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Filosofia

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Filosofia
contemporânea
I VOLUME
Maria José Cantista
Índice
Introdu‹o ................................................................................................
1. Compreens‹o sincr—nica e diacr—nica da disciplina ............................
2. Demarca‹o do dom’nio tem‡tico da disciplina e problema das rela-
›es entre filosofia e hist—ria da filosofia ..............................................
3. Filosofia e hist—ria da cultura ..................................................................
4. CritŽrios selectivos do conteœdo do programa da disciplina ..............
5. Breve resumo introdut—rio dos conteœdos do programa ....................
I Parte — Compreens‹o diferenciadora do universo
de discurso filos—fico contempor‰neo: breve refe-
rncia aos ˙grandes momentos¨ paradigm‡ticos
anteriores ..................................................................................................
1. Justifica‹o do critŽrio adoptado ............................................................
2. O universo de discurso grego como ˙teoria¨ ........................................
3. O universo de discurso da modernidade como ˙especula‹o¨ ..........
4. S’ntese do anteriormente exposto ............................................................
II Parte — O universo de discurso filos—fico contem-
por‰neo ......................................................................................................
1. Origem kantiana do universo de discurso contempor‰neo ................
2. A filosofia de Hegel como ponto de arranque do pensamento
hodierno ......................................................................................................
2.1. O tr‰nsito de Kant a Hegel ....................................................................
2.2. Hegel, fil—sofo do Absoluto ....................................................................
2.3. A experincia fundamental como reconcilia‹o ....................................
2.4. A l—gica dialŽctica: identidade real-racional ..........................................
2.5. L—gica, Filosofia da Natureza e Filosofia do Esp’rito ............................
2.5.1. A Cincia da L—gica ....................................................................
2.5.2. A Cincia da Natureza ................................................................
2.5.3. A Filosofia do Esp’rito..................................................................
2.5.4. Ideia Absoluta: processo dialŽctico e autoconscincia ................
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ÍndiceFILOSOFIA CONTEMPORÂNEA6
2.6. Balano cr’tico da racionalidade dialŽctica de Hegel ............................
3. Kierkegaard versus Hegel. A mudana de sentido do fundamento ....
3.1. Existncia e possibilidade ........................................................................
3.1.1. Est‡dios da existncia ....................................................................
3.1.2. Os graus da conscincia desesperada ..........................................
3.2. A angœstia como sentimento do poss’vel e o desespero como estrutura
do eu ......................................................................................................
3.3. A existncia autntica e o car‡cter irracional do fundamento ..............
3.4. O critŽrio existencial da verdade ............................................................
4. Nietzsche. A Vontade Absoluta versus a Ideia Absoluta ......................
4.1. Uma filosofia da vida..............................................................................
4.1.1. A vida como Vontade de Poder (ou Poder da Vontade). O eterno
retorno ..........................................................................................
4.1.2 Considera‹o cr’tica sobre vontade e nihilismo ............................
5. Husserl e a Fenomenologia ......................................................................
5.1. A radicaliza‹o husserliana do universo de discurso kantiano ..............
5.2. A exigncia de um comeo radical ........................................................
5.3. A intui‹o das essncias ..........................................................................
5.4. Redu‹o fenomenol—gica e constitui‹o do sentido ..............................
6. Inflex‹o existencial da fenomenologia....................................................
6.1. O ˙fen—meno do fen—meno¨ como o verdadeiro transcendental ..........
6.2. Compara‹o entre o pensamento de Heidegger e de Merleau-Ponty:
suas repercuss›es na actual filosofia ......................................................
Bibliografia..............................................................................................
Nota introdut—ria ..............................................................................................
— Dicion‡rios e enciclopŽdias filos—ficas ..........................................................
— Manuais Gerais ..............................................................................................
— G. W. F. Hegel ................................................................................................
— S. Kierkegaard ................................................................................................
— F. Nietzsche ....................................................................................................
— Fenomenologia................................................................................................
— E. Husserl ........................................................................................................
— M. Heidegger ..................................................................................................
— M. Merleau-Ponty ..........................................................................................
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Introdução
Publicar, em forma de manual, os conteœdos program‡ticos da disciplina
de Filosofia Contempor‰nea, nas vŽsperas das altera›es decorrentes do pro-
cesso de Bolonha, Ž um risco. Mas Ž tambŽm um dever, uma responsabili-
dade, dar const‰ncia pœblica do que vimos fazendo, ao longo de mais de duas
dŽcadas, no ‰mbito da lecciona‹o da mencionada disciplina. O leitor
encontrar-se-‡ com a permanncia de uma tem‡tica nuclear que, por ser
˙cl‡ssica¨, n‹o passa de moda, Ž sempre actual. O genuinamente filos—fico
ter‡ de manter-se, se queremos realmente que ele influa na sociedade, que ele
se comprometa.
Estamos perante o primeiro tomo, dedicado a temas, quest›es e autores
estelares da filosofia hodierna. A necessidade de dedicar especial aten‹o e
cuidado aos alicerces — seguros e robustos — do edif’cio filos—fico, imp›e-se-
-nos cada vez mais categoricamente, na propor‹o inversa do desconheci-
mento dos alunos a este respeito.
˙Aggiornamento¨ e classicidade s‹o, cada vez mais, dois termos indisso-
ci‡veis de um bin—mio a n‹o esquecer.
Os Ôcl‡ssicosÕ em filosofia s‹o os perenes, os que n‹o passam, os que n‹o
caem em desuso, os que habilitam o sujeito a pensar e a actuar respons‡vel e
sabiamente.
A diferena espec’fica do aluno de filosofia dever‡ consistir justamente
nisto: disciplina mental, rigor conceptual, coes‹o discursiva, maturidade no
saber e no fazer. ƒ no conv’vio com os grandes Mestres da Filosofia que tais
destrezas se adquirem.
Hegel e Husserl merecem, quanto a n—s, particular deten‹o. Praticar o
conv’vio com estes Autores ser‡ um exerc’cio reflexivo conducente a um salto
de maturidade.
O facto de considerarmos como fil—sofos ˙permanentes¨ os Autores men-
cionados, tal n‹o significa invariabilidade program‡tica. O que figura na
presente publica‹oŽ, por assim dizer, o nœcleo ˙duro¨ do curso, aqui enun-
ciado sinteticamente, e, talvez, mesmo, densamente. A prepara‹o do aluno
pressup›e, portanto, leituras prŽvias indicadas inicialmente nas aulas que lhe
facilitem o conhecimento dos Autores. S— assim poder‹o compreender os
conteœdos do presente manual. Acrescem-se outras tem‡ticas e Autores que
variam conforme as circunst‰ncias e a prudncia o exigem. O local pr—prio
para tais explana›es Ž a aula te—rica ou pr‡tica, o semin‡rio, ou o assesso-
ramento tutorial.
O fio condutor subjacente a este livro Ž pessoal, e fruto de um progressivo
amadurecimento da experincia lectiva. ƒ uma proposta ao leitor, mais con-
cretamente aos alunos. Ensinar n‹o Ž transmitir um somat—rio mais ou
menos avulso de temas, autores ou correntes. ƒ, sim, propor um esquema
pessoal de pensamento, uma estrutura que ajude os alunos a ˙situar-se¨, face
ˆs quest›es nucleares do universo filos—fico. Sem tal proposta de apoio, o
aluno n‹o pode ensaiar a ˙sua¨, num esforo pessoal de esquematiza‹o ou
mesmo de sistematiza‹o.
