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Livro - O Sonho do Celta

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O SONHO DO CELTA
Mário Vargas Llosa
Quetzal
Digitalização e Revisão
ASC
Este livro foi digitalizado para
ser lido por Deficientes Visuais
O Sonho do Celta baseia-se na vida do irlandês
Roger Casement, cônsul britânico no Congo Belga,
em inícios do século XX - e que durante duas décadas
denunciou as atrocidades do regime colonial, antes de
rumar à Amazónia peruana. E no cenário deslumbrante e
perturbador do rio Congo, revelado por Roger Casement
ao escritor Joseph Conrad - e de que este se serviu para o
seu romance O Coração das Trevas-, que Mário Vargas
Llosa situa o início do seu novo livro. Roger Casement,
defensor dos direitos humanos, nacionalista irlandês,
condenado à morte por traição, é mais do que um
personagem de romance, a sua vida extraordinária, cheia
de aventuras, ousadias, sonhos e perseguições é também
um fragmento da história da humanidade que não
desiste de ser humana e justa apesar das muitas
desilusões que a cercam.
Tinha deixado de chover há um bocado, mas a atmosfera continuava húmida e pesada, parecia que em volta tudo germinava, crescia e se espessava. Dezoito anos depois,
Roger, entre as imagens desordenadas que a febre fazia revoar na sua cabeça, recordava o olhar inquiridor, surpreendido, por momentos trocista, com que Henry Morton
Stanley o inspeccionou.
- A África não se fez para os fracos - disse ele por fim, como se falasse consigo mesmo.
- As coisas que o preocupam são um sinal de fraqueza.
O Sonho do Celta
Tradução de Cristina Rodriguez
QUETZAL
série américas - Mário Vargas Llosa
Título: O Sonho do Celta
Título original: El Sueno del Celta
Autor: Mário Vargas Llosa
Tradução: Cristina Rodriguez
Revisão: Pedro Ernesto Ferreira
Projecto gráfico original: RPVP Designers
Design da capa: Rui Rodrigues . Quetzal Editores
Composição: José Campos de Carvalho
Execução gráfica: Bloco Gráfico, Lda.
Unidade Industrial da Maia
(c) 2010 Quetzal Editores
Todos os direitos para publicação desta obra em língua portuguesa, excepto Brasil, reservados por Quetzal Editores]
(c) Mário Vargas Llosa, 2010
Quetzal Editores
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, 1
1500-499 Lisboa PORTUGAL
quetzal@quetzaleditores.pt
Tel. 21 7626000
Fax 21 7625400
Para Álvaro, Gonzalo e Morgana.
E para Josefina, Leandro, Ariadna,
Aitana, Isabella e Anais.
"Cada um de nós é, sucessivamente, não um, mas muitos. E estas personalidades sucessivas, que emergem umas das outras, costumam oferecerentre si os mais estranhos
e assombrosos contrastes."
José Enrique Rodo, Motivos de Proteo
Paginação - cabeçalho
Número de páginas 438
CONGO
I.
Quando abriram a porta da cela, com o jorro de luz e um golpe de vento entrou também o barulho da rua que as paredes de pedra abafavam e Roger acordou, assustado.
Pestanejando, ainda confuso, esforçando-se por se acalmar, vislumbrou, recostada no vão da porta, a silhueta do xerife. A sua cara flácida, de louros bigodes e olhinhos
maldizentes, contemplava-o com a antipatia que nunca tinha tentado disfarçar. Eis aqui alguém que sofreria se o Governo inglês lhe concedesse o pedido de clemência.
- Visita - murmurou o xerife, sem tirar os olhos de cima dele.
Pôs-se de pé, esfregando os braços. Quanto teria dormido? Um dos suplícios da prisão de Pentonville era não se saber as horas. No cárcere de Brixton e na Torre de
Londres ouvia as badaladas que marcavam as meias horas e as horas; aqui, as espessas paredes não deixavam chegar ao interior da prisão o alvoroço dos sinos das igrejas
de Caledonian Road nem o bulício do mercado de Islington e os guardas perfilados na porta cumpriam estritamente a ordem de não lhe dirigir a palavra. O xerife pôs-lhe
as algemas e indicou-lhe que saísse à sua frente. Traria o seu advogado alguma boa notícia? O gabinete ter-se-ia reunido e tomado uma decisão? Talvez o olhar do
xerife, mais carregado do que nunca com a aversão que ele lhe inspirava, se devesse a terem-lhe comutado a pena. Ia a caminhar pelo
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longo corredor de tijolos vermelhos enegrecidos pela sujidade, entre as portas metálicas das celas e umas paredes descoloridas nas quais a cada vinte ou vinte e
cinco passos havia uma alta janela com grades através da qual conseguia avistar um bocadinho de céu acinzentado. Porque é que tinha tanto frio? Era Julho, o coração 
do Verão, não havia razão para aquele gelo que lhe eriçava a pele.
Ao entrar no estreito parlatório das visitas, afligiu-se. Quem o esperava ali não era o seu advogado, Maítre George Gavan Duffy, mas sim um dos seus ajudantes, um 
jovem louro e desengonçado, de maçãs do rosto salientes, vestido como um peralvilho, a quem ele tinha visto durante os quatro dias do julgamento a levar e a trazer 
papéis aos advogados de defesa. Porque é que o maitre Gavan Duffy, em vez de vir em pessoa, mandava um
dos seus estagiários?
O jovem atirou-lhe um olhar frio. Nas suas pupilas havia irritação e repugnância. O que é que aquele imbecil estaria a pensar? "Olha para mim como se eu fosse uma 
besta", pensou
Roger.
- Alguma novidade?
O jovem negou com a cabeça. Inspirou antes de falar:
- Sobre o pedido de indulto, ainda não - murmurou, com secura, fazendo um esgar que ainda o desengonçava mais. -É preciso esperar que o Conselho de Ministros se 
reúna.
A Roger incomodava-o a presença do xerife e do outro guarda no pequeno parlatório. Embora permanecessem silenciosos e imóveis, sabia que estavam suspensos de tudo 
o que diziam. Essa ideia oprimia-lhe o peito e dificultava-lhe a
respiração.
- Mas, tendo em conta os últimos acontecimentos - acrescentou o jovem louro, pestanejando pela primeira vez e abrindo e fechando a boca com exagero -, tudo se tornou 
agora mais
difícil.
- A prisão de Pentonville não chegam as notícias do exterior. O que é que aconteceu?
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E se o Almirantado alemão tivesse decidido por fim atacar a Grã-Bretanha a partir das costas da Irlanda? E se a sonhada invasão estivesse a acontecer e os canhões
do Kaiser vingassem naqueles mesmos instantes os patriotas irlandeses fuzilados pelos Ingleses na Revolta da Páscoa? Se a guerra tivesse tomado aquele rumo, os seus 
planos realizavam-se, apesar de tudo.
- Agora tornou-se difícil, talvez impossível, ter êxito - repetiu o estagiário. Estava pálido, continha a sua indignação e Roger adivinhava sob a pele esbranquiçada
da sua tez a sua caveira. Pressentiu que, atrás de si, o xerife sorria.
- De que é que está a falar? O senhor Gavan Duffy estava optimista relativamente à petição. O que é que aconteceu para que mudasse de opinião?
- Os seus diários - soletrou o jovem, com outra careta de desagrado. Baixara a voz e Roger tinha alguma dificuldade em ouvi-lo. - Foi a Scotland Yard que os descobriu, 
na sua casa de Ebury Street.
Fez uma longa pausa, esperando que Roger dissesse alguma coisa. Mas como este tinha emudecido, deu rédea solta à sua indignação e franziu a boca:
- Como é que pôde ser tão insensato, homem de Deus? -falava com uma lentidão que tornava mais patente a sua raiva.
- Como é que pôde pôr em tinta e papel semelhantes coisas, homem de Deus? E, se o fez, como é que não tomou a precaução elementar de destruir aqueles diários antes 
de se pôr a conspirar contra o Império Britânico?
"É um insulto este imberbe chamar-me "homem de Deus"", pensou Roger. Era um mal-educado, porque ele tinha pelo menos o dobro da idade daquele rapazola amaneirado.
- Circulam agora por todo o lado fragmentos desses diários
- acrescentou o estagiário, mais sereno, embora sempre desagradado, agora sem olhar para ele. - No Almirantado, o porta-voz do ministro, o capitão-de-mar-e-guerra 
Reginald Hall em pessoa, entregou cópias a dezenas de jornalistas. Estão por toda a Londres. No Parlamento, na Câmara dos Lordes, nos clubes
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liberais e conservadores, nas redacções e nas igrejas. Não se fala de outra coisa na cidade.
Roger não dizia nada. Não se mexia. Tinha, outra vez, aquela estranha sensação quese havia apoderado dele muitas vezes nos últimos meses, desde aquela manhã cinzenta 
e chuvosa de Abril de 1916 em que, transido de frio, fora detido entre as ruínas do Forte McKenna, no Sul da Irlanda: não se tratava dele, era doutro que falavam, 
doutro a quem aconteciam aquelas coisas.
- Já sei que a sua vida privada não é um assunto meu, nem do senhor Gavan Duffy, nem de ninguém - acrescentou o jovem estagiário, esforçando-se por baixar a cólera 
que impregnava a sua voz. - Trata-se de um assunto estritamente profissional. O senhor Gavan Duffy quis pô-lo ao corrente da situação. E preveni-lo. A petição de 
clemência pode ver-se comprometida. Esta manhã, nalguns jornais, já há protestos, inconfidências, rumores sobre o conteúdo dos seus diários. A opinião pública favorável 
à petição poderá ver-se afectada. Uma mera suposição, claro. O senhor Gavan Duffy mantê-lo-á informado. Deseja que lhe transmita alguma mensagem?
O prisioneiro negou, com um movimento quase imperceptível da cabeça. No mesmo instante, girou sobre si mesmo, encarando a porta do parlatório. O xerife deu uma indicação 
com a sua cara bochechuda ao guarda. Este correu o pesado ferrolho e a porta abriu-se. O regresso à cela pareceu-lhe interminável. Durante o percurso pelo longo 
corredor de pétreas paredes de tijolos vermelhos enegrecidos teve a sensação de que a qualquer momento tropeçaria e cairia de bruços sobre aquelas pedras húmidas 
e não voltaria a levantar-se. Ao chegar à porta metálica da cela, recordou: no dia em que o trouxeram para a prisão de Pentonville, o xerife disse-lhe que todos 
os réus que ocuparam aquela cela, sem excepção, tinham acabado no patíbulo.
