses registros intracelulares são a base para se entender os mecanismos celulares da geração do potencial de ação e os potenciais de recep- tor sensorial e potenciais sinápticos que disparam esses sinais. Neurociências 15 No sistema nervoso central, as células nervosas estão arranjadas de duas for- mas diferentes. Os nú cleos são conjuntos locais de neurônios que apresentam co- nexões e funções mais ou menos semelhantes. Essas coleções se encontram por todo o cérebro, tronco encefálico e medula espinhal. Em contraste, o córtex (no plural, diz-se córtices) apresenta uma distribuição em forma de lâ minas ou cama- das de células nervosas (consulte o Apêndice A para informações adicionais e ilus- trações). Os córtices dos hemisférios cerebrais e do cerebelo são os exemplos mais evidentes desse tipo de organização. Os axônios no sistema nervoso central estão agrupados em tractos que são mais ou menos análogos aos nervos da periferia. Tractos que cruzam a linha média do encéfalo são referidos como comissuras. Dois termos histológicos amplamente aplicados ao sistema nervoso central distinguem regiões ricas em corpos celulares neuronais de regiões ricas em axônios: substância cinzenta refere-se a qualquer concentração no encéfalo ou na medula espinhal de corpos neurais e neuropilo (p. ex., núcleos ou córtices), e substância branca (assim chamada por sua aparência mais ou menos clara, em virtude de seu conteúdo lipídico da mielina), que inclui os tractos axonais e as comissuras. A organização da divisão motora visceral do sistema nervoso periférico (célu- las nervosas que controlam as funções dos órgãos viscerais, incluindo o coração, pulmões, o trato gastrintestinal e a genitália) é um pouco mais complicada (veja Capítulo 21). Os neurônios motores viscerais do tronco encefálico e da medula espinhal – denominados neurônios pré-ganglionares – formam sinapses com neu- rônios motores periféricos localizados nos gânglios viscerais (também chamados de “vegetativos” ). Os neurônios motores periféricos nos gânglios viscerais iner- vam os músculos lisos, as glândulas e o músculo cardíaco, controlando, portanto, a maior parte do comportamento involuntário. Na divisão simpática do sistema motor neurovegetativo, os gânglios situam-se ao longo ou à frente da coluna ver- COMPONENTES SENSORIAIS (B)(A) COMPONENTES MOTORES AMBIENTE INTERNO E EXTERNO Gânglios e nervos sensoriais (divisões simpática, parassimpática e entérica) SISTEMA MOTOR VISCERAL SISTEMA MOTOR SOMÁTICO Receptores sensoriais (na superfície e dentro do corpo) Gânglios e nervos neurovegetativos Nervos motores Músculos lisos, músculos cardía- cos e glândulas Músculos esqueléticos (estriados) EFETORES Sistem a nervoso central Sistem a nervoso periférico Sistema nervoso central Sistema nervoso periférico Nervos cranianos Nervos espinhais Encéfalo Medula espinhal Hemisférios cerebrais, diencéfalo, cerebelo, tronco encefálico e medula espinhal (análise e integração da informação sensorial e motora) Figura 1.10 Os principais compo- nentes do sistema nervoso e suas rela- ções fun cionais. (A) O SNC (encéfalo e medula espinhal) e o SNP (nervos crania- nos e espinhais). (B) Diagrama dos prin- cipais componentes do sistema nervoso central e do periférico e suas relações funcionais. Os estímulos do ambiente determinam a transmissão de informa- ção para circuitos de processamento no encéfalo e na medula espinhal, que, por sua vez, interpretam seu significado e enviam sinais para efetores periféricos que movimen tam o corpo e ajustam o funcionamento de seus órgãos internos. 16 Purves, Augustine, Fitzpatrick, Hall, LaMantia, McNamara & White tebral e enviam axônios a diversos alvos periféricos. Na divisão parassimpática, os gânglios se encontram dentro dos ou adjacentes aos ór gãos que inervam. Outro componente do sistema motor visceral, denominado sistema entérico, é forma- do por pequenos gânglios, bem como por neurônios individuais, espalhados por toda a parede do tubo digestivo. Esses neurônios influenciam a motilidade gástri- ca e sua secreção. Detalhes sobre as estruturas físicas e a anatomia geral do sistema nervoso hu- mano podem ser encontrados no Apêndice deste livro, bem como no atlas do sis- tema nervoso central que se segue ao Apêndice. Análise estrutural dos sistemas neurais A organização estrutural do encéfalo e do sistema nervoso periférico – os detalhes anatômicos dos gânglios, núcleos e córtices e o padrão de conexões definido por seus nervos e tractos – é fundamental para a compreensão da função do sistema nervoso. Pela observação das diferenças na aparência dos tecidos, em particular, a distribuição das substâncias cinzenta e branca, podemos discernir a anatomia re- gional do encéfalo. Essas diferenças anatômicas foram de grande utilidade para os primeiros patologistas do sistema nervoso, que inferiram a localização funcional (i. e., qual subregião do sistema nervoso está relacioanda a qual habilidade com- portamental) correlacionando danos grosseiros em estruturas encefálicas observa- das post mortem com déficits funcionais registrados durante a vida do indivíduo. Esse uso da estrutura para inferir função foi adotado para experimentação, e mui- to das neurociências se apoia em observações feitas por meio da lesão intencional de uma determinada região cerebral, nervo ou tracto em um animal experimental e no registro da subsequente perda de função. Os estudos por lesões forneceram fundamentação para grande parte de nosso conhecimento atual da neuroanato- mia. Em paralelo a esse esforço, neuroanatomistas correlacionaram diferenças grosseiras na estrutura encefálica com diferenças nas densidades celulares evi- denciadas por colorações para mostrar corpos celulares nos materiais histológicos (veja Figura 1.6). A atual visão detalhada da neuroanatomia das conexões surgiu somente após o advento de técnicas para traçar conexões neurais a partir de sua fonte até o ter- (A) (B) (C) (D) (F) (E) Figura 1.11 Abordagens celulares e moleculares para estudar-se a conectivi- dade e a identidade molecular de células nervosas. (A-C) Traçando conexões e vias no encéfalo. (A) Aminoácidos ra- dioativos podem ser captados por uma população de células nervosas (neste caso, injeção de um aminoácido mar- cado de forma radioativa dentro de um olho) e transportados para os terminais axônicos daquelas células na região-alvo do encéfalo. (B) Moléculas fluorescentes injetadas em tecido nervoso são capta- das por terminais axônicos do local de injeção. As moléculas são então trans- portadas, marcando os corpos celulares e dendritos das células nervosas que se projetam ao local de injeção. (C) Traça- dores que marcam axônios podem reve- lar vias complexas no sistema nervoso. Neste caso, um gânglio da raiz dorsal foi injetado, mostrando a variedade de vias axonais do gânglio para a medula espinhal. (D-G) Diferenças moleculares entre células nervosas. (D) Um único glomérulo do bulbo olfatório (veja Figura 1.6H) foi marcado com um anticorpo contra o neurotransmissor inibitório GABA. A marcação mostra uma colo- ração vermelha, revelando que o GABA está localizado em subgrupos de neurô- nios ao redor do glomérulo,bem como nas terminações nervosas no neuropilo do glomérulo. (E) O cerebelo foi marca- do com um anticorpo que reconhece subgrupos de dendritos (verde). (F) Aqui, o cerebelo foi marcado com uma sonda (azul) para um gene específico que é ex- presso somente por células de Purkinje. (A é cortesia de P. Rakic; B é cortesia de B. Schofield; C é cortesia de W.D. Snider e J. Lichtman; D-F são cortesia de A.-S. LaMantia, D. Meechan e T. Maynard.) Neurociências 17 minal (traçador anterógrado) ou vice-versa (traçador retrógrado). Essas aborda- gens permitem uma avaliação detalhada das conexões entre várias regiões do sis- tema nervoso, facilitando assim o “mapeamento” das conexões entre neurônios em uma estrutura (p. ex., o olho) e seus alvos no encéfalo. No início, essas técni- cas consistiam em injetar moléculas visualizáveis no encéfalo, de modo a serem captadas pelos corpos celulares locais e transportadas aos terminais axônicos, ou captadas por axônios locais e terminais e transportadas de volta ao corpo celular (Figura 1.11A,B). Traçadores adicionais podem demonstrar uma rede inteira de projeções axonais de células nervosas expostas ao traçador (Figura 1.11C). Essas abordagens permitem avaliar a extensão das conexões a partir de uma única po- pulação de células nervosas a seus alvos em todo o sistema nervoso. A análise da conectividade nos sistemas neurais tem sido enriquecida por técnicas histoquímicas moleculares que demonstram distinções bioquímicas e genéticas em células nervosas e seus processos. Enquanto os métodos de colora- ção celular usuais mostram principalmente diferenças no tamanho celular e na distribuição, os métodos imunoistoquímicos (marcação com anticorpos) podem reconhecer proteínas específicas em diferentes regiões de uma célula nervosa, ou em diferentes classes de células nervosas. Essas abordagens esclareceram a distribuição de sinapses, dendritos e outras distinções moleculares entre células nervosas em uma variedade de regiões do encéfalo (Figura 1.11D,E). Além disso, pode-se usar anticorpos contra várias proteínas, bem como sondas para trans- critos de ARNm específicos (que detectam a expressão gênica em células rele- vantes), para fazer distinções moleculares entre células nervosas aparentemente equivalentes (Figura 1.11F). Ainda mais recentemente, métodos neuroanatômi- cos e genética molecular têm sido combinados para visualizar-se a expressão de moléculas fluorescentes ou outros traçadores, sob controle de sequências regula- tórias de genes neurais. Essa abordagem evidencia, de modo detalhado, células individuais em tecidos vivos ou fixados, permitindo a identificação de células nervosas e seus processos por meio de seu estado transcricional (i. e., quais ge- nes estão sendo transcritos na célula), bem como sua estrutura e suas conexões. Técnicas de engenharia molecular e genética permitem-nos evidenciar conexões entre populações de neurônios definidas de acordo com suas moléculas e seus alvos (Figura 1.12). O uso de várias abordagens – traçamento de vias, análise de identidade molecular de células nervosas e abordagens genéticas para identifi- car células e conexões – agora é rotineiro para estudarmos como o tecido neural é organizado em circuitos e sistemas funcionais. Axônio periférico Corpo celular Segmento da medula espinhal Promotor Gene repórter Gânglio da raiz dorsal Terminações sensoriais na pele Terminais axonais na medula espinhal Axônio central Figura 1.12 A engenharia genética é utilizada para mostrar vias dentro do sistema nervoso. Um “gene re- pórter” que codifica uma substância visualizável (p. ex., a proteína fluorescente verde – GFP) é inserido no genoma sob controle de uma região promotora específica para o tipo celular (uma sequência de ADN que “liga” o gene em tecidos ou em tipos celulares específicos). O repórter é expresso apenas nesses tipos celulares, revelando os corpos celulares, axônios e dendritos de todas as células no sistema nervoso que expressam o gene. Aqui o re- pórter está sob controle de uma sequência de DNA pro- motora que é ativada apenas em um subgrupo de neu- rônios de um gânglio da raiz dorsal. Fotografias mostram que o gene repórter marca corpos celulares neuronais, os axônios que se projetam à pele como terminações nervosas livres e o axônio que se projeta à raiz dorsal da medula espinhal para levar essa informação da pele ao encéfalo. (Fotografias de Zilka et al., 2005.) 