Com efeito, como disciplina ˙tardia¨, a Filosofia Contempor‰nea prop›e
ao discente a tentativa de compreens‹o, ou, se se quiser, de relaciona‹o inte-
gradora, dos universos de discurso do passado. Como adiante se ver‡, trata-
-se de ensaiar uma abordagem filos—fica da hist—ria da filosofia. Pede-se a
este respeito, uma postura discernente, cr’tica e mesmo criativa, da parte do
aluno, face ˆ constru‹o que o docente lhe prop›e.
O presente manual, no seu primeiro volume, destina-se preferencialmente
aos discentes da licenciatura. Tal n‹o significa que, tambŽm os alunos da
p—s-gradua‹o, nele n‹o encontrem proveito.
Est‡ em prepara‹o o segundo volume dedicado sobretudo aos mais
recentes desenvolvimentos da fenomenologia p—s-heideggeriana: metamorfo-
ses profundas, que se pretendem fiŽis ao lema husserliano de radicalidade, no
‰mbito da ontologia, da Žtica e da estŽtica.
A fenomenologia do dom ser‡ um tema prevalente e recolhe a experin-
cia lectiva da p—s-gradua‹o. Ser‹o abordados, entre outros, ƒ. LŽvinas, J.
Derrida, M. Henry, J.-L. Marion, J.-L. ChrŽtien, Claude Romano.
Apenas uma observa‹o, para terminar: evitamos o recurso a demasiadas
cita›es e desobrigamo-nos do rigor da sua localiza‹o, para tornar o texto
mais acess’vel. Tal n‹o desobriga, obviamente, o exerc’cio pr‡tico do rigo-
roso coment‡rio de texto.
IntroduçãoFILOSOFIA CONTEMPORÂNEA8
1.
Compreensão sincrónica 
e diacrónica da disciplina
A programa‹o de uma disciplina como a de Filosofia Contempor‰nea
reveste-se da maior complexidade.
S‹o mœltiplos os factores que concorrem para tal.
Por um lado, os decorrentes da ’ndole de uma cadeira que congrega, quer
uma vertente historiogr‡fica, quer uma vertente sistem‡tica.
Delinear os conteœdos program‡ticos, bem como a forma ajustada de os
impartir aos alunos, exige cautelas reflexivas e did‡cticas, a fim de que
nenhum dos pendores se veja descurado.
H‡, sem dœvida, uma linha diacr—nica, uma vertente historiogr‡fica da
filosofia, a exigir mŽtodos preferentemente descritivos do pensamento dos
Autores e da sua inser‹o nas tendncias de uma Žpoca (no seu contexto his-
t—rico, historiol—gico, s—ciopol’tico e cultural). H‡ ainda, e nesta ordem de
ideias, a contrasta‹o de Žpocas e autores relativamente ao passado (pr—ximo
e remoto), para que a sua compreens‹o seja diferenciadora e ponha em evi-
dncia o ˙ineditismo¨. O tema do novo Ž, no entanto, controverso em filo-
sofia, prende-se com o problema do ˙progresso¨, num saber desta ’ndole.
A detec‹o sincr—nica da problem‡tica essencial — transhist—rica — deve,
pois, acompanhar e entrecruzar a abordagem diacr—nica. S— assim se poder‡
equacionar filosoficamente a hist—ria da filosofia e compreender como e
quando um saber transepocal se plasma em acultura›es, sem nelas se esgotar.
Com efeito, a restri‹o epocal de um saber racional discursivo, que tem
por tema algo de universal, de transcendental — o fundamento — exige, sim,
diferencia›es sistematizadoras, mas pro’be a sectorializa‹o, a atomiza‹o,
enfim, a absolutiza‹o de qualquer sistema.
A demarca‹o tem‡tica da disciplina que nos ocupa — filosofia contem-
por‰nea — prende-se, portanto, e em ordem ˆ sua matiza‹o, quer com uma
vertente sistem‡tica, quer com uma vertente historiogr‡fica. Todo o discurso
9Introdução FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
racional acerca do fundamento como o saber filos—fico apresenta caracter’s-
ticas tem‡ticas e sistem‡ticas inerentes ˆ sua unidade e universalidade.
Por isso mesmo, um programa de filosofia contempor‰nea que pretenda
ser filos—fico, n‹o dever‡ iludir, nem a elabora‹o tem‡tica, a detec‹o do
nuclear (das no›es matriciais da filosofia, trans-hist—ricas), nem a sua con-
textualiza‹o numa determinada Žpoca, no presente caso, a contempor‰nea.
O mŽtodo utilizado, ao programar uma cadeira de ’ndole filos—fica, mas
tambŽm de hist—ria da filosofia deve, pois, conjugar (reiteramos) a sincronia
e a diacronia. O tratamento anal’tico de autores e correntes paradigm‡ticas
dever‡ aparecer como express‹o consequente dos nœcleos matriciais da filo-
sofia. O que se designa por filosofia contempor‰nea, muito embora se prenda
directamente com o universo de discurso da nossa Žpoca, transcende-o ine-
xoravelmente. Com efeito, o tema da filosofia contempor‰nea Ž o tema da
filosofia, em repeti‹o insistente de si, intermin‡vel. Por isso mesmo, toda e
qualquer demarca‹o hist—rica, tomada num sentido demasiadamente res-
tritivo, e desinserida do universo inactual inerente ao filosofar, seria ileg’-
tima, porque n‹o filos—fica. A elabora‹o de um programa de filosofia con-
tempor‰nea — se deve incidir preferentemente nas sistematiza›es filos—ficas
hodiernas — dever‡ sempre aspirar a uma vis‹o integradora, dado que, repe-
timos, o tema ou fundamento da filosofia Ž transcendental, universalizante.
IntroduçãoFILOSOFIA CONTEMPORÂNEA10
2. 
Demarcação do domínio 
temático da disciplina 
e problema das relações entre
filosofia e história da filosofia
A elabora‹o de um programa de filosofia contempor‰nea exige, antes de
mais, a demarca‹o do dom’nio tem‡tico, hist—rica e sistematicamente iden-
tific‡vel com tal designa‹o.
Ao falar de filosofia contempor‰nea, o primeiro problema suscitado Ž o
das rela›es da filosofia e da hist—ria da filosofia. Dois conceitos que se n‹o
confundem nem identificam, ainda que se relacionem intimamente. Se bem
Ž certo que a filosofia n‹o se identifica com a sua hist—ria — a investiga‹o
acerca do fundamento n‹o Ž de ’ndole hist—rica e, por isso mesmo, o saber
filos—fico nunca se esgota num plano cultural —, se bem Ž certo que o saber
filos—fico atravessa ambos os planos e se dirige, por um lado ao nœcleo livre
do existir humano, e, por outro lado, ao tema do fundamento transcenden-
tal, n‹o Ž menos certo que a filosofia, quer enquanto actividade livre do
homem, quer enquanto resultado formal dessa actividade (como conjunto
sistematizado de proposi›es) se plasma historicamente. Neste sentido, ao
modo como a filosofia se relaciona com a hist—ria poder’amos chamar pere-
nidade. Este Ž um tema cuja considera‹o Ž capital, quando se trata de ela-
borar um programa da ’ndole do que nos ocupamos.
Como afirma Heidegger, ilustrando o car‡cter trans-hist—rico do saber
filos—fico, o lema da filosofia Ž, ainda hoje, o que enunciou ParmŽnides ao
afirmar a correspondncia do ser e do pensar. E o problema nuclear da filo-
sofia continua a ser, o da significa‹o da c—pula (ser e pensar).