- Poderei tomar um banho, hoje? - perguntou ele, antes de entrar.
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O obeso carcereiro negou com a cabeça, olhando-o nos olhos com a mesma repugnância que Roger tinha notado no olhar do estagiário.
- Não poderá tomar banho até ao dia da execução - disse o xerife, saboreando cada palavra. - E, nesse dia, só se for a sua última vontade. Outros, em vez do banho,
preferem uma boa refeição. Um mau negócio para Mr. Ellis, porque então, quando sentem a corda, cagam-se. E deixam o lugar feito uma porcaria. Mr. Ellis é o verdugo,
para o caso de não saber.
Quando sentiu a porta fechar-se atrás de si, foi deitar-se de barriga para cima no pequeno catre. Fechou os olhos. Teria sido bom sentir a água fria daquele cano
a arrepiar-lhe a pele e a azulá-la de frio. Na prisão de Pentonville, os réus, com excepção dos condenados à morte, podiam tomar banho com sabão uma vez por semana
naquele jorro de água fria. E as condições das celas eram sofríveis. Em contrapartida, recordou com um calafrio a sujidade do cárcere de Brixton, onde se tinha enchido
de piolhos e pulgas que pululavam no colchão do seu catre e o tinham coberto de picadas nas costas, nas pernas e nos braços. Procurava pensar nisso, mas voltavam
várias vezes à sua memória a cara descontente e a voz odiosa do louro estagiário ataviado como um janota que maitre Gavan Duffy lhe tinha enviado em vez de vir ele
em pessoa dar-lhe as más notícias.
II.
Do seu nascimento, A 1 de Setembro de 1864, em Doyle's Cottage, Lawson Terrace, no subúrbio Sandycove de Dublin, não se lembrava de nada, é claro. Embora sempre
tenha sabido que tinha sido dado à luz na capital da Irlanda, uma boa parte da sua vida deu como assente o que o seu pai, o capitão Roger Casement, que tinha servido
oito anos com distinção no Terceiro Regimento de Dragões Ligeiros, na índia, lhe inculcou: que o seu verdadeiro berço era o condado de Antrim, no coração do Ulster,
na Irlanda protestante e pró-britânica, onde a linhagem dos Casement estava estabelecida desde o século XVIII. Roger foi criado e educado como anglicano da Igreja
Irlandesa, tal como os seus irmãos Agnes (Nina), Charles e Tom - os três mais velhos que ele -, mas intuiu, ainda antes de ter o uso da razão, que em matéria de
religião nem tudo na sua família era tão harmonioso como no resto. Até para um menino de poucos anos era impossível não reparar que a mãe, quando estava com as suas
irmãs e primos da Escócia, agia de maneira que parecia esconder alguma coisa. Já adolescente, descobriria que, Anne Jephson, embora aparentemente, se tinha convertido
ao protestantismo para casar com o seu pai, e às escondidas do marido continuava a ser católica ("papista" teria dito o capitão Casement), confessando-se, ouvindo
missa e comungando, e, no mais cioso dos segredos, ele próprio tinha sido baptizado como católico quando fez quatro anos, durante uma viagem de
férias que ele e os seus irmãos fizeram com a mãe a Rhyl, no Norte do País de Gales, a casa das tias e tios maternos que lá viviam.
Naqueles anos, em Dublin, ou nos períodos que passaram em Londres e em Jersey, Roger não lhe interessava nada a religião, ainda que, para não desgostar o pai, durante
o ofício dominical rezasse, cantasse e seguisse o serviço com respeito. A mãe havia-lhe dado aulas de piano e tinha uma voz clara e temperada que costumava granjear-lhe
aplausos nas reuniões familiares em que entoava velhas baladas irlandesas. O que verdadeiramente lhe interessava naquele tempo eram as histórias que, quando estava
bem-disposto, o capitão Casement lhe contava a ele e aos seus irmãos. Histórias da índia e do Afeganistão, sobretudo as suas batalhas contra os Afegãos e os Siques.
Aqueles nomes e paisagens exóticos, aquelas viagens atravessando florestas e montanhas que escondiam tesouros, feras, alimárias, povos antiquíssimos de estranhos
costumes, deuses bárbaros, disparavam-lhe a imaginação. Os seus irmãos, às vezes, aborreciam-se com aqueles relatos, mas o pequeno Roger poderia ter passado horas
e dias a escutar as aventuras do seu pai nas remotas fronteiras do Império.
Quando aprendeu a ler, gostava de mergulhar nas histórias dos grandes navegadores, viquingues, portugueses, ingleses e espanhóis que tinham sulcado os mares do planeta
volatilizando os mitos segundo os quais, chegadas a um certo ponto, as águas marinhas começavam a ferver, abriam-se abismos e apareciam monstros cujas fauces podiam
engolir um barco inteiro. Contudo, entre as aventuras ouvidas e as lidas, Roger sempre havia preferido escutar as da boca do pai. O capitão Casement tinha uma voz
quente, descrevia com rico vocabulário e animação as florestas da índia ou os rochedos de Khyber Pass, no Afeganistão, onde a sua companhia de Dragões Ligeiros foi
uma vez emboscada por uma massa de enturbantados fanáticos que os bravos soldados ingleses enfrentaram, primeiro a balázios, depois a baioneta, e, por fim, com punhais
e com mãos nuas, até os obrigarem a retirar-se derrotados. Mas não eram os
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feitos de armas o que mais deslumbrava a imaginação do pequeno Roger, mas sim as viagens, abrir caminhos por paisagens nunca pisadas pelo homem branco, as proezas
físicas de resistência, vencer os obstáculos da natureza. O seu pai era agradável, mas severíssimo e não vacilava em açoitar os filhos quando se portavam mal, mesmo
Nina, a mulherzinha, pois assim se castigavam os erros no Exército e ele tinha verificado que só aquela forma de castigo era eficaz.
Embora admirasse o pai, de quem Roger verdadeiramente gostava era da mãe, aquela mulher esbelta que parecia flutuar em vez de andar, de olhos e cabelos claros e 
cujas mãos, tão suaves, quando se enredavam nos seus caracóis ou lhe acariciavam o corpo na hora do banho o enchiam de felicidade. Uma das primeiras coisas que aprenderia 
foi - teria cinco, seis anos? -que só podia correr a atirar-se para os braços da mãe quando o capitão não estava por perto. Este, fiel à tradição puritana da sua
família, não era partidário de que as crianças crescessem com muitos mimos, pois isso tornava-os moles para a luta pela vida. Diante do pai, Roger mantinha-se à 
distância da pálida e delicada Anne Jephson. Mas quando aquele partia para se juntar aos amigos no seu clube ou para dar um passeio, corria para ela, que o cobria 
de beijos e carícias. Às vezes, Charles, Nina e Tom protestavam:"Gostas mais do Roger que de nós." A mãe garantia-lhes que não, que gostava igualmente de todos, 
só que Roger era muito pequeno e precisava de mais atenção e carinho que os mais velhos.
Quando a mãe morreu, em 1873, Roger tinha nove anos. Aprendera a nadar e ganhava todas as corridas com meninos da sua idade e até mais velhos. Ao contrário de Nina, 
Charles e Tom, que derramaram muitas lágrimas durante o velório e o enterro de Anne Jephson, Roger não chorou nem uma única vez. Naqueles dias tétricos, o lar dos 
Casement converteu-se numa capela funerária, cheia de gente vestida de luto, que falava em voz baixa e abraçava o capitão Casement e as quatro crianças com caras 
pesarosas, pronunciando palavras de pêsames.
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Durante muitos dias não conseguiu pronunciar uma frase, como se tivesse ficado mudo. Respondia com movimentos de cabeça ou gestos às perguntas e permanecia sério,
cabisbaixo e com o olhar perdido, até mesmo de noite no quarto às escuras, sem conseguir dormir. Desde então e para o resto da sua vida, de quando em quando, nos 
seus sonhos, a figura de Anne Jephson viria visitá-lo com aquele sorriso convidativo, abrindo-lhe os braços, onde ele se ia encolher, sentindo-se protegido e feliz 
com aqueles dedos finos na sua cabeça, nas suas costas, nas suas faces, uma sensação que parecia defendê-lo das maldades do mundo.
Os irmãos depressa se conformaram. E Roger também, aparentemente. Porque, embora tivesse recuperado a fala, era um tema que ele nunca referia. Quando algum familiar 
lhe recordava a mãe, emudecia e mantinha-se encerrado no seu mutismo até aquela pessoa mudar de tema. Nas suas insónias, pressentia na escuridão, olhando para ele 
com tristeza, o semblante da infortunada Anne Jephson.
Quem não se conformou nem voltou a ser o mesmo foi o capitão Roger Casement. Como não era efusivo e nem Roger nem os irmãos o tinham visto alguma vez ser pródigo 
em gentilezas para com a mãe, as quatro crianças ficaram surpreendidas com o cataclismo que o desaparecimento da esposa significou para o pai. Ele, tão bem ataviado, 
andava agora vestido de qualquer maneira, com a barba crescida, o sobrolho franzido e um olhar de ressentimento como se os filhos tivessem a culpa da sua viuvez. 
Pouco tempo depois da morte de Anne, decidiu deixar Dublin e despachou as quatro crianças para o Ulster, para Magherintemple House, a casa de família, onde, a partir 
de então, o tio-avô paterno John Casement e a sua esposa Charlotte se encarregariam da educação dos quatro irmãos. O pai, como que a querer desinteressar-se deles, 
foi viver a quarenta quilómetros dali, no Adair Arms Hotel de Ballymena, onde, como às vezes o tio-avô John acabava por dizer, o capitão Casement, "meio louco de 
dor e solidão", dedicava os seus dias
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e noites ao espiritismo, tentando comunicar com a mulher morta através de médiuns, cartas e bolas de cristal.
Desde então, Roger raramente viu o pai e nunca mais o ouviu voltar a contar aquelas histórias da índia e do Afeganistão. O capitão Roger Casement morreu de tuberculose 
em 1876, três anos depois da esposa. Roger acabava de fazer doze anos. Na Escola Diocesana de Ballymena, onde esteve três anos, foi um estudante distraído, que tirava 
notas regulares, excepto a Latim, Francês e História Antiga, disciplinas em que se destacou. Escrevia poesia, parecia sempre metido consigo mesmo e devorava livros 
de viagens pela África e pelo Extremo Oriente. Praticava desporto, sobretudo natação. Aos fins-de-semana ia ao Castelo de Galgorm, dos Young, para onde um colega 
da turma o convidava. Mas Roger passava ainda mais tempo com Rose Maud Young, bela, culta e escritora, que percorria as aldeias de pescadores e camponeses do Antrim, 
recolhendo poemas, lendas e canções em gaélico. Da sua boca ouviu pela primeira vez os épicos conflitos da mitologia irlandesa. O castelo, de pedras negras, torreões, 
escudos, lareiras e uma fachada catedralesca tinha sido construído no século XVII por Alexander Colville, um teólogo de cara maldisposta - segundo o seu retrato 
do vestíbulo - que, dizia-se em Ballymena, tinha feito um pacto com o Diabo e o seu fantasma deambulava pelo lugar. Tremendo, nalgumas noites de luar, Roger atreveu-se 
a procurá-lo pelos passadiços e aposentos vazios, mas nunca o encontrou.
Só muitos anos mais tarde aprenderia a sentir-se confortável em Magherintemple House, o solar dos Casement, que antes se tinha chamado Churchfield e fora uma reitoria 
da paróquia anglicana de Culfeightrin. Porque nos seis anos que ali viveu, entre os nove e os quinze anos, com o tio-avô John e a tia-avó Charlotte, e restantes 
parentes paternos, sempre se sentiu um pouco estranho naquela imponente mansão de pedras cinzentas, de três andares, altos tectos lisos, muros cobertos de hera, 
telhados de falso gótico e cortinados que pareciam ocultar fantasmas. Os vastos aposentos, os longos corredores
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e as escadas com gastos corrimãos de madeira e degraus que gemiam aumentavam a sua solidão. Em compensação, tinha prazer ao ar livre, entre os robustos olmos, sicômoros
e pessegueiros que resistiam aos ventos ciclónicos e as suaves colinas com vacas e ovelhas das quais se avistava a localidade de Ballycastle, o mar, os escolhos 
que investiam contra a ilha de Rathlin e, nos dias claros, a esbatida silhueta da Escócia. Ia com frequência às aldeias vizinhas de Cushendum e Cushendall que pareciam 
o cenário de antigas lendas irlandesas, e aos nove glens da Irlanda do Norte, aqueles estreitos vales cercados de colinas e ladeiras rochosas em cujos cumes as águias 
traçavam círculos, espectáculo que o fazia sentir-se corajoso e exaltado. A sua diversão preferida eram as excursões por aquela terra áspera, de camponeses tão velhos 
como a paisagem, alguns dos quais falavam entre eles o irlandês antigo, acerca do qual o seu tio-avô John e os amigos faziam às vezes cruéis chacotas. Nem Charles 
nem Tom partilhavam o seu entusiasmo pela vida ao ar livre, nem tiravam prazer das caminhadas pelos campos ou a escalar as lombas escarpadas do Antrim; Nina, pelo 
contrário, e por isso mesmo, apesar de ser oito anos mais velha do que ele, foi a sua preferida e com quem sempre se daria melhor. Com ela fez várias excursões até 
à baía de Murlough, eriçada de rochas negras e com a sua praiazinha pedregosa, junto do Glenshesk, cuja recordação o acompanharia toda a vida e à qual sempre se 
referiria, nas suas cartas à família, como "aquele recanto do Paraíso".
Mas ainda mais que dos passeios pelo campo, Roger gostava das férias de Verão. Passava-as em Liverpool, junto da tia Grace, irmã da sua mãe, em cuja casa se sentia 
querido e acolhido: pela tia Grace, claro, mas também pelo seu esposo, o tio Edward Bannister, que tinha corrido muito mundo e fazia viagens de negócios a África. 
Trabalhava para a companhia de navegação Elder Dempster Line, que transportava carga e passageiros entre a Grã-Bretanha e a África Ocidental. Os filhos da tia Grace 
e do tio Edward, os seus primos, foram melhores companheiros de brincadeira de Roger do que os seus próprios
irmãos,
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sobretudo a sua prima Gertrude Bannister, Gee, com a qual, desde muito pequeno, teve uma proximidade que nunca foi manchada por um só desgosto. Eram tão
unidos que uma vez Nina brincou com eles: "Vocês ainda vão acabar por casar." Gee riu-se, mas Roger corou até à ponta dos cabelos. Não se atrevia a erguer o olhar
e balbuciava: "Não, não, porque é que dizes essa palermice?"
Quando estava em Liverpool, junto dos primos, Roger vencia por vezes a sua timidez e fazia perguntas ao tio Edward sobre África, um continente cuja simples referência
lhe enchia a cabeça de florestas, feras, aventuras e homens intrépidos. Graças ao tio Edward Bannister ouviu falar pela primeira vez do doutor David Livingstone,
o médico e evangelista escocês que andava há anos a explorar o continente africano, percorrendo rios como o Zambeze e o Chire, baptizando montanhas, paragens desconhecidas
e levando o cristianismo às tribos de selvagens.Tinha sido o primeiro europeu a atravessar a África de costa a costa, o primeiro a percorrer o deserto do Calaári
e tinha-se convertido no herói mais popular do Império Britânico. Roger sonhava com ele, lia os folhetos que descreviam as suas proezas e ansiava por fazer parte
das suas expedições, enfrentar os perigos a seu lado, ajudá-lo a levar a religião cristã àqueles pagãos que não tinham saído da Idade da Pedra. Quando o doutor Livingstone,
procurando as fontes do Nilo, desapareceu engolido pelas selvas africanas, Roger tinha dois anos. Quando, em 1872, outro aventureiro e explorador lendário, Henry
Morton Stanley, jornalista de origem galesa empregado por um jornal de Nova Iorque, emergiu da selva a anunciar ao mundo que tinha encontrado vivo o doutor Livingstone, 
acabava de fazer oito. O menino viveu a história novelesca com assombro e inveja. E quando, um ano mais tarde, se soube que o doutor Livingstone, que nunca quis 
abandonar o solo africano nem voltar a Inglaterra, falecera, Roger sentiu que tinha perdido um familiar muito querido. Quando fosse crescido, também ele seria explorador, 
como aqueles titãs, Livingstone e Stanley,
25
que estavam a alargar as fronteiras do Ocidente e a viver umas vidas tão extraordinárias.
Ao fazer quinze anos, o tio-avô John Casement decidiu que Roger devia abandonar os estudos e procurar um trabalho, dado que nem ele nem os irmãos tinham rendas das 
quais podiam viver. Aceitou de boa vontade. Decidiram de comum acordo que Roger iria para Liverpool, onde havia mais possibilidades de trabalho que na Irlanda do 
Norte. Com efeito, pouco depois de chegar junto dos Bannister, o tio Edward arranjou-lhe um lugar na mesma companhia onde ele tinha laborado tantos anos. Começou 
os seus trabalhos de aprendiz na companhia de navegação logo a seguir a fazer os quinze anos. Parecia mais velho. Era muito alto, de profundos olhos cinzentos, magro, 
de cabelos negros encaracolados, pele muito clara e dentes certos, frugal, discreto, ajuizado, amável e serviçal. Falava um inglês marcado por um toque irlandês, 
motivo de zombarias entre os seus primos.
Era um rapaz sério, empenhado, lacónico, não muito preparado intelectualmente, mas esforçado. Levou as suas obrigações na companhia muito a sério, decidido a aprender. 
Colocaram-no no departamento de administração e contabilidade. A princípio, as suas tarefas eram as de um mensageiro. Levava e trazia documentos de um escritório 
para o outro e ia ao porto fazer os trâmites entre barcos, alfândegas e depósitos. Os seus chefes tinham-no em boa consideração. Nos quatro anos em que trabalhou 
na Elder Dempster Line não chegou a ser íntimo de ninguém, devido à sua maneira de ser retraída e aos seus costumes austeros: inimigo de festarolas, quase não bebia 
e nunca o viram frequentar os bares e lupanares do porto. Desde então, foi um fumador empedernido. A sua paixão por África e o seu empenho em conquistar mérito na 
companhia levavam-no a ler com cuidado, enchendo-os de anotações, os folhetos e as publicações que circulavam pelos escritórios relacionados com o comércio marítimo 
entre o Império Britânico e a África Ocidental. Depois, repetia, convencido, as ideias que impregnavam aqueles textos. Levar para África os produtos
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europeus e importar as matérias-primas que o solo africano produzia era, mais que uma operação mercantil, um empreendimento a favor do progresso de povos parados
na Pré-História, imersos no canibalismo e no tráfico de escravos. O comércio levava para lá a religião, a moral, a lei, os valores da Europa moderna, culta, livre 
e democrática, um progresso que acabaria por transformar os infelizes das tribos em homens e mulheres do nosso tempo. Neste empreendimento, o Império Britânico estava 
na vanguarda da Europa e as pessoas tinham de se sentir orgulhosas por fazerem parte dele e do trabalho que realizavam na Elder Dempster Line. Os seus colegas de 
escritório trocavam olhares trocistas, interrogando-se se o jovem Roger Casement seria um tonto ou um espertalhão, se acreditava naquelas palermices ou as proclamava 
para ter mérito perante os seus chefes. Nos quatro anos em que trabalhou em Liverpool, Roger continuou a viver com os seus tios Grace e Edward, a quem entregava 
parte do seu salário e eles tratavam-no como um filho. Dava-se bem com os primos, sobretudo com Gertrude, com a qual aos domingos e dias feriados ia remar, pescar, 
se estivesse bom tempo, ou ficava em casa a ler em voz alta junto à lareira, se chovia. A sua relação era fraterna, sem pitada de malícia ou de sedução. Gertrude 
foi a primeira pessoa a quem mostrou os poemas que escrevia em segredo. Roger chegou a conhecer de cor o movimento da companhia e, sem nunca ter posto os pés nos 
portos africanos, falava deles como se tivesse passado a vida entre os seus escritórios, lojas, diligências, costumes e gentes que
os povoavam.
Fez três viagens à África Ocidental no SS Bounty e a experiência entusiasmou-o tanto que, depois da terceira, renunciou ao seu emprego e anunciou aos irmãos, tios 
e primos, que tinha decidido ir para África. Fê-lo de uma maneira exaltada e, segundo lhe disse o tio Edward, "como aqueles cruzados que na Idade Média partiam para 
o Oriente para libertar Jerusalém". A família foi despedir-se ao porto e Gee e Nina deitaram grossas lágrimas. Roger acabava de fazer vinte anos.
III.
