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Textos on-line de Eric Voegelin HISTÓRIA DAS IDEIAS POLÍTICAS * Idade Antiga IV O fim da Grécia 1.Aristóteles 2. As Ligas 3. A desintegração espiritual V De Alexandre a Actium 1. Alexandre Magno 2. O Estoicismo 3. Monarquia Helenística 4. Israel 5. Políbio 6. Cícero 7. Era de Ouro VI - Cristianismo e Roma 1. Cristianismo 2. Cristianismo e nações 3. O Imperador 4. A lei natural 5. Agostinho de Hipona Textos on-line de Eric Voegelin HISTÓRIA DAS IDEIAS POLÍTICAS ERIC VOEGELIN ** Idade Média A . O Crescimento do império l 1 Estrutura Geral da Idade Média l 2 Os Povos Germânicos Migrantes l 3 O Novo Império l 4 A Primeira Reforma l B. A ESTRUTURA DO SÉCULO l 5 Introdução l 6 João de Salisbúria l 7 Joaquim de Fiora l 8 S. Francisco de Assis l 9 Frederico II l 10 O Direito l 11 Sigério de Brabante l C. O CLÍMAX l 12 S. Tomás de Aquino l D. A IGREJA E AS NAÇÕES l 13 Carácter do Período l 14 Ultramontanos e Egídio Romano l 15 Monarquia Francesa l 16 Dante l 17 Marsílio de Pádua l 18 Guilherme de Ockham l 19 Política Nacional Inglesa l 20 Da Cristandade Paroquial à Cristandade Imperial l 21 A Área Imperial l 22 O Movimento Conciliar Textos on-line de Eric Voegelin HISTÓRIA DASIDEIAS POLÍTICAS ERIC VOEGELIN *** Idade Moderna De Erasmo a Nietzsche Tradução e abreviação de M. C. Henriques, Lisboa, Ática, 1996 ERASMO DE ROTERDÃO (1466-1536) § 1. O ano de 1516 § 2. O cristianismo de Erasmo § 3. O príncipe e o vulgo § 4. Ascetismo do príncipe § 5. O problema do poder TOMÁS MORO (1478-1535) § 1. Utopia e América § 2. Algures e nenhures § 3. Orgulho e propriedade § 4. A guerra utópica NICOLAU MAQUIAVEL (1469-1527) § 1. Circunstâncias históricas e biográficas § 2. O trauma de 1494 § 3. A tradição italiana § 3.1. Collucio Salutati § 3.2. A historiografia humanística § 4. O horizonte asiático § 4.1. Poggio Bracciolini (1380-1459) § 4.2. A Vita Tamerlani § 5. Vita di Castruccio Castracani § 6. Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, 1513-1522 § 7. Il Principe § 8. Conclusão FRANCISCO DE VITÓRIA (1480-1549) § 1 Internacionalismo. § 2 O Grande Projecto. §3 A concepção da lei interestatal. 4 § Relações Interestaduais e intercivilizacionais. § 5 Guerra Justa. § 6 A Técnica Legal do Imperialismo. § 7 Conclusão. §8 Relações inter-civilizacionais. MARTINHO LUTERO (1483-1546) § 1 O meio social. Imprensa e audiência § 2 O debate de Leipzig em 1519 § 3 Os símbolos Igreja e Transubstanciação § 4 As 95 teses § 5 O Apelo à Nobreza cristã da Nação Alemã § 6 A justificação exclusiva pela fé § 7 O princípio do fim JOÃO BODIN (1529-1597) § 1. Modernidade mediterrânea § 2. Estilo da obra § 3. Atitude religiosa § 4. A orientação da alma purificada para Deus § 5. Realismo contemplativo § 6. O programa: a ordem espiritual da sociedade § 7. Deus, anjos e homens. § 8. O princípio de tolerância. § 9. O método da história. § 10. A soberania: hierarquia de pessoas e de formas jurídicas JOÃO BAPTISTA VICO (1668-1744) § 1. Política à italiana § 2. A obra de Vico § 3. A ideia de uma nova ciência § 4. Os passos da meditação § 5. O continuum das ideias ocidentais § 6. O modelo da natureza § 7. O mundo civil § 8. Recursus e ricorso § 9. A história eterna ideal § 10. O senso comum § 11. A estrutura política do corso § 12. Conclusão FREDERICO SCHELLING (1775-1854) § 1. O realista numa era de desintegração § 2. Elementos de uma posição § 3. A especulação de Schelling § 4. Existência histórica § 5. Existência orgiástica § 6. Existência prometaica § 7. Existência política § 8. Nirvana § 9. Conclusão AUGUSTO COMTE (1798-1857) § 1.1 A "ruptura" na vida de Comte § 1.2. Um diagnóstico do liberalismo de Littré § 1.3. A continuidade biográfica § 1.4. As fases da obra § 1.5. Meditação e renovação pessoal § 1.6. Intervenção e regeneração social § 1.7. A divinização da mulher § 1.8. A historicidade da mente § 2.1 A religião da humanidade § 2.2 O Grand-Être e a ficção de Cristo § 2.3 A França e a "República Ocidental" § 2.4 Napoleão e a "República Ocidental" § 2.5 A herança da Revolução Francesa § 2.6 Revolução, restauração e crise KARL MARX (1818-1883) § 1.3 O descaminho de Marx,1837-1847 § 1.4 Lenda do Jovem Marx § 1.5 O movimento marxista. Revisionismo § 1.6 O movimento marxista. Comunismo § 1.7 Triunfo político do marxismo § 2.1 Dialéctica invertida. A formulação da questão § 2.2 A proibição-de- perguntar ou Fragesverbot § 2.3 Especulação pseudológica § 2.4 Inversão § 3.1 A génese do socialismo gnóstico § 3.2 Teses sobre Feuerbach § 3.3 Crítica do céu e crítica da terra § 3.4 Emancipação e alienação § 3.5 O homem socialista § 3.6 Comunismo em bruto e comunismo verdadeiro § 3.7 Manifesto Comunista. Dez. 1846-Jan.1848 § 3.8 Tácticas § 3.9 Conclusão FREDERICO NIETZSCHE (1848-1900) 1. A via da sabedoria 2. A mística intramundana 3. Estilo aforístico 4. A história da alma 5. Transformação imanentista do problema da graça 6. Vontade de poder ou libido dominandi? 7. Genealogia da moral e filosofia da história CAPÍTULO 3 MONARQUIA HELENÍSTICA § 1 Helenismo e Idade das Trevas § 2 Monarquia Divina § 3 A Lei Animada § 5 Ecfanto § 4 Diotógenes § 6 Os reis salvadores § 1 Helenismo e Idade das Trevas Apesar do esforço grandioso, o processo dos sécs. III e II a. C. é mal conhecido. O motivo da obscuridade e o padrão renascentista da história toma a Europa ocidental e a secularização diferente dos estados nacionais como foco da história e como eixo e daí trabalha para o presente e põe no passado a Antiguidade Clássica, helénica e romana. Idade das Trevas é designação de período entre Antiguidade e renascença. Incapacidade de analisar período que não é fiel a estereótipo de sociedade política que evolui para democracia constitucional. Assim há mais que uma idade das trevas sempre que precede lutas internas pelo poder ou que se segue o desgaste das liberdades constitucionais que desgastou a comunidade até sociedade de massas. Os séculos helenísticos são idade das trevas porquanto vista do passado grego a polis atingiu a canalha urbana e olhando para o futuro a ansiedade espiritual de uma nova alma produz o fenómeno dos Deuses-reis. § 2 Monarquia Divina A controvérsia acerca do sentido efectivo do culto dos reis deuses sincero ou não, cínico resolve-se aceitando que ambos os lados têm razão. O rei pode divinizar-se por desejo sincero de súbditos ou porque irreligiosidade generalizada já não se importa de ter um rei por Deus. Poetas e filósofos podem criar reis. Uma alma pode criar símbolos da profundidade que personalidade consciente rejeitaria. Acerca das origens orientais ou helénicas do culto real ambos os lados têm razão. Os gregos tinham faculdades teopoéticas antes de Alexandre. Mas é certo que Hellas não produziu deuses-reis antes do contacto com o Oriente. Trata-se de um novo fenómeno histórico. Os novos reis diádocos são macedónios; depois embora heroizações e divinizações em vida existissem na Grécia, o primeiro rei- deus é Ptolomeu II do Egipto e sua irmã Arsinoé em 270 a.C.,) O culto dos Ptolomeus não se confundia com o dos Faraós. O culto do governante foi adoptado na Síria não na Macedónia. § 3 A Lei Animada A instituição era nova, o desejo antigo. A tragédia do pensamento socrático mostrava que povo não renovava o cosmion político.Platão procurava o homem que combinasse espírito e poder para salvar Hellas. Alexandre transferiu o problema para a área Mediterrâneo. A diáspora helénica criara reinos de população mista. Impossível criar estados nacionais na Ásia. Organização política não poderia ter base popular duranteséculos mas teria de provir de dinastias e governantes. A nova teoria política lida com rei e governação não com povo e constituição. Os filósofos interpretados como racionalizadores da polis lutavam afinal com agonia da polis e fornecem alternativas. O filosofo salvador em comunicação com céus salva a polis, através da divina ideia que enche a alma. Até ao povo que ele tem de assimilar. ele é a lei animada. Desta doutrina vem a teoria helenística do nomos empsychos criando o cosmion político dos poderes da sua divina personalidade. Aristóteles considera a possibilidade de que um homem seja tão superior a outro em virtude a todos os outros que seria injusto submetê-los a regra constitucional. Politica 1284, 10 e ss. Homens de virtude eminente são a sua lei, 13 e ss. E se família produzir superioridade seria família real a fornecer os reis da nação Política 1288 a 1.8 1.15. referencia às instituições persas. Onde a família eminente dos Aqueménidas exercia a função real. emanação de poderes de Ahuramazda para o rei e o caso de Aquenaton. Talvez as ideias orientais fossem conhecidas dos filósofos helenísticos. Babilónia marcava Heraclito, Persa o velho Platão e o símbolo do sol é oriental. Orientalismo latente da Grécia. § 4 Diotógenes Os fragmentos de Diotógenes, pitagórico da uma fórmula ."O rei tem a mesma relação à polis que Deus para com o mundo e a cidade está na mesma relação ao mundo que o rei está para Deus! Porque a cidade-estado, feita como é de uma harmonia de muitos elementos distintos é uma imitação da ordem e da harmonia do mundo enquanto o rei tem governo absoluto é ele próprio Lei Animada foi metamorfoseado em divindade pelos homens." Erwin Goodenough salientou o paralelo entre universo e o estado, o cosmos e o cosmion, entre Deus e o Rei. E, supremo realismo, a ordem teria de vir do poder do governante como harmonizador do povo, previsto em Opis situação mantida durante um milénio de ordem imperial. § 5 Ecfanto Elabora a fórmula de Diotógenes. O rei adquire majestade se a conduta for divina. Contemplar o rei afecta a alma daqueles que o vêem não menos que o som da flauta ou a harmonia. Para Ecphantus o rei tem a mesma comunhão com os súbditos como deus tem para com o universo e as coisas que lhe pertencem. Os reis diádocos são elevados ao poder pela fortuna pessoal em tempos desordenados: o seu problema pessoal é idêntico ao de qualquer pessoa. O conceito de autarcia reduziu-se até à esfera individual. Se ele quer viver vida perfeita tem de ser auto-suficiente. Homens diferentes realizam finalidades diferentes e o rei torna-se o modelo exemplar para que outros modelem suas vidas. A cosmopolis aberta, a comunidade anárquica de homens sábios adquire articulação interna que ajuda os indivíduos a encontrar o seu caminho. O rei tem de ser tão auto-suficiente e semelhante a Deus quanto possível para transferir esse bem para a natureza humana. O seu logos fortalece os corruptos cura os doentes, afasta o esquecimento e faz a memória viver, donde resulta a obediência. § 6 Os reis salvadores O nosos a doença da alma diagnosticada por Platão era profunda demais para ser curada por uma alma poderosa. Fragmentos de Ecphantus explicam os títulos reais dos reis helenísticos: Soter salvador Euergetes bemfeitor Epiphanes Semelhante a Deus até que O logos que se fez carne e habitou entre nós João IUI, 14. O estatuo político da ideia é imperfeito. Sucederá a comunidade perfeita sem aplicação de força: "Oh se fosse possível eliminar da natureza humana qualquer necessidade de obediência". Este era o problema da evolução da legalidade externa da acção para estado de coisas em que seres humanos actuem por imposição motivo de moralidade. Cap 4. Israel §1. O lugar de Israel na história O tratamento a conceder ao pensamento político Israelita, e seu lugar em uma história geral das ideias políticas, é matéria discricionária porque tantas são as vias que aqui se encontram e de novo se separam, que cada solução bem poderá ser considerada insatisfatória em muitos respeitos. A história de Israel é contemporânea da Mesopotâmia, Pérsia e Egipto, e pode-se debater que as ideias produzidas nestas áreas e período pertencem à Antiguidade Oriental. Mas a própria existência dos centros imperiais nos vales do Nilo e do Eufrates reduzem a história de Israel, e de suas ideias, à de um poder menor, exposto às influências das grandes civilizações circunvizinhas e sem exercer qualquer influência própria visível. As ideias Israelitas, por mais importante que sejam tomadas absolutamente, são um episódio irrelevante na história da Antiguidade Oriental caracterizada pelas grandes estruturas imperiais fundadas cosmologicamente. A importância de Israel para o mundo exterior às suas próprias fronteiras começa num tempo em que Israel deixara de existir e que os remanescentes étnicos do seu povo, com mistura de muitos estrangeiros, foi reorganizado por Ezra no sinoicismo de Jerusalém, após o exílio babilónico, no igreja judaica. No período helenístico, os judeus eram ainda praticamente desconhecidos. A expedição de Antíoco Epiphanes – visando subjugá-los porque a sua diferença religiosa os tornava um incómodo no império Selêucida - foi a primeira ocasião em que foram notados seriamente. A sua importância para o mundo surgiu no fim deste período com a aparição de Jesus, o Messias, e com a incorporação do Cânone judaico, cuja parte mais importante é a literatura Israelita anterior ao exílio, nos livros sagrados da comunidade cristã. Sendo estes eventos o principal motivo de interesse para nós, não devemos descurar outras grandes correntes da história das ideias judaicas: a literatura dos judeus helenizados (em parte presente na Cânone) com sua forte influência independente nos Padres da Igreja; a linha da influência sobre o Islão; e, finalmente, a história judaica Talmudica que frequentemente influencia o curso principal da história ocidental (mais importante na idade média tardia e no renascimento). Por agora, vamos confinar-nos a uma selecção dos elementos que culminam na aparição do Salvador, e ao corpo de doutrina que mediante a sanção religiosa influenciou profundamente o nosso pensamento político moderno. [1] §2. O conceito de aliança O principal conceito político Israelita é a aliança (berith), traduzido na Bíblia como o "convénio" ou a "liga".[2] A aliança é uma categoria geral também usada nas relações privadas onde a tradução mais adequada a de "contrato," mas adquire a importância histórica nas relações especificamente políticas. Berith pode ter os seguintes significados: pode significar uma confederação de homens, ou de famílias, ou das tribos numa unidade política maior, sancionada religiosamente; pode significar a confederação entre unidades sociais e ao mesmo tempo um convénio entre a nova unidade e deus como seu topo; ou pode ter o mesmo significado de um rei à cabeça da confederação; e finalmente pode significar qualquer acordo entre unidades menores para finalidades militares, ou para a concessão de direitos de pasto e de bebida, etc.. Os grandes exemplos da aliança são, naturalmente, o berith entre Iavé e os Israelitas na montanha do Sinai (Exod. 19:3-6), e a aliança entre Israel e David quando foi escolhido rei (Sam 2. 5:3). Os exemplos revelam diferenças importantes com a civilização helénica, na atmosfera política, e correspondentemente no domínio das ideias. Das poleis gregas, nós herdamos as nossas ideias sobre a organização interna de uma comunidade política, sobre o governo constitucional, e sobre o que podemos chamar ‘democracia secundária’. Aqui deparamo-nos com um fenómeno que, para o distinguir do caso helénico, podemos chamar ‘democracia primária’. Por democracia secundária significamos a participação crescente no governo de parcelasda população a que tal participação era anteriormente negada. Por democracia primária, entendemos a criação original de um povo como uma comunidade de proprietários livres. A história de Israel não apresenta sempre uma comunidade livre deste tipo. Mas ela está no começo como a realidade da confederação Israelita, e a sua ideia permanece activa até ao fim como princípio regulador da vida da comunidade. §3. A democracia primária e secundária O elemento da democracia primária regressa, se não com a mesma pureza clássica que em Israel, ao menos como uma tensão na vida política em períodos posteriores, na confederação suíça, em Genebra e em Zurique, e na Nova Inglaterra, com implicações religiosas semelhantes; e regressa como uma ideia nas teorias de do contrato, Hobbes a Rousseau, que visam a constituição de um povo. Houve muita controvérsia se a teoria do contrato, por exemplo de Rousseau, remetia para um evento real em uma fase primitiva da civilização humana, ou se foi concebida como uma ideia que regula as instituições de uma determinada sociedade histórica. Podemos conseguir uma melhor compreensão, neste como em casos semelhantes, se os compreendermos mediante a eficácia latente da ideia de aliança que veio para o mundo ocidental através de Israel. O caso, entretanto, não está geralmente completamente clarificado nas sociedades modernas, porque a situação histórica dos estados nacionais ocidentais não é de uma federação original, mas de uma unidade territorial e popular criada por uma dinastia com uma classe governante aristocrática. Quando as teorias do contrato começaram a exercer a sua influência transportam, consequentemente, o impulso do Israelita e cristão mas, ao mesmo tempo, estão ao serviço da ideia democrática secundária com a luta pelos direitos constitucionais contra a classe superior na comunidade já estabelecida. Observamos, consequentemente, nas ideias políticas modernas, a oscilação curiosa da ideia democrática entre as tendências liberal e colectivista. A tendência liberal deve-se à necessidade da luta contra o padrão estabelecido das instituições e da reivindicação por privilégios iguais aos que são fruídos pela classe governante; a tendência colectivista ou mesmo totalitária deve-se à vontade revolucionária do grupo ascendente de estabelecer o predomínio dos seus padrões de conduta com exclusão de outros, isto é, para estabelecê-la como um novo povo. Em Israel nós não encontramos uma ambivalência de atitude semelhante à de Milton ou da Revolução Francesa, porque a ideia de aliança nunca esteve em dúvida. A literatura profética, apesar do seu assalto aos reis, não contém, consequentemente, nada que lembre a reforma social ou a revolução social. Na sua ética, os profetas são essencialmente conservadores e não se desviam nem um iota das colecções da lei sacerdotal. A revolução contra a Torah - "Está escrito, mas eu digo. . " somente surge com Jesus. §4. O convénio como a fonte da personalidade nacional A história dos convénios efectivos em Israel é obscura. Constituir uma comunidade como uma ordem religiosa sob a liderança de Iavé parece ter sido um dispositivo seguiu mais de uma vez num ambiente de nómadas onde as organizações tribais e clã estavam em fluxo. A ordem religiosa era, aparentemente, o tipo de organização que naquelas circunstâncias teve as mais melhores possibilidades da sobrevivência política e militar através de sua força coesiva superior. Além da federação Israelita, podem ter existido outras; é provável que Judá fosse uma federação iavista, e o mesmo vale para a ordem dos Recabitas. O que emerge à luz da análise teórica como a linha principal da construção política Israelita é a grande aliança do Sinai que constitui o povo sob Iavé. No relato sacerdotal a criação da realeza é interpretada desfavoravelmente como violação da aliança com Deus. Mas a linguagem da aliança de David é particularmente reveladora do significado geral do evento. Em Sam 2. 5: r (e Cron. i 1: r Israel reúne-se e fala a David, "Escuta, nós somos o teu osso e a tua carne," e ele, tendo sido antes o senhor da guerra, será agora o governante. O simbolismo orgânico indica a ideia do corpo místico que é criado mediante a escolha de uma cabeça para o osso e a carne. A aliança instituindo um rei, é o acto que cria a personalidade histórica permanente de um povo. É um acto semelhante em seu significado à escolha de um rei pelos tribos germânicas da migração, e semelhante à função do contrato criador de rei na teoria de Hobbes. 5. A ascensão da realeza e dos profetas A grande ruptura na história Israelita é marcada pela transição da aliança iavística para a régia. A formação da confederação Israelita ocorreu no século XIII a.C., período do poder decrescente dos impérios circunvizinhos e termina com a pressão crescente de Filisteus (Pelesati), egípcios, e assírios desde o século X a.C. A defesa contra a aniquilação ameaçadora requereu uma organização militar e política que não poderia ser criada por tribos de camponeses e nómadas, conduzidas por carismáticos senhores da guerra. A narrativa de Samuel, com o grito do povo clamando por um rei "como as outras nações," tem claras implicações, e a consequência foi a criação de uma monarquia que em breve ficou centralizada nas cidades, semelhante na sua estrutura à polis helénica, sendo as classes ricas portadoras do equipamento militar custoso tal como os cavalos e os carros de guerra. O campo circunvizinho tornou-se semelhante ao grego, com dívidas e empobrecimento crescente do campesinato e dos montanheses. É nesta situação de perigo crescente face aos poderosos impérios vizinhos, e de uma evolução doméstica tão insatisfatória que conduziu às violações do código social da confederação primitiva nas relações entre pobres e ricos, que apareceram os profetas. A actividade profética é principalmente uma profecia do desastre. As linhas principais de ataque são a política externa dos reis, o influxo e renascimento de cultos não-Iavísticos, e a violação da lei social. Em todos estes aspectos a profecia é estritamente determinada pela religiosidade Iavística e desenvolve as suas categorias na estrutura da ideia da aliança. §6. A lei A aliança é um convénio entre Iavé e Israel: o povo promete obedecer à lei de Iavé, e Iavé promete fazer de Israel a nação santa e preferi-la sobre todos os outros povos. Os dois grandes tópicos da especulação política Israelita são, consequentemente, as promessas mútuas: a lei que tem de ser obedecida pelos povos, e o destino glorioso que tem de ser concedido por Iavé. A lei, quanto ao conteúdo, é muito influenciada pelas ideias do estado de bem-estar da Mesopotâmia, e esta tendência geral é acentuada por ser lei de uma confederação de homens livres. Entre as disposições que se tornaram mais tarde importantes, devem ser mencionadas aquelas que tendem a proteger os membros pobres da comunidade, e em particular o comando supremo: "excepto quando não houver pobres entre vós!" (Deut. 15:4). O espírito fraterno da comunidade exprime-se numa longa lista de leis, protegendo o devedor e os pobres contra a opressão e a destituição. A importância destas leis não deriva tanto do facto de serem realmente observadas - como matéria de facto eram frequentemente violadas - mas do seu efeito regulador como comandos do Senhor, sancionadas pela punição de Iavé em caso de violação. Não são leis criadas pelo homem, mas leis divinas positivas. Este carácter da lei divina teve consequências de longo alcance na história posterior porque enquanto lei divina, os códigos sociais Israelitas foram acolhidos pela comunidade cristã e, deste modo, o cristianismo escapou de transformar-se em apenas mais um de entre muitos cultos helenísticos semelhantes centrados no mistério. Possuir a lei completa Israelita foi o mais importante recursoda Igreja quando teve que enfrentar a tarefa de ordenar a vida social no império romano. A lei positiva divina permaneceu um tópico maior na teoria cristã da direito e forma, por exemplo, uma subdivisão da teoria da lei em São Tomás de Aquino. A atitude Israelita é, além disso, eficaz na política dos estados nacionais modernos mediante a ideia, nem sempre racionalizada nem expressamente formulada, que nenhum membro da comunidade política, mesmo que o seu estatuto seja insignificante, pode ficar completamente fora da comunidade. O homem pobre, como tal, preservou o seu estatuto como um tipo na ordem da comunidade durante toda a idade média cristã (onde teve realmente um grau definitivo, como evidenciado pelas representações dos estamentos que mostram o papa e o imperador na cabeça e incluem os pobres como um estado distinto) nas medidas sociais actuais de previdência social. A nossa legislação social moderna, chamada progressista, é o cumprimento tardio e não muito perfeito das ideias que nos vieram, através dos códigos Israelita, das medidas para a protecção social, as pensões para viúvas da guerra, etc., características dos impérios burocráticos da Mesopotâmia. §7. A racionalidade de Conduta - Puritanismo O parceiro divino da aliança era um senhor da guerra, um deus da história que conduziu em pessoa o seu povo à vitória suprema, e era um deus exclusivo. Entre as numerosas implicações práticas desta posição teológica, podemos tocar apenas algumas que deixaram marcas duradouras na história. A mais importante é, talvez, o racionalismo da conduta social, que é menos uma qualidade positiva do que ums marca que emergiu na ausência de outras experiências religiosas. A grande experiência fundamental é a fé no deus exclusivo cujo auxílio pode ser obtido mediante a observação estrita das suas ordens, e cuja cólera será experimentada em caso de violação. Sendo a confederação uma comunidade de libertos, isto significa que cada membro é responsável pela conduta pessoal, não somente perante si mesmo, mas também perante toda a comunidade, a qual tem que pagar colectivamente pela ofensa cometida por cada membro. A consequência é uma supervisão cuidadosa da conduta pessoal, preferivelmente através dos sacerdotes - peritos, que, por via da confissão, tentam descobrir se foi cometida qualquer ofensa. As disposições detalhadas da lei são devidas provavelmente a um desenvolvimento de um catálogo racional de pecados, usado pelos sacerdotes para questionar o membro da comunidade que se confessa. O interesse da comunidade nos detalhes da conduta pessoal produz uma atitude puritana conscientemente racional, e reaparece frequentemente na história, em exemplos,já mencionados de reformas religiosas na Suíça, Holanda, Inglaterra, e Nova Inglaterra. O tipo social desenvolvido por tal disciplina é o que Max Weber chamou o ideal plebeu. Não é seguramente um ideal aristocrático, nem satisfaz o sentimento religioso da "massa" ou do "povo," que necessita sempre o alívio genuinamente mágico face à realidade opressiva da existência quotidiana e [ busca ] a salvação pessoal. Esta religiosidade maciça que encontramos na Grécia dos mistérios, ou no Egipto do culto de Osíris, liga-se com divindades orgiásticas, vegetativas, e ctónicas. Como toda este lado da vida religiosa estava em conflito com a exclusividade do deus da guerra, não encontramos em Israel nem a religiosidade individual dos mistérios nem as especulações cosmológicas na política. §8. A evolução do sentimento escatológico No período da monarquia e dos profetas, esta exclusividade transforma-se no ponto de partida para a interiorização e espiritualização do Iavismo. Nós vimos que a aliança com o deus da guerra nasceu no período da fraqueza relativa dos grandes impérios. Com a regeneração destes, a confederação Israelita de camponeses livres e de guerreiros nómadas era incapaz de sobreviver, transformando-se em necessidade a instituição da monarquia com um pesado aparelho militar, fiscal, e administrativo, muito semelhante ao de Egipto e de Babilónia. O povo separou-se entre a organização régia urbanizada e o campesinato desmilitarizado pobre. Com este desenvolvimento, o Iavismo transformou-se cada vez mais na religião do campo pacífico, preservando, contudo, as tradições e as fórmulas da religião da guerra. O contraste começa a fazer-se sentir entre a ideia de uma comunidade de guerreiros que aspiram pela vitória suprema sobre outros povos e a realidade social e política que se tornou cada vez mais negra e terminou em desastre nacional. Após fases iniciais de ressentimento, protesto, e revolta contra a instituição real e a sua política, e mais tarde fases de submissão e de pacifismo na política externa, e finalmente a glorificação do sofredor inocente, o Iavismo desenvolveu ideias e símbolos que de tal modo se aproximam das ideias e dos símbolos cristãos posteriores que mal podem ser distintos. Mas o ideal é preservado porque, apesar de fases sucessivas de muitos desastres resultantes do castigo de Iavé ao seu povo, o "dia" virá em que Israel será não somente restaurado na sua velha glória mas ficará finalmente vitorioso sobre todos os inimigos. Esta ideia da história como um período da aferição que culmina na glória da história real permaneceu viva, embora profundamente mudada ao longo dos tempos, e reaparece no nosso tempo na sua forma mais primitiva como um elemento nas teorias políticas comunistas e nacional-socialista do fim da história que verá prevalecer a glória de um grupo escolhido contra os poderes inimigos obscuros. A escatologia dos profetas reflecte este processo de espiritualização. Um profeta precoce como Amos imagina o fim como o paraíso de um camponês (Amos 9:11-1 e ss.); mas mesmo um profeta posterior como o Terceiro Isaías aprecia um materialismo maciço, reminiscente da história actual na Alemanha de 1919, sobre a senhora que se encontra com a mulher-a-dias em dias revolucionários e é informada por ela sobre o novo evangelho: "agora seremos iguais: Eu sentar-me-ei na sala de estar, e você vai lavar as escadas "( Isa. 61:s-6). Mas a grande linha de evolução culmina em Ezequiel (36:26-27) e particularmente em Jeremias (Í:í-34) com a promessa de uma nova aliança que nesse "dia" será escrita nos corações e assim não necessitará ser ensinada porque todos "desde o menor entre eles até ao maior" conhecerá o Senhor. A ideia da nova aliança coincide neste desenvolvimento com os fragmentos de Ecfanto, do período helenístico, e da distinção entre a obediência de acordo com a lei e de acordo com a moralidade livre sob a influência purificadora da pessoa real. Referimos a espiritualização da escatologia e usámos o termo “evolução” para indicar a transição do ideal compacto do guerreiro para a lei que vive no coração. Embora este processo tenha realmente ocorrido e aproximado o desenvolvimento interno Israelita do helenístico, possibilitando a fusão com o cristianismo, não devemos negligenciar o facto que o ideal compacto mais antigo, persiste na literatura no tempo do exílio e pós-exílio, lado a lado com a ideia nova. Neste ponto, a história Israelita difere fundamental da helénica. A ideia da polis é concentrada pela última vez no sopro grandioso da alma Platónica, e termina então abruptamente; da desintegração ergue-se a sombra da cosmopolis, gradualmente preenchida pelo impulso vital dos séculos seguintes. Nos sentimentos subjacentes ao pensamento político Israelita, não se separam as tendências - a fé na comunidade vitoriosa e a negação da comunidade como defintivamente derrotada e dissolvida - mas participam em uma mistura original. Para compreender bem o fenómeno, devemos recordar os elementos da situação. Existe a confederação guerreira original que vive na expectativa da vitória final sob a liderança divina. Na escatologia, esta fase expressa-se naopinião que o "dia" trará um evento catastrófico, com a intervenção do próprio Iavé. O deus é o Redentor do seu povo e não carece de um instrumento humano para tal finalidade. Com a instituição da realeza, torna-se visível um novo símbolo; a vitória final pode ser causada por uma personalidade de estirpe real, possivelmente da origem Davídica. E ao mesmo tempo, há o ressentimento contra a realeza que violou a aliança original, e o "dia" é marcado pela aparição de um líder, montado em um jumento, como os líderes carismáticos da guerra do tempo pré-régio (canção de Débora, Juízes. 5:10). Ambas as ideias, a descendência de David e a do líder no jumento, aparecerão mais tarde na história de Jesus. O exílio escatológico oscila entre as ideias do povo como o actor no "dia" e um líder pessoal como a figura do salvador. §9. O sofredor servo do senhor no Deutero-Isaías Sob a superfície destas imagens corre o influxo profundo do sentimento escatológico. A ideia original da vitória final produz uma teodiceia segundo a qual as derrotas e os desastres de Israel são compreendidos como sinais do desfavor divino e causados pela violação da aliança). Outras nações e a sua glória são instrumentos nas mãos de Iavé para testar e punir Israel. Com a acumulação de desastres, torna-se cada vez mais difícil manter esta posição, porque se questiona as intenções de Iavé em conferir o domínio do mundo ao império da Mesopotâmia e em humilhar Israel até ao baixo grau de então. Obviamente, por grande que possa ser, o pecado de Israel não é maior que os das outras nações; além disso, que significado atribuir ao povo eleito de deus se o resultado da escolha da fé é a degradação interminável? Nestas circunstâncias, temos que aceitar como um facto da história, sem explanação adicional, a tenacidade da fé em Iavé. Para escapar ao problema, Israel não seguiu o caminho da Grécia, a desintegração espiritual e a reorientação da vida. Apesar das tendências para uma evolução da personalidade e da dissolução em problemas pessoais, prevalece o espírito colectivista da confederação guerreira, e, a partir da fé imensa e do desespero igualmente profundo, emerge uma das maiores criações da humanidade: o sofredor servo do senhor. As canções do servo sofredor são narradas em Isaías 40-55. O seu autor, conhecido como o Deutero- Isaías, é um desconhecido profeta do exílio. As interpretações do servo variam. Alguns académicos supõem que é uma personificação de Israel; outros acreditam que é um salvador pessoal. Há provas suficientes para ambas as opiniões e, consequentemente, também para uma terceira - que a tensão entre os dois significados foi desejada pelo autor. Acredito que nos aproximamos do problema se não tentarmos compreender a figura como uma construção racional correspondente a intenções do profeta, mas se a virmos, à luz das observações precedentes, como uma imagem extática incerta, tremendo de incerteza mas também fanaticamente determinada, e erguida pelo delírio da fé e do desespero. As canções do servo sofredor ganham a sua atmosfera da presença simultânea de todos os elementos contraditórios que participaram no sentimento escatológico no curso da sua história. A vitória bruta materialista está lá, bem como a nova aliança (berith) de Jeremias, o povo ante- monárquico bem como o salvador régio. A figura do servo desloca-se, certamente, entre o Israel sofredor que será redimido pelo senhor e uma personalidade soteriológica que será usada por Iavé como instrumento de redenção; oscila entre Israel como objecto de redenção e Israel usado como um instrumento por Iavé para a redenção do mundo. A personalidade divina oscila entre o velho parceiro da grande aliança (berith) que sujeitará finalmente o mundo ao seu povo eleito e um deus mundial que usa o sofrimento de Israel como meio para a redenção de todas as nações; o significado da escolha reside precisamente na redenção pelo sofrimento. Estes aspectos opostos da figura conduzem a uma outra figura. Uma ideia emerge claramente, sem paralelo em qualquer outra civilização: a ideia que o mundo será salvo pelo sofrimento de um servo, inocente, e sem culpa. É óbvio que esta ideia implica uma etapa decisiva para a individualização do pecado e da responsabilidade. A ideia original da confederação é impermeável a qualquer pensamento deste tipo, porque se considera que a comunidade sofrerá como colectividade a ofensa praticada contra qualquer dos seus membros - aqueles que não têm culpa juntamente com os culpados, os que vivem naquele tempo e a terceira e quarta gerações. A solidariedade em sofrer não levanta qualquer problema uma vez que não existe ainda a substância pessoal individual; o ser humano único nada mais é do que um membro do povo eleito. Esta parece ser a razão profunda para a confusão de superfície nas imagens e nas ideias no Deutero-Isaías; a descoberta do sofredor individual é feita através do sofrimento colectivo de Israel como um indivíduo entre as nações. Tanto quanto é possível transpor a lógica intricada dos sentimentos para um meio racional, a sequência interna da ideia seria a seguinte: primeiramente, o sofrimento de Israel torna-se inexplicável como punição provisória infligida através do instrumento das nações estrangeiras, porque o sucesso dos outros ultrapassa em muito a punição de Israel; a menos que, consequentemente, seja abandonada a ideia do povo eleito, o sofrimento deve ter um significado independente dos pecados de Israel. Tais pecados, comparados com os de outras nações, não justificariam o sofrimento desproporcional. Este significado mais profundo, o de sofrer sem culpa, apenas ganha sentido, entretanto, num plano do mundo em que o sofrimento se transforma em meio de redenção para o mundo inteiro. Nestas circunstâncias, a fé pode ser mantida, o sofrimento pode tornar-se suportável, e a identidade pessoal, que depende da aliança (berith), pode ser preservada com máxima tenacidade. Mas apressemo-nos a reafirmar que Deutero-Isaías não é um tratado racional; é uma série caleidoscópica de imagens expressivas de uma alma atormentada. Somente neste meio onde as imagens da escatologia Israelita flutuam como num sonho, se tornam possíveis as oscilações que mostram o sofredor sem culpa, uma vez como o povo e outra vez como a pessoa do salvador. "Ele é desprezado e rejeitado pelos homens; um homem dos pesares e familiarizado com a pena." "Oprimido e aflito, contudo não abriu a sua boca; é trazido como um cordeiro à morte." Este servo do senhor é endurecido, porque o senhor Deus o ajudará. E finalmente: "derramou para fora a sua alma até a morte; e foi numerado com os transgressores; e descobre o pecado de muitos, e intercede pelos transgressores." "mas foi ferido pelos nossos transgressões, foi magoado pelas nossas iniquidades; o castigo de nossa paz caiu sobre ele; e com as suas chagas, seremos curados." §10. O servo sofredor e Cristo O símbolo do servo sofredor em Deutero-Isaías está ainda muito profundamente implantado nas experiências e nas dores de Israel. Mas a imagem do futuro salvador aparece claramente neste pano de fundo de angústia, e a Cristologia do Novo Testamento usou muito o servo. O Salmo 21, embebido com o espírito do Deutero-Isaías, abre com as palavras: "Meu deus, meu deus, porque me abandonastes?" Estas são as palavras do salvador morrendo na cruz. Se o relato estiver historicamente correcto, estas palavras não seriam, como frequentemente interpretadas, um grito de desespero final, mas, como citação do Salmo 21, uma auto-interpretação e uma identificação com o símbolo do servo sofredor, implicando o profecia com que o Salmo termina: “E anunciará a sua justiça ao povo que há-de nascer. Tudo isto é obra do Senhor” [1] Esta interpretação dos problemas Israelitas segue sobretudo Max Weber, Gesammelte Aufsãtze zur Religionssoziologie, vol.3, Das antike Judentum (Tubingen, 1921). Para a história do período e bibliografia cf. artigos de S. A. Cook in CAH, vol. 1, 2d ed. (1924), cap. 5; VOL 2 (1924), cap. 14; vol. 3 (1925 ), caps. 17-20; vol. 6 (1927), cap. 7; e R. H. Kenneth, "Israel," in Encyclopaedia of Religion and Ethics (New York, 1913-1927). [2] [Cf Order and History, vol. 1, Israel and Revelation (Baton Rouge, 1956) 3.2. O ESTOICISMO E POLÍBIO A experiência imperial encontrou em Políbio o autor capaz de interpretar as novas movimentações políticas, em particular no período 220-168 a.C. que estabeleceu a grandeza de Roma. A grande força que domina os acontecimentos históricos é a fortuna, sentimento subjectivo dos protagonistas e facto objectivo que determina o rumo da história. Ao considerar que a fortuna criava um campo unitário de inteligibilidade para os movimentos históricos a que assistia, Políbio reconhecia nela a força objectiva que determina a forma da história e o sentimento subjectivo do conquistador que recua perante a possibilidade de, também um dia, declinar. (XXXIX, 20 e XXXVII, 20). Apresenta Demétrio de Faleros a advertir da inconstância da fortuna após a vitória macedónia sobre a Pérsia. Após a vitória de Pidna, o cônsul Paulo Emílio lembra ao senado os reveses da fortuna. E na hora da conquista de Cartago, perante as ruínas do maior inimigo que Roma jamais tivera, Cipião Emiliano derrama lágrimas ao antecipar o dia inevitável em que Roma sofreria idêntico destino.[1] Políbio apercebeu-se que Roma era uma nação diferente das outras. Visava organizar a humanidade numa só cidade com uma exemplaridade imperial que se transmitiu à posteridade.[2] Para descrever a causa desse triunfo crescente, dispunha da teoria clássica das formas de governo, um tópico recorrente da ciência política, que reaparece no sec.XVIII com Montesquieu e na constituição dos EUA. Apoiado na doutrina de Dicearco de Messina que aplicara a Esparta o modelo da “tripoliteia” - o regime misto que combinava os três tipos de regime - Políbio sustenta que a decadência de cada elemento seria contrabalançada pela presença do outro. Os cônsules de Roma seriam o elemento monárquico, o senado o aristocrático e os comícios tribunícios o democrático. Os equilíbrios mútuos predestinavam a vitória de Roma. Contudo, Políbio sabe que as secções do célebre livro VI que tratam da tripoliteia (VI, 3-18) têm pouca importância para descrever a realidade política de Roma. As causas reais surgem nos caps. 43-58. As duas causas da condição (systasis) de um estado são costumes e leis. Se as vidas privadas forem virtuosas, o estado será bom: senão, não. A aristocracia romana parece ter mais sentido de dever cívico do que os adversários. Os romanos nunca dão nada em troca. Os ritos funerais impressionam o povo. A honestidade nos cargos públicos distingue Roma de Cartago. E finalmente o temor reverencial religioso do povo romano, (deisidaimonia), mostra que Roma não passou pela desintegração cultural que afectou a Grécia e manteve a integridade de um povo rural lançado à conquista do mundo. Se estes são as verdadeiras causas da sucesso romano, por que razão Políbio insiste no modelo do regime misto para compreender a evolução política de Roma cuja semelhança com a Grécia é superficial? A sua justificação é de que os argumentos dos clássicos, Platão e Aristóteles, são complexos, e apenas têm sentido pleno para os que a conceberam (VI, 5,2). Políbio apela ao “senso comum” (koine epinoia) A sua grandeza reside em conceber a força e a fraqueza da ideia imperial: Roma representava a ordem definitiva da humanidade e não uma organização de poder entre outras. O orbis terrarum tornara-se em unidade geopolítica a ser disputada por todos os contendores. Em segundo lugar, o imperium crescera à custa de populações que perdiam a individualidade. A nova ordem, a pax romana, estendia a sua mão férrea sobre os povos. Finalmente, irrompera a ideia de Caesar, o homem cuja força pessoal consegue dominar os poderes erráticos e moldá-los num todo. Mas a mesma fortuna que impusera este "destino manifesto" poderia liquidá-lo, tal como lembrará Maquiavel ao teorizar a fortuna secunda et adversa.[3] [1] Ver de Políbio, The Histories, 6 vols., Loeb Classical Library, XXIX,21 XXIX,20 e XXXVII, 20: "A glorious moment Polybius; but I have a dread foreboding that some day the same doom will be pronounced upon my country". Cf. Polybius T.R Glover, Cambridge Ancient History VIII, 1. 1930. [2] Ver o nosso “Império; uma chamada de atenção” Mendo Castro Henriques in Homenagem a Jorge Borges de Macedo, Lisboa, INCM, pp. - 1992. [3] Ver de Políbio, The Histories, 6 vols., Loeb Classical Library, XXIX,21 XXIX,20 e XXXVII, 20: "A glorious moment Polybius; but I have a dread foreboding that some day the same doom will be pronounced upon my country". Voegelin utiliza Polybius T.R Glover, Cambridge a. history VIII, 1. 1930. Cf. HOPI, Christianity and Rome.,cap. 5 , pp.119-123. Cap.6 - CÍCERO As ideias gregas sobre cidadania estavam à disposição dos juristas romanos constituindo um património rico de que Cícero é porta-voz no sec.I a.C., Cícero é, de certo modo, o triunfador do “senso comum”, o indivíduo dotado da clareza do orador e do advogado, um dos autores mais citados no Ocidente desde os padres da Igreja, aos Escolásticos até aos criadores do moderno direito natural racionalista. Passa pelo “cicerone” perfeito de muitos dos termos constantes no pensamento político ocidental, em particular no capítulo da cidadania; refira-se apenas a tradução que fez fortuna de politeia por res publica. O termo latino é tanto tradução como traição ao grego porque res é oriundo do direito civil. Contudo, estamos perante um autor que é claro nas fórmulas mas não no conteúdo do que pensa. Neste sentido, tem a importância do “opinion-maker” e não do cientista, do filósofo, do teórico ou do visionário da vida da cidade. Em imitação de Platão, também Cícero escreveu uma “República” e as “Leis”. Mas ao compararmos os diálogos vemos que para além de a República de Cícero tratar do estado ideal e terminar com o famoso sonho de Cipião de que a ideia de virtude deveria guiar o estadista, - em paralelo com a Politeia platónica, que descreve a cidade -modelo e termina com o sonho de Er de um mundo mais justo - pouco mais existe de comum. Cipião Emiliano é o porta-voz do diálogo porque “acrescentou o saber estrangeiro, originado por Sócrates, aos costumes tradicionais do seu país e dos antepassados” (Rep. III, 3). E este porta-voz é significativo porque, tal como outros romanos do seu tempo, Cícero sente um misto de superioridade e de ressentimento perante a Grécia. Superioridade porque a força romana impediu os Gregos de caírem no caos e na barbárie; ressentimento porque a submissão esconde a maior perfeição da civilização vencida. A “Grécia cativa cativou os captores” como escreveu Horácio. A justificação da posição ciceroniana é o sucesso: o sucesso colectivo de Roma e o sucesso pessoal do homem novo na política, cego para os dramas da história à sua volta, pelo menos até que lhe venham bater à porta. Para o jurista romano, Platão e os demais filósofos gregos eram apenas teóricos que expuseram com pouco sucesso um sistema ideal de governo. O ideal de Cícero é o do cidadão romano que se obriga a seguir os preceitos da autoridade. Para definir o estado ideal basta descrever a constituição da república. Numa passagem de sabor amargo para nós, portugueses, afirma Cícero que a instabilidade de um povo de navegadores, como eram os gregos, afectava as suas cidades e instituições que “flutuavam”, instáveis (Rep. II, 4). Os juristas romanos são muito superiores aos gregos e o imperium romano cresceu e estabilizou-se até ocupar a cosmopolis, apenas sonhada por outros.As opiniões de Cícero, representativas do seu tempo, alimentavam-se da corrente do estoicismo, do sec II a. C., presente no círculo dos Cipiões através de personalidades como Panécio de Rodes e Políbio. O estoicismo inicial insistia no que hoje foi secularizado como “globalização”, ou seja na existência de um espírito, logos e nomos (ratio e lex) que emana do todo para todos os homens e que determina a igualdade. Em consequência desta igual participação na razão divina, cada homem tem duas pertenças e duas cidadanias: a do seu nascimento e a cosmopolis. Cícero transformará esta fórmula estóica na fórmula de que um homem tem duas cidadanias, a terra natal e Roma (Leis, II,2). O laço da ordem justa é constituído por natureza. A verdadeira lei - vera lex - é recta ratio consonante com a natureza, difundida em todos, eterna e imutável; chama o cidadão ao dever pela sua autoridade e impede a prática do mal pela sua proibição. (Rep, III, 22). A lei adquire majestade. O império adquire a qualidade de ser divino. Esta concepção legalista tornou-se um factor decisivo na história das ideias. Roma tornou-se o modelo de futuros impérios que concedem a cidadania a troco da submissão. Se já existe o povo e o governo imperiais, não é necessário inquirir das condições de existência do que é uma boa comunidade política. Os problemas políticos devem ser tratados no quadro da legalidade existente. Uma vez estabilizado o quadro constitucional, os problemas políticos tendem a ser reduzidos a problemas de ordem jurídica. O governo de Roma é a res publica, relacionada com a res populi. A aplicação às instituições públicas do conceito de res, oriundo do direito civil, torna-se fonte de especulações infindas sobre a soberania popular (Rep, I, 25). O povo não é só uma multidão mas uma assembleia que se junta para consentir numa ordem justa e com interesses comuns (Rep.,I, 25. e Rep., III, 31). Define a cidade como a aglomeração humana na qual existe consentimento na lei. Na realidade, o que designa por vinculum juris - o laço jurídico que constitui a comunidade - é o último produto dos processos que originam um povo. Ao insistir na ideia do Direito como independente de pressupostos, Cícero diminui a definição da cidadania. Ao tornar a ordem legal da comunidade no elemento decisivo da política sem mais questionamento sobre a sua origem natureza, diuturnidade, e finalidades, abre um precedente para numerosas teorias centradas no direito como base da sociedade política. Afirmar que o verdadeiro governo só é possível por consenso dos governados é uma ideia vazia de origem ciceroniana e que nada afirma sobre o conteúdo - justo ou injusto - desse consenso cuja qualidade tem de ser avaliada. Enquanto a forma de Roma continua, desaparece o conteúdo. Enquanto Cícero fundava o mito da autonomia do Direito e da concepção estritamente jurídica da cidadania, a república romana foi substituída pelo império. Marco Túlio Cícero será cruelmente assassinado por estar nas listas de Marco António de homens a abater e será entregue por Octávio Augusto, o futuro César, e liquidado por um cliente que defendera numa causa. O drama da história batia-lhe fatalmente à porta. 4 - A Lei Natural A doutrina cristã sobre a lei natural não é uniforme nem uniformes são as suas implicações para o princípio de cidadania; contudo, este pluralismo de posições que conduziram a fórmulas contrárias na teoria reflecte um compromisso na prática. Autores como Paulo e Tertuliano insistem na sequência formada pela lei dos gentios, de Moisés e de Cristo. A recepção da doutrina do estoicismo facilitou a exigência cristã de fixar as relações entre a Igreja e o mundo e de situar a dupla pertença do cristão ao reino mundano e ao reino de Deus. A recepção efectuou-se através da associação do logos estóico ao logos cristão, incarnado em Cristo. O logos-Cristo é o corpo místico da comunidade cristã e é também a razão divina que opera em todos os homens, dirigindo a acção correcta e impedindo o mal. Ao direito natural estóico bastaria adicionar os mandamentos da Lei e os conselhos evangélicos como expressão da razão divina. A recepção do estoicismo, contudo, sofria do embate entre os activistas do reino dos céus com a comunidade política. Para o pagão o cristianismo era um agitador da ordem pública. Para o cristão era preciso resolver o problema da relação entre o reino de Deus (em termos práticos a Igreja) e a esfera jurídico-política, (na prática o império romano). A solução seguiu a linha geral paulina de que o cristão deveria obedecer às autoridades constituídas mas deveria obedecer a Deus acima de todos os homens. Os conflitos inevitáveis e as modalidades desta posição levaram os padres da Igreja a conceber várias soluções. A primeira dessas soluções é a da supremacia da ordem positiva. Como sugere Orígenes, a ordem social será boa na medida em que coincidir com a lei natural: “Pode-se obedecer às leis do estado apenas quando concordam com a lei divina : quando, contudo, a lei escrita e o estado ordenam algo de diferente da lei divina natural, então devemos ignorar as ordens do estado e obedecer apenas ao mando divino”. Se estado e imperador se convertessem ao cristianismo tudo seria mais fácil e a supremacia da lei positiva poderia ser aceite, como veio a suceder após o édito de Milão em 313 com Constantino. Uma segunda posição apresentava as instituições da ordem como consequência do pecado original e da malvadez humana o que provocava a condenação do direito vigente. A divinização do direito positivo colidia com a tensão cristã entre a lei do amor - a vida da Igreja - e a dureza da coerção estatal. Alguns doutrinários cristãos recuperavam a passagem do estado natural de inocência da “Idade de Ouro” para o estado civilizado de imperfeição como Séneca descrevera, por exemplo, na 90ª Carta.[1] A posição predominante, contudo foi a de um compromisso. A organização da sociedade é um instrumento razoável para elevar a vida humana ao melhor nível ético possível. A ordem mundana tanto é consequência punitiva da queda como instituição correctiva da condição humana. Este compromisso do direito natural relativo vai predominar na Patrística em autores como Ireneu, Ambrósio, Agostinho, Gregório o Grande e Isidoro de Sevilha e será transmitida à Idade Média.[2] Em termos práticos, o compromisso traduzia-se na relação com o imperador, a única autoridade relevante e a fonte de cidadania com que a Igreja tinha de se relacionar. A lex regia apresentava a função do imperador como de cura et tutela do povo. O Código de Justiniano insiste na transferência de poder do populus romanus para legitimar a posição do imperador (Codex, I, 17.1.7). Mas no séc VI. d.C. esta referência vem acompanhada da derivação divina da autoridade imperial, e, noutras passagens (Novellae, CV, 4) reaparecem as fórmulas helenísticas do basileus como lei animada (nomos empsychos) a que deus concedeu o poder sobre os homens. A concepção democrática da transferência de poder do povo para o governante pode, pois, ocasionalmente surgir mas a linha dominante é a derivação divina da autoridade imperial. Na Baixa Idade Média a lex regia será utilizada pelos eclesiásticos para incomodar o imperador, e pelo legistas para centralizar o poder real, tornando-se possível a deposição do governante por acção popular ou do papa, uma situação inconcebível na antiguidade cristã clássica quando a existência da Igreja dependia da boa vontade do imperador. A adopção da noção aristotélica de comunidade pela Escolástica permitiu ultrapassar os impasses da relação gelasiana entre os dois poderes, numa época em que Império e Igreja estavam a ser ultrapassados pelas potências nacionais com poderes temporal e espiritual. E para diferenciar as vertentes política e social da existência em comunidade,Tomás de Aquino justifica a tradução de zôon politikon por animal político e social, considerando que "é próprio da natureza do homem que ele viva em sociedade".[3] [1] Séneca Dialogorum Libri XII, ed. Emil Hermes, Epistula XC. [2] A apresentação destas três posições deve-se a Ernst Troeltsch, The Social Teachings of the Christian Churches, New York, 1981, p.150-155. [3] Egídio Romano, continuador do tratado De Regimine Principum define o homem como "politicum animal et civile".De Regimine Principum, Livro I, cap.1; Idem, Livro III,i,2. ERIC VOEGELIN ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS ** A época medieval Capítulo 7. Joaquim de Fiora 1. O progresso na história Era geral na época o sentimento de que o crescimento das ordens significava um progresso da espiritualidade, inaugurando uma nova fase da vida cristã. A experiência revelatória de Joaquim accionou estas potencialidades e criou uma nova configuração da história. O passo decisivo foi a concepção do Terceiro Reino não como um sabbath eterno mas como a idade derradeira da história da humanidade que se segue à eleição do filho. O decurso de um reino abrange um período preparatório (de Adão a Abraão, 21 gerações) seguido pela initiatio, (Abraão a Uzias, 21 gerações) e a fructificatio (Uzias a Zacarias, 21 gerações) a última das quais é ao mesmo tempo o período preparatório para o próximo reino. Os reinos têm, pois, 42 gerações; e como a duração das gerações para o reino de Cristo é de 30 anos, o segundo reino terminaria em 1260. A data é antecedida para 1200 porquanto o próprio Segundo Reino é precedido por um curto período preparatório das duas gerações precursoras de Zacarias e João Baptista de modo que Joaquim está no final do Segundo reino e pode ser o profeta do Terceiro. O começo de cada reino é marcado por uma trindade de dirigentes, dois precursores e o dirigente do próprio reino com os seus doze filhos (Abraão, Isaac, e Jacob com os seus doze filhos carnais; Zacarias, João Baptista e Cristo o homem, com seus doze filhos espirituais). O Terceiro Reino, a seguir a Joaquim, começará, portanto, com dois precursores a serem seguidos na terceira geração por um novo dirigente, um Dux e Babylone, que será o fundador do Reino do Espírito. 2. O significado da história O primeiro símbolo“é a concepção da história como uma sequência de três eras, das quais a última é claramente o terceiro reino final”.[1][1] Entre as variantes de notória relevância política, estão a partição da história em épocas antiga, do cativeiro e dos santos na terra que marcou a revolução puritana; a doutrina Iluminista da sucessão de fases teológica, metafísica e enciclopédica marca a revolução de 1789; a dialéctica marxista com os três estádios de liberdade inconsciente, alienação e reino da liberdade findou em 1989; o ciclo formado por santo império, império do Kaiser e terceiro império inspirou o Reich nacional-socialista dos mil anos que findou em 1945.