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[RODRIGUES JR, Otavio Luiz] Desenvolvimento do Direito Comparado nos séculos XIX e XX

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DIREITO COMPARADO
Desenvolvimento do Direito Comparado nos séculos XIX e XX
Otavio Luiz Rodrigues Jr.
O Direito Comparado pode assumir a forma de uma disciplina científica, uma matéria autônoma ou de um método de estudo dos ordenamentos jurídicos. Sobre esse ponto, há enormes divergências. Suas origens “oficiais” remontam ao século XIX, embora desde sempre a comparação — ainda que destituída de método ou do rigor que se tornou vulgar exigir nos últimos dois séculos — tenha sido utilizada pelos juristas em seus escritos. A esse propósito, como anota Ernesto Leme, a coleta de materiais e fontes jurídicos é uma prática que remonta ao século V d.C. No entanto, Anselm Feuerbach (1775-1833) possui a primazia de haver lançado “de fato os fundamentos da Ciência do Direito Comparado”.[1]
Nos séculos XIX e XX, grandes comparatistas deram outra dimensão ao Direito Comparado. Vejam-se alguns desses nomes e suas respectivas contribuições. Famosíssimo pela frase sobre a passagem da era do statuspara a do contrato, o inglês Henry James Sumner-Maine (1822-1888) foi o regente da primeira cátedra de Direito Comparado, instituída em 1869, na Universidade de Oxford.
O austro-húngaro Ernst Rabel (1874-1955), a quem já se dedicou uma coluna (clique aqui para ler), foi outro grande nome do Direito Comparado e um dos responsáveis pela reabertura da Alemanha à cooperação acadêmico-jurídica no primeiro pós-guerra. Desde 1926, ele assumiu a direção do Kaiser-Wilhelm-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Instituto Imperador Guilherme de Direito Comparado [literalmente, Estrangeiro] e Privado Internacional), que é o atual Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Privado Internacional), cuja sede fica em Hamburgo, e que é o mais importante centro de comparação jurídico-privatística da Europa na atualidade. Rabel deixou como herança o (a) desenvolvimento do método funcional, o mais utilizado até hoje pelos comparatistas alemães e (b) a inspiração teórica para Convenção de Viena das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias.
Pierre Arminjon, Barão Boris Nolde e Martin Wolff também ocupam posição de enorme relevo no Direito Comparado, graças a seu monumental Traité de Droit Comparé, editado pela francesa LGDJ, em Paris, no ano de 1950.[2] É raro um livro jurídico brasileiro, que trate de Direito Comparado, e não cite esses três autores. Parece ser interessante dizer algumas palavras sobre suas vidas.
Paul Pierre Henri Arminjon (1869-1960), de uma antiga família de origem savoiana, foi professor extraordinário (1934-1937) e catedrático (1937-1939) de Direito Civil Comparado e de Direito Internacional Privado na Universidade de Lausana, na Suíça. Exerceu grande influência intelectual no Egito, onde lecionou na Universidade do Cairo.
Martin Wolff (1872-1953), alemão de origem judaica, foi professor de Direito Civil, Direito Comercial e Direito Internacional Privado na Friedrich-Wilhelms-Universität, atualmente Humboldt-Universität zu Berlin. Suas aulas eram extremamente populares e sua docência muito respeitada na Alemanha. Com a chegada dos nazistas ao poder, sua permanência na universidade foi interrompida. Ele terminou demitido do serviço público, juntamente com Ernst Rabel e Hans Kelsen. Em 1938, Wolff emigrou para o Reino Unido, onde se tornou professor em Oxford. É de 1945 seu clássicoPrivate International Law. Wolff, todavia, é mais conhecido no Brasil por sua coautoria do famoso Tratado de Direito Civil alemão, escrito com Ludwig Enneccerus e Ludwig Enneccerus.
O Barão Boris Emmanuilovich Nolde (1876-1948), cujo retrato pode ser vistoaqui foi professor na Universidade de Petrogrado. Nolde foi ministro do governo provisório de Kerensky, derrubado pela Revolução de Outubro de 1917, que instaurou o regime comunista em seu país e deu origem à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Nolde é autor de obras não-jurídicas de grande acolhida nos meios históricos e econômicos, como o “O antigo regime e a revolução russos”, “O reino de Lênin” e “A formação do Império Russo”. O barão Nolde também integrou a Corte Permanente de Arbitragem na Haia. Ele faleceu quando as provas do Traité já se encontravam na editora.