Quando o xerife abriu a porta da cela e o apequenou com o olhar, Roger estava a recordar, envergonhado, que sempre tinha sido partidário da pena de morte. Tornara-o
público há poucos anos, no seu Relatório sobre a Amazónia para o Foreign Office, o Livro Azul, reclamando para o peruano Júlio César Arana, o rei da borracha no
Putumayo, um castigo exemplar: "Se conseguíssemos que pelo menos ele fosse enforcado por aqueles crimes atrozes, isso seria o princípio do fim daquele interminável
martírio e da infernal perseguição contra os infelizes indígenas." Não escreveria agora aquelas mesmas palavras. E, antes, tinha-lhe vindo à cabeça a recordação
do mal-estar que costumava sentir ao entrar numa casa e descobrir nela uma gaiola. Os canários, pintassilgos ou papagaios engaiolados tinham-lhe parecido sempre
vítimas de uma crueldade inútil.
- Visita - murmurou o xerife, observando-o com desprezo nos olhos e na voz. Ao mesmo tempo que Roger se levantava e sacudia a farda de condenado com as mãos, acrescentou
com sarcasmo: - Hoje está outra vez na imprensa, senhor Casement. Não por ser traidor à sua pátria...
- A minha pátria é a Irlanda - interrompeu-o ele.
- ... mas sim pelas suas nojeiras - o xerife estalava a língua como se fosse cuspir. - Traidor e malvado ao mesmo tempo. Mas que lixo! Será um prazer vê-lo a dançar
numa corda, ex-Sir Roger.
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- O gabinete rejeitou o pedido de clemência?
- Ainda não - demorou a responder o xerife. - Mas irá rejeitar. E também Sua Majestade o rei, é claro.
- A ele não lhe pedirei clemência. É o vosso rei, não o
meu.
- A Irlanda é britânica - murmurou o xerife. - Agora mais do que antes, depois de ter esmagado aquela cobarde Revolta da Páscoa, em Dublin. Uma punhalada nas costas 
contra um país em guerra. Eu não teria fuzilado os seus líderes, mas sim
enforcado.
Calou-se porque já tinham chegado ao parlatório.
Não era o padre Carey, o capelão católico da prisão de Pentonville, quem tinha vindo visitá-lo, mas sim Gertrude, Gee, a sua prima. Abraçou-o com muita força e Roger 
sentiu-a tremer nos seus braços. Pensou num passarinho paralisado. Como Gee tinha envelhecido desde a sua prisão e julgamento! Recordou a rapariga travessa e alegre 
de Liverpool, a mulher atraente e amante da vida de Londres, à qual devido à sua perna doente os amigos chamavam carinhosamente Coxinha. Era agora uma velhinha encolhida 
e adoentada e não a mulher sã, forte e segura de si mesma de há poucos anos. A luz clara dos seus olhos tinha-se apagado e havia rugas na sua cara, pescoço e mãos. 
Vestia de escuro, umas roupas já gastas.
- Devo cheirar a todas as porcariasdo mundo - brincou Roger, indicando a sua farda de lã azul já acinzentada. - Tiraram-me o direito a tomar banho. Devolvê-lo-ão
só por uma
vez, se me executarem.
- Não vão fazer isso, o Conselho de Ministros aprovará a clemência - afirmou Gertrude, movendo a cabeça para dar mais força às suas palavras. - O presidente Wilson
intercederá por ti junto do Governo britânico, Roger. Prometeu enviar um telegrama. Vão conceder-ta, não haverá execução, acredita em
mim.
Dizia aquilo de uma maneira tão tensa, com uma voz tão quebrada, que Roger sentiu pena dela, de todos os amigos que,
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como Gee, sofriam durante aqueles dias a mesma angústia e incerteza. Tinha vontade de lhe perguntar pelos ataques dos jornais que o carcereiro mencionara, mas conteve-se.
O presidente dos Estados Unidos intercederia por ele? Deviam ser iniciativas de John Devoy e restantes amigos do Clan na Gael. Se o fazia, a sua diligência teria 
efeito. Ainda restava uma possibilidade de que o gabinete lhe comutasse a pena.
Não havia onde sentar-se e Roger e Gertrude permaneciam de pé, muito juntos, de costas para o xerife e para o guarda. As quatro presenças transformavam o pequeno 
parlatório num lugar claustrofóbico.
- Gavan Duffy contou-me que te tinham despedido da Queen Anne's School - desculpou-se Roger. - Já sei que foi por minha culpa. Peço-te mil perdões, querida Gee. 
Causar o teu mal era a última coisa que eu quereria.
- Não me despediram, pediram-me que aceitasse o cancelamento do meu contrato. E deram-me uma indemnização de quarenta libras. Não me importa. Assim tive mais tempo 
para ajudar Alice Stopford Green nos seus esforços para te salvar a vida. Isso agora é o mais importante.
Pegou na mão do primo e apertou-a com ternura. Gee ensinava há muitos anos na escola do Queen Anne's Hospital, em Caversham, onde chegou a ser subdirectora. Sempre 
gostara do seu trabalho, acerca do qual contava divertidos episódios nas suas cartas a Roger. E agora, pelo seu parentesco com um pestilento, seria uma desempregada. 
Teria de que viver ou alguém que a ajudasse?
- Ninguém acredita nas infâmias que estão a publicar contra ti - disse Gertrude, baixando muito a voz, como se os dois homens que ali estavam pudessem não a ouvir. 
- Todas as pessoas decentes estão indignadas pelo Governo se valer dessas calúnias para tirar força ao manifesto que tanta gente importante assinou em teu favor, 
Roger.
Embargou-se-lhe a voz como se fosse soluçar. Roger abraçou-a de novo.
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- Sempre gostei tanto de ti, Gee, queridíssima Gee - sussurrou-lhe ao ouvido. - E agora, ainda mais que antes. Agradecer-te-ei sempre teres sido leal comigo nas
coisas boas e nas más. Por isso, a tua opinião é uma das poucas que me interessa. Sabes que tudo o que fiz foi pela Irlanda, não é verdade? Por uma causa nobre e 
generosa, como é a da Irlanda. Não é assim, Gee? Ela tinha-se posto a soluçar, baixinho, com a cara esmagada contra o seu peito.
- Tinham dez minutos e já passaram cinco - recordou o xerife, sem se virar para olhar para eles. - Ainda lhes restam
cinco.
- Agora, com tanto tempo para pensar - disse Roger, ao ouvido da sua prima -, recordo muito aqueles anos em Liverpool, quando éramos tão jovens e a vida nos sorria, 
Gee.
- Todos julgavam que éramos namorados e que um dia nos casaríamos - murmurou Gee. - Eu também recordo essa época com nostalgia, Roger.
- Éramos mais que namorados, Gee. Irmãos, cúmplices. As duas faces da mesma moeda. Tão unidos. Tu foste muitas coisas para mim. A mãe que perdi aos nove anos. Os 
amigos que nunca tive. Contigo senti-me sempre melhor do que com os meus próprios irmãos. Davas-me confiança, segurança na vida, alegria. Mais tarde, em todos os 
meus anos em África, as tuas cartas eram a minha única ponte com o resto do mundo. Não sabes com que felicidade recebia as tuas cartas e como as lia e relia, querida 
Gee.
Calou-se. Não queria que a prima reparasse que ele também estava quase a chorar. Desde novo tinha detestado, sem dúvida pela sua educação puritana, as efusões públicas 
de sentimentalismo, mas nestes últimos meses incorria por vezes em certas fraquezas que antes lhe desagradavam tanto nos outros. Gee não dizia nada. Permanecia abraçada 
a ele e Roger sentia a sua respiração agitada, que lhe inchava e desinchava o peito.
- Tu foste a única pessoa a quem eu mostrei os meus poemas. Lembras-te?
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- Lembro-me de que eram péssimos - disse Gertrude. -Mas eu gostava tanto de ti que tos elogiava. Até aprendi um ou outro de cor.
- Eu apercebia-me bem que não gostavas deles, Gee. Foi uma sorte nunca os ter publicado. Estive quase, como sabes.
Olharam um para o outro e acabaram por se rir.
- Estamos a fazer tudo, tudo, para te ajudar, Roger - disse Gee, pondo-se de novo muito séria. A sua voz também tinha envelhecido; antes era firme e risonha e, agora, 
vacilante e alquebrada. - Nós, os que gostamos de ti, que somos muitos. Alice, em primeiro lugar, claro. A mover céus e terra. A escrever cartas, a visitar políticos, 
autoridades, diplomatas. A explicar, a rogar. A bater a todas as portas. Ela anda a tentar vir ver-te. É difícil. Só estão autorizados os familiares. Mas, Alice 
é conhecida, tem influências. Conseguirá a autorização e virá, vais ver. Sabias que aquando da Revolta da Páscoa em Dublin a Scotland Yard revistou a casa dela de 
cima a baixo? Levaram muitos papéis. Ela gosta de ti e admira-te tanto, Roger.
"Eu sei", pensou Roger. Ele também gostava de Alice Stop-ford Green e admirava-a. A historiadora, irlandesa e de família anglicana como Casement, cuja casa era um 
dos salões intelectuais mais frequentados de Londres, centro de tertúlias e de reuniões de todos os nacionalistas e autonomistas da Irlanda, havia sido mais que 
uma amiga e uma conselheira para ele em matérias políticas. Tinha-o educado e dado a descobrir e a amar o passado da Irlanda, a sua longa história e a sua florescente 
cultura antes de ser absorvida pelo seu poderoso vizinho. Recomendara-lhe livros, esclarecera-o em apaixonadas conversas, incitara-o a continuar com aquelas lições 
da língua irlandesa que, infelizmente, ele nunca chegou a dominar. "Morrerei sem falar gaélico", pensou. E, mais tarde, quando se tornou um nacionalista radical 
foi Alice a primeira pessoa que começou a chamá-lo em Londres com a alcunha que Herbert Ward lhe tinha dado e a que Roger achava tanta graça: o Celta.
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- Dez minutos - sentenciou o xerife. - Hora de se despedirem.
Sentiu que a prima se abraçava a ele e que a boca dela tentava aproximar-se do seu ouvido, sem conseguir, pois ele era muito mais alto do que ela. Falou com ele 
sumindo a voz até torná-la quase inaudível:
- Todas aquelas coisas horríveis que os jornais dizem são calúnias, mentiras abjectas. Não é verdade, Roger?
A pergunta apanhou-o tão desprevenido que demorou uns segundos a responder.
- Não sei o que é que a imprensa diz de mim, querida Gee. Não chega aqui. Mas - procurou cuidadosamente as palavras -, de certeza que o são. Quero que tenhas presente 
uma única coisa, Gee. E que acredites em mim. Enganei-me muitas vezes, claro. Mas não tenho nada de que me envergonhar. Nem tu nem nenhum dos meus amigos têm por 
que se envergonhar de mim. Acreditas em mim, não é verdade, Gee?
- Claro que acredito em ti. - A prima soluçou, tapando a boca com as duas mãos.
De regresso à sua cela, Roger sentiu que os olhos se enchiam de lágrimas. Fez um grande esforço para que o xerife não reparasse nisso. Era estranho ter vontade de 
chorar. Que se lembrasse, não tinha chorado naqueles meses, desde a sua captura. Nem durante os interrogatórios na Scotland Yard, nem durante as audiências do julgamento, 
nem ao ouvir a sentença que o condenava a ser enforcado. Porquê agora? Por Gertrude. Por Gee. Vê-la sofrer daquele modo, duvidar daquele modo, significava que pelo 
menos para ela a sua pessoa e a sua vida eram preciosas. Não estava, pois, tão sozinho como se sentia.
IV.
A VIAGEM DO CÔNSUL BRITÂNICO ROGER CASEMENT pelo rio
Congo acima,que começou a 5 de Junho de 1903 e que mudaria a sua vida, devia ter-se iniciado um ano antes. Ele tinha vindo a sugerir esta expedição ao Foreign Office
desde que, em 1900, depois de servir em Old Calabar (Nigéria), Lourenço Marques (Maputo) e São Paulo de Luanda (Angola), passara a ter residência oficial como cônsul
da Grã-Bretanha em Boma -uma aldeia disforme - alegando que a melhor maneira de apresentar um relatório sobre a situação dos nativos no Estado Independente do Congo
era sair daquela capital remota para as florestas e tribos do Médio e Alto Congo. Ali se efectuava a exploração da qual vinha informando o Foreign Office desde que
chegara àqueles domínios. Por fim, depois de ponderar as razões de Estado que faziam revoltar o estômago do cônsul, embora as compreendesse - a Grã-Bretanha era
aliada da Bélgica e não queria atirá-la para os braços da Alemanha -, o Foreign Office autorizou-o a empreender a viagem para as aldeias, estações, missões, postos,
acampamentos e feitorias onde se levava a cabo a extracção da borracha, o ouro negro avidamente cobiçado agora em todo o mundo para as rodas e pára-choques de camiões
e automóveis e mais de mil usos industriais e domésticos. Devia verificar no terreno o que havia de verdade sobre iniquidades cometidas contra os nativos no Congo
de Sua Majestade Leopoldo II, o rei dos Belgas, nas denúncias feitas pela
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Sociedade para a Protecção dos Indígenas, em Londres, e algumas Igrejas Baptistas e missões católicas na Europa e nos Estados Unidos.
Preparou a viagem com a sua meticulosidade habitual e um entusiasmo que disfarçava perante os funcionários belgas e os colonos e comerciantes de Boma. Agora sim, 
poderia argumentar perante os seus chefes, com conhecimento de causa, que o Império, fiel à sua tradição de justiça e fair play, devia liderar uma campanha internacional 
que pusesse ponto final àquela ignomínia. Mas nessa altura, em meados de 1902, teve o seu terceiro ataque de malária, este ainda pior que os dois anteriores, sofridos 
desde que, num ímpeto de idealismo e de sonho aventureiro, decidira em 1884 deixar a Europa e vir trabalhar para África a fim de, através do comércio, do cristianismo 
e das instituições sociais e políticas do Ocidente, emancipar os Africanos do atraso, da doença e da ignorância.
Não eram meras palavras. Acreditava profundamente em tudo aquilo, quando, com vinte anos de idade, chegara ao Continente Negro. As primeiras febres palúdicas só 
se abateram sobre ele anos depois. Acabava de se concretizar o desejo da sua vida: fazer parte de uma expedição encabeçada pelo mais famoso aventureiro em solo africano: 
Henry Morton Stanley. Servir às ordens do explorador que numa lendária viagem de cerca de três anos, entre 1874 e 1877, tinha atravessado a África de este a oeste, 
seguindo o curso do rio Congo desde a sua nascente até à sua foz no Atlântico! Acompanhar o herói que encontrara o desaparecido doutor Livingstone! Então, como se 
os deuses quisessem apagar a sua exaltação, teve o primeiro ataque de malária. Nada, comparado com o que foi o segundo, três anos depois - 1887 - e, sobretudo, este 
terceiro de 1902, em que pela primeira vez julgou morrer. Os sintomas foram os mesmos naquela madrugada de meados de 1902 quando, já volumosa a malinha com os seus 
mapas, bússola, lápis e cadernos de notas, sentiu, ao abrir os olhos no quarto do andar superior da sua casa de Boma, no bairro dos colonos, a poucos
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passos do edifício do Governo, que servia ao mesmo tempo de residência e escritório do Consulado, que tremia de frio. Afastou o mosquiteiro e viu, pelas janelas
sem vidros nem cortinas, mas com redes metálicas para os insectos, fustigadas pelo aguaceiro, as águas lamacentas do grande rio e as ilhas em volta carregadas de 
vegetação. Não conseguiu pôr-se de pé. As pernas dobraram-se-lhe, como se fossem de trapos. John, o seu buldogue, começou a brincar e a ladrar, assustado. Deixou-se 
cair novamente na cama. O seu corpo ardia e o frio entrava-lhe nos ossos. Chamou por Charlie e Mawuku aos gritos, o mordomo e o cozinheiro congoleses que dormiam 
no andar de baixo, mas nenhum respondeu. Deviam estar fora e, surpreendidos pela tempestade, terão corrido para se abrigar sob a copa de algum baobá até que amainasse. 
"Malária, outra vez?", maldisse o cônsul. Precisamente em vésperas da expedição? Teria diarreias, hemorragias e a fraqueza obrigá-lo-ia a ficar na cama dias e semanas, 
estonteado e com arrepios.
Charlie foi o primeiro dos criados a voltar, a pingar água. "Vai chamar o doutor Salabert", ordenou-lhe Roger, não em francês, mas em lingala. O doutor Salabert 
era um dos dois médicos de Boma, antigo porto negreiro - chamava-se então Mboma - onde, no século XVI, vinham os traficantes portugueses da ilha de São Tomé para 
comprar escravos aos pequenos chefes tribais do desaparecido reino do Congo e convertido agora pelos Belgas na capital do Estado Independente do Congo. Ao contrário 
de Matadi, em Boma, não havia um hospital, só um dispensário para casos de urgência onde duas freiras flamengas atendiam. O médico chegou meia hora depois, a arrastar 
os pés e a auxiliar-se com uma bengala. Era menos velho do que parecia, mas o clima rude e, sobretudo, o álcool, tinham-no envelhecido. Parecia um ancião. Vestia-se 
como um vagabundo. Os seus botins não tinham atacadores e levava o colete desabotoado. Apesar de o dia estar a começar, tinha os olhos abrasados.
- Sim, meu amigo, malária, o que é que há-de ser? Mas que febrão. Já sabe o remédio: quinino, líquidos abundantes,
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dieta de caldo, panatelas e muito agasalho para suar as infecções. Nem sonhe levantar-se antes de duas semanas. E muito menos ir de viagem, nem à esquina. As terçãs
dão cabo do organismo, já sabe isso de cor e salteado.
Não foram duas, mas três semanas em que esteve prostrado pelas febres e pelas tremedeiras. Perdeu oito quilos e no primeiro dia em que conseguiu pôr-se de pé ao 
fim de poucos passos caiu no chão, exausto, num estado de debilidade que não se lembrava de ter sentido antes. O doutor Salabert, olhando para ele fixamente nos 
olhos e com voz cavernosa e humor ácido, avisou-o:
- No seu estado, seria um suicídio empreender essa expedição. O seu corpo está enfraquecido e não resistiria nem sequer à travessia dos montes de Cristal. Menos 
ainda a várias semanas de vida à intempérie. Nem chegaria a Mbanza-Ngungu. Há maneiras mais rápidas de se matar, senhor cônsul: um balázio na boca ou uma injecção 
de estricnina. Se precisar, conte comigo. Ajudei vários a empreender a grande viagem.
Roger Casement teve de telegrafar para o Foreign Office dizendo que o seu estado de saúde o obrigava a adiar a expedição. E como depois as chuvas tornaram intransitáveis 
as florestas e o rio, a expedição ao interior do Estado Independente do Congo teve de esperar mais alguns meses, que se converteriam num ano. Mais um ano, a recuperar 
muito lentamente das febres e a tentar readquirir o peso perdido, voltando a empunhar a raqueta de ténis, a nadar, a jogar brídege ou xadrez para enganar as longas 
noites de Boma, enquanto retomava os aborrecidos trabalhos consulares: tomar nota dos barcos que chegavam e partiam, dos produtos que os mercadores de Antuérpia 
descarregavam - espingardas, munições, chicotes, vinho, pagelas, crucifixos, continhas de vidro coloridas - e que levavam para a Europa, as imensas pilhas de borracha, 
peças de marfim e peles de animais. Era este o intercâmbio que, na sua imaginação juvenil, ia salvar os Congoleses do canibalismo, dos mercadores
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árabes de Zanzibar que controlavam o tráfico de escravos e abrir-lhes as portas da civilização!
Esteve três semanas abatido pelas febres palúdicas, de vez em quando a delirar e a tomar gotas de quinino dissolvidas nas infusões de ervas que Charlie e Mawuku 
lhe preparavam três vezes ao dia - o seu estômago só aguentava caldos e bocadinhos de peixe fervido ou de frango -, e a brincar com John, o seu cão buldogue e o 
seu mais fiel companheiro.Nem sequer tinha força para se concentrar na leitura.
Naquela inacção forçada, Roger recordou muitas vezes a expedição de 1884 sob o comando do seu herói Henry Morton Stanley. Tinha vivido nas florestas, visitado inúmeras
aldeias indígenas, acampado em clareiras cercadas por paliçadas de árvores onde guinchavam os macacos e rugiam as feras. Sentiu-se tenso e feliz apesar das feridas
dos mosquitos e de outros bichos contra os quais era inútil esfregar com álcool canforado. Praticava natação em lagoas e rios de beleza deslumbrante, sem medo dos 
crocodilos, convencido ainda de que fazendo o que faziam, ele, os quatrocentos carregadores, guias e ajudantes africanos, a vintena de brancos - ingleses, alemães, 
flamengos, valões e franceses - que compunha a expedição e, claro, o próprio Stanley, eram a ponta de lança do progresso neste mundo onde mal despontava a Idade 
da Pedra e que a Europa tinha deixado para trás há milhares de anos.
Anos depois, no dorme-acorda visionário da febre, corava pensando em como tinha sido cego. Nem sequer se apercebia bem, a princípio, da razão de ser daquela expedição 
encabeçada por Stanley e financiada pelo rei dos Belgas, a quem ele, é claro, considerava então - como a Europa, como o Ocidente, como o Mundo - o grande monarca 
humanitário, empenhado em acabar com aquelas máculas que eram a escravidão e a antropofagia e em libertar as tribos do paganismo e da servidão que as mantinham no 
estado feral.
Ainda faltava um ano para que as grandes potências ocidentais oferecessem a Leopoldo II, na Conferência de Berlim
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de 1885, aquele Estado Independente do Congo com mais de dois milhões e meio de quilómetros quadrados - oitenta e cinco vezes o tamanho da Bélgica -, mas já o rei
dos Belgas se tinha posto a administrar o território com que iam obsequiá-lo para que exercitasse nos vinte milhões de congoleses que se julgava habitarem-no, os 
seus princípios redentores. O monarca das barbas penteadas tinha contratado para isso o grande Stanley, adivinhando, com a sua prodigiosa aptidão para detectar as 
fraquezas humanas, que o explorador era igualmente capaz de grandes façanhas como de enormes vilanagens se o prémio estivesse à altura dos seus apetites.
A razão aparente da expedição de 1884 em que Roger fez as suas primeiras proezas de explorador era preparar as comunidades espalhadas nas margens do Alto, Médio 
e Baixo Congo, ao longo de milhares de quilómetros de selva espessa, quebradas, cascatas e montes cobertos de vegetação, para a chegada dos comerciantes e administradores 
europeus que a Associação Internacional do Congo, presidida por Leopoldo II, traria assim que as potências ocidentais lhe dessem a concessão. Stanley e os seus acompanhantes 
deveriam explicar àqueles sobas seminus, tatuados e emplumados, às vezes com espinhas na cara e nos braços, às vezes com funis de juncos nos seus falos, as intenções 
benévolas dos Europeus: viriam ajudá-los a melhorar as suas condições de vida, libertá-los de pragas como a mortífera doença do sono, educá-los e abrir-lhes os olhos 
sobre as verdades deste mundo e do outro, graças ao que os seus filhos e netos alcançariam uma vida decente, justa e livre.
"Não me apercebia porque não queria aperceber-me", pensou. Charlie tinha-o agasalhado com todas as mantas da casa. Apesar disso e do sol candente do exterior, o 
cônsul, encolhido e gelado, tremia sob o mosquiteiro como uma folha de papel. Mas, pior que ser um cego voluntário, era encontrar explicações para o que qualquer 
observador imparcial teria chamado "um embuste". Porque, em todas as aldeias onde chegava a expedição de 1884, depois de distribuir continhas de vidro
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coloridas e bagatelas e depois das explicações habituais por meio de intérpretes (muitos dos quais não chegavam a fazer-se entender pelos nativos), Stanley levava
os sobas e bruxos a assinar uns contratos, escritos em francês, comprometendo-se a fornecer mão-de-obra, alojamento, guia e sustento aos funcionários, representantes 
e empregados da Associação Internacional do Congo nos trabalhos que empreendessem para a realização dos fins que a inspiravam. Eles assinavam com cruzes, riscos, 
manchas, desenhinhos, sem refilar e sem saber o que é que assinavam nem o que era assinar, divertidos com os colares, pulseiras e adornos de vidro pintado que recebiam 
e os golinhos de aguardente com que Stanley os convidava a brindar pelo acordo.
"Não sabem o que fazem, mas nós sabemos que é para seu bem e isso justifica o engano", pensava o jovem Roger Casement. Que outra maneira havia de o fazer? Como dar 
legitimidade à futura colonização com gente que não conseguia entender uma palavra daqueles "tratados" nos quais o seu futuro e o dos seus descendentes ficava comprometido? 
Era preciso dar alguma forma legal ao empreendimento que o monarca dos Belgas queria que se realizasse através da persuasão e do diálogo, ao contrário de outros 
feitos a sangue e fogo, com invasões, assassínios e saques. Essa forma não era pacífica e civilizada?
Com os anos - tinham passado dezoito desde a expedição que fez às suas ordens, em 1884 - Roger Casement chegou à conclusão de que o herói da sua infância e juventude 
era um dos espertalhões mais sem escrúpulos que o Ocidente excretara sobre o continente africano. Apesar disso, como todos os que tinham trabalhado às suas ordens, 
não podia deixar de reconhecer o seu carisma, a sua simpatia, a sua magia, aquela mescla de temeridade e cálculo frio com que o aventureiro misturava as suas proezas. 
Ia e vinha por África semeando por um lado a desolação e a morte - queimando e saqueando aldeias, fuzilando nativos, descarnando as costas dos seus carregadores 
com aqueles chicotes de tiras de pele de hipopótamo
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que tinham deixado milhares de cicatrizes nos corpos de ébano de toda a geografia africana - e, por outro, abrindo rotas ao comércio e à evangelização em imensos
territórios cheios de feras, alimárias e epidemias que a ele pareciam respeitá-lo como a um daqueles titãs das lendas homéricas e das histórias bíblicas.
- O senhor, às vezes, não tem remorsos, má consciência pelo que fazemos?
A pergunta brotou dos lábios do jovem de maneira não premeditada. Já não podia retirá-la. As chamas da fogueira, no centro do acampamento, crepitavam com os raminhos 
e os insectos imprudentes que nela ardiam.
- Remorsos? Má consciência? - O chefe da expedição franziu o nariz e avinagrou a cara sardenta e muito queimada pelo sol como se nunca tivesse ouvido aquelas palavras 
e estivesse a adivinhar o que queriam dizer. - De quê?
- Dos contratos que os obrigamos a assinar - disse o jovem Casement, vencendo a sua perturbação. - Põem as suas vidas, as suas populações, tudo o que têm nas mãos 
da Associação Internacional do Congo. E nem um único sabe o que assina, porque nenhum fala francês.
- Se soubessem francês, também não entenderiam os contratos - riu-se o explorador com o seu riso franco, aberto, um dos seus atributos mais simpáticos. - Nem eu 
entendo o que querem dizer.
Era um homem forte e muito baixinho, quase anão, de aspecto desportivo, ainda jovem, olhos cinzentos cintilantes, bigode espesso e personalidade dominadora. Calçava 
sempre botas altas, usava pistola à cintura e um casaco claro com muitos bolsinhos. Voltou a rir-se e os capatazes da expedição que com Stanley e Roger tomavam café 
e fumavam em volta da fogueira, riram-se também, adulando o seu chefe. Mas o jovem Casement não se riu.
- Eu, sim, ainda que, para dizer a verdade, a charada em que estão escritos os contratos pareça de propósito para que não se percebam - disse ele, de maneira respeitosa.
- Reduz-se a uma coisa muito simples.
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Entregam as suas terras à Associação Internacional do Congo em troca de promessas de ajuda social. Comprometem-se a apoiar as obras: caminhos,
pontes, embarcadouros, feitorias. A dar os braços que fazem falta para o campo e para a ordem pública. A alimentar funcionários e soldados, enquanto durarem os trabalhos. 
A Associação nãooferece nada em troca. Nem salários nem compensações. Sempre acreditei que estamos aqui pelo bem dos Africanos, senhor Stanley. Gostaria que o senhor, 
a quem admiro desde que tenho uso da razão, me desse razões para continuar a acreditar que é assim. Que aqueles contratos são, verdadeiramente, para o bem deles. 
Houve um longo silêncio, quebrado pelo crepitar da fogueira e esporádicos grunhidos dos animais nocturnos que saíam para procurar o sustento. Tinha deixado de chover 
há um bocado, mas a atmosfera continuava húmida e pesada, parecia que em volta tudo germinava, crescia e se espessava. Dezoito anos depois, Roger, entre as imagens 
desordenadas que a febre fazia revoar na sua cabeça, recordava o olhar inquiridor, surpreendido, por momentos trocista, com que Henry Morton Stanley o inspeccionou.
- A África não se fez para os fracos - disse ele por fim, como se falasse consigo mesmo. - As coisas que o preocupam são um sinal de fraqueza. No mundo em que estamos, 
quero dizer. Não é os Estados Unidos nem a Inglaterra, já se deve ter apercebido disso. Em África os fracos não duram. As picadas, as febres, as flechas envenenadas 
ou a mosca tsé-tsé acabam com eles.
Era galês, mas devia ter vivido muito tempo nos Estados Unidos porque o seu inglês tinha a música, as expressões e a gíria norte-americanas.
- Tudo isto é pelo bem deles, claro que sim - acrescentou Stanley, com um movimento de cabeça para o círculo de cabanas cónicas do casario em cujas margens se erguia 
o acampamento. - Virão missionários que os tirarão do paganismo e lhes ensinarão que um cristão não deve comer o próximo. Médicos
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que os vacinarão contra as epidemias e os curarão melhor que os seus feiticeiros. Companhias que lhes darão trabalho. Escolas onde aprenderão as línguas civilizadas.
Onde os ensinarão a vestir-se, a rezar ao verdadeiro Deus, a expressar-se em língua cristã e não nesses dialectos de macacos que falam. Pouco a pouco substituirão
os seus costumes bárbaros pelos de seres modernos e instruídos. Se soubessem o que fazemos por eles, beijar-nos-iam os pés. Mas, o seu estado mental está mais próximo
do crocodilo e do hipopótamo que de si ou de mim. Por isso, nós decidimos por eles o que lhes convém e fazemos com que assinem estes contratos. Os seus filhos e
netos agradecer-nos-ão. E não seria estranho que, daqui a uns tempos, começassem a adorar Leopoldo II como adoram agora os seus fetiches e espantalhos.
Em que sítio do grande rio ficava aquele acampamento? Parecia-lhe vagamente que num lugar entre Bolobo e Chumbiri e que a tribo pertencia aos Bateques. Mas não tinha
a certeza. Aqueles dados encontravam-se nos seus diários, se assim se podia chamar ao amontoado de notas espalhadas em cadernos e papéis soltos ao longo de tantos
anos. Em todo o caso, recordava com nitidez aquela conversa. E o mal-estar com que se foi deitar no seu catre depois da troca de palavras com Henry Morton Stanley.
Terá sido naquela noite que começou a desfazer-se a sua santíssima trindade pessoal dos três cês? Até então acreditava que o colonialismo se justificava com elas:
cristianismo, civilização e comércio. Desde que tinha sido um modesto ajudante de contabilidade na Elder Dempster Line, em Liverpool, supunha que havia um preço
a pagar. Era inevitável que se cometessem abusos. Entre os colonizadores não só viria gente altruísta como o doutor Livingstone, mas também malandros abusadores.
No entanto, feitas as contas, os benefícios superariam largamente os prejuízos. A vida africana foi-lhe mostrando que as coisas não eram tão claras como a teoria.
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No ano em que trabalhou às suas ordens, sem deixar de admirar a audácia e a capacidade de comando com que Henry Morton Stanley conduzia a sua expedição pelo território
longamente desconhecido banhado pelo rio Congo e pela sua miríade de afluentes, Roger Casement aprendeu também que o explorador era um mistério ambulante. Todas
as coisas que se diziam sobre ele estavam sempre em contradição entre si mesmas, de maneira que era impossível saber quais eram verdadeiras e quais eram falsas e
quanto havia nas verdadeiras de exagero e fantasia. Era um daqueles homens incapazes de distinguir a realidade da ficção.
A única coisa clara foi que a ideia de um grande benfeitor dos nativos não correspondia à verdade. Soube-o ouvindo capatazes que tinham acompanhado Stanley na sua
viagem de 1871-72 à procura do doutor Livingstone, uma expedição, diziam, muito menos pacífica do que esta em que, sem dúvida seguindo instruções do próprio Leopoldo
II, se mostrava mais cuidadoso no trato com as tribos, a cujos chefes - quatrocentos e cinquenta, no total - obrigou a assinar a concessão das suas terras e da sua
força de trabalho. As coisas que aqueles homens rudes e desumanizados pela selva contavam da expedição de 1871-72 punham os cabelos em pé. Povoações dizimadas, sobas
decapitados e a suas mulheres e filhos fuzilados se se recusassem a alimentar os expedicionários ou a ceder-lhes carregadores, guias e desbravadores de mato que
abrissem caminhos na floresta. Aqueles velhos companheiros de Stanley temiam-no e recebiam as suas reprimendas calados e com os olhos baixos. Mas tinham uma confiança
cega nas suas decisões e falavam com reverência religiosa da sua famosa viagem de novecentos e noventa e nove dias entre 1874 e 1877 em que morreram todos os brancos
e uma boa parte dos africanos.
Quando, em Fevereiro de 1885, no Congresso de Berlim a que não assistiu um único congolês, as catorze potências participantes, encabeçadas pela Grã-Bretanha, Estados
Unidos, França e Alemanha, deram gratuitamente a Leopoldo II - ao lado do qual Henry Morton Stanley sempre esteve - os dois milhões e meio de quilómetros quadrados
do Congo e os seus vinte milhões de habitantes para que "abrisse aquele território
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ao comércio, abolisse a escravatura e civilizasse e cristianizasse os pagãos". Roger Casement, com os seus vinte e um anos recentes e o seu ano de vida africana,
festejou isso. Assim fizeram todos os empregados da Associação Internacional do Congo, os quais, já prevendo esta concessão, estavam há tempos no território, assentando
as bases do projecto que o monarca se dispunha a levar a cabo. Casement era um rapaz forte, bastante alto, magro, de cabelos e barbinha muito pretos, fundos olhos
cinzentos, pouco propenso às brincadeiras, lacónico, parecia um homem maduro. As suas preocupações desconcertavam os seus companheiros. Qual deles é que ia levar
a sério aquilo da "missão civilizadora da Europa em África" que obcecava o jovem irlandês? Mas tinham-lhe apreço porque era trabalhador e estava sempre disposto
a dar uma ajuda e a substituir num turno ou numa tarefa a quem lho pedisse. Excepto fumar, parecia isento de vícios. Quase não bebia álcool e quando, nos acampamentos,
uma vez as línguas desatadas pela bebida, se falava de mulheres, parecia incomodado, com vontade de se ir embora. Era incansável nos percursos pela floresta e um
imprudente nadador nos rios e lagoas, que dava braçadas enérgicas em frente dos sonolentos hipopótamos. Tinha paixão pelos cães e os seus companheiros recordavam
que naquela expedição de 1884, no dia em que um javali cravou os caninos no seu fox terrier chamado Spindler, ao ver o animalzinho a esvair-se em sangue com o flanco
aberto, teve uma crise nervosa. Ao contrário dos outros europeus da expedição, o dinheiro não lhe interessava. Não tinha vindo para África com o sonho de se tornar
rico, mas sim movido por coisas incompreensíveis como trazer o progresso aos selvagens. Gastava o seu salário de oitenta libras esterlinas por ano a pagar coisas
aos seus companheiros. Ele vivia frugalmente. No entanto, cuidava da sua pessoa, arranjando-se, lavando-se e penteando-se à hora do rancho como se em vez de acampar
numa clareira ou na praiazinha de um rio estivesse em Londres, Liverpool ou Dublin. Tinha facilidade para as línguas; aprendera francês e português e arranhava
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palavrinhas dos dialectos africanos ao fim de poucos dias de estarna vizinhança de uma tribo. Andava sempre a anotar o que via nuns caderninhos escolares. Alguém
descobriu que ele escrevia poemas. Troçaram dele por causa disso e a vergonha só lhe permitiu balbuciar um desmentido. Uma vez confessou que, em criança, o pai lhe 
tinha dado cinturadas e por isso ficava irritado pelos capatazes açoitarem os nativos quando estes deixavam cair uma carga ou não cumpriam as ordens. Tinha um olhar 
um pouco sonhador.
Quando Roger se lembrava de Stanley ficava embargado por sentimentos contraditórios. Continuava a recuperar lentamente da malária. O aventureiro galês só tinha visto 
em África um pretexto para as façanhas desportivas e o saque pessoal. Mas como negar que era um desses seres dos mitos e das lendas, que à força de temeridade, desprezo 
pela morte e ambição, pareciam ter quebrado os limites do humano? Tinha-o visto carregar nos seus braços crianças com a cara e o corpo comidos pela varíola, dar 
de beber do seu próprio cantil a indígenas que agonizavam com a cólera ou a doença do sono, como se a ele ninguém pudesse contagiá-lo. Quem tinha sido na verdade 
este campeão do Império Britânico e das ambições de Leopoldo II? Roger tinha a certeza de que o mistério nunca se desvendaria e que a sua vida continuaria sempre 
oculta atrás de uma teia de aranha de invenções. Qual era o seu verdadeiro nome? O de Henry Morton Stanley foi buscá-lo ao comerciante de Nova Orleães que, nos anos 
obscuros da sua juventude, foi generoso com ele e porventura o adoptou. Dizia-se que o seu nome verdadeiro era John Rowlands, mas ninguém sabia. Como também não 
sabiam que tinha nascido no País de Gales e passado a sua infância num daqueles orfanatos aonde iam parar as crianças sem pai nem mãe que a Polícia Municipal de 
Saúde recolhia na rua. Segundo parece, muito jovem partiu para os Estados Unidos como clandestino num barco de carga e lá, durante a Guerra Civil, lutou como soldado 
nas fileiras dos confederados, primeiro, e a seguir nas dos ianques. Depois,
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julgava-se, tinha-se tornado jornalista e escreveu crónicas sobre o avanço dos pioneiros em direcção ao Oeste e as suas lutas com os índios. Quando o New York Herald
o mandou para África à procura de David Livingstone, Stanley não tinha a menor experiência de explorador. Como é que conseguiu sobreviver percorrendo aquelas florestas 
virgens, tal como quem busca agulha num palheiro, e conseguiu encontrar, em Ujiji, a 10 de Novembro de 1871, aquele a quem, segundo uma confissão presunçosa, deixou 
estupefacto com o cumprimento: "Doutor Livingstone, suponho?"
O que Roger Casement na sua juventude mais admirou das realizações de Stanley, mais ainda que a sua expedição desde as nascentes do rio Congo até à sua irrupção 
no Atlântico, foi a construção, entre 1879 e 1881, do caravan trail. A rota das caravanas abriu uma via ao comércio europeu desde a foz do grande rio até à pool, 
enorme lagoa fluvial que com os anos se chamaria como o explorador: Stanley Pool. Depois, Roger descobriu que esta foi outra das operações previstas do rei dos Belgas 
para ir criando a infra-estrutura que, a partir do Tratado de Berlim de 1885, lhe permitisse a exploração do território. Stanley foi o audacioso executor daquele 
desígnio.
"E eu", diria muitas vezes Roger Casement nos seus anos africanos ao seu amigo Herbert Ward, à medida que ia tomando consciência do que significava o Estado Independente 
do Congo, "fui um dos seus peões desde o primeiro momento." Embora não totalmente, pois, quando ele chegou a África, Stanley já andava há cinco anos a abrir o caravan 
trail, cujo primeiro troço, desde Vivi até Isanguila, oitenta e três quilómetros rio Congo acima de selva intrincada e palúdica, cheia de quebradas profundas, árvores 
em forma de vermes e pântanos pútridos onde as copas das árvores tapavam a luz do Sol, ficou concluído nos princípios de 1880. Dali até Muyanga, uns cento e vinte
quilómetros de travessia, o Congo era navegável para pilotos experientes, capazes de contornar os remoinhos e, nas horas de chuva e subida das águas, refugiar-se
em vaus ou grutas para
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não serem atirados contra as rochas e desfeitos nos rápidos que se faziam e desfaziam sem cessar. Quando Roger começou a trabalhar para a Associação Internacional
do Congo, que, a partir de 1885, se converteu no Estado Independente do Congo, Stanley já tinha fundado, entre Kinshasa e Ndolo, a estação que baptizou com o nome 
de Léopoldville. Era Dezembro de 1881, faltavam três anos para que Roger Casement chegasse à selva e quatro para que nascesse legalmente o Estado Independente do 
Congo. Nessa altura, este domínio colonial, o maior de África, criado por um monarca que nunca poria nele os pés, era já uma realidade comercial a que os homens 
de negócios europeus podiam aceder a partir do Atlântico, vencendo o obstáculo de um Baixo Congo intransitável devido aos rápidos, quedas-d'água, voltas e reviravoltas 
das cataratas de Livingstone, graças àquela rota que, ao longo de quase quinhentos quilómetros, Stanley abriu entre Boma e Vivi até Léopoldville e a pool. Quando 
Roger chegou a África, mercadores audazes, os avançados de Leopoldo II, começavam a embrenhar-se no território congolês e a tirar os primeiros marfins, peles e cestas 
de borracha de uma região cheia de árvores que transpiravam o látex negro, ao alcance de quem quisesse apanhá-lo.
Nos seus primeiros anos africanos, Roger Casement percorreu várias vezes a rota das caravanas, rio acima, de Boma e Vivi até Léopoldville, ou rio abaixo, de Léopoldville 
à foz no Atlântico, onde as águas verdes e espessas se tornavam salgadas e por onde, em 1482, a caravela do português Diogo Cão entrou pela primeira vez no interior 
do território congolês. Roger chegou a conhecer o Baixo Congo melhor que nenhum outro europeu estabelecido em Boma ou em Matadi, os dois eixos a partir dos quais 
a colonização belga avançava para o interior do continente.
Roger lamentou o resto de toda a sua vida - dizia-o uma vez mais agora, em 1902, no meio da febre - ter dedicado os seus primeiros oito anos em África a trabalhar, 
como peão numa partida de xadrez, na construção do Estado Independente do Congo, investindo nisso o seu tempo, a sua saúde,
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os seus esforços, o seu idealismo e julgando que, deste modo, agia por um desígnio filantrópico.
As vezes, procurando justificações, interrogava-se: "Como é que eu me podia ter apercebido do que acontecia naqueles dois milhões e meio de quilómetros quadrados
a fazer aqueles trabalhos de capataz ou de chefe de grupo nas expedições de Stanley em 1884 e na do norte-americano Henry Shelton Sanford entre 1886 e 1888, em estações
e feitorias recém-instaladas ao longo da rota das caravanas?" Ele era apenas uma minúscula peça do gigantesco aparelho que tinha começado a ganhar corpo sem que
ninguém, fora do seu astuto criador e de um grupo íntimo de colaboradores, soubesse em que é que ia consistir.
No entanto, as duas vezes em que falou com o rei dos Belgas, em 1900, recém-nomeado cônsul em Boma pelo Foreign Office, Roger Casement sentiu uma profunda desconfiança
por aquele homenzarrão robusto, revestido de condecorações, de longas barbas cardadas, nariz impressionante e olhos de profeta que, sabendo que ele se encontrava
em Bruxelas de passagem para o Congo, o convidou para jantar. A magnificência daquele palácio de alcatifas fofas, lustres de cristal, espelhos cinzelados, estatuetas
orientais, causou-lhe vertigens. Havia uma dúzia de convidados, além da rainha Maria Henriqueta, a sua filha, a princesa Clementina, e o príncipe Vítor Napoleão
de França. O monarca monopolizou a conversa toda a noite. Falava como um pregador inspirado e quando descrevia as crueldades dos comerciantes árabes de escravos
que partiam de Zanzibar para fazer as suas "correrias", a sua voz forte atingia tonalidades místicas. A Europa cristã tinha a obrigação de pôr fim àquele tráfico
de carne humana. Ele havia-se proposto a isso e essa seria a oferenda da pequena Bélgica àcivilização: libertar aquela humanidade sofredora de semelhante horror.
As senhoras elegantes bocejavam, o príncipe Napoleão sussurrava galanterias à sua vizinha e ninguém ouvia a orquestra que tocava um concerto de Haydn.
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Na manhã seguinte, Leopoldo II chamou o cônsul inglês para que falassem a sós. Recebeu-o no seu gabinete particular. Tinha muitos bibelôs de porcelana e figurinhas
de jade e de marfim. O soberano cheirava a perfume e tinha as unhas brilhantes. Como na véspera, Roger quase não conseguiu dizer palavra. O rei dos Belgas falou
do seu empenho quixotesco e de como era incompreendido pelos jornalistas e políticos ressentidos. Cometiam-se erros e havia excessos, sem dúvida. A razão? Não era
fácil contratar gente digna e capaz que quisesse arriscar-se a trabalhar no longínquo Congo. Pediu ao cônsul que se notasse algo a corrigir no seu novo destino o
informasse a ele, pessoalmente. A impressão que o rei dos Belgas lhe causou foi a de uma personagem pomposa e ególatra.
Agora, em 1902, dois anos depois, dizia a si mesmo que sem dúvida era isso, mas, também, um estadista de inteligência fria e maquiavélica. Assim que foi constituído
o Estado Independente do Congo, Leopoldo II, através de um decreto de 1896, reservou como "domínio da Coroa" uns duzentos e cinquenta mil quilómetros quadrados entre
os rios Kasai e Ruki, que os seus exploradores - principalmente Stanley - lhe indicaram ser ricos em árvores-da-borracha. Aquela extensão ficou fora de todas as
concessões a empresas privadas, destinada a ser explorada pelo soberano. A Associação Internacional do Congo foi substituída, como entidade legal, pelo Estado Independente
do Congo cujo único presidente e trustee ("mandatário") era Leopoldo II.
Explicando à opinião pública internacional que a única maneira eficaz de suprimir o tráfico de escravos era através de "uma força de ordem", o rei enviou para o
Congo dois mil soldados do Exército regular belga ao qual devia juntar-se uma milícia de dez mil nativos, cuja manutenção deveria ser assumida pela população congolesa.
Embora a maior parte desse Exército fosse comandado por oficiais belgas, nas suas fileiras e, sobretudo, nos lugares de chefia da milícia, infiltraram-se pessoas
da pior índole: rufias, ex-presidiários, aventureiros famintos de
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fortuna saídos das cloacas e dos bairros prostibulares de meia Europa. A Força Pública enquistou-se, como um parasita num organismo vivo, no emaranhado de aldeias
disseminadas numa região do tamanho de uma Europa que iria de Espanha até às fronteiras com a Rússia para ser mantida por aquela comunidade africana que não entendia
o que lhe acontecia, excepto que a invasão que caía sobre ela era uma praga mais predadora que os caçadores de escravos, os gafanhotos, as formigas-vermelhas e os
conjuros que traziam o sono da morte. Porque os soldados e milicianos da Força Pública eram gananciosos, brutais e insaciáveis tratando-se de comida, bebida, mulheres,
animais, peles, marfim e, em suma, de tudo o que pudesse ser roubado, comido, bebido, vendido ou fornicado.
Ao mesmo tempo que deste modo se iniciava a exploração dos Congoleses, o monarca humanitário começou a dar concessões a empresas para, segundo outro dos mandatos
que recebeu, "abrir através do comércio o caminho da civilização aos nativos de África". Alguns comerciantes morreram derrubados pelas febres palúdicas, picados
por serpentes ou devorados pelas feras devido ao seu desconhecimento da selva, e alguns poucos caíram sob as flechas e lanças envenenadas dos nativos que ousavam
rebelar-se contra aqueles forasteiros de armas que rebentavam como o trovão ou queimavam como o raio, os quais lhes explicavam que, de acordo com os contratos assinados
pelos seus sobas, tinham de abandonar as suas sementeiras, a pesca, a caça, os seus ritos e rotinas para se tornarem guias, carregadores, caçadores ou recolectores
de borracha, sem receber qualquer salário. Um bom número de concessionários, amigos e protegidos do monarca belga fizeram em pouco tempo grandes fortunas, sobretudo
ele.
Mediante o regime de concessões, as companhias foram-se estendendo pelo Estado Independente do Congo por ondas concêntricas, embrenhando-se cada vez mais na imensa
região banhada pelo Médio e Alto Congo e pela sua teia de aranha de afluentes. Nos seus respectivos domínios, as companhias
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gozavam de soberania. Além de serem protegidas pela Força Pública, contavam com as suas próprias milícias sempre encabeçadas por algum ex-militar, ex-carcereiro,
ex-preso ou foragido, alguns dos quais se tornariam célebres em toda a África pela sua selvajaria. Em poucos anos, o Congo converteu-se no primeiro produtor mundial 
da borracha que o mundo civilizado reclamava cada vez em maior quantidade para fazer rodar os seus carros, automóveis, caminhos-de-ferro, além de todo o tipo de 
sistemas de transporte, vestuário, decoração e irrigação.
De nada disto foi Roger Casement cabalmente consciente durante aqueles oito anos - 1884 a 1892 - em que, suando por todos os poros, padecendo de paludismo, torrando 
com o sol africano e enchendo-se de cicatrizes devido às picadas, arranhões e rasgões de plantas e animais, trabalhava com empenho para escorar a criação comercial 
e política de Leopoldo II. Daquilo que se apercebeu, sim, foi do aparecimento e reinado naqueles domínios infinitos do emblema da colonização: o chicote.
Quem inventou aquele delicado, manejável e eficaz instrumento para incitar, assustar e castigar a indolência, a incompetência ou a estupidez daqueles bípedes cor 
de ébano que nunca mais faziam as coisas como os colonos esperavam deles, fosse o trabalho no campo, a entrega da mandioca (kwango), a carne de antílope ou de javali 
e restantes alimentos atribuídos a cada aldeia ou família, ou fossem os impostos para sufragar as obras públicas que o Governo construía? Dizia-se que o inventor 
tinha sido um capitão da Força Pública chamado "Monsieur Chicot", um belga da primeira vaga, homem sob todos os prismas prático e imaginativo, dotado de um poder 
de observação agudo, pois reparou primeiro que ninguém que da duríssima pele do hipopótamo se podia fabricar um látego mais resistente e destrutivo que os das tripas 
de equinos e felinos, uma corda áspera capaz de causar mais ardume, sangue, cicatrizes e dor que qualquer outro açoite e, ao mesmo tempo, ligeiro e funcional, pois, 
encaixado num pequeno cabo de madeira, capatazes, vigias de quartéis, guardas, carcereiros, chefes de
grupo,
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podiam enrolá-lo no cinto ou pendurá-lo ao ombro, quase sem se aperceber que o traziam por pesar tão pouco. A sua simples presença entre os membros da Força
Pública tinha um efeito intimidatório: os olhos dos pretos, das pretas e dos pretinhos ficavam maiores quando o reconheciam, as pupilas brancas das suas caras retintas 
ou azuladas brilhavam assustadas imaginando que, perante qualquer erro, tropeço ou falta, o chicote rasgaria o ar com o seu assobio inconfundível e cairia sobre 
as suas pernas, nádegas e costas, fazendo-os gritar.
Um dos primeiros concessionários no Estado Independente do Congo foi o norte-americano Henry Shelton Sanford. Tinha sido agente e emissário de Leopoldo II perante 
o Governo dos Estados Unidos e peça-chave da sua estratégia para que as grandes potências lhe cedessem o Congo. Em Junho de 1886, formou-se a Sanford Exploring Expedition 
para comercializar marfim, goma de mascar, borracha, óleo de palma e cobre, em todo o Alto Congo. Os forasteiros que trabalhavam na Associação Internacional do Congo, 
como Roger Casement, foram transferidos para a Sanford Exploring Expedition e os seus empregos assumidos por belgas. Roger passou a trabalhar para a Sanford Exploring 
Expedition por cento e cinquenta libras esterlinas por ano.
Começou a trabalhar em Setembro de 1886 como agente encarregado do depósito da carga e do transporte em Matadi, palavra que em quicongo significa "pedra". Quando 
Roger se instalou ali, aquela estação construída na rota das caravanas era

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