Esta transcendncia do saber filos—fico relativamente ao contexto hist—-
rico-cultural significa, portanto, que, quer o fundamento, quer o saber que
11Introdução FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
busca o fundamento, se n‹o esgotam em qualquer acultura‹o. O funda-
mento n‹o Ž algo objectivamente dado (como totalidade ele Ž principial e
œltimo), e o pensamentoque com ele se avŽm Ž essencialmente infinito (muito
embora o homem que pensa seja finito). Com efeito, a realidade fundante
n‹o est‡ dada em presente: o dado Ž certamente o que ˙h‡¨, o que existe, isto
Ž, o objectivado na mente. Mas o fundamento n‹o se confunde com este
dado, e n‹o pode ser captado imediatamente, sem contradi‹o; temos por-
tanto que o buscar, e nessa heur’stica consiste precisamente o discurso racio-
nal. No entanto, a filosofia como saber que se busca, como discurso racional
acerca do fundamento, tem um comeo hist—rico indissoluvelmente ligado ˆ
descoberta grega de uma dimens‹o humana capaz, em princ’pio, de estrita
correspondncia com o real na sua totalidade: essa dimens‹o humana Ž o
nous, o intelecto. Forma-se, a partir de ent‹o, um universo de sentido, um
discurso coerente acerca do fundamento.
Podemos dizer que a filosofia se apresenta assim, ao longo da sua hist—-
ria, como um conjunto de sistemas ou universos de sentido. O processo de
aparecimento, desenvolvimento e matura‹o de cada um destes universos
que se assinalam como marcos ou pilares referenciais da filosofia na sua his-
t—ria Ž de tal ’ndole, que nenhum deles se fecha ou completa de um modo
cabal. Se isso acontecesse, ent‹o os sistemas filos—ficos seriam essencialmente
hist—ricos, n‹o escapando ˆ sorte da caducidade. Mas a filosofia n‹o se deu,
de uma vez por todas, no passado. Pelo que podemos afirmar ainda hoje, por
exemplo, a actualidade de Arist—teles. Isto quer dizer que, muito embora os
sistemas de filosofia se desenvolvam no tempo, n‹o s‹o obras conclusas, inde-
pendentes e separadas, entre as quais medeiam rela›es extr’nsecas; nenhum
sistema Ž uma constru‹o suficiente, e todas comunicam, no fundo, pela pr—-
pria tem‡tica, e pelo mŽtodo ou discurso de apropria‹o. Este Ž o c‡racter
insistente da filosofia. 
Precisamente porque filosofar Ž sempre ocupar-se da formula‹o do fun-
damento, a rela‹o com o passado vai alŽm do seu estrito perfil de obra feita
ou lograda; as rela›es hist—ricas estabelecem-se a partir de um fundo
comum, e n‹o segundo o fio da sucess‹o temporal. O fundamento Ž o tema
da filosofia e assim se justifica que ˆ historifica‹o da filosofia se lhe conceda
o nome de perenidade. E isto porque o fundamento n‹o se deixa possuir
(como no caso do objecto de qualquer cincia operativa); n‹o se deixa ˙resol-
IntroduçãoFILOSOFIA CONTEMPORÂNEA12
ver¨ em qualquer teoria, n‹o se d‡ actualmente em termos de intui‹o inte-
lectual. 
A filosofia emerge da hist—ria, aparece nela como uma articula‹o do
passado com possibilidades ulteriores. Para o fil—sofo, ocupar-se dos ˙gran-
des¨ (seria um grave erro desprezar a tradi‹o que, se Ž verdadeira tradi‹o
filos—fica, Ž sedimenta‹o viva) n‹o significa estabelecer uma dependncia
relativamente ˆs suas obras; significa sim, coincidir com o mesmo tema. ƒ a
pessoa quem descobre o tema da filosofia, e, s— por isso, em rigorosa comu-
nidade, entra em contacto com os fil—sofos que foram. De acordo com isto,
ainda que caiba assinalar-lhe um comeo, a filosofia n‹o nasce na hist—ria; o
seu comeo Ž intra-hist—rico e, por isso, pode pessoalmente repetir-se. A raiz
do filosofar Ž livre e, consequentemente, pessoal. A compreens‹o da filosofia
na sua dependncia com respeito ˆ liberdade Ž necess‡ria para levantar o
tema da sua emergncia hist—rica. Todos estes temas implicam um maior
desenvolvimento no decorrer da lecciona‹o.
A historifica‹o da filosofia n‹o Ž um processo evolutivo da inteligncia
humana considerada como uma pura entidade da natureza. T‹o pouco Ž
uma pura sequncia cultural. As diferenas existentes entre os sistemas filos—-
ficos n‹o se entendem cabalmente acudindo apenas ˆ simples confronta‹o
de textos; do mesmo modo, a sua ineg‡vel diferena tambŽm se n‹o explica
por influncias, transmiss›es ou aceita›es escolares. N‹o se pode rigorosa-
mente fa1ar, em filosofia, de sistemas errados e de sistemas verdadeiros. Tudo
o que, no ‰mbito da hist—ria da filosofia se mova no plano dos documentos,
dos restos do passado, ou das simples compara›es, Ž importante, mas n‹o
suficiente para compreender o tema da historifica‹o filos—fica. 
A historifica‹o da fi1osofia Ž um rasgo formalmente filos—fico e, como
tal, a sua perenidade. Esta perenidade alude ao que chamo nœcleo prim‡rio
— transhist—rico —. Quando falo de perenidade n‹o quero dizer que h‡ uma
filosofia perene e outra (ou outras) que o n‹o s‹o. A perenidade Ž por mim
entendida como a compreens‹o da rela‹o entre hist—ria e filosofia e na
medida em que ambas se n‹o confundem; ou seja, n‹o Ž o hist—rico da filo-
sofia nem o filos—fico da hist—ria, mas sim o filos—fico da hist—ria da filoso-
fia. E isto quer dizer que a no‹o de perenidade exige tambŽm a supera‹o
da compreens‹o ˙situacional¨ da pr—pria hist—ria. Ora bem: a hist—ria Ž
situa‹o como situa‹o de liberdade, pelo que, ao superar a citada com-
13Introdução FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
preens‹o da hist—ria, nos encontramos com a liberdade, n‹o j‡ situada, mas
sim na sua conjun‹o com o tema da filosofia, ou seja, com o fundamento. 
Para compreender a no‹o de perenidade dever‡ portanto acudir-se,
tanto ˆ liberdade (transcendental), como ao fundamento. Neste sentido, a
perenidade n‹o Ž um sistema, nem o sistema dos sistemas, mas a dimens‹o
unit‡ria da filosofia considerada em ordem ˆ historia, um car‡cter do conhe-
cimento do fundamento para a liberdade, distinto da abertura de possibili-
dades factivas, pr—pria dos saberes operativos ou produtivos. A perenidade Ž
tambŽm uma dimens‹o unit‡ria da hist—ria que s— aparece em ordem ˆ filo-
sofia. O car‡cter transcendental e nuclear da liberdade dever‡ entender-se
aqui na linha da prioridade fundamental. A liberdade n‹o consiste em p™r,
causar ou fundar a essncia humana. O homem, por ser livre, n‹o se define
em ordem ˆ produ‹o da sua pr—pria essncia, mas, pelo contr‡rio, possui-a.
O exerc’cio activo da liberdade exige a ausncia de valor determinante em
qualquer pressuposto; ou, dito de uma maneira geral, Ž incompat’vel com o
influxo de alguma antecipa‹o. 