18 Purves, Augustine, Fitzpatrick, Hall, LaMantia, McNamara & White Análise funcional dos sistemas neurais Uma vasta gama de métodos fisiológicos agora encontram-se disponíveis para avaliarmos a atividade elétrica (e metabólica) dos circuitos neuronais que com- põem um sistema neural. Duas abordagens, entretanto, têm sido particularmente úteis para definir como os sistemas neurais representam uma informação. O mé- todo mais utilizado é o registro eletrofisiológico com microeletrodos introduzi- dos em uma única célula, denominados potenciais unitários. Com frequência, esse método faz registros de várias células adjacentes além daquela selecionada, permitindo a obtenção de outras informações úteis. O uso de microeletrodos para registrar a atividade de potenciais de ação fornece uma análise célula a célula da organização de mapas topográficos, o que permite vislumbrar-se para qual tipo de estímulo um neurônio está “especializado” (i. e., o estímulo que evoca a alteração máxima na atividade de potenciais de ação em relação ao estado basal). A análise unitária muitas vezes é usada para definir o campo receptivo de um neurônio – a região do espaço sensorial (p. ex., da superfície corporal, ou de uma estrutura especializada como a retina), na qual um estímulo específico evoca a máxima res- posta de potenciais de ação (Figura 1.13). Essa forma de abordar e compreender sistemas neurais foi introduzida por Stephen Kuffler e Vernon Mountcastle, no início da década de 1950, e desde então vem sendo usada por muitas gerações de neurocientistas para avaliar a relação entre estímulos e respostas neuronais, em sistemas tanto sensoriais quanto motores. Técnicas de registro elétrico no nível de uma única célula agora têm sido ampliadas e refinadas para incluir, de forma simultânea, análises de uma ou múltiplas células em animais realizando tarefas cognitivas complexas, registros intracelulares em animais ilesos e o uso de eletro- dos de fixação de membrana (patch eletrodes) para detectar e monitorar a atividade de moléculas de membranas que, em última instância, constituem o substrato da sinalização neural (veja Parte I). A segunda grande área onde notáveis avanços técnicos têm sido realizados consiste no imageamento funcional do encéfalo em humanos (e, em menor exten- são, em animais). Nas duas últimas décadas, as técnicas de imageamento funcio- nal do encéfalo têm revolucionado nossa compreensão dos sistemas neurais, bem como nossa capacidade para diagnosticar e descrever anormalidades funcionais (Quadro 1A). Ao contrário dos métodos elétricos de registro da atividade neuronal, que expõem o encéfalo e nele inserem eletrodos, o imageamento funcional não é (A) (B) Córtex sensorial somático Campo receptivo (periferia) Atividade de neurônio cortical Período de estimulação Sulco central Giro pós-central Registro Campo receptivo (centro) Um toque na periferia do campo receptivo diminui os disparos pela célula. Um toque fora do campo receptivo não tem efeito. Um toque no centro do campo receptivo aumenta os disparos pela célula. Figura 1.13 Registro eletrofisiológico unitário de neurônio piramidal cortical mostrando o padrão de disparo em resposta a um estímulo periférico espe- cífico. (A) Preparo típico do experimento, em que um eletrodo é inserido no encé- falo. (B) Definindo os campos receptivosneuronais. Neurociências 19 Tomografia computadorizada (TC) Na década de 1970, a tomografia com- putadorizada, ou TC, inaugurou uma nova era de imageamento não invasi- vo, introduzindo o uso de tecnologia de processamento por computador para auxiliar no estudo do encéfalo vivo. Antes da TC, a única técnica dis- ponível de imageamento do encéfalo era a radiografia simples, ou raios X, que mostra um contraste sofrível de tecidos moles e envolve exposição re- lativamente alta à radiação. A TC usa um estreito feixe de raios X móvel e uma série de detectores muito sensíveis nos lados opostos da cabeça para explorar apenas uma pe- quena parte do tecido por um tempo de exposição limitado para evitar a radiação (Figura A). Para fazer uma imagem, o tubo de raios X e os detec- tores giram ao redor da cabeça para coletar informação da radiodensidade de cada orientação ao redor de uma estreita secção encefálica. Técnicas de processamento computacional calcu- lam então a radiodensidade de cada ponto dentro do plano da secção, pro- duzindo a imagem tomográfica (tomo significa “corte” ou “fatia”). Se o pa- ciente é lentamente movido ao longo do aparelho enquanto o tubo de raios X gira, pode-se criar uma imagem tridimensional da matriz encefálica radiodensa, permitindo a computa- ção de imagens de qualquer plano ao longo do encéfalo. A TC permite dis- tinguir com facilidade as substâncias branca e cinzenta, diferenciar muito bem os ventrículos e mostrar muitas outras estruturas com uma resolução espacial de poucos milímetros. Imageamento por ressonância magnética (IRM) O imageamento do encéfalo avan- çou muito na década de 1980 com o desenvolvimento do imageamento por ressonância magnética (IRM). O IRM baseia-se no fato de que os núcleos de alguns átomos agem como magnetos giratórios que, se colocados em um campo magnético forte, irão se alinhar com esse campo e girar em uma frequência que é dependente da força dele. Se for aplicado um breve pulso de radiofrequência ajustado para a frequência de giro original dos átomos, eles serão expulsos do alinha- mento e, por consequência, emitirão energia de forma oscilatória, enquan- to se realinham, de forma gradual, com o campo. A força do sinal emitido depende de quantos núcleos atômicos foram afetados por esse processo. No IRM, o campo magnético é levemente distorcido ao se imporem gradientes magnéticos ao longo de três diferentes eixos espaciais, de forma que apenas os núcleos de de- terminados locais sejam ajustados à frequência do detector em cada momento. Quase todos os aparelhos de IRM usam detectores ajustados às radiofrequências de giro dos núcleos de hidrogênio das moléculas de água, criando imagens com base na distribuição de água nos diferentes tecidos. A manipulação cuidadosa dos gradientes de campo magnético e os pulsos de radiofrequência tornam possível construir imagens espaciais extraordinariamente detalhadas do encéfalo em qualquer localização e orientação, com resolução submilimé- trica (Figura B). O forte campo magnético e os pulsos de radiofrequência usados na IRM são inofensivos, caracterizando-a como uma técnica completamente não invasiva (apesar de objetos metálicos dentro ou próximos ao aparelho se- rem uma preocupação de segurança). O IRM também é bastante versátil, porque se pode gerar imagens com base em uma larga variedade de me- canismos de contraste mudando-se os parâmetros do aparelho. Por exemplo, imagens convencionais de RM tiram vantagem no fato de o hidrogênio possuir diferentes taxas de realinha- mento em diferentes tipos de tecido (p. ex., substâncias cinzenta, branca e fluido cerebrospinal). Isso significa que o contraste entre tecidos moles pode ser manipulado por um simples ajuste quando for medido o realinha- mento do sinal de hidrogênio. Dife- rentes ajustes de parâmetros podem também ser utilizados para gerar ima- gens nas quais as substâncias cinzenta e branca são invisíveis, mas a vascu- latura se mostra em detalhes nítidos. A segurança e a versatilidade do IRM fizeram-no a técnica preferida de ima- geamento da estrutura do encéfalo na maioria das aplicações. Imageamento funcional do encéfalo Observações de variações em ima- gens refletindo funções do encéfalo vivo tornaram-se possíveis com o desenvolvimento recente de técnicas para detectar mudanças pequenas no QUADRO 1A Técnicas de imageamento do encéfalo Fonte de raios X Detectores de raios X (A) Na tomografia computadorizada, a fonte de raios X e os detectores são movidos ao redor da cabeça do paciente. A figura em detalhe mostra uma secção horizontal de TC de um encé- falo adulto normal. (Continua) 20 Purves, Augustine, Fitzpatrick, Hall, LaMantia, McNamara & White invasivo e, assim, aplicável tanto em pacientes quanto em seres humanos sadios. Além disso, o imageamento permite a avaliação simultânea de múltiplas estrutu- ras encefálicas (o que é possível, porém difícil, com métodos de registro elétrico). No decorrer dos últimos 20 anos, métodos não invasivos ainda mais poderosos têm permitido aos neurocientistas avaliar a representação de um grande número de comportamentos humanos complexos e, ao mesmo tempo, têm oferecido fer- ramentas diagnósticas, cujo uso hoje rotineiro, muitas vezes, obscurece a natureza verdadeiramente extraordinária das informações que elas fornecem. Hoje muitos pacientes podem aceitar como algo comum diagnósticos e tratamentos precisos e acurados que há 20 anos não passariam de conjecturas inteligentes por parte dos médicos. É interessante, contudo, que muitas das observações resultantes de novas tecnologias confirmaram inferências sobre a localização funcional e a orga- nização dos sistemas neurais, originalmente com base nos estudos de pacientes com problemas neurológicos que apresentaram comportamentos alterados (após acidentes vasculares cerebrais ou outras formas de lesão encefálica). metabolismo ou no fluxo sanguíneo cerebral. Para conservar energia, o en- céfalo regula seu fluxo sanguíneo de modo que os neurônios ativos (com demandas metabólicas relativamente altas) recebam mais sangue do que neurônios relativamente inativos. De- tectar e mapear essas mudanças locais no fluxo sanguíneo cerebral consti- tuem o fundamento de três técnicas muito utilizadas no imageamento do encéfalo: a tomografia de emissão de pósitrons (TEP), a tomografia com- putadorizada por emissão de fóton individual (single-photon emission computerized tomography, ou SPECT) e o imageamento por ressonância mag- nética funcional (IRMf). Na TEP, isótopos instáveis emisso- res de pósitrons são incorporados a diferentes reagentes (incluindo água, moléculas precursoras de neurotrans- missores específicos e glicose) e injeta- dos na circulação. Oxigênio e glicose marcados rapidamente se acumulam em áreas de metabolismo ativo, e os neurotransmissores marcados são captados, de modo seletivo, pelas regiões apropriadas. À medida que os isótopos instáveis decaem, dois pósitrons são emitidos, movendo-se em direções opostas. Detectores de raios gama são colocados em volta da cabeça e registram o “impacto” dos pósitrons apenas quando dois deles separados a 180o detectam os pósitrons de maneira simultânea. Imagens da densidade de isótopos no tecido então podem ser geradas (de modo semelhante à forma como as imagens de TC são calculadas), mostrando a localização de regiões ativas com uma resolução espacial de cerca de 4 mm. Dependendo do tipo de sonda injetada, o imageamento por TEP pode ser usado para visualizar mudanças dependentes de atividade no fluxo sanguíneo, no metabolismo tecidual ou na atividade bioquímica. O imageamento por SPECT é similar à TEP quanto ao fato de envolver a injeçãoou a inalação de compostos radiomarcados (p. ex., iodoanfetami- na marcada com 133Xe ou 123I), o que produz fótons que são detectados por uma câmera de raios gama movendo- -se rapidamente ao redor da cabeça. O IRM funcional, uma variante do IRM, atualmente oferece a melhor abordagem para visualizar a função encefálica com base no metabolismo local. O IRMf fundamenta-se no fato de a hemoglobina no sangue distor- QUADRO 1A (Continuação) (B) No IRM, a cabeça é posicionada no centro de um grande magneto. Uma antena de radio- frequência em forma de espiral é colocada ao redor da cabeça para excitar e registrar o sinal de ressonância magnética. Para o IRMf, estímulos podem ser apresentados na forma de vídeos de imagem virtual e fones de ouvido dentro do aparelho. Neurociências 21 Analisando comportamentos complexos Muitos dos mais aclamados avanços das modernas neurociências trataram da re- dução da complexidade do encéfalo a componentes que pudessem ser analisados de modo mais fácil – isto é, genes, moléculas e células. Entretanto, o encéfalo fun- ciona como um todo, e o estudo das funções encefálicas mais complexas (poder ser dito, mais interessantes), como a percepção, a linguagem, as emoções, a me- mória e a consciência, permanece como um desafio crucial para os neurocientistas contemporâneos. Em reconhecimento a esse desafio, durante os últimos 25 anos tem-se desenvolvido um campo conhecido como neurociência cognitiva, devota- da, de forma específica, a entender esses temas (veja Parte V). A evolução desses estudos tem rejuvenescido o estudo da neuroetologia (que se dedica à observação de comportamentos complexos de animais dentro dos seus ambientes nativos – p. ex., a comunicação social de aves e primatas não humanos) e tem estimulado o desenvolvimento de tarefas para melhor avaliar a gênese dos complexos compor- cer levemente as propriedades de ressonância magnética dos núcleos de hidrogênio próximos e no de que o grau de distorção magnética de- pende da hemoglobina possuir ou não oxigênio ligado a ela. Quando uma área cerebral é ativada por uma tarefa específica, ela começa a usar mais oxigênio, e, em segundos, a mi- crovasculatura encefálica responde aumentando o fluxo de sangue rico em oxigênio para a área ativa. Essas mudanças na concentração de oxi- gênio e no fluxo sanguíneo levam a mudanças locais dependentes do ní- vel de oxigenação sanguínea (BOLD, de blood oxigenation level-dependent) no sinal de ressonância magnética. Essas flutuações são detectadas usando-se técnicas estatísticas de processamento de imagem, para produzir mapas do funcionamento cerebral dependente da tarefa (Figura C). Como o IRMf usa sinais intrínsecos ao encéfalo sem nenhuma radioatividade, pode-se fa- zer observações repetidas no mesmo indivíduo – uma grande vantagem sobre métodos de imageamento como a TEP. A resolução espacial (2-3 mm) e a resolução temporal (poucos segun- dos) do IRMf também são superiores àquelas de outras técnicas de imagea- mento funcional. Assim, o IRM surgiu como a tecnologia de preferência para investigar tanto a estrutura como a função do encéfalo humano vivo. Referências HUETTEL, S. A., A. W. SONG and G. McCARTHY (2004) Functional Mag- netic Resonance Imaging. Sunderland, MA: Sinauer Associates. OLDENDORF W. and W. OLDENDORF Jr. (1988) Basics of Magnetic Resonance Imaging. Boston: Kluwer Academic Publishers. RAICHLE M. E. (1994) Images of the mind: Studies with modern imaging techniques. Ann. Rev. 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Em suma, esforços novos ou revitalizados para estudar as funções encefálicas superiores, com técnicas cada vez mais poderosas, oferecem formas de começar- mos a entender até os mais complexos aspectos do comportamento humano. Resumo O encéfalo pode ser estudado por métodos que vão desde a biologia genética e molecular até testes comportamentais em seres humanos sadios. Além de um co- nhecimento cada vez maior sobre a organização anatômica do sistema nervoso, muitos dos sucessos mais notáveis das modernas neurociências vieram do enten- dimento das células nervosas como unidades estruturais e funcionais do sistema nervoso. Estudos da arquitetura celular e dos componentes moleculares de neurô- nios e células gliais têm revelado, com notável detalhamento, muito de suas fun- ções individuais, fornecendo a base para entendermos como as células nervosas organizam-se em circuitos, e os circuitos em sistemas que processam tipos espe- cíficos de informação pertinentes à percepção ou à ação. Há ainda objetivos que perduram; entre eles estão a compreensão de como fenômenos genéticos molecu- lares básicos estão ligados às funções de células, circuitos e sistemas; como esses processos se desvirtuam em doenças neurológicas e psiquiátricas, e as funções especialmente complexas do encéfalo que nos tornam humanos. Leituras adicionais BRODAL, P. (1992) The Central Nervous System: Structure and Function. New York: Oxford University Press. GIBSON, G. and S. MUSE (2001) A Primer of Genome Science. Sunderland, MA: Si- nauer Associates. NATURE VOL. 409, No. 6822 (2001) Fas- cículo de 16 de fevereiro. Fascículo espe- cial sobre o genoma humano. PETERS, A., S. L. PALAY and H. de F. WEBSTER (1991) The Fine Structure of the Nervous System: Neurons and Their Sup- porting cells, 3rd Ed. New York: Oxford University Press. POSNER, M. I. and M. E. RAICHLE (1997) Images of Mind, 2nd Ed. New York: W. H. Freeman & Co. RAMON Y CAJAL, S. 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