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21 Terceira Conferência Os lapsos (Continuação) Senhoras e senhores: na última vez nos ocorreu a idéia de que o lapso não deve ser visto como algo relacionado com a ação intencional que foi perturbada por ele, mas como algo em si mesmo, e tivemos a impressão de que em certos casos isolados eles deixam transparecer seu sentido próprio; dissemos então que se ficasse comprovado em um âmbito mais vasto que o ato falho tem um sentido, então este sentido logo seria mais interessante que a investigação das circunstâncias em que o lapso acontece. Ponhamo-nos de acordo sobre o que entendemos por “sentido” de um processo psíquico. Nada mais que a intenção à qual ele serve, e sua situação dentro de uma série psíquica. Na maioria das nossas investigações podemos também substituir “sentido” por “intenção”, “tendência”. Não teríamos incorrido por acaso numa ilusão enganadora ou numa intensificação poética do lapso quando acreditamos reconhecer nele uma intenção? Atenhamo-nos aos exemplos de lapsos de fala e vejamos em plano geral um número maior de observações deste tipo. Encontramos então categorias inteiras de casos em que aparecem com clareza a intenção, o sentido do lapso de fala, sobretudo aqueles casos em que surge o contrário em lugar do que se pretendia. O presidente diz, no discurso de abertura, “declaro a sessão encerrada”. Isto é algo inequívoco. O sentido e a intenção de sua fala falha é que ele quer encerrar a sessão. “Ele mesmo o afirma”, temos vontade de citar; basta que o tomemos ao pé da letra. E não me venham com a objeção de que isto não é possível, que nós sabemos que ele não queria encerrar a sessão, mas abri-la, e que ele próprio, a quem nós reconhecemos como a autoridade suprema, pode confirmar que queria abri-la. Neste caso, os senhores se esquecem de que estávamos de acordo em começar por considerar o lapso em si; só depois é que deve ser discutida a sua relação com a intenção que ele perturba. Caso contrário, os senhores incorrerão em um erro lógico, no qual o problema a ser tratado fica pura e simplesmente escamoteado, o que em inglês se chama begging the question [petição de princípio]. Em outros casos, nos quais o lapso não se manifestou justamente pelo contrário, ainda é possível que através do lapso se expresse o sentido oposto. “Não estou com vontade para apreciar os méritos do meu estimado antecessor”. “Com vontade” não é o contrário de “à vontade”, mas é um confissão clara, nitidamente oposta à situação em que o orador deve falar. 22 Ainda em outros casos, o lapso de fala simplesmente acrescenta um segundo sentido ao que se pretendia. A frase soa como uma contração, uma abreviatura, uma condensação de várias frases. Assim, quando aquela enérgica senhora disse: “Ele pode comer e beber o que eu quiser” – é exatamente como se ela tivesse dito: “Ele pode comer e beber o que ele quiser, mas o que é que ele tem de querer? Eu é que quero no lugar dele”. Os lapsos de fala freqüentemente deixam a impressão de abreviações como esta, por exemplo, quando um professor de anatomia, depois de sua preleção sobre as cavidades nasais, pergunta se os ouvintes compreenderam, e depois da afirmativa unânime prossegue: “Custo a crer, pois, mesmo numa cidade de um milhão de habitantes, pode-se contar num dedo... perdão, nos dedos de uma mão as pessoas que entendem de cavidades nasais”. A fala abreviada também tem o seu sentido: afirma que só existe um homem que entende do assunto. A estes grupos de casos, em que o lapso traz à tona seu próprio sentido, contrapõem-se outros, nos quais o lapso de fala não oferece nada que tenha sentido, e que portanto contrariam energicamente as nossas expectativas. Quando alguém, por um lapso de fala, distorce um nome próprio ou agrupa uma série inusual de seqüências sonoras, fica parecendo, nestas ocorrências, aliás bastante freqüentes, que a questão de saber se todos os lapsos produzem algo com sentido já está decidida de forma negativa. Só que um exame mais detido destes exemplos mostra que é bem possível compreender estas deformações e que não é tão grande assim a diferença entre estes casos obscuros e os anteriores, mais claros. Um senhor, indagado sobre o estado do seu cavalo, responde: Sim, ele drura talvez mas um mês. Quando lhe perguntaram o que ele pretendia realmente dizer, ele explicou: estava pensando que esta é uma história triste, o encontro de “dura” com “triste” resultou naquele “drura” (Meringer e Mayer). Um outro fala sobre assuntos que ele desaprova e prossegue: “Mas estes são fatores que vieram zum Vorschwein [palavra inexistente, em lugar de zum Vorschein, “à luz”]. Quando perguntado, afirmou que qualificaria tais coisas de Schweinereien [porcarias]. Vorschwein e Schweinerei reunidas resultaram neste estranho Vorschwein. (M. e M.). Agora lembrem-se do caso do rapaz que queria begleitidgen a jovem desconhecida. Tomamos a liberdade de decompor esta formação verbal em begleiten (acompanhar) e beleidigen (ofender) e nos sentimos seguros quanto a esta interpretação, sem necessidade de comprová-la. Por estes