Isto significa que a liberdade alude exclusivamente ao que chamo posse,
mantida em ordem ao futuro. O futuro da liberdade, entendido estritamente
como possu’do, Ž transcendental, por n‹o ser determin‡vel desde o prŽvio,
isto Ž, por n‹o estar ligada a sua posse a nenhuma condi‹o de possibilidade,
e n‹o se limitar a nenhuma consistncia. O futuro do homem n‹o se pode
possuir no plano das possibilidades factivas, nem estar prefigurado no modo
do inesquiv‡vel. A capacidade de abrir o futuro por cima de toda a configu-
ra‹o, ou de se manter, possuindo-o, Ž o mais pr—prio da liberdade humana.
Por futuro transcendental da liberdade entendo aquilo que n‹o vem dado
desde uma regi‹o long’nqua ou pressuposta em geral, nem t‹o pouco deriva
de situa›es prŽvias, mas que se liga, na sua mesma posse, ao exerc’cio da
liberdade. Esta no‹o de liberdade, sem dœvida pr—xima da heideggeriana,
difere desta œltima enquanto se n‹o confunde com o pr—prio fundamento. E
isto porque, ao centrar-se a filosofia no tema do fundamento, a raz‹o n‹o
coincide exactamente com a liberdade. 
N‹o se pode entender a liberdade no sentido exclusivo de deixar ser o ente
(Heidegger), isto Ž, suster que a liberdade se reduz ao fundamento (funda-
mento sem fundamento). A liberdade n‹o se confunde com o fundamento
nem t‹o pouco com a raz‹o, com o discurso racional. Entender a teoria
IntroduçãoFILOSOFIA CONTEMPORÂNEA14
(busca do fundamento) exclusivamente como conduta, nada resolveria; e a
identifica‹o da raz‹o com a liberdade seria entender aquela como uma
espŽcie de faculdade adivinhat—ria do fundamento.
Esta digress‹o leva-nos a concluir que, sem a liberdade, o futuro n‹o Ž e
que a hist—ria da filosofia se deve entender a partir da no‹o de conjun‹o
de liberdade e de fundamento. A filosofia pode perigar, hoje, com a absolu-
tiza‹oda hist—ria humana nos termos da tŽcnica moderna. Se aceitarmos
que a tŽcnica actual — forma redutora do saber a saber produtivo — assumiu
a direc‹o da hist—ria, nessa mesma medida, ficamos sem qualquer espao
para a tarefa da filosofia. E, se, nesta perspectiva, n‹o quisŽssemos negar
rotundamente a filosofia, ter’amos de a considerar como obra j‡ cumprida,
terminada e improssegu’vel; o fil—sofo de hoje n‹o passaria de um guardi‹o
do passado, misto de ret—rico e de fil—logo.
Em s’ntese: assim como n‹o cabe uma interpreta‹o da hist—ria em ter-
mos estritamente filos—ficos — a hist—ria n‹o se reduz ˆ filosofia —, tambŽm
n‹o cabe uma interpreta‹o historicista da filosofia, porque ela n‹o Ž sus-
cept’vel de uma mera estrutura‹o cultural. Esta œltima n‹o Ž, no entanto,
obst‡culo para a unidade sistem‡tica das doutrinas filos—ficas.
A demarca‹o tem‡tica da disciplina que nos ocupa — filosofia contem-
por‰nea — prende-se portanto, e em ordem ˆ sua matiza‹o, quer com uma
vertente sistem‡tica, quer com uma vertente historiogr‡fica. Todo o discurso
racional acerca do fundamento apresenta, como se viu, umas caracter’sticas
tem‡ticas e sistem‡ticas inerentes ˆ sua unidade e universalidade. Por isso
mesmo, um programa de filosofia contempor‰nea que pretenda ser filos—-
fico, n‹o dever‡ iludir a elabora‹o tem‡tica, tentando uma ’ntima conex‹o
entre a problem‡tica filos—fica trans-hist—rica e a sua contextualiza‹o numa
determinada Žpoca, a saber, na Žpoca contempor‰nea. O mŽtodo utilizado
ao programar uma cadeira de ’ndole filos—fica e de hist—ria da filosofia deve
conjugar a sincronia e a diacronia, n‹o descurando o tratamento anal’tico de
autores e correntes paradigm‡ticas. Mas esta an‡lise dever‡ aparecer como
express‹o consequente dos nœcleos tem‡ticos inerentes ˆ disciplina.
Na sequncia do que atr‡s ficou dito, aquilo que designamos por filosofia
contempor‰nea, muito embora se prenda directamente com o universo de
discurso inerente ˆ nossa Žpoca, transcende-o inexoravelmente. Com efeito,
o tema da filosofia contempor‰nea Ž o tema da filosofia; pelo que toda e
15Introdução FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
qualquer demarca‹o epocal tomada num sentido demasiadamente restri-
tivo, e desinserida do universo inactual inerente ao filosofar, seria ileg’tima,
porque n‹o filos—fica. A elabora‹o de um programa de filosofia con-
tempor‰nea — se deve incidir preferentemente nas sistematiza›es filos—ficas
hodiernas — dever‡ aspirar a uma vis‹o integradora, englobadora do tema ou
fundamento que Ž transcendental, universal. Sendo assim, imp›e-se a cone-
x‹o da filosofia contempor‰nea com os principais universos de sentido do
passado, a fim de prospeccionar poss’veis tendncias ou inflex›es que se insi-
nuem desde a actualidade.
IntroduçãoFILOSOFIA CONTEMPORÂNEA16
3. 
Filosofia e história da cultura
Se a disciplina de filosofia contempor‰nea se prende com a hist—ria da
filosofia em geral, e com a hodierna em particular, tambŽm se prende, obvia-
mente, com as genericamente designadas Hist—rias da Cultura, das Ideias,
das Mentalidades, com uma Sociologia do saber.
A ausncia, nos curricula atŽ agora vigentes, de uma disciplina desta
’ndole, dificulta, quanto a mim, a compreens‹o, quer de ˙fil—sofos¨, quer de
˙tendncias¨ ou correntes que preferentemente marcaram certas Žpocas,
designadamente a contempor‰nea.
H‡ lacunas no que se refere ao conhecimento hist—rico, hist—rico-cultural,
enfim sociol—gico.
Dentro do poss’vel, tentamos inserir autores e correntes de pensamento
no seu ˙habitat natural¨, j‡ que o homem Ž sempre e tambŽm a sua circuns-
t‰ncia: dela emerge como acto livre de pensar e de querer, a ela remete, com
alcance interventivo.
Sintetizando o anteriormente exposto, poderei concluir, para j‡, que a
programa‹o da disciplina de filosofia contempor‰nea ter‡ sempre em conta
a sua conex‹o com os principais universos de discurso do passado, a fim de
habilitar os alunos a uma compreens‹o diferenciadora que Ž, tambŽm ela,
prospeccionadora, aberta ao futuro.
Como se ver‡, figura, por isso, na programa‹o, uma breve referncia
introdut—ria aos universos de discurso antigo, medieval, moderno. Um
œltimo cap’tulo, dedicado ˆs considera›es finais, exercita a pensabilidade
das poss’veis virtualidades que a filosofia encerra, hoje.
No que ˆ rela‹o com a hist—ria da cultura concerne, tentar-se-‡, dentro
do poss’vel, remeter para tais contextos, chamando ˆ aten‹o para a rela‹o
simultaneamente centr’peta e centr’fuga Filosofia-Cultura.