Deve-se a Arminjon-Nolde-Wolff a divisão dos sistemas jurídicos contemporâneos em “sete famílias”, a saber: francesa (tomando-se como ponto de convergência a utilização do Código Napoleão como modelo normativo); alemã; escandinava; inglesa; soviética; islâmica e hindu.[3]
René David (1906-1990) é outro clássico do Direito Comparado do século XX. Suas principais obras possuem tradução para o português e são bastante conhecidas do público brasileiro.[4] A trajetória acadêmica de René David merece algumas referências, a partir das notas biográficas de William Jeffrey Jr:[5] David iniciou sua carreira docente em 1929, na Universidade de Grenoble. Na Segunda Guerra Mundial, René David serviu no Exército francês. Em 1943, assumiu cátedra na Faculdade de Direito da Universidade de Paris, tendo-se aposentado nos anos 1970, quando lecionava na Universidade de Aix-en-Provence (1968-1976). Nos anos 1930, René David atuou no Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado.
A classificação de René David dos sistemas e famílias compreende os direitos ligados à tradição romano-germânica, a Common Law, além do hoje extinto Direito soviético e de outros direitos que se caracterizam por sua naturezasui generis, como o hindu, o chinês e o judaico.
O civilista francês Henri Capitant (1865-1937) também merece um lugar de honra no comparatismo do século XX. De entre suas obras mais relevantes encontram-se o Curso elementar de Direito Civil francês, escrito com Ambroise Victor Charles Colin, que se tornou conhecido como o Cours Colin-Capitant.[6] Seu livro Da causa das obrigações[7] foi um marco no estudo da causa no Direito Civil, tendo inspirado autores brasileiros da segunda metade do século XX, como Antonio Junqueira de Azevedo e Arnoldo Wald. A maior contribuição de Capitant, que foi professor nas universidade de Grenoble e de Paris, não foi propriamente ao método ou desenvolvimento teórico do Direito Comparado e sim permitir o florescimento de estudos comparatistas no Direito Civil, por meio da Association Henri Capitant(atualmente denominada Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française [Associação Henri Capitant dos Amigos da Cultura Jurídica Francesa]. Com seções em dezenas de países, a Associação Henri Capitant realiza encontros anuais de seus membros – as Jornadas Internacionais -, que consistem na apresentação de relatórios temáticos sobre o estado-da-arte de instituições e figuras jurídicas nas nações dos integrantes da associação. Posteriormente, publicam-se as atas desses encontros, que se transformam em riquíssima fonte para estudos de Direito Comparado e Direito estrangeiro.[8]
Konrad Zweigert (1911-1996) e Hein Kötz (1935-) integram a lista de autores mais influentes no Direito Comparado da segunda metade do século XX. Zweigert, já falecido, foi juiz do Tribunal Constitucional Federal e professor de Direito Comparado e Internacional Privado na Universidade de Hamburgo. De 1963 a 1979, dirigiu o Max-Planck-Instituts für ausländisches und internationales Privatrecht, tendo sido vice-presidente da Sociedade Max-Planck no período de 1967-1978.[9] Hein Kötz dirigiu o Instituto Max-Planck de Hamburgo no período de 1978 até 2000, tendo sido professor nas universidades de Constança e Hamburgo, além de ter ocupado o cargo de juiz do Tribunal Regional de Karlsruhe.
Seu livro Introdução ao Direito Comparado, [10] que é mais conhecido por sua versão em inglês,[11] tornou-se um “clássico contemporâneo”. Seus autores mantiveram-se fiéis ao legado de Ernst Rabel, ao tempo em que conseguiram posicionar o Direito Comparado nos grandes debates sobre auniformização, a comunitarização e a europeização do Direito.
O nome de Reinhard Zimmermann (1952-), atual diretordo Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Privado Internacional de Hamburgo e presidente da prestigiosa Associação de Professores de Direito Civil da Alemanha, transcende o século XX e coloca-se hoje como um dos grandes comparatistas de nosso tempo. Além dessas importantes funções acadêmicas, Zimmermann é catedrático da Universidade de Ratisbona e, nos anos 1980, lecionou na Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul.
Dentre seus textos mais importantes encontra-se O Direito das Obrigações, escrita em inglês, inicialmente publicado na Cidade do Cabo em 1990. Trata-se de um monumental estudo sobre as relações obrigacionais, que combina elementos romanísticos e civilísticos, tanto da tradição romano-germânica quanto da tradição anglo-saxã.[12] Deve-se citar também O novo Direito das Obrigações alemão[13], no qual o leitor pode encontrar um exame isento do polêmico processo de reforma do Código Civil alemão, que contou com a oposição de muitos catedráticos de Direito Civil da Alemanha.
Com obras traduzidas nos mais diversos idiomas e com doutorados honorários em 9 universidades, Zimmermann é um nome que conseguiu ultrapassar as fronteiras do Direito, o que se comprova pelo reconhecimento que ele teve na África do Sul por seu compromisso com a restauração do estado de direito naquele país durante o apartheid. E, ainda, por haver ele sido a inspiração para a personagem Moritz-Maria von Igelfeld, do livro “Verbos irregulares portugueses”, primeiro volume da trilogia “Os 2 ½ Pilares da Sabedoria”, do autor escocês Alexander McCall Smith.
Ao lado de Jürgen Basedow (1949-) e Holger Fleischer (1965-), Zimmermann tem sido responsável pelo fortalecimento das ligações do Instituto Max-Planck com a América Latina. Atualmente, a bela tradição de Jürgen Samtleben (1937-) é conduzida por juristas mais jovens como Jan Peter Schmidt e Tilman Quarch, ambos pesquisadores do Max-Planck e com produções de relevo para a cultura jurídica brasileira.[14]
Na próxima coluna, prosseguir-se-á neste tema, com enfoque na perspectiva lusobrasileira.
PARTE 2
Na última coluna [clique aqui para ler], começou-se a tratar da evolução do Direito Comparado, o que se fez evidentemente sem pretensão de conferir ao tema uma exposição exaustiva, o que seria incompatível com a natureza deste espaço. Prossegue-se agora com esse interessantíssimo assunto, com uma seção complementar à coluna anterior e o estudo do Direito Comparado na perspectiva luso-brasileira.
Um comparatista contemporâneo muito importante para a “apresentação” dos Direitos de tradição romano-germânica ao mundo deCommon Law é o norte-americano John Henry Merryman, professor emérito da Universidade de Stanford, onde ingressou na Faculdade de Direito no ano de 1953. Merryman é um comparatista, mas também se dedica ao Direito da Arte, especialmente sobre o tema dos direitos culturais e da proteção das obras de arte. Em 2009, publicou-se na Holanda, em Alphen aan den Rijn, pela editora Kluwer, o livro “Thinking About the Elgin Marbles: Critical Essays on Cultural Property, Art and Law”, no qual ele examina o problema do fundamento moral e jurídico da retirada dos mármores do Partenon pelo diplomata britânico Lord Elgin[1], sob a justificativa de que os otomanos não cuidavam adequadamente das antiguidades gregas. Contrariando muitos acadêmicos e o Governo grego, Merryman defendeu corajosamente que o ato não foi imoral ou ilegal e, interpretado à luz de seu tempo, se revelou a melhor decisão em prol da conservação do patrimônio cultural.
Para os que vivem no mundo de Civil Law latino-americano, o opus magumde John Henry Merryman é um livro intitulado “The Civil Law tradition: An introduction to the legal systems of Europe and Latin America”, editado em Palo Alto, pela Stanford University Press, com terceira edição de 2007, desta vez em coautoria com o venezuelano Rogelio Pérez-Perdomo. Há uma edição em português, intitulada “A tradição da Civil Law: Uma introdução aos sistemas jurídicos da Europa e da América Latina”, publicada pelo editor Sergio Antonio Fabris, de Porto Alegre, no ano de 2009, com uma bela tradução de Cássio Casagrande, de quem tive a honra de ser colega na Universidade Federal Fluminense.
Nesse livro, Merryman e Pérez-Perdomo apresentam ao leitor da tradição deCommon Law um cenário amplo e razoavelmente atualizado de como são o ensino e as profissões jurídicas, o método e as disciplinas, a legislação e a jurisprudência da tradição romano-germânica, quase sempre em comparação com seus homólogos anglo-saxões. O livro contém teses polêmicas e dados curiosos como: (a) a supervivência do Direito Romano como fonte jurídica reconhecida pelos tribunais da África do Sul[2]; (b) a desnecessidade da codificação no Reino Unido ser um efeito da centralização política e jurídica precoce, como a existência de um direito único no século XII, o que não se deu em França e Alemanha, que precisaram dos códigos como instrumento auxiliar da concentração do poder na pessoa dos soberanos[3]. Merryman, em edições anteriores de sua obra, havia comparado o juiz de Common Law ao magistrado de Civil Law e qualificado este último como “um simples operador de um maquinário desenhada e construída pelo legislador”. Na referida terceira edição, ele reconheceu uma mudança sensível no papel do juiz romano-germânico, especialmente na América Latina, porque ele começava a sair desse papel reservado e discreto e passava a ser incluído no rodamoinho da mídia, das aparições públicas e das solicitações ambientes por declarações e opiniões sobre os fatos sociais.
John Henry Merryman é um comparatista internacionalmente respeitado, muito conhecido na Itália, na França e na América Latina, onde recebeu comendas governamentais e doutorados honorários. No Brasil, infelizmente, ele não era um autor muito lido. A versão para o português de seu livro “The Civil Law tradition” tem mudado essa situação nos últimos anos e os estudos comparatistas brasileiros começam a reconhecer a importância de Merryman, para além do restrito grupo de especialistas nacionais que evidentemente já o conheciam e citavam suas obras em seus trabalhos.
Um grego, naturalizado britânico, nobilitado pela rainha Elizabeth II, cavaleiro da Legião Honra francesa, graduado em Direito pela Universidade de Atenas e com o título de doutor pela Universidade de Cambridge, é hoje um dos grandes nomes internacionais do Direito Privado Comparado. Seu nome é sir Basil Markesinis (1944-) e atualmente ocupa a cátedra de Direito na Universidade de Austin, no Texas, Estados Unidos. Markesinis, para além de uma história de incomparável êxito profissional, tem uma das obras mais consistentes no comparatismo privado do último quartel do século XX e início do século XXI.
Seu livro “The German Law of contract: A comparative treatise”, escrito em coautoria com Hannes Unberath e Angus Johnston, editado pela Hart, em Oxford, com segunda edição do ano de 2006, é uma de suas contribuições mais relevantes no Direito Comparado. A nova edição foi totalmente reescrita para açambarcar as grandes mudanças decorrentes da Lei de Reforma do Direito das Obrigações de 2002, que alterou mais 100 artigos do Código Civil alemão. Markesinis, Unberath e Johnston ofereceram ao público de língua inglesa e aos não fluentes no idioma alemão uma obra duplamente útil: (a) permite que se trave contacto com o novo perfil legislativo e dogmático do Direito das Obrigações da Alemanha; (b) possibilita uma chave para comparação de institutos e figuras jurídicas da tradição romano-germânica e de sua homóloga de Common Law, cuja assimetria é tão evidente.
Dos mesmos autores pode-se também indicar “The German Law of torts: A comparative treatise”, em quarta edição de 1997, publicado em Oxford, pela Hart, cuja qualidade técnica e função comparativa equivale ao livro sobre Direito das Obrigações. Por esses trabalhos e por sua atuação acadêmica tão relevante para a compreensão do Direito germânico pelo universo jurídico de Common Law, Markesinis recebeu em 1999 uma das maisaltas condecorações da República Federal da Alemanha, a Grosse Verdienstkreuz.
Os estudos de Markesinis possuem um escopo bastante amplo e uma significativa diversificação de matérias, no que ele se mostra fiel às antigas tradições do comparatismo, que pouco conhecem barreiras entre as áreas do Direito. Ele tem relevantes trabalhos sobre (a) a comparação dos Direitos inglês e francês, em uma perspectiva histórica[4]; (b) responsabilidade delitual e Direito de Seguros[5]; (c) direito à privacidade na Inglaterra e na Itália[6]; (d) Direito da Arte.[7]
Encerrando-se a exposição de alguns nomes contemporâneos do comparatismo no exterior, convém tratar de seus correspondentes no Brasil e em Portugal.
No século XIX, o comparatismo era mais do que um berloque ou um símbolo de erudição, mas uma necessidade. Arnoldo Wald, em uma conferência proferida no Superior Tribunal de Justiça sobre a influência do Código Civil francês no Direito brasileiro, destacou que a realidade jurídica do Oitocentos no Brasil, especialmente no Direito Civil, era convidativa aos estudos comparatísticos: vivia-se sob a égide das Ordenações Filipinas, as fontes normativas eram caóticas e o Direito Romano ainda era utilizado à larga para fundamentar acórdãos, sentenças, petições, arrazoados e escritos doutrinários. A produção jurídica nacional, como também salientou Arnoldo Wald, o recurso ao comparatismo era uma necessidade também pela carência de bibliografia genuinamente nacional. Como ele afirmou, àquela época, os juristas brasileiros tornaram-se comparatistas por necessidade ou até subconscientemente.[8]
Clóvis Beviláqua, Eduardo Espínola, Carlos Maximiliano e Pontes de Miranda são exemplos dessa tradição que veio do século XIX, iniciada por Teixeira de Freitas, conselheiro Antônio Joaquim Ribas e Lafayette Rodrigues Pereira, em suas obras de Direito Civil, Direito Internacional e Direito Constitucional. Beviláqua foi catedrático de “Legislação Comparada” na Faculdade de Direito do Recife, o que muito diz sobre sua ligação com o Direito Comparado. Seu Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentadoé um belo exemplo de utilização do método comparatista como instrumento para a interpretação dos dispositivos do então novo Código Civil.[9] Cada artigo é precedido de uma indicação de correspondência, total ou parcial, com dezenas de outros códigos europeus, americanos e asiáticos.
É de autoria de Clóvis Beviláqua a autoria de uma das primeiras obras no Brasil sobre Direito Comparado, publicada em 1897 e destinada a uso por seus alunos na Faculdade de Direito do Recife.[10] Segundo depoimento de um conterrâneo, Araripe Júnior, esse livro “fez época na vida do jurista cearense porque, se até então ele mostrara para as questões filosóficas e literárias, desde o dia daquela publicação tornou pública sua capacidade para empreender entre nós obra semelhante à realizada por Hermann Post na Alemanha”[11].
Além dos citados privatistas que também se apresentavam como comparatistas, na segunda metade do século XX, o Brasil assistiu à dilatação do Direito Comparado. Os internacionalistas passaram a conjugar as cátedras de Direito Internacional com as de Direito Comparado, além de esse tema ganhar interesse maior pelos publicistas. É desse período o surgimento de novos estudos sobre a disciplina, elaborados por Caio Mário da Silva Pereira[12], Haroldo Valladão[13], Arnoldo Wald, Clóvis Veríssimo do Couto e Silva, Sérgio José Porto, Ruy Barbosa Nogueira, Raul Machado Horta e José Afonso da Silva, este último autor de um livro de Direito Constitucional Comparado.[14] Ana Lucia de Lyra Tavares, a propósito dessa renovação do Direito Comparado nas últimas décadas, fez um inventário sobre a evolução dessa matéria nos meios universitários nacionais.[15]
Contemporaneamente, a abertura para novos idiomas, os incentivos para o intercâmbio acadêmico internacional, a criação de blocos econômicos e de integração regional deram margem a um novo despertar do comparatismo jurídico. Na Universidade de São Paulo, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco conserva uma forte tradição juscomparatista, que foi muito favorecida com a liderança do falecido professor Guido Fernando Silva Soares e com os esforços de outros catedráticos como Paulo de Borba Casella e João Grandino Rodas. É de se registrar que o Departamento de Direito Internacional mudou seu nome para Departamento de Direito Internacional e Comparado. Ainda nas Arcadas, é de ser mencionado o papel relevantíssimo de Heleno Taveira Torres no Direito Tributário e sua conexão com o Direito Internacional e o Direito Comparado,[16] no que ele se mantém coerente com uma linha de pesquisa iniciada ainda nos anos 1990.
Maria Helena Diniz, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, instituiu a disciplina de Direito Civil Comparado na pós-graduação dessa tradicional escola de Direito. Nessa mesma universidade, no Direito Constitucional, Maria Garcia tem desenvolvido estudos respeitáveis no âmbito comparatista.
No Rio de Janeiro, Francisco Amaral, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, criou o Instituto de Direito Comparado Luso-brasileiro. Jacob Dolinger e Maria Celina Bodin de Moraes foram pioneiros na disciplina de Direito Civil Comparado. [17]
Em Brasília, podem-se citar como nomes representativos do Direito Comparado os professores Arnaldo Godoy[18], com vastíssima produção bibliográfica nesse campo, muita vez combinando-a com o Direito Internacional e a História do Direito, e Gilmar Ferreira Mendes, da Universidade de Brasília, este último com maior ênfase no âmbito do controle de constitucionalidade.
Véra Jacob de Fradera[19] e Claudia Lima Marques, seguindo a tradição de Clóvis Veríssimo do Couto e Silva no Direito Privado, possuem respeitável produção no Direito Comparado, especialmente em questões relativas ao Direito do Consumidor, à Convenção de Viena de Compra e Venda Internacional e às codificações no Direito Civil.
No Nordeste, o Direito Constitucional Comparado tornou-se disciplina no mestrado da Universidade Federal de Pernambuco graças a Ivo Dantas, que também é autor de obras nessa área.[20] Na Universidade Federal do Ceará, para além de sua condição de gigante do constitucionalismo brasileiro, Paulo Bonavides é também um dedicado estudioso do comparatismo no Direito Constitucional.
As dificuldades do estudo comparatístico no Brasil permanecem: poucas ou antigas traduções, para se não falar das que se podem considerar como de qualidade discutível; estudo ainda incipiente dos métodos do Direito Comparado; confusão entre estudos de Direito Estrangeiro e de Direito Comparado, além da reduzida comunicação entre comparatistas das diferentes áreas do Direito Público e do Direito Privado. A enunciação de alguns dos comparatistas contemporâneos, cujo caráter é puramente exemplificativo, permite assinalar que, mesmo com tais limitações, os professores de Direito Comparado seguem como legatários de uma tradição que surgiu com a própria formação na nacionalidade, com a independência política em 1822. Se a necessidade dos estudos de Direito Comparado era, como realçado por Arnoldo Wald, um efeito “subconsciente” de nossas poucas fontes bibliográficas e do caótico estado de nossas normas de Direito Civil, hoje o Direito Comparado é ainda mais importante porque sem ele não se pode mais acompanhar os inexoráveis avanços nas variadas províncias jurídicas, cuja velocidade é incompatível com a capacidade de adaptação humana.
Na próxima e última coluna da série sobre o tema, o Direito Comparado contemporâneo em Portugal e seus grandes nomes.
PARTE 3
Encerra-se hoje a série sobre o Direito Comparado e seu desenvolvimento (clique aqui e aqui para ver as colunas anteriores), apresentando-se o comparatismo português. Primeira nação europeia a ter suas fronteiras definidas e também a conhecer relativa soberania estatal, Portugal, desde cedo, revelou sua vocação ultramarina e conseguiu edificar um império colonial em África e Ásia, no final século XV e início do século XVI, época de “gentede rija têmpera”, nas palavras de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda.[1] A conquista dos territórios do ultramar deu-se por aqueles indivíduos que, ao sabor dos versos camonianos, saíram da “Ocidental praia lusitana” e partiram “por mares nunca d’antes navegados”, “em perigos e guerras esforçados”, a serviço “daqueles Reis que foram dilatando a fé, o Império, e as terras viciosas”.
As limitadas fronteiras geográficas portuguesas transformaram-se por completo quando a nação se tornou um navio e, com poucos homens e muito esforço, deixaram-se em cada costa, em cada porto e em cada continente a língua, o Direito e a tradição lusitana. As Ordenações Reinóis serviram de lei para diferentes povos, em variegadas épocas. As instituições jurídicas portuguesas sobreviveram em muitas de suas ex-colônias, para além de sua própria vigência em seu país de origem. Em relação ao Brasil, Guilherme Braga da Cruz, o grande historiador do Direito em Portugal, afirmou que “Portugal e Brasil continuam a ser, no Direito como em tudo o mais, duas pátrias irmãs, que se orgulham da sua ascendência comum, e que o Brasil mais ainda que Portugal, soube manter-se sempre fiel à velha tradição jurídica lusitana, dignificando-a e rejuvenescendo-a, e dando, assim, u m admirável contributo para a sua perenidade no mundo”.[2]
Essa contradição essencial de um país territorialmente pequeno e que conseguiu dilatar sua cultura por territórios imensos em três continentes fez com que Portugal tivesse, por necessidade ou por virtude, de se abrir para a experiência jurídica internacional, estrangeira e comparada, com o sentido peculiar que cada uma dessas palavras carrega. Não é sem razão que se pode considerar a cultura jurídica portuguesa a mais europeia de entre todas. E, por outro lado, mas por idêntico fundamento, o Direito português é também o mais receptivo a um tipo particular de comparatismo, que não hierarquiza as famílias jurídicas, muito menos coloca em posição de preeminência o Direito dos países europeus em detrimento de seus congêneres americanos, africanos e asiáticos. Pode-se questionar se essa última postura é resultado de uma interpretação estruturalista, que identifica no caráter português essa atitude mental em relação a tais Direitos, ou se é um sestro do colonizador que demorou muito a aceitar o fim da aventura colonial e que se considerava ainda um elemento de aglutinação jurídica de seus antigos territórios. Independentemente da causa, não se admite retirar do Direito português essa característica que tanto o engrandece.