exemplos, os senhores podem ver que 23 mesmo os casos mais obscuros de lapsos de fala se explicam pelo encontro, pela interferência de duas intenções de fala diferentes; as diferenças só surgem pelo fato de que num caso uma intenção substitui inteiramente a outra, como no lapso de fala expresso pelo seu contrário, ao passo que num outro caso temos que nos contentar com a deformação ou com a modificação do lapso que leva a formações mistas, que em si mesmas parecem mais ou menos carregadas de sentido. Agora acreditamos ter apreendido o segredo de um grande número de lapsos de fala. Se nos ativermos a esta compreensão, vamos poder entender ainda outros grupos, que até agora eram enigmáticos. Por exemplo, na deformação de nomes não podemos supor que se trate sempre da concorrência entre dois nomes parecidos e no entanto diferentes. Mas não é tão difícil perceber qual é a segunda intenção. A deformação de um nome acontece com bastante freqüência, sem que isto seja um lapso de fala; ela procura fazer o nome soar mal ou soar como alguma coisa inferior, e este tipo de ofensa é um conhecido hábito ou mau hábito ao qual o homem educado logo aprende a renunciar, mas não desiste dele de bom grado. E ele continua a se permitir este uso, freqüentemente na forma de “piada”, aliás de muito pouco valor. Só para dar um exemplo cru e feio desta deformação de nomes, vou mencionar o seguinte: nos dias de hoje se transformou o nome do presidente da República Francesa, Poincaré, em “Schweinscarré”. Fica óbvio, mesmo no lapso de fala, que podemos supor uma intenção injuriosa, que se realiza por meio da deformação do nome. Prosseguindo com esta concepção somos levados a dar explicações semelhantes para certos casos de lapsos de fala com efeito cômico ou absurdo. “Ich fordere sie auf, auf das Wohl unseres Chefes aufzustossen” [“Rogo aos presentes que arrotem à saúde de nosso chefe”]. Aqui uma disposição de ânimo festiva é inesperadamente perturbada pela intromissão de uma palavra que evoca uma imagem pouco apetitosa e seguindo o modelo de certas expressões insultuosas e ofensivas, e não podemos deixar de suspeitar que está presente aí uma tendência que quer encontrar expressão, que contradiz violentamente a homenagem que passou à sua frente e que pretende dizer algo como: “Não acreditem nisto, não estou falando sério, eu não dou nada por este sujeito”, e coisas do gênero. A mesma coisa vale para os lapsos de fala que fazem de palavras inocentes e obscenas, como Apopos, em vez de Apropos, ou Eischeissweibchen em vez de Eiweissscheibchen (M. e M.) 1. 1 (Apropos: “a propósito”, Apopos: modificação sobre Popo, “traseiro”. Eiweissscheibchen: “rodela da clara do ovo”, Eischeissweibchen: algo como “fêmea do ovo de fezes”). 24 Nós conhecemos em muitas pessoas esta tendência a deformar intencionalmente palavras inocentes em obscenas para obter um certo ganho de prazer; esta tendência consta como espirituosa e na realidade quando ouvimos alguma precisamos primeiro indagar se a pessoa a expressou intencionalmente como piada ou se o que lhe aconteceu foi um lapso. Pois bem, teríamos então resolvido o enigma dos lapsos com um esforço relativamente pequeno! Eles não são casualidades, mas atos psíquicos sérios, têm o seu sentido, surgem pelo efeito conjunto ou talvez melhor dizendo, pelo efeito contrário de duas intenções diferentes. Mas agora também posso compreender que os senhores desejam me apresentar uma avalanche de perguntas e dúvidas que devem ser respondidas e resolvidas antes que possamos nos regozijar com este primeiro resultado do nosso trabalho. Certamente não quero levá-los a decisões precipitadas. Tomemos tudo na devida seqüência, uma coisa depois da outra, considerando-as friamente. O que é mesmo que os senhores querem me dizer? Se acredito que esta explicação vale para todos os casos de lapso de fala ou só para um certo número deles? Se podemos também estender esta concepção às inúmeras outras variedades de lapsos, ao lapso de leitura, de escrita, ao esquecimento, aos atos descuidados, aos extravios, etc.? E diante da natureza psíquica dos lapsos que importância continuam a ter fatores como o cansaço, a excitação, a distração, os distúrbios de atenção? E mais ainda, fica claro no lapso que das duas tendências que competem entre si uma é sempre explícita, mas a outra nem sempre. O que fazer então para descobrir esta outra, e no momento em que se acredita tê-la descoberto, como comprovar que ela não é meramente provável, mas é a única certa? Os senhores ainda têm alguma coisa a perguntar? Se não, prossigo. Quero lembrar-lhes que na verdade nós mesmos não dávamos muita importância aos lapsos, e através do seu estudo nós só queríamos aprender alguma coisa que fosse de valor para a psicanálise. Por isso eu coloco a seguinte questão: que intenções ou tendências são estas que podem perturbar outras a este ponto e que relações existem entre as tendências perturbadoras e as tendências perturbadas? Deste modo, nosso trabalho só recomeça depois da solução deste problema. Então esta é a explicação para todos os casos de lapso de fala? Sinto-me bastante inclinado a acreditar nisto, porque toda vez que se investiga um caso de lapso de fala descobre-se uma solução desta natureza. Mas não fica provado que não pode ocorrer um lapso de fala sem este mecanismo. Isso pode acontecer; para nós é indiferente, do ponto de vista teórico, pois permanecem válidas as conclusões que gostaríamos de tirar para a 25 introdução à psicanálise, mesmo que (o que não é o caso) apenas uma minoria de casos de lapso de fala se enquadrasse na nossa concepção. Podemos de antemão responder de modo afirmativo à pergunta seguinte, ou seja, a de saber se é lícito estender para os outros tipos de lapsos o que resultou da investigação do lapso de fala. Os senhores vão se convencer por si próprios, quando nos dedicarmos à investigação de exemplos de lapsos de escrita, de atos descuidados, etc. Enquanto não tratarmos mais profundamente do lapso de fala, aconselho-os, por razões técnicas, a adiar esta tarefa. Há uma questão que merece uma resposta mais detalhada: a de saber o que podem ainda significar para nós aqueles fatores colocados em primeiro plano pelos autores: o distúrbio de circulação, a fadiga, a excitação, a distração, e a teoria do distúrbio da atenção – quando descrevemos os mecanismos psíquicos do lapso de fala. Observem bem que não contestamos estes fatores. Não é tão freqüente que a psicanálise conteste alguma coisa afirmada por outros; via de regra ela só lhe acrescenta algo novo e naturalmente às vezes o que era até então negligenciado e que foi agora acrescentado se torna justamente o essencial. Deve-se reconhecer sem reservas a influência das disposições fisiológicas causadas pelo mal-estar leve, pelos distúrbios de circulação e pelos estados de esgotamento para o surgimento do lapso de fala: a experiência pessoal e quotidiana pode convencê-los disto. Mas como ainda é pouco o que fica assim esclarecido! Sobretudo não são estas as condições necessárias para a ocorrência do lapso de fala – este lapso é igualmente possível em estados normais e de perfeita saúde. Os fatores físicos só têm o mérito de facilitar e favorecer o mecanismo psíquico peculiar do lapso de fala. Uma vez utilizei para esta relação uma comparação que quero repetir aqui porque não consigo substituí-la por outra melhor. Suponham que numa noite escura, caminhando por um lugar solitário, fui assaltado por um ladrão que me roubou o relógio e a carteira, e por não ter visto nitidamente o seu rosto fui apresentar minha queixa na delegacia de polícia mais próxima nos seguintes termos: “A solidão e a escuridão acabam de roubar meus objetos de valor”. O delegado de polícia poderia neste caso me responder: “O senhor parece estar fazendo concessões injustas a uma concepção extremamente mecanicista. Protegido pela escuridão e favorecido pela solidão, um ladrão lhe roubou seus objetos de valor. No seu caso parece-me que a tarefa principal é encontrar o ladrão. Talvez possamos recuperar o que foi roubado”. Os fatores psicofisiológicos como a excitação, a distração, distúrbio de atenção evidentemente nos oferecem muito pouco no sentido do esclarecimento. São meras expressões verbais, biombos atrás dos quais não devemos deixar de olhar. É mais o caso 26 de saber aqui o que provocou a excitação ou o particular desvio da atenção. As influências sonoras, as semelhanças verbais e as associações usualmente decorrentes das palavras devem ser reconhecidas como significativas. Elas facilitam o lapso de fala, na medida em que lhe apontam os caminhos que ele pode tomar. Mas se tenho um caminho diante de mim, fica decidido com isto, como se fosse algo natural, que eu tenha de ir por ele? Para eu me decidir por ele é preciso que haja um motivo e também uma força que me impulsione a avançar por este caminho. Estas relações sonoras e verbais, do mesmo modo que as disposições corporais, apenas favorecem o lapso de fala mas não podem proporcionar sua verdadeira explicação. Pensem que na imensa maioria dos casos a minha fala não é perturbada pelo fato de que as palavras utilizadas por mim lembram outras por semelhança sonora, ou pelo fato de estarem intimamente ligadas às palavras contrárias, ou ainda porque delas derivam associações usuais. Poderíamos ainda recorrer à informação fornecida pelo filósofo Wundt de que o lapso de fala ocorre quando as tendências à associação prevalecem sobre qualquer intenção de dizer algo, em conseqüência da exaustão física. Seria bom poder dar ouvidos a isto se a experiência não o desmentisse; pelo testemunho desta, em uma série de casos faltam os fatores somáticos que facilitariam o lapso de fala, em outra série são os fatores associativos que estão ausentes. Mas para mim é de particular interesse a próxima pergunta dos senhores: como se identificam as duas tendências que interferem uma sobre a outra. Os senhores provavelmente não fazem idéia do quanto esta pergunta é rica de conseqüências. É verdade que uma das duas, a tendência perturbada, é sempre inequívoca: a pessoa que comete o lapso conhece esta tendência e toma o partido dela. Só pode haverespaço para dúvidas e reservas com relação à outra, a tendência perturbadora; ora, nós já ouvimos afirmar e os senhores certamente não esqueceram, que numa série de casos esta outra tendência é igualmente clara. Ela será indicada pelo efeito do lapso de fala, desde que tenhamos a coragem de fazer este efeito valer por si mesmo. O presidente, por um lapso, fala o contrário – é claro que ele quer abrir a sessão, e é igualmente claro que ele gostaria de dá-la por encerrada. É tão nítido que não sobra nada para interpretar. Mas nos outros casos, em que a tendência perturbadora apenas deforma a tendência original, sem que ela mesma a expresse inteiramente, como se pode descobrir, a partir da deformação, qual é a tendência perturbadora? Numa primeira série de casos, de um modo muito simples e seguro: do mesmo modo que se constata qual é a tendência perturbada. Esta é diretamente comunicada 27 pelo próprio autor da fala. Depois do lapso de fala ele restabelece imediatamente o termo originariamente intencionado. Isto drura, não, dura talvez mais um mês. Conseguimos também que ele declare qual é a tendência perturbadora, perguntando-lhe: então, por que disse primeiro “drura”? Ele responde: eu queria dizer que esta é uma história triste – e no outro caso, no lapso de fala “Vorschwein”, ele vai igualmente lhes confirmar que antes queria dizer que isto era uma Schweinerei, depois ele se moderou e se desviou para uma outra afirmação. Nestes casos, se identifica com igual segurança tanto a tendência que leva à deformação quanto a tendência que é deformada. Não sem intenção, selecionei aqui exemplos que ainda não foram comunicados ou resolvidos nem por mim nem por nenhum dos meus seguidores. No entanto, nestes dois casos foi necessária uma certa intervenção para promover a solução. Foi preciso perguntar ao autor da fala por que ele cometeu este lapso e o que saberia dizer sobre ele. De outra forma, talvez seu lapso lhe tivesse passado despercebido, sem que ele chegasse a desejar esclarecê-lo. Mas quando interrogado ele o explicou com a primeira coisa que lhe ocorreu. E agora vejam bem: esta pequena intervenção e o seu êxito, isto já é psicanálise e o protótipo de toda a investigação psicanalítica que vamos empreender daqui para diante. Seria eu excessivamente desconfiado se supusesse que no próprio momento em que a psicanálise começa a emergir perante os senhores, a resistência contra ela também põe a cabeça para fora? Não gostariam os senhores de me objetar que não tem pleno valor de prova a informação dada pela pessoa interrogada (a pessoa que cometeu o lapso de fala)? Os senhores acreditam que ela tem naturalmente todo empenho em atender ao pedido de explicação do lapso de fala e então ela fala a primeira coisa que lhe ocorre, desde que isto lhe pareça plausível como esclarecimento do que aconteceu. Com isto, não fica provado que o lapso de fala de fato aconteceu assim. Pode ser, mas também pode ser outra coisa. Poderia ter ocorrido à pessoa alguma outra coisa que fosse tão boa quanto esta e que fosse talvez até mais adequada. É notável como os senhores têm no fundo pouco respeito por um ato psíquico. Imaginem que alguém fez a análise química de uma determinada substância e encontrou, para um componente dela, um determinado peso, tantas e tantas miligramas. A partir deste peso se podem inferir determinadas conclusões. Ora, acreditam os senhores que poderia ocorrer a um químico criticar estas conclusões alegando que a substância isolada poderia também ter um outro peso? Todos se curvam diante do fato de que o peso era este e nenhum outro, e confiantes vão construir, com base nele, suas 28 conclusões seguintes. Agora, quando se está diante do fato psíquico de que ocorreu à pessoa interrogada uma determinada idéia, para os senhores isto já não vale mais e então dizem que poderia ter ocorrido a ela uma outra coisa! Os senhores têm a ilusão de uma liberdade psíquica em si mesma e não querem renunciar a ela. Lamento que neste ponto eu esteja em profundo desacordo com os senhores. Bem, aqui os senhores vão ceder, mas apenas para retomar sua resistência em outro ponto. Prosseguirão: entendemos que é uma técnica peculiar da psicanálise fazer com que os próprios analisados digam a solução dos seus problemas. Agora tomemos um outro exemplo: o do orador que numa solenidade convida os presentes a arrotar [aufstossen] à saúde do chefe. Os senhores dizem que neste caso a intenção perturbadora é a de ofender: é ela que se opõe à expressão da homenagem. Mas da sua parte isto é pura interpretação, apoiada em suas observações, que se situam fora do lapso de fala. Se neste caso os senhores interrogarem o autor do lapso ele não vai confirmar a intenção de ofender; pelo contrário, vai desmenti-la energicamente. Por que, diante de um tal protesto, os senhores não desistem da sua indemonstrável interpretação? De fato, desta vez os senhores descobriram algo forte. Posso imaginar o orador desconhecido nesta solenidade; provavelmente ele é um assistente do chefe homenageado, talvez já seja professor-assistente, um jovem com as melhores chances de vida. Quero contrangê-lo a me dizer se não sentiu algo que pudesse se opor ao convite a homenagear o chefe. Aí sim que eu desagrado de uma vez. Ele perde a paciência e irrompe para cima de mim: “Pare de uma vez por todas com este interrogatório, senão vou ficar bravo. O senhor está estragando toda a minha carreira com suas suspeitas. Eu simplesmente disse arrotar [aufstossen] em vez de brindar [anstossen], porque na mesma frase eu já tinha falado auf duas vezes. É o que Meringer chama de pós-sonância, e fora isto não há mais nada aí para ficar interpretando. Está me entendendo? Agora chega!”. Hum..., é uma reação surpreendente, uma rejeição realmente enérgica. Vejo que não posso conseguir nada com este jovem, mas penso comigo mesmo que ele demonstra estar pessoalmente muito interessado em que seu lapso não tenha sentido algum. Talvez os senhores também achem que não é justo ele logo ficar tão grosseiro diante de uma investigação puramente teórica, mas enfim, dirão que ele afinal devia saber o que pretendia e o que não pretendia dizer. Então devia saber? Esta seria talvez a próxima questão. 29 Agora os senhores acreditam que me têm na mão. “Esta é a sua técnica”, ouço- os falar. Quando a pessoa que cometeu um lapso de fala diz a seu próprio respeito algo que lhe convém, o senhor o promove à mais alta autoridade decisória sobre o assunto. “Ele mesmo o diz”! Mas quando aquilo que ele diz não se encaixa no esquema, o senhor afirma de repente que isto não vale nada, que não é o caso de dar crédito a ele. É verdade. Mas posso lhes apresentar um caso semelhante em que as coisas se passam de modo igualmente monstruoso. Quando um acusado confessa um determinado delito perante o juiz, este acredita na confissão; mas quando ele o nega, o juiz não acredita nele. Se não fosse assim não haveria a prática judicial e apesar de erros ocasionais, os senhores consideram este sistema válido. Ah, sim, então o senhor é o juiz, e quem comete um lapso de fala é aos seus olhos um acusado? Quer dizer que cometer um lapso de fala é cometer um delito? Talvez não precisemos rejeitar nem mesmo esta comparação. Mas vejam só a que profundas divergências chegamos ao aprofundar um pouco os problemas aparentemente tão inofensivos dos lapsos. Divergências que por ora ainda não sabemos como aplainar. Com base na analogia do juiz e do acusado, ofereço-lhes um compromisso provisório. Os senhores concordam comigo que o sentido de um lapso não deixa lugar para dúvidas, quando o próprio analisando o admite. Em troca, vouadmitir que não se pode obter uma prova direta do suposto sentido quando o analisado se recusa a dar informações, e da mesma forma, naturalmente, quando ele não está à mão para nos informar. Como na prática da justiça, estamos aqui remetidos a indícios, o que torna uma decisão ora mais, ora menos provável. Num tribunal, por razões práticas é necessário declarar o réu culpado a partir de provas circunstanciais. Nós não temos esta necessidade, mas não somos também obrigados a prescindir do valor destes indícios. Seria um erro acreditar que uma ciência só consiste de leis rigorosamente comprovadas e seria injusto exigi-lo. Só faria esta exigência um espírito ávido de autoridade, que precisa substituir seu catecismo religioso por um outro, mesmo que científico. A ciência tem no seu catecismo apenas algumas proposições apodíticas e de resto afirmações que ela procurou elevar a certos graus de probabilidade. Chega a ser um sinal de pensamento científico poder ficar satisfeito com estas aproximações à certeza e prosseguir com o trabalho construtivo, apesar da ausência de confirmações últimas. Mas de onde tomamos os pontos de apoio para nossas interpretações, os indícios para nossa comprovação, nos casos em que o que é dito pelo analisando não esclarece por si o sentido do lapso? De vários lugares. Primeiro, da analogia com outros 30 fenômenos que não os lapsos, por exemplo quando afirmamos que a deformação de nomes, como no lapso de fala, têm o mesmo sentido ofensivo que a distorção intencional do nome. Além disso, também a partir da situação psíquica em que o lapso ocorre, a partir do nosso conhecimento do caráter da pessoa que cometeu o lapso, e das impressões pelas quais ela foi atingida antes do lapso, às quais possivelmente ela reagiu com o lapso. Via de regra, é de acordo com os princípios gerais que fazemos a interpretação do lapso – que de início é apenas uma suposição, uma proposta de interpretação, e depois procuramos confirmá-la pela investigação da situação psíquica. Às vezes precisamos aguardar os acontecimentos seguintes, que por assim dizer foram anunciados por meio do lapso, para reforçar nossa suposição. Não me será fácil apresentar-lhes ilustrações se eu tiver que me limitar ao campo do lapso de fala, embora também neste campo se encontrem alguns bons exemplos. O jovem que queria begleitidgen uma moça é certamente um tímido; a mulher cujo marido só pode comer e beber o que ela quiser, vejo-a como uma dessas mulheres enérgicas que costuma comandar o batalhão em casa. Ou então considerem o seguinte caso: numa assembléia geral do “Concórdia2” um jovem membro pronuncia um vigoroso discurso e oposição, no qual se dirige à presidência da assembléia, como os senhores membros de empréstimo [Vorschussmitglieder], o que parece composto por Vorstand [comitê] e Ausschuss [comissão]. Suponhamos que contra a sua oposição se despertou nele uma tendência perturbadora, apoiada em algo que tinha a ver com o empréstimo [Vorschuss]. De fato, ficamos sabendo pelo nosso informante que orador vivia em permanente apuro financeiro e justamente naquele momento tinha acabado de apresentar um pedido de crédito. Como intenção perturbadora deve-se realmente inserir o seguinte pensamento: modere-se na sua oposição pois estas pessoas são as mesmas que vão aprovar o seu empréstimo. Mas quando eu passar para o vasto âmbito dos outros tipos de lapsos, vou poder lhes apresentar uma grande variedade de provas iniciais como esta. Quando alguém esquece um nome próprio que habitualmente lhe é familiar, ou só consegue memorizá-lo com dificuldade, apesar de todos os seus esforços, é fácil supor que tem alguma coisa contra o portador deste nome, e por isso prefere não pensar nele; acrescentem a isto as seguintes descobertas a respeito da situação psíquica em que um lapso ocorreu: 2 (União dos jornalistas vienenses). 31 “O senhor Y. apaixonou-se por uma moça, mas não foi bem sucedido, e ela em seguida se casou com o senhor X. Embora o senhor Y. conheça o senhor X há bastante tempo e até mantenha com ele relações comerciais, ele esquece constantemente seu nome, a ponto de, em várias ocasiões, tê-lo perguntado a outras pessoas, quando queria se corresponder com o senhor X 3 . É evidente que o senhor Y não quer saber de seu feliz rival. “Nem pensar nele”. Ou ainda: uma senhora pede a seu médico notícias de uma conhecida comum, mas refere-se a ela pelo nome de solteira. Esquece o seu nome de casada. Confessa então que estava muito insatisfeita com esse casamento e que não suportava o marido desta amiga 4 . Ainda teremos muito que dizer em outros contextos sobre o esquecimento de nomes; por ora, interessa-nos fundamentalmente a situação psíquica em que ocorre o esquecimento. O esquecimento de propósitos em geral pode ser remetido a uma corrente contrária, que não quer realizar aquele propósito. Não somos apenas nós, os da psicanálise, que pensamos assim, mas esta é a concepção geral dos homens, que na vida aderem a tudo que negam unicamente na teoria. O protetor que se desculpa com o seu protegido, não fica justificado aos olhos deste. O protegido pensa imediatamente: ele não se importa nem um pouco; ele prometeu, mas na realidade não quer cumprir. Por isso, na vida em certas relações o esquecimento está proibido e a diferença entre a concepção popular e a concepção psicanalítica destes lapsos parece ficar eliminada. Imaginem uma dona de casa que recebe uma visita nos seguintes termos: “O que, o senhor aqui hoje? Esqueci completamente que o tinha convidado para hoje”. Ou o jovem que precisa confessar à sua amada que se esqueceu de comparecer ao último encontro. Com certeza ele não o confessará e de preferência vai inventar de improviso os obstáculos mais prováveis que podem tê-lo detido na ocasião, e que o impediram desde então de dar notícias. Todos nós sabemos que na vida militar a desculpa de ter-se esquecido de alguma coisa não adianta nada nem isenta da punição – e nós temos que considerar isto justo. Aqui há um acordo unânime em considerar que um determinado ato falho tem um sentido, e qual o sentido que tem. Por que os senhores não são suficientemente conseqüentes para estender esta compreensão para os outros lapsos e admiti-la plenamente? Para isto naturalmente também há uma resposta. 3 Segundo C. G. Jung 4 Segundo A. A. Brill 32 Se o sentido deste esquecimento de propósitos é tão inequívoco, mesmo para os leigos, os senhores ficarão menos surpresos ao descobrir que também os poetas avaliam estes lapsos neste mesmo sentido. Quem dentre os senhores assistiu ou leu César e Cleópatra de B. Shaw, vai lembrar que na última cena, César, que está partindo, é perseguido pela idéia de que tinha a intenção de fazer mais uma coisa, mas agora tinha esquecido o que era. Finalmente, aparece o que era: despedir-se de Cleópatra. Este pequeno artifício do autor pretende atribuir ao grande César uma superioridade que ele não tinha e à qual não aspirava. Pelas fontes históricas os senhores podem ver que César fez Cleópatra acompanhá-lo a Roma e que ela estava só com seu pequeno Cesarion quando César foi assassinado e por isso ela fugiu da cidade. Os casos de esquecimento de intenções são em geral tão claros que são pouco úteis para os nossos objetivos: obter indícios do sentido do lapso a partir da situação psíquica. Voltemo-nos por isso para um tipo de lapso particularmente ambíguo e impenetrável: perda e extravio. Os senhores certamente não vão achar plausível que participemos, num sentido intencional, de umacausalidade como esta, muitas vezes sentida como tão dolorosa. Mas existem abundantes observações deste gênero: um jovem perde o lápis pelo qual tinha grande afeição. Dias antes tinha recebido uma carta de seu cunhado que terminava