17Introdução FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
4. 
Critérios selectivos do conteúdo
do programa da disciplina
A escolha dos conteœdos do programa de filosofia contempor‰nea
reveste-se das maiores dificuldades.
Referimos algumas delas, a fim de esclarecer os critŽrios que presidiram
ˆ presente selec‹o, e o car‡cter de revisibilidade que esta reveste.
A. Se Ž dif’cil, e sempre convencional, marcar o ˙comeo¨ de uma Žpoca,
no caso da filosofia contempor‰nea tal tarefa Ž muito dif’cil. O hodierno vai
˙avanando¨, e ao fim de mais de um lustre de docncia — como no meu
caso, — verifico que h‡ autores dos quais quase se n‹o falava na dŽcada de
setenta, e que, na dŽcada de noventa, tm uma produ‹o filos—fica de pri-
meira import‰ncia: no dom’nio da filosofia da linguagem, da hermenutica,
da fenomenologia, da teoria cr’tica, da teoria da argumenta‹o, para mais
n‹o citar. Correntes que h‡ trs dŽcadas eram muito influentes e da ˙maior
novidade¨, hoje j‡ n‹o o s‹o; pelo contr‡rio, autores e tendncias ent‹o inci-
pientes, mostram-se actualmente da maior relev‰ncia. Podemos, por outro
lado, constatar tambŽm que nem sempre o mais novo ou recente Ž o mais
importante, e que o genuinamente filos—fico escapa ˆ caducidade.
Imp›e-se, pois, na detec‹o do comeo, uma alternativa: ou fazemos
recuar para um passado, considerado ˙j‡ n‹o t‹o contempor‰neo¨ autores
que, muito embora distantes de mais de um sŽculo, influ’ram decisivamente
na viragem da Žpoca moderna para essa outra Žpoca subsequente que conti-
nuamos a designar de contempor‰nea (e neste caso os conteœdos program‡-
ticos poderiam incidir, com maior deten‹o, na produ‹o ˙mais recente¨),
ou inclu’mo-los na programa‹o, cientes das virtualidades que os nœcleos
matriciais que propuseram s‹o ainda hoje vigentes, num universo de discurso
de que os nossos dias ainda bebem, mesmo e quando deles se querem desen-
vencilhar.
IntroduçãoFILOSOFIA CONTEMPORÂNEA18
ƒ certo que, no dealbar de um novo sŽculo, de um novo milŽnio, se pres-
sentem muta›es, repeti›es radicais, na equaciona‹o do fundamento. A
filosofia — como saber por antonom‡sia — revolve-se violentamente numa
Žpoca que ir‡ ficar, com certeza, como um desses ˙marcos paradigm‡ticos¨
que ciclicamente nos agraciam. Repeti‹o insistente do fundamento hoje,
pressentimentos de virtualidades num esforo renovado de racionalidade
congruente?
Parece-nos claro que as cl‡ssicas divis›es que se estabelecem — para faci-
lidade de compreens‹o —, na hist—ria da filosofia (antiga, medieval, moderna
e contempor‰nea) est‹o a pedir revis‹oÉ
Entretanto, n‹o poderemos excluir dessa t‹o genericamente designada
˙Žpoca contempor‰nea¨, tendncias e fil—sofos que encetaram uma nova era,
ao colocarem o tema da filosofia — o tema do fundamento — no sujeito, como
adiante procurarei demonstrar.
Sem a filosofia do idealismo alem‹o que radica remotamente em Kant, o
universo de discurso contempor‰neo carecer‡ de sentido, O mesmo poder’a-
mos dizer da fenomenologia, da sua inflex‹o ontol—gico-existencial, herme-
nutica. Como compreender autores hodiernos, — Lyotard, Derrida, por
exemplo —, sem seguir o seu percurso que remonta a Husserl para depois
desembocar na teoria da desconstru‹o, ou na filosofia da diferena? K. O.
Apel, numa outra orienta‹o, radica tambŽm da fenomenologia de Heideg-
ger. Como compreender a querela neomodernidade, p—s-modernidade,sem
o conhecimento profundo de Hegel?
Ali‡s, como compreender a filosofia contempor‰nea em geral, sem o
conhecimento de Hegel ou de Husserl?
A estas interroga›es, juntar-se-iam tantas outras, em diferentes sectores,
e ‰mbitos do filosofar.
Instados a optar, encetamos a programa‹o com Hegel, n‹o omitindo as
virtualidades do pensamento kantiano. Temos mesmo uma rubrica dedicada
ao tema, mostrando o tr‰nsito de Kant a Hegel e em que medida Kant Ž
hoje, de alguma maneira, mais revisitado do que o pr—prio Hegel (cf. 2»
Parte, par‡grafo 1.).
B. Para alŽm da detec‹o do comeo, outras dificuldades se apresentam.
Dada a variedade e diferencia‹o de tendncias, no ‰mbito da filosofia con-
19Introdução FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
tempor‰nea, seria imposs’vel abrang-las a todas, no programa de um s— ano
lectivo. A complexidade conceptual da filosofia contempor‰nea torna os dis-
cursos, quase sempre, de dif’cil apreens‹o. A inicia‹o ˆ leitura dos fil—sofos
exige tempo, matura‹o das no›es matriciais. Hegel, Husserl, Heidegger,
s‹o paradigm‡ticos.
Numa outra ordem de pensadores, oriundos, n‹o da chamada filosofia con-
tinental, mas da insular, os textos da filosofia da an‡lise, utilizando linguagem
simb—lica, requerem prŽvios conhecimentos l—gicos. AlŽm do mais, as ra’zes de
um tal pensar s‹o muito diversas das anteriormente referidas, ainda que a pro-
blem‡tica seja a mesma: metaf’sica, ontol—gica, gnoseol—gica, epistemol—gica.
Por outras palavras: Ž muito diferenciada a forma‹o filos—fica que exige
o estudo da tradicionalmente designada filosofia continental, daquela que
exige a filosofia insular. E, no que aos nossos dias concerne, a complexidade
Ž um rasgo caracter’stico do pensamento em geral.
Conhecer simultaneamente Hegel, Heidegger ou Husserl e, tambŽm
Wittgenstein, Strawson, Kripke, Putman, ou qualquer outro representante da
filosofia anal’tica; conhecer, dizia eu, ambas as vertentes, de um modo sufi-
cientemente profundo, reflexivo, cr’tico, em dois semestres, resulta pratica-
mente imposs’vel.
Instados a optar, dedicamos maior aten‹o ˆ filosofia continental. Tal
n‹o significa desvaloriza‹o da filosofia da an‡lise, preponderante, hoje. Sig-
nifica sim, que no contexto actual, quer a organiza‹o dos curricula, quer a
programa‹o, na F.L.U.P., de algumas disciplinas que, com tal tem‡tica se
prendem, vm obviar esta lacuna, minorar a dificuldade. Com efeito, exis-
tindo no curriculum uma disciplina de filosofia da linguagem, ela poder‡
incluir a actual filosofia anal’tica. TambŽm, na l—gica, alguns dos temas de
que a anal’tica radica, poder‹o ser abordados. Por fim, na programa‹o da
disciplina de ontologia, a vertente anal’tica tem merecido um cuidado prefe-
rencial. A selec‹o que fizemos dos conteœdos program‡ticos teve, pois, em
conta, este conjunto de circunst‰ncias.