[2][2] 3. Os elementos constantes da nova especulação política. a. A concepção de Joaquim resultou num conjunto de elementos formais para a interpretação do saeculum que, desde então, permanecerá, isolado ou em combinação, parte integrante da especulação política ocidental. b. A Função do Pensador Político O terceiro símbolo é o do profeta da nova Era, que pode surgir confundido com o dirigente. O próprio Joaquim de Fiora representa o primeiro modelo do intelectual que presume ter uma visão do curso da história como um todo acessível ao conhecimento. Sucessivas vanguardas iluminadas irão reclamar-se de idêntico conhecimento da marcha do tempo e propor as suas especulações como a lógica da história. c. O dirigente do terceiro Reino O terceiro símbolo é o de dux, o dirigente cuja erupção é constante em todos os movimentos revolucionários. Este dirigente desdobra-se por paráclitos agnósticos e ateus conforme a sensibilidade e as categorias de análise da época em que se faz anunciar. O símbolo ressurge nos príncipes novos da Renascença, nos iluminados do século das Luzes, nos revolucionários de 1789, nos génios do Socialismo e nos dirigentes totalitários do século XX. d. A irmandade das pessoas autónomas O quarto símbolo é o da irmandade ou fraternidade que se estabelece entre os que participam no Espírito. A noção de uma comunidade de perfeitos que vivem sem autoridade institucional e sem a mediação da Graça presta-se, segundo Voegelin, a inúmeras variações históricas. Ressurgiu nas Igrejas puritanas dos santos e em numerosas ideologias da modernidade em cujos autores a razão se incarnara tão perfeitamente que consideram a própria mente como critério de verdade; alguns, como Lenine e Hitler, desceram à arena política para canalizar os movimentos de massa para a acção destrutiva. Nos três reinos predominam sucessivamente a lei, a graça e o espírito. No primeiro reino desenvolveu- se a vida do leigo, no segunda a vida do sacerdote, no terceiro a contemplação espiritual perfeita do monge. No nível da história espiritual a intelligentia spiritualis irá proceder do Velho e do Novo Testamentos, tal como o Espírito procede do Pai e do Filho. O Espírito irá manifestar-se socialmente através de uma nova ordem. A perfeição da vida é dada através dos três elementos de contemplação, liberdade e espírito. O novo aparecimento do Espírito está fora da história dos Evangelhos que constituem o segundo reino; os quatro evangelhos serão seguidos por um quinto, o evangelium eternum anunciado em Apocalipse, 14, 6. Não será um evangelho escrito mas o Espírito na sua actualidade, transformando os membros da Ordem em membros do Reino, (evangelium regni Mateus, 4,23) sem mediação sacramental. A Igreja deixará de existir no Terceiro reino porque os dons carismáticos necessários para a vida perfeita, alcançarão o homem sem administração sacerdotal de sacramentos. Estas construções simbólicas criam uma evocação de uma nova ideia do homem como uma pessoa espiritual autónoma e livre, capaz de formar uma comunidade de solidariedade fraterna, independente da organização eclesiástica e feudal da sociedade. O homem, dotado de poderes espirituais amadurecidos surge como o organizador potencial da comunidade. Podemos ver a linha que liga o protestantismo intelectual dos York Tracts, com o individualismo tiranicida de João de Salisbúria como a ideia joaquimita de libertação do homem de formas sociais, eclesiásticas ou profanas, e uma época que está morrer. Podemos ainda reconhecer as camadas sociais portadoras do novo sentimento; cresceram para além da população urbana da Pataria e de intelectuais isolados da população rural; Joaquim talvez fosse de origem rural. Mas também são óbvias as limitações da ideia. O terceiro reino é constituído por uma elite religiosa. Perdeu-se o compromisso civilizacional que confere eficácia ao cristianismo. O novo reino não tem lugar para as fraquezas do homem nem para a variedade dos seus dotes naturais. A riqueza humana da ideia de corpo místico perde-se no igualitarismo aristocrático de pessoas espiritualmente maduras. A evocação de Joaquim pode originar um seita mas não um povo. A sua construção é a fórmula mais geral para o problema da era porque emana do centro espiritual mas o conteúdo social restrito deixa a ideia a flutuar. O homem espiritualmente maduro de Joaquim segue-se ao indivíduo político de João de Salisbúria e ao intelectual independente dos York Tracts. O leque de possibilidades intramundanas está a crescer mas não existe uma síntese à vista. A concordância tradicional entre os dois numa sequência a exigir um terceiro momento, o da plena manifestação do Santo. Às três pessoas da Trindade correspondem três fases da humanidade. A era do Pai com temor e tremor, decorre até ao nascimento de Jesus Cristo. A era do Filho foi anunciada por Uzias, em fé e humildade.A terceira era, é a do Espírito Santo, já anunciada por S. Bento. Perante esta nova escatologia tornava-se secundário que, conforme especulações numerológicas correntes, Fiora calculasse que a “terceira era” principiaria em 1260 ao manifestar-se o dux ex Babylone, dirigente apocalíptico da nova época.[3][6] 34 A re-interpretação do saeculum cristão Para Huizinga a inserção de Joaquim de Fiora como grande precursor da Renascença assenta numa corrente de ideias definida com precisão. Para Spengler, ele foi "o primeiro pensador de estatura hegeliana a abalar a configuração mundial dualística de Agostinho, um formulador da Nova Cristandade com o seu intelecto essencialmente gótico". Norman Cohn descreveu Fiora como"inventor do novo sistema profético que haveria de ser o mais influente de todos os conhecidos na Europa até ao aparecimento do marxismo". Embora as edições críticas destes textos estejam ainda hoje incompletas, os materiais historiográficos são abundantes graças a uma sequência de estudiosos como Denifle, Renan, Fournier, Grundmann, Benz, Buonaiuti, Tendelli e Taubes, activos desde finais do século passado. Mas, lembrava Friedrich Heer em 1953 "ainda estamos longe no início de uma interpretação de Fiora". Voegelin seleccionou Joaquim de Fiora como criador do "conjunto de símbolos que preside, até hoje, à auto-interpretação da sociedade moderna".[4][3] Compostos nos fins do séc. XII, os escritos joaquimitas foram publicados pela primeira vez em Paris em meados do séc. XIII, tendo o editor escolhido para título da colecção das obras principais a expressão nelas frequente "um novo Evangelho Eterno". Reconhecidas como obras autênticas são a Concordia Novi ac Veteris Testamenti (1184-89), Expositio in Apocalypsim (1184-1200) e Psalterium decem Chordarum (1184-1200). Entre as obras menores depois coleccionadas encontram-se Tractatus super Quatuor Evangelia, De Articulis Fidei, Adversus Iudeos e o tratado perdido De Essentia seu Unitate Trinitatis. É ainda relevante o Liber Figurarum, atribuído a um discípulo, cujos diagramas representativos - três círculos enleados e parcialmente sobrepostos e cruzados pelo Tetragrammaton - correspondem a cada uma das épocas da Trindade e acrescentam um dinamismo temporal à ênfase habitual na revelação do Deus uno e trino.[5] [4] A originalidade resulta mais evidente se confrontada com os escritos do seu tempo e com as respostas às interrogações filosóficas sobre as características do ser divino.[6][5] Seguindo esta via, Voegelin atribui a Fiora o símbolo culminante da imanentização do eschaton: "O primeiro símbolo é a concepção da história como uma sequência de três eras, das quais a última é claramente o terceiro reino final".[7][7] Entre as variantes notórias, contam-se a partição da história em antiga, medieval e moderna; as doutrinas iluministas e positivistas acerca da sucessão de fases teológica, metafísica e científica; as dialécticas hegeliana e marxista com três estádios de liberdade inconsciente, alienação e reino da liberdade; e enfim, o ciclo formado por Santo Império, Império do Kaiser e Dritte Reich nacional-socialista.[8][8] Nesta leitura voegeliniana entrelaçam-se motivos positivos e negativos que revelam uma relação muito complexa que quase poderíamos classificar de edipiana. Voegelin denuncia a falsificação fiorita do carácter trinitário numa gnose que rebate o ser divino sobre o tempo histórico. Rejeita que a idade do espírito, identificada por símbolos como consummatio, renovatio, reformatio, recreatio e ressurrectio seja a de uma nova era da humanidade. Rejeita o primado do futuro sobre as idades do presente e passado, expresso na preferência concedida a símbolos tais como proficere, ascendere, progressio, mutatio, processus, sucessio. Rejeita que o alvo final da história humana na terra seja a liberdade do mútuo reconhecimento trazida por uma nova fraternidade, baseada na comunidade de monges. Rejeita que tenha qualquer sentido, pura e simplesmente, falar de um desenlace terreno da existência humana. A censura é radical. Mas até que ponto esconde Voegelin as diferenças profundas entre o pneumatismo de Joaquim e o imanentismo moderno que afirma ser sua consequência obrigatória ? Como se comprova pela movimentação dos franciscanos espirituais em ordem à terceira era, tal visão não conduz necessariamente às construção imanentistas da modernidade. Acresce que, ao anunciar o advento de um mundo novo, Fiora interpreta o seu tempo como época de colapso e desarticulação apocalíptica. Poder temporal e poder espiritual combatiam-se sem tréguas corrompendo a ordem cristã que se deveria reger pelo equilíbrio entre os dois poderes. Está a acabar o período do Filho e o momento é propício para pregar o abandono do mundo velho. A desarticulação da ordem cristã imperial viabiliza o anúncio de uma nova ordem, sem Império nem Igreja e com uma religião desmundanizada. Donde o anúncio da terceira era a ser instaurada pelos monges, os santos cidadãos da cidade de Deus. O que levou Voegelin a este nexo entre profetismo e imanentismo ? Por que razão pensou que a Idade Média floresceria contra a auto-interpretação cristã ? Porque concebeu a tensão medieval entre o “reino de Deus” e a sociedade dessacralizada seguida pela mais grave das quedas? E que civilização poderia desenvolver-se contra a sua própria ideia directiva ? [1][1] NSP, p.115. [2][2] Moeller van den Bruck criou o símbolo do Dritte Reich em obra com idêntico título, editada em Hamburgo, em 1923, ao trabalhar na edição das obras de Dostoievski sobre a Terceira Roma. A sua intenção claramente nacionalista mas romântica era incompatível com a ideologia nacional-socialista que se apropriou do termo. [3][6] Cf. LÖWITH 1949,pp.148-9:"The first dispensation is historically an order of the married, dependent on the Father; the second an order of clerics, dependent on the Son; the third an order of monks dependent om the Spirit of Truth. The first age is ruled by labor and work, the second by learning and discipline, the third by contemplation and praise, The first stage possesses scientia, the second sapientia ex parte, the third plenitudo intellectus". [4][3] NSP, pp.110-113. Lembre-se o verso que Dante lhe dedica na Divina Comédia , Paraíso, XII, 139-141: "...e lucemi da dato/ Il Calabrese abate Gioacchino/Di spirito profetico dotato". Na sua interpretação, Voegelin tem presente TAUBES 1947, em particular pp.192-4, para o qual a história espiritual do Ocidente é a da dinâmica e dialéctica da alienação existencial; cita ainda LÖWITH 1949, GRUNDMANN 1927 e BUONAIUTI 1931. [5][4] Cf. bibliografia joaquimita in RUSSO 1954. [6][5] Para MURRAY 1970, pp.102-104, a consciência historiográfica no séc. XII, depende da interpretação da restauratio ou reformatio, tratadas quer como retorno a um passado modelar quer como criação de um futuro inaudito. [7][7] NSP, p.115. [8][8] Moeller van den Bruck criou o símbolo do Dritte Reich em livro com idêntico título, editada em Hamburgo, em 1923, ao trabalhar na edição das obras de Dostoievski sobre a Terceira Roma. A sua intenção nacionalista não coincide com a ideologia nacional-socialista que se apropriou do termo. Estudos de Ideias Políticas - II. A Idade média - Capítulo 8. São Francisco de Assis Como figuras simbólicas da sua época, as personalidades de São Francisco de Assis e de Joaquim de Fiora estão intimamente ligadas. São Francisco não teria sido visto pelos Espirituais como a figura decisiva que inaugurava uma época nova na história cristã, se as profecias de Joaquim não fornecessem o padrão simbólico para a sua interpretação; e as profecias de Joaquim não poderiam ter exercido a sua forte influência no séc. XII, e em Dante, a menos que a aparecimento de São Francisco confirmasse a previsão do Dux de uma nova era. Tal como no casode Joaquim, na interpretação de São Francisco, temos de atentar na peculiar relação dialéctica entre as suas ideias e as suas acções. A doutrina de São Francisco é um evangelho de amor fraterno, de pobreza, obediência e submissão. A acção de São Francisco é revolucionária; dimana de uma vontade auto-afirmadora, inflexível e dominante, e cria um estilo de vida para o simples leigo, o idiota, sem grau feudal nem eclesiástico, mas equiparado às duas grandes ordens da autoridade temporal e espiritual. O denominador comum da acção evocativa neste tempo é o impulso de forças humanas para encontrar o seu lugar num mundo cristão preocupado com os poderes estabelecidos. A necessidade trágica da criação de uma Ordem, mesmo de amor, e que exige uma dureza daimoníaca de acção que ofende os circunstantes, matiza a página franciscana do Louvor das Virtudes. A virtude da obediência tem como função a completa submissão do corpo à lei do espírito; o homem está submetido aos seus companheiros e mesmo aos animais selvagens: O pacifismo radical de não-resistência em São Francisco parece ser o oposto da violência tiranicida em João de Salisbúria. Afinal, as virtudes têm a função militante de confundirem os vícios do mundo. É impossível compreender a atitude franciscana se as categorias éticas de virtude e vícios forem referidas apenas ao carácter individual. No contexto dos escritos, virtudes e vícios são forças que emanam dos poderes supremos do bem e do mal, de Deus e do satã e que se apoderam dos homens. A luta das virtudes contra os vícios é uma empresa colectiva. Sem alcançar a rigidez maniqueísta, existe aqui uma matiz de imanentismo maniqueísta. A simplicidade tem que confundir a sabedoria deste mundo; a pobreza luta contra os cuidados mundanos; a humildade contra o orgulho. Possuir as virtudes exige atacar o mundo e as instituições de família, propriedade, herança, autoridade governamental e civilização intelectual. O ataque reveste-se da forma social de uma pregação das virtudes. Ao sentir-se demasiado doente para pregar, São Francisco utilizou a forma da carta aberta divulgando a sua mensagem aos fiéis. A mais importante destas cartas, e a mais notável pela sua dignidade é a carta de 1215 "A todos os Cristãos" (Opusculum commonitorium et exhortatorium (epistola quam misit omnibus fidelibus). 2. O estilo da pobreza O ataque ao mundo em nome dos conselhos evangélicos parece revigorar a expectativa escatológica de um reino que não é deste mundo. Contudo, é uma força e uma fraqueza de S. Francisco a criação da ideia de uma vida em conformidade com Cristo como modo de existência. Tentou realizar o que Joaquim de Fiora projectara; estabelecer uma nova ordem do espírito no mundo. A sua atitude e linguagem sofrem desta dualidade. Quando ataca o mundo (mundus ou saeculum ) utiliza o vocabulário evangélico mas com um novo significado evangélico. O homem não é chamado a arrepender-se porque o reino de Deus está próximo ( Mateus, 3, 2) mas porque a vida de pobreza e obediência é aconselhada como a constituição permanente do mudo em conformidade com a vida do Salvador. Os escritos de São Francisco apresentam assim elementos que se contradizem flagrantemente. A primeira Regra delineia a "vita evangelii" para a qual São Francisco obteve permissão oral de Inocêncio III; aconselha a romper com pai e mãe e à quebra rude com a família e as suas obrigações, a fim de tomar a cruz e seguir o Senhor. Retoma-se a dureza escatológica de Cristo não só nas palavras dessa regra como na sua atitude para com os pais. Por outro lado, aceita incondicionalmente a existência da Igreja sacramental como única evidência corpórea mundana do Filho de Deus. Não só pretende basear a vida de perfeição evangélica directamente no Evangelho como mantém um sentimento para com a Igreja a lembrar o dito de Santo Agostinho de que não acreditaria em Cristo se não fosse a Igreja. 3. A submissão à Igreja. Estes conflitos profundos ajudam-nos a determinar de modo mais preciso a posição e a função de São Francisco. O espírito de revolta contra os poderes estabelecidos espalhava-se por todo o mundo ocidental, dos intelectuais, aos burgueses e camponeses. O movimento era cada vez mais dirigido contra a organização feudal da sociedade, incluindo a Igreja sacramental. Quando o movimento encontrava apoio de massas, adoptava a forma de seitas fundamentalistas, desenvolvendo fricções com a Igreja, quer intencionalmente quer por pressões circunstanciais; o regresso ao ideal evangélico de perfeição era o único simbolismo revolucionário disponível para a civilização cristã desse tempo. Não temos que nos preocupar demasiado com a questão de saber se a glorificação franciscana da Irmã Pobreza foi ou não influenciada pelo conhecimento dos ideais dos Pobres de Lião. Em qualquer caso, o ideal de pobreza, juntamente com outros conselhos evangélicos, estava destinado a ser o símbolo da revolução. O que separava São Francisco de dirigentes sectários, e o tornou um santo em vez de um heresiarca, era a sua sinceridade convincente, a sua realização exemplar dos ideais que ensinava, o seu encanto, a sua humildade, uma ingenuidade que não era deste mundo. Para a sua submissão à Igreja e para a sua crença de que a fraternidade dos pobres em Cristo poderia persistir sem institucionalização, não temos outra explicação senão uma cegueira para as vias do mundo, originada pela grande pureza do seu coração. Os desapontamentos inevitáveis que experimentou podem ser fortemente sentidos nas admoestações aos irmãos no Testamento: manter a simplicidade da Regra, não a acrescentar nem diminuir, não fazer glosas nem interpretar o Testamento como uma nova regra e não procurar privilégios de qualquer tipo da Cúria. O mundo não cedeu ao seu ataque mas por seu turno, penetrou a sua irmandade. A santidade do seu carácter teve consequências de grande alcance no domínio da política. Ao mesmo tempo que conduzia a cruzada contra os Albingenses, Inocêncio III confirmava a Regra de São Francisco. Se considerarmos o apelo de São Francisco, a rápida difusão da Ordem e em particular, o influxo maciço na Ordem Terceira, é difícil imaginar que formas a revolução social teria adoptado, se a Igreja não captasse o movimento através da pessoa de São Francisco, e a integrasse na sua organização graças, sobretudo, à acção do Cardeal Ugolino de Ostia, futuro papa Gregório X. 4. A Igreja dos leigos A vida de São Francisco permite diagnosticar a doença que afligia o corpo místico da Igreja. O império cristão transferira o cristianismo do ambiente urbano para a sociedade rural. A dinâmica da vida cristã passou das comunidades para as hierarquias, espirituais e temporais. O surgimento do idiota, desde o sec.XII é uma força nova que assinala a reentrada da comunidade urbana como força social no mundo cristão. O significado original de ecclesia é de comunidade-Igreja. No império romano a ecclesia local era uma ilha do populus christianus num mar de paganismo. No império carolíngio, a autoridade temporal fora integrada no sistema dos carismas cristãos de modo que as duas ordens do corpo único de Cristo cooperavam na tarefa difícil (e que hoje seria considerada totalitária) de criar um povo cristão uniforme com base em hierarquias pré-existentes. Agora, no séc. XII, a ecclesia corre o risco de se reduzir a uma organização sacerdotal enquanto os idiotae, os leigos, formam uma comunidade que tenta viver em paz com o clero. Na linguagem de S. Francisco (Testamentum,3) o leigo vive em conformidade com Cristo e o sacerdote em conformidade com a Igreja Romana. Assim nasce uma nova necessidade de ajustamento da ecclesia. A ecclesia Franciscana é apenas um começo. Os problemas reaparecerão quando novas ecclesiae nascerem de cidades, classes e nações e tiverem que lutar por um lugar
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