com as seguintes palavras: “Por ora não tenho vontade nem tempo de sustentar tua leviandade e tua preguiça 5”. O lápis era justamente um presente deste cunhado. Sem esta coincidência, naturalmente não poderíamos afirmar que havia nesta perda a participação de uma intenção de se desfazer da coisa. Casos semelhantes são muito freqüentes. Perdem-se objetos quando se está em relações pouco amistosas com a pessoa que os deu e não se deseja mais lembrar dela, ou ainda quando não se gosta mais dos objetos e se quer criar um pretexto para substituí-los por outros melhores. Deixar cair, quebrar, destruir – servem também à mesma intenção contra um objeto. Podemos considerar casual que uma criança em idade escolar, justamente antes de seu aniversário perca, estrague ou quebre seus objetos pessoais, por exemplo, sua mala escolar, seu relógio de bolso? Aquele que já viveu suficientemente o tormento de não conseguir achar uma coisa que ele próprio guardou não vai querer acreditar que existe uma intenção também no extravio. E no entanto não são nada raros os exemplos em que as circunstâncias em 5 Segundo B. Dattner. 33 torno do extravio apontam para uma tendência a se desfazer do objeto de um modo temporário ou permanente. Talvez o mais belo exemplo deste tipo seja o seguinte: Um homem mais jovem me conta: “anos atrás, havia dificuldades no meu casamento. Eu achava minha mulher muito fria e embora de bom grado eu reconhecesse suas excelentes qualidades, convivíamos sem carinho entre nós. Um dia ela me trouxe de um passeio um livro que havia comprado porque ele poderia me interessar. Agradeci este sinal de „atenção‟, prometi ler o livro, guardei-o e não o achei mais. Passaram-se meses em que eu às vezes me lembrava do livro desaparecido e tentava em vão encontrá-lo. Cerca de um ano mais tarde minha querida mãe, que não morava conosco, ficou doente. Minha mulher saiu de nossa casa para ir cuidar da sogra. O estado da doente agravou-se e deu à minha mulher a oportunidade de mostrar suas melhores qualidades. Uma noite volto para casa cheio de entusiasmo e gratidão para com ela, por seu empenho. Vou até minha escrivaninha e sem uma intenção definida abro uma gaveta e ali, bem em cima, encontro o livro extraviado, sumido há tanto tempo”. Uma vez eliminado o motivo, também chegou ao fim o extravio do objeto. Senhoras e senhores: eu poderia multiplicar indefinidamente esta coleção de exemplos, mas não quero fazê-lo aqui. Em minha Psicopatologia da vida cotidiana (a primeira edição é de 1901) os senhores encontrarão em todo caso uma abundante casuística para o estudo dos lapsos 6 . Todos estes exemplos produzem sempre o mesmo resultado: tornam verossímil a existência de um sentido nos lapsos e mostram aos senhores como é possível descobrir ou confirmar este sentido a partir das suas circunstâncias. Hoje serei mais breve porque estamos limitados ao objetivo de extrair algum benefício do estado destes fenômenos para uma preparação à psicanálise. Só quero considerar aqui ainda dois grupos de observações: os lapsos acumulados e combinados e a confirmação das nossas interpretações por acontecimentos ocorridos mais tarde. Os lapsos acumulados e combinados são certamente a fina flor da sua espécie. Se estivéssemos apenas interessados em provar que os lapsos podem ter um sentido, teríamos nos limitado desde o início só a eles, porque neles, mesmo para uma inteligência obtusa, o sentido é inequívoco e se impõe ao juízo crítico mais exigente. O acúmulo das manifestações trai uma obstinação que quase nunca pode ser atribuída ao acaso, mas que se adapta bem à intenção. E finalmente, a permutabilidade dos diversos 6 E ainda, nas compilações de A. Maeder (francês), A. A. Brill (inglês), E. Jones (inglês), J. Stärcke (holandês). 34 tipos de lapsos nos mostra o que é importante e essencial no lapso: não a forma nem os meios de que ele se utiliza, mas a intenção, à qual ele próprio serve e que deverá ser atingida pelos mais variados caminhos. Por isso quero lhes apresentar um caso de esquecimento repetido: E. Jones conta que, por motivos que ignorava, certa vez deixou por vários dias uma carta em cima de sua escrivaninha. Por fim, acabou por se decidir a enviá-la, mas ela lhe foi devolvida pelo “Dead letter office” [Repartição de Cartas Extraviadas], pois ele tinha esquecido de escrever o endereço. Depois de escrevê-lo, levou a carta ao correio, mas desta vez sem o selo. Finalmente, teve de reconhecer sua total relutância em enviar a carta. Num outro caso, um ato descuidado aparece combinado com um extravio. Uma senhora viaja para Roma com seu cunhado, um artista famoso. O visitante é muito homenageado pelos alemães residentes em Roma e é presenteado, entre outras coisas, com uma medalha de ouro antiga. Esta senhora fica ressentida com o fato de que o cunhado não sabe dar o devido valor àquela bela peça. Ao voltar para casa, tendo a irmã ficado em seu lugar, ela descobre ao desfazer as malas que, sem saber como, trouxe consigo a medalha. Imediatamente ela escreve ao cunhado comunicando-lhe o fato e avisando-o que no dia seguinte remeterá de volta para Roma a medalha surrupiada. Mas no dia seguinte a medalha foi extraviada com tanta habilidade que não foi possível encontrá-la e remetê-la. Só então aflorou à sua consciência o que significava a sua “distração”, ou seja, que ela queria ficar com aquela peça7. Já lhes relatei um exemplo de combinação de um esquecimento com um erro, como quando alguém se esquece de um encontro pela primeira vez, e da segunda vez, com o firme propósito de não esquecer, aparece numa outra hora que não a combinada. Um caso bastante análogo, tirado da própria experiência, foi-me contado por um amigo que tem também interesses literários, além dos científicos. “Há alguns anos”, diz ele, “aceitei ser eleito para o comitê de uma sociedade literária porque supunha que esta sociedade eventualmente poderia me ajudar a conseguir a representação de minha peça teatral e, embora sem muito interesse, participei regularmente das sessões que tinham lugar todas as sextas-feiras. Há alguns meses fui assegurado de que minha peça seria representada no teatro em F. e desde então tem me acontecido com regularidade esquecer das reuniões daquela sociedade. Quando li seu trabalho sobre estas coisas fiquei envergonhado do meu esquecimento e 7 Segundo R. Reitler 35 me recriminei, considerando uma baixeza faltar, agora que não preciso mais daquelas pessoas, e então decidi a não esquecer de modo algum na sexta-feira seguinte. Lembrei- me o tempo todo deste propósito até que o realizei e me vi diante da porta da sala de reunião. Para meu espanto ela estava fechada, a sessão já havia acontecido: eu simplesmente tinha errado o dia. Já era sábado!” Seria fascinante reunir observações semelhantes a estas, mas prossigo; quero que vejam um pouco os casos em que a nossa interpretação precisa esperar pelo futuro para poder ser confirmada. É compreensível que a principal condição, nestes casos, seja o fato de desconhecermos a situação psíquica atual ou não podermos averiguá-la. Então, a nossa interpretação só tem o valor de uma conjectura, à qual nós mesmos não pretendemos dar muito peso. Mais tarde, porém, acontece alguma coisa que nos mostra o quantoaquela nossa interpretação já era justificada. Uma vez eu estava na casa de um casal de jovens recém-casados e ouvi a jovem senhora contar rindo sua mais recente experiência: no dia seguinte à volta de sua viagem de núpcias ela foi buscar sua irmã solteira para ir fazer compras com ela, como antigamente, e enquanto isso, o marido foi para o trabalho. De repente reparou na presença de um senhor do outro lado da rua e, chamando a atenção da irmã, exclamou: “Olha, lá está o senhor L”. Ela tinha esquecido que este senhor já há algumas semanas era o seu marido. Eu estremeci com este relato mas não ousei tirar qualquer conclusão. Esta pequena história só me ocorreu de novo anos depois, quando este casamento teve um fim dos mais infelizes. A. Maeder conta de uma jovem, que na véspera de seu casamento esqueceu de provar o vestido de noiva e para o desespero da costureira só foi lembrar disso tarde da noite. Ela relaciona com este esquecimento o fato de que logo depois ela se separou do marido. Conheço uma senhora, atualmente separada do marido, que ao assinar documentos relativos à administração de seus bens freqüentemente escrevia seu nome de solteira, isto muitos anos antes de efetivamente recuperar este nome. Sei também o caso de outras mulheres que perderam sua aliança durante a viagem de núpcias, e sei também que o rumo tomado pelo casamento conferiu sentido a este acaso. E agora um exemplo clamoroso, com um desenlace mais feliz. Conta-se de um famoso químico alemão que o seu casamento não se realizou porque se esqueceu da hora da cerimônia e em vez de ir para a igreja foi para o laboratório. Foi suficientemente perspicaz para se contentar com esta tentativa e morreu solteiro em avançada idade. 36 Talvez tenha ocorrido aos senhores que nestes exemplos os atos falhos ocupam o lugar dos presságios ou dos augúrios dos antigos. E de fato, uma parte dos presságios não era outra coisa senão lapsos, como por exemplo quando alguém tropeçava ou caía. Outra parte contudo tinha o caráter de acontecimento objetivo, e não de ação subjetiva. Mas os senhores não acreditariam como às vezes é difícil, num dado acontecimento, decidir se ele pertence a um ou outro grupo. O agir freqüentemente encontra um meio de se mascarar como uma experiência passiva. Qualquer um de nós que olhar para trás e examinar uma longa experiência de vida provavelmente poderá dizer que poderia ter se poupado muitas decepções e surpresas dolorosas se tivesse tido a coragem e a decisão de interpretar os pequenos atos falhos no relacionamento com as pessoas como presságios e valorizá-los como sinais de suas intenções, na ocasião ainda secretas. Na maioria das vezes não nos atrevemos a fazê-lo; poderia parecer que pela via indireta da ciência nós estamos nos tornando supersticiosos de novo. Mas nem todos os presságios se realizam e pela nossa teoria os senhores vão compreender que nem todos precisam se realizar.
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