A esse propósito, no século XIX, é possível encontrar no monumental tratado de Francisco Antonio Fernandes da Silva Ferrão (1798-1874) a força do comparatismo em Portugal. Trata-se de uma obra em 8 volumes intituladaTheoria do Direito Penal applicada ao Código Penal portuguez comparado com o Código do Brazil, leis pátrias, códigos e leis criminaes”, que foi “offerecida a S.M.I. o Sr. D. Pedro II, imperador do Brazil”, editada em Lisboa, nos anos de 1856 e 1857, pela tipografia Universal.
No século XX, o comparatismo esteve presente nas obras dos principais juristas portugueses, como Guilherme Alves Moreira, o responsável pela germanização do Direito Civil em Portugal, Marcelo Caetano, António Pinto Monteiro e Rui Marcos.
De entre os nomes do Direito Público português contemporâneo, Jorge Miranda (1941-) é sem dúvida o maior de entre seus comparatistas. Catedrático de Direito Constitucional na Universidade de Lisboa, deputado à Assembleia Constituinte (1975-1976) e um dos autores da Constituição portuguesa de 1976, Miranda é um constitucionalista respeitado e conhecido no Brasil, cujas obras são muito citadas nos tribunais superiores e também lidas pelos estudantes de graduação e pós-graduação. Com dezenas de orientandos brasileiros e tendo visitado quase todas as capitais da federação, para além de inúmeros municípios interioranos, Jorge Miranda nutre especial carinho pelo Brasil.
Em um artigo publicado em 2006, Jorge Miranda sintetiza alguns conceitos do Direito Constitucional Comparado, que se encontram difusos em várias de suas obras. Para Miranda, o Direito comparado “é necessário para descrever e explicar as similitudes e as dissimilitudes entre as ordens jurídicas, para as estruturar segundo elementos de localização e de difusão, para proceder a agrupamentos e classificações, para, eventualmente, propor princípios comuns, para, enfim, tudo expor de modo objectivo e científico.” Sob tal aspecto, defende ele a autonomia do Direito Constitucional Comparado, que descansaria em um objetivo central: “captar o sentido específico de cada Constituição em face das demais e captar o que há de essencial na unidade e na diversidade entre elas”.
Jorge Miranda também expõe os conceitos de microcomparação emacrocomparação, inspirado em Léontin-Jean Constantinesco. Amicrocomparação “tem por objecto o exame das partículas jurídicas elementares que formam as ordens jurídicas. São os micro-elementos”. Amacrocomparação, por sua vez, “tem por objecto o estudo de uma grande estrutura e, designadamente, as estruturas determinantes e as ordens jurídicas enquanto tais”. Na primeira espécie, examinam-se instituições ou regras jurídicas, ao passo em que, na segunda, investigam-se as “grandes estruturas fundamentais, bem como o perfil característico das ordens jurídicas a fim de salientar as famílias e os grandes sistemas jurídicos”.[3]
A contribuição teórica de Jorge Miranda ao comparatismo ultrapassa os elementos conceituais e a sistematização da matéria. Ela também se radica na aproximação do Direito português com o Direito brasileiro e das nações de língua portuguesa. Nesse aspecto, são constantes as obras coordenadas por Miranda e juristas brasileiros e africanos. Um exemplo recente desse esforço em prol do comparatismo nos países lusófonos é o livro “As constituições dos Estados de Língua Portuguesa: Uma visão comparativa”, de Jorge Miranda e Kafft Kosta, editado em Curitiba e Lisboa, pela Juruá, no ano de 2013.
O constitucionalista de Guiné-Bissau Kaft Kosta, que foi juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça de seu país por 15 anos (1996-2011) e hoje é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, deve ser referido como mais um juscomparatista de língua portuguesa. Com formação em Portugal e na Alemanha e com trabalhos de grande erudição Kosta tem-se ocupado do comparatismo entre os direitos português, africano e brasileiro.
Não se pode mencionar o Direito Comparado em Portugal contemporaneamente sem citar Dário Moura Vicente, catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FADUL) e com intensa participação nos meios universitários internacionais. Merece destaque seu empenho na cooperação jurídica e na aproximação entre Portugal e os países lusófonos, o que já o levou a lecionar em Angola, Moçambique, Goa, Cabo Verde, Timor Leste, Macau e em diversas instituições brasileiras. Pesquisador do Instituto Max-Planck de Hamburgo, Moura Vicente é o atual presidente do Instituto de Cooperação Jurídica da FADUL.
De entre sua respeitável produção bibliográfica, que avança pelos campos do Direito Internacional Privado, o Direito Privado e o Direito Comparado, pode-se mencionar a recente publicação do mais completo estudo comparatístico da responsabilidade civil da indústria do tabaco. Ele pesquisou as legislações e a jurisprudência dos Estados Unidos da América (envolvendo também diversos entes da federação norte-americana), da Alemanha, de França, da Itália, da Espanha, da União Europeia e do Brasil. Nesse artigo, publicado em 2013, Dário Moura Vicente oferece alguns dados de enorme interesse para a jurisprudência brasileira, a saber:[4] (a) “a imputação destes danos [decorrentes do fumo] às tabaqueiras com fundamento na violação de obrigações contratuais é recusada na maior parte desses sistemas jurídicos”; (b) “a jurisprudência dos tribunais de um vasto número de países tende a considerar que não se encontram preenchidos os pressupostos da responsabilidade pela violaçãode deveres de informação ou pela prestação de informações falsas(...)”; (c) “mesmo que esses pressupostos se encontrem preenchidos, essa responsabilidade é, ainda assim, excluída em vários sistemas jurídicos pela conduta da vítima, em virtude da aceitação voluntária dos riscos inerentes aos produtos do tabaco ou da censurabilidade dessa conduta”.[5]
É de autoria de Dário Moura Vicente a melhor obra contemporânea sobre o Direito Comparado em língua portuguesa (e não apenas nesse idioma), cuja terceira edição acaba de se publicar em Coimbra, pela Editora Coimbra, no ano de 2013. O livro Direito Comparado, volume primeiro, apresenta ao leitor uma visão abrangente, moderna e completa do Direito Comparado, analisando sua natureza científica, o problema de sua autonomia epistemológica, o estado da arte da questão das famílias, das tradições e dos grupos jurídicos, além de trazer informações atualizadas sobre os ordenamentos jurídicos internos dos mais variegados países do mundo. Da Ásia à África, da América à Europa e Oceania, o Direito Comparado de Dário Moura Vicente impressiona pela profusão de informações e pelo vasto conhecimento do autor sobre as peculiaridades de cada sistema ou grupo de direitos, como o europeu, o indiano e o árabe. O autor cita modificações legislativas, novas interpretações jurisprudenciais e obras publicadas, em diversos idiomas, que foram editadas, publicadas ou baixadas até ao final de 2013.
Para quem deseja inteirar-se do estado da arte do Direito Comparado, sem renunciar aos conceitos clássicos de obras como as de René David, mas que se encontram comprometidas pela desatualização, a leitura do livro de Dário Moura Vicente é mandatória. Para os lusófonos, chega a ser um orgulho encontrar um texto de tal rigor metodológico, atualidade e abrangência em língua portuguesa, fazendo-o equiparável a estudos magnos da comparatística internacional.
O Direito Comparado deverá encontrar no século XXI um grau incomparável de florescimento e de difusão. A queda das barreiras físicas, intelectuais e comerciais gerada pela formação de blocos econômico-político-jurídicos, a revolução das novas tecnologias, as facilidades de transporte internacional e o compartilhamento de conhecimentos em novas plataformas encontram-se na raiz desse processo de fortalecimento do Direito Comparado. O sonho dos pioneiros dos séculos XVIII e XIX tem grandes possibilidades de se converter em realidade. O principal risco está na perda dos referências metodológicos e na incompreensão do que realmente seja fazer um estudo de Direito Comparado.

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