C. Finalmente, e ainda na linha dos critŽrios selectivos, preferimos a inten-
sidade ˆ extens‹o. Cumprir um programa muito vasto, mas abordado super-
ficialmente, n‹o nos parece filos—fico. Optamos pela deten‹o, em profundi-
dade, nos autores-chave, e em cada um deles, nas no›es-chave, a partir das
IntroduçãoFILOSOFIA CONTEMPORÂNEA20
quais a restante problem‡tica decorre, quase como corol‡rio. Assim, por
exemplo, se se entender bem, em Hegel, o que Ž a l—gica dialŽctica, a identi-
dade como s’ntese integradora, o que Ž, afinal o real idntico ao racional, a
Ideia Absoluta..., mais facilmente se entende a sua filosofia pol’tica, a sua con-
cep‹o de Estado, ou, atŽ mesmo, a sua historiologia, idntica ˆ filosofia.
Incide, portanto, a nossa programa‹o nos conteœdos nucleares da filo-
sofia continental, ainda que se n‹o omitam referncias ˆ filosofia de ra’z
insular, no seu percurso evolutivo: desde as posi›es antimetaf’sicas ˆs actuais
tentativas de reelabora‹o de um novo tipo de ontologia.
Em s’ntese, o fio condutor da nossa docncia ser‡ sempre a detec‹o do
transcendental de cada autor, tendncia ou corrente: ir ˆ ra’z das quest›es,
ao nœcleo que deu origem a determinado pensamento, a fim de se perceber
o seu desenvolvimento e matura‹o, bem como as suas inflex›es em outros
sentidos.
21Introdução FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
5. 
Breve resumo introdutório dos
conteúdos do programa
Na l» Parte do programa — Compreens‹o diferenciadora do Universo de
Discurso contempor‰neo: breve referncia aos grandes momentos paradigm‡-
ticos anteriores — procura-se caracterizar os grandes momentos filos—ficos que
antecederam a contemporaneidade, em ordem ˆ detec‹o da diferena espec’-
fica do universo de discurso contempor‰neo, designadamente no que concerne
ˆ detec‹o do fundamento como sujeito transcendental (n‹o substancial), bem
como ˆs diversas metamorfoses e inflex›es que este sofreu, e vai sofrendo.
Na 2» Parte do programa — O universo de discurso filos—fico contempo-
r‰neo — que constitui, por assim dizer, a base fundamental dos nœcleos tem‡-
ticos a impartir no curso, e que, por isso mesmo, Ž a mais extensa e intensa,
incluem-se as correntes e autores que marcaram decididamente o filosofar
hodierno.
Kant (a que se faz uma breve referncia) Ž assinalado pela import‰ncia da
revolu‹o coperniciana que contŽm, em germe, a detec‹o do fundamento
como subjectividade transcendental. Tal detec‹o condensa a caracter’stica
fundamental da contemporaneidade. A identifica‹o do fundamento com o
sujeito racional pr‡tico por sua vez identificado (reconciliado) com o objecto,
muito embora seja levado a cabo pela filosofia hegeliana, est‡ j‡ esboada em
Kant (e continuada em Fichte). Nos cap’tulos dedicados ˆ Origem Kantiana
do universo de discurso filos—fico contempor‰neo e ao Tr‰nsito de Kant a
Hegel procura-se mostrar como tal percurso se processa.
A filosofia de Hegel como ponto de arranque do pensamento hodierno Ž
um dos temas do programa que merece maior aten‹o. Trata-se de um
Autor complexo, que os alunos, em geral, ainda n‹o conhecem com sufi-
ciente profundidade. Trata-se, por outro lado, de um fil—sofo com influncia
decisiva na filosofia posterior, como se procura mostrar. A programa‹o que
propomos est‡ feita, em certa medida, segundo esta —ptica: como um p—s-
IntroduçãoFILOSOFIA CONTEMPORÂNEA22
-hegelianismo. Ainda hoje, mesmo e quando as reac›es a Hegel s‹o radicais
e contundentes, num estado de destutelamento, irrompem na propor‹o em
que dela dependem: por isso, tais reac›es se ˙reœnem¨ sob a genŽrica desig-
na‹o de p—s modernidade, (filosofia, hist—ria, etc). Toda a Žpoca p—s remete
umbilicalmente ao seu passado, de cujos conteœdos, apesar de tudo, se nutre.
Das cr’ticas ao pensamento hegeliano, destacamos o pensamento de Kier-
kegaard e de Nietzsche. Cada um deles, ˆ sua maneira, influiu em correntes
posteriores, designadamente na fenomenologia da existncia e na filosofia
hermenutica.
A viragem na ˙l—gica do sentido¨ fundacional enceta-se aqui, com inte-
ressantes metamorfoses na concep‹o de sujeito, de critŽrio de verdade, de
realidade como ˙existncia¨, ˙valor¨ ou ˙interpreta‹o¨. TambŽm o equa-
cionamento ˙metaf’sico¨ apresenta uma peculiar transforma‹o.
Husserl e a fenomenologia Ž o segundo momento importante do pro-
grama. Com efeito, trata-se de um fil—sofo e de uma corrente com profunda
influncia na contemporaneidade. Em primeiro lugar, procuramos explicitar
os nœcleos tem‡ticos da filosofia do Mestre, sem perder de vista o fio condu-
tor das nossas reflex›es: a subjectividade transcendental como fundamento
do filosofar contempor‰neo. Imp›e-se, ainda aqui, um confronto com a posi-
‹o kantiana e hegeliana.
Seguidamente, salienta-se a fecundidade de tais nœcleos (o ˙impensado¨
de Husserl) que fecundou correntes marcantes da filosofia, hoje.
D‡-se particular relevo ˆ inflex‹o existencial da fenomenologia, tentando
analisar como se processa este tr‰nsito.
Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty merecem especial relevo, ainda que,
por exignciasde tempo, n‹o possamos abordar com pormenor as respecti-
vas filosofias. De um modo flex’vel, elegemos um destes Autores cada ano, e
de acordo com as circunst‰ncias (preferncias fundamentadas dos alunos,
din‰mica do ano lectivo, e do pr—prio modo como a orienta‹o escolar se for
processando).
Por fim, num cap’tulo epigonal, ao recapitular a matŽria dada, equacio-
namos umas quantas quest›es, prementes, hoje, e directamente implicadas
nos temas que veicularam o nosso discurso.
23Introdução FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
I PARTE
Compreensão diferenciadora
do universo de discurso 
filosófico contemporâneo:
breve referência aos 
«grandes momentos» 
paradigmáticos anteriores
1. 
Justificação do critério adoptado
O critŽrio que nos guia, na demarca‹o dos principais universos de dis-
curso ao longo da hist—ria da filosofia, Ž um critŽrio de l—gica intensiva. Inte-
ressam-nos aqueles pensadores ou aquelas Žpocas, cuja intensidade reflexiva
se mostrou particularmente fecunda, Žpocas e pensadores paradigm‡ticos,
criadores de universos nucleares de sentido; universos capazes de integrar
inflex›es ou radicaliza›es das suas pr—prias no›es matriciais. H‡, com
efeito, um pequeno nœmero de conceitos fundamentais que conformam um
discurso inicial e que possibilitam o seu progressivo desenvolvimento. Um
discurso Ž tanto mais fecundo quanto mais integrador. O estudo da filosofia
transforma-se assim numa hermenutica complexa, numa heur’stica ampli-
ficadora do estabelecimento de conex›es. Estas œltimas devem ser tomadas
em dois sentidos fundamentais: conex›es dentro de um mesmo universo de
sentido, e conex›es entre diversos universos de sentido.
O aluno s— compreender‡ filosoficamente a filosofia hodierna, se for
capaz de a integrar (diferenciadoramente) nos v‡rios universos de sentido
aparecidos ao longo da hist—ria da filosofia. Ele deve, por isso, ser iniciado
na filosofia contempor‰nea, tendo bem presentes os grandes ˙momentos
filos—ficos¨ que precederam a contemporaneidade. Partindo do critŽrio de
intensidade j‡ aludido, n‹o s‹o tantos os grandes momentos hist—ricos de
fecundidade filos—fica; sendo assim, em aulas introdut—rias ˆ tem‡tica da dis-
ciplina, estes ˙grandes momentos¨ devem ser abordados brevemente nos
seus rasgos estruturais.
Poderemos mesmo resumir a hist—ria do pensamento filos—fico do pas-
sado a dois grandes momentos ou per’odos, sumamente concentrados no
tempo e no espao. Per’odos de uma dura‹o muito pequena, onde o pensa-
mento alcanou a maior inventiva e a m‡xima intensidade; momentos este-
lares, criadores, unificantes. O resto da hist—ria do pensamento poder‡ con-
siderar-se como a prepara‹o e o desenvolvimento, a glosa e o aproveita-
mento daquilo que nesses dois momentos se pensou. Per’odos de setenta ou
oitenta anos, protagonizados por fil—sofos agrupados a geniais personalida-
des, e vinculados a uma ‡rea geogr‡fica muito pequena.
O primeiro per’odo corresponderia ao ateniense, cuja dura‹o Ž de mais ou
menos oitenta anos (desde o fermento socr‡tico ˆ morte de Arist—teles, em 322
a.C.). O segundo per’odo, na Žpoca medieval, mediaria entre a segunda metade
do sŽculo XIII e o primeiro tero do sŽculo XIV; destacam-se nele quatro gran-
des inteligncias: Tom‡s de Aquino, cuja obra se desenvolve desde meados do
sŽculo XIII atŽ ˆ sua morte em 1274; Duns Escoto, que morre em 1308, em plena
juventude; Guilherme de Ockam, cuja dedica‹o especulativa termina por volta
de 1315; por œltimo, J. Eckart, que morre aproximadamente em 1328, e cuja
influncia na filosofia alem‹, e designadamente no idealismo, Ž not—ria. Este
segundo per’odo desenrola-se em mais ou menos setenta e cinco anos, numa
pequena ‡rea cujo centro Ž a Universidade de Paris. As repercuss›es deste
momento s‹o talvez mais condicionantes do que as que teve o per’odo ateniense.
Segundo creio, a Žpoca normalmente designada por modernidade est‡ j‡ pen-
sada, nos seus nœcleos matriciais e na sua estrutura fundamental, durante este
per’odo, especialmente por Escoto e Ockam. O mŽtodo especulativo, caracter’s-
tico da Žpoca moderna, tem as suas ra’zes aqui, como mais adiante mostrarei.
A filosofia contempor‰nea, sem dœvida precedida por estes dois universos
paradigm‡ticos de sentido, radica mais directamente de um terceiro, a saber,
do idealismo alem‹o. Este constitui, portanto, a gŽnese do filosofar hodierno.
O per’odo do chamado idealismo alem‹o abre com a edi‹o da Cr’tica da
Raz‹o Pura de Kant, em 1781, e fecha com as li›es que pronuncia Schelling,
depois da morte de Hegel, a partir de 1841, na Universidade de Berlim; nestas
li›es, o fil—sofo estabelece um balano da aventura em que embarcar‡ o pen-
samento alem‹o, a partir de Kant. Hegel morre em 1831. Schelling vive atŽ
1854, e a sua import‰ncia Ž maior do que aquela que normalmente se lhe tem
atribu’do. O idealismo alem‹o abarca aproximadamente setenta anos, e,
embora Kant esteja em Kšnigsberg, o idealismo gravita em torno da Univer-
sidade de Berlim. O idealismo alem‹o Ž uma espŽcie de antecedente directo da
filosofia contempor‰nea, algo em que ainda hoje estamos inseridos. ƒ evidente
que se tenta sair de tal situa‹o, procurando um novo ponto de arranque,
ensaiando outras maneiras de pensar, mas metidos ainda na sua busca.
Passamos seguidamente a uma breve caracteriza‹o dos marcos anterior-
mente assinalados, comeando pelo per’odo ateniense.
I ParteFILOSOFIA CONTEMPORÂNEA28
2. 
O universo de discurso grego
como «teoria»
Se a filosofia Ž discurso racional acerca do fundamento, pode-se dizer
que, neste per’odo, tal discurso Ž teoria, e o fundamento Ž subst‰ncia (ousia).
Se tomarmos como paradigma do per’odo em quest‹o a Arist—teles, cabe
afirmar que a filosofia como teoria Ž simultaneamente actualista e intelec-
tualista. Como se ver‡, teoria, pensamento e opera‹o vital correspondem-
-se, quando tomadas no seu sentido radical.
O pensamento Ž a vida por antonom‡sia. A no‹o de subst‰ncia (ousia),
derivada do partic’pio activo do verbo ser, n‹o Ž apenas um sujeito (hipokei-
mŽnon] de acidentes, meramente passivo e corp—reo (esta acep‹o ser‡ obra
da stoa, em que o sujeito se identifica com a matŽria ou corpo). A subst‰ncia
Ž, assim, um foco activo de eficincias na plenitude do seu ser, do qual bro-
tam os acidentes, mediante o movimento da potncia ao acto. Os acidentes
adquirem um car‡cter essencialmente din‰mico e medial, como desenvolvi-
mento da energia substancial, j‡ que os acidentes deixam a subst‰ncia expri-
mir-se neles, por si mesma.
A subst‰ncia Ž objecto da filosofia primeira, ponto de partida acerca do
ser, que se n‹o concebe como a raz‹o abstract’ssima dos escol‡sticos tardios,
mas como um nœcleo da m‡xima viabilidade actual. A ousia Ž causa do ser,
para todas as coisas, da mesma maneira que a vida o Ž para os viventes. A
ousia Ž acto (como sujeito de qualquer predicado).
Como afirma A. Llano, para p™r de relevo este actualismo: ˙o formalismo
est‡ transcendido, desde o momento em que toda a forma — tanto a real
como a conhecida — encontra o seu œltimo fundamento no acto de ser, que
n‹o Ž um conteœdo formal, j‡ que transcende todos os conteœdos formais; se
o acto de ser carece de conteœdo formal, n‹o Ž por defeito, mas porque —
como adverte Maritain — tem um car‡cter superformal¨.
Por isso mesmo, o primeiro conhecido pelo intelecto Ž o ser como acto,
29I Parte FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
mas n‹o como ens commune; porque, por este, n‹o chegar’amos a conhecer
o primeiro princ’pio do real (o ens commune n‹o Ž sen‹o a ideia mais geral
de todas, objecto maximamente indeterminado, que n‹o seria um transcen-
dental, porque perder’amos o acto, n‹o formul‡vel em termos de eidos).
A teoria aristotŽlica remete assim a uma principia‹o que se n‹o conhece
por eidetiza‹o, por representa‹o; h‡ que ter em conta que o conhecimento
dos primeiros princ’pios n‹o Ž propriamente objectivo, mas habitual. O temada principia‹o Ž muito importante, j‡ que evita o v’cio l—gico do regresso ao
infinito, numa tentativa de demonstra‹o. O princ’pio mais firme de todos,
aquele que necessariamente h‡-de possuir todo aquele que queira entender
qualquer dos entes Ž o princ’pio da n‹o contradi‹o. Princ’pio absolutamente
anterior, j‡ possu’do simultaneamente pelo pensamento em exerc’cio e pela
realidade enquanto energeia e dœnamis, ele Ž condi‹o de possibilidade de
toda a demonstra‹o, n‹o podendo ser demonstrado; h‡, no entanto, raz›es
que abonam em favor da sua fundamentalidade. Os princ’pios s‹o-no da rea-
lidade: devem principiar simultaneamente, quer a ordem do saber, quer a
ordem da f’sica; caso contr‡rio, n‹o teria sentido a sabedoria. 
O n— g—rdio do pensamento ˙cl‡ssico¨ consiste, pois, em estabelecer o
modo de articular a identidade imut‡vel do saber verdadeiro com a preca-
riedade e a transitoriedade do sens’vel que, por outro lado, parece ser o mais
real. Esta conex‹o em Arist—teles remete precisamente ao princ’pio da n‹o-
-contradi‹o. No seu pensamento, principia‹o e causalidade est‹o intima-
mente relacionados. Conhecer principialmente Ž conhecer causalmente: a
busca da essncia de uma coisa n‹o se reduz ˆ considera‹o da identidade da
essncia de uma coisa consigo mesma; isto seria ficar na mesmidade, no qu
ou consistncia de uma coisa como objecto. H‡ que buscar tambŽm o porqu
uma coisa se d‡ noutra. 
No livro Z da Metaf’sica, quando se estuda o sentido exacto da ousia, mos-
tra-se a insuficincia do eidos para explicar a ousia como acto. Por isso mesmo,
quando se afirma que a cincia Ž cincia do universal, h‡ que ter em conta qual
o sentido da universalidade epistŽmica. O ser diz-se de diferentes maneiras e a
universalidade, assim como a formalidade, tambŽm. O Estagirita diferencia
claramente o ser veritativo e o ser real, e aquele jamais subsume plenamente
este. H‡ uma dupla acep‹o fundamental do universal: primeiro, como eidos,
que vai alcanando uma maior universalidade ˆ custa de perda do sentido real
I ParteFILOSOFIA CONTEMPORÂNEA30
(os gŽneros clarificam em fun‹o da extens‹o); segundo, como logos, na medida
em que a universalidade que se mostra alcana a essncia por meio dos pri-
meiros princ’pios. Este œltimo conhecimento — que Ž o propriamente filos—fico
— implica uma referncia ao ser actual.
Neste contexto, a existncia n‹o Ž uma hip—tese ou um postulado, mas um
princ’pio que se possui previamente de um modo incontroverso; os primei-
ros princ’pios operam, s‹o por assim dizer vigentes, antes da sua formula‹o
l—gica. Como afirma L. Polo, ˙o contexto do Estagirita Ž a atitude grega que
se pode cifrar na aceita‹o inquestionada da preeminncia da realidade... a
filosofia assenta e insere-se na realidade sem mais, isto Ž, sem ser condicio-
nada ou relativizada; isto significa que Ž Ôvis‹oÕ e ÔteoriaÕ. O filosofar Ž o est‡-
vel de um encontro, o ter lugar como coincidncia, indiscernivelmente em si
e na realidade... Arist—teles segue a atitude grega, mas desenvolve uma obser-
va‹o original: o estabelecimento do encontro pressup›e uma certa iniciativa
da mente, sem a qual a coincidncia com o real seria unilateralmente f‡ctica;
esta iniciativa traz Ôdesrealiza‹oÕ, e ent‹o o procedimento Ž a abstrac‹o.
Esta desrealiza‹o n‹o Ž, no entanto, passividade, mas sim actividade como
optima‹o formal. A forma, no seu sentido actual, n‹o est‡ limitada por qual-
quer objectiva‹o ou reifica‹o mental, podendo, por isso mesmo, designar-
-se por ÔhiperformaÕ¨.
Esta no‹o de forma reportada ˆ actividade do existente impede qualquer
tentativa de reifica‹o das no›es metaf’sicas do Estagirita, e, consequente-
mente, um dualismo substancialista. Este foi o perigo em que caiu a escol‡s-
tica tardia e a via moderna, substituindo, como veremos, o mŽtodo te—rico
pelo mŽtodo especulativo.
Com efeito, a subst‰ncia aristotŽlica n‹o se pode visionar, como preten-
deram alguns empiristas e positivistas; designadamente Russell, descreveu-a
como um ˙tarugo invis’vel em que est‹o penduradas as propriedades como
os presuntos o est‹o da viga de uma quinta¨. S— se caem nestas afirma›es
ins—litas, se n‹o se tem em conta a n‹o univocidade da palavra ser como exis-
tncia (tema da maior import‰ncia na actual filosofia anal’tica). Se se reifica
a no‹o de subst‰ncia, esta aparece-nos como um composto de dois elemen-
tos, por sua vez ˙reific‡veis¨, suscept’veis de ˙entifica‹o¨ (l—gica e f‡ctica) e,
portanto, imediatamente intu’veis. Disseca-se assim o s’nolon em dois extrac-
tos: forma como ideia comum, universal, unifica‹o indiferenciadora, homo-
31I Parte FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
geneizante; e a matŽria como pura posi‹o no espao e no tempo, pura dife-
rencia‹o ou diversidade, pluralismo inconexo. A partir desta concep‹o
materialista da subst‰ncia, seria a matŽria o princ’pio de individua‹o em
Arist—teles. Ora bem: mas se a matŽria Ž, para este fil—sofo, indefinida no seu
œltimo termo, n‹o Ž capaz de manifestar, por si s—, o poder de individua‹o,
justamente como matŽria-prima. Arist—teles defendeu-se com boas raz›es da
interpreta‹o materialista da subst‰ncia, da considera‹o de um lao mate-
rial unificador (Dem—crito).
A partir da ˙reifica‹o¨ da subst‰ncia — ˙reifica‹o¨ mental ou ˙reifica-
‹o¨ f‡ctica — esta agiganta-se, por um lado como idealidade, como mero
eidos ou representa‹o mental: e temos a metaf’sica essencialista que Ž um
c‰ntico ˆ subst‰ncia (em caso extremo, o monismo da subst‰ncia spinozista).
Por outro lado, temos o desaparecimento desta com o empirismo (Hume): a
subst‰ncia dilui-se na mera facticidade. Em ambos os casos, o que se perde Ž
a realidade, a actualidade do nous aristotŽlico, e, com ela, o alcance ontol—-
gico, transcendente, do pensamento. O ser real reduz-se ao ser veritativo (ˆ
categoriza‹o l—gica); a existncia, ˆ cega facticidade ˙in-significante¨.
No contexto grego, o filosofar n‹o radica do dualismo irredut’vel (gnoseo-
-ontol—gico). Se a realidade tem car‡cter de princ’pio, ela est‡ j‡ necessaria-
mente aparentada com a inteligncia; esta œltima, encontra-se referida a
princ’pios de uma maneira absoluta (da’ o seu car‡cter infinito) e Ž assim a
realidade por antonom‡sia. A inteligncia Ž ˙vivente¨, a teoria Ž vida. Da’
que o nous, no acto de conhecer, seja de algum modo todas as coisas. O cog-
noscente em acto coincide, portanto, com o conhecido em acto. O cognos-
cente n‹o Ž, no entanto, entitativamente, o conhecido. Entitativamente uma
alma Ž uma alma, tal como um gato Ž um gato, e uma pedra Ž uma pedra.
No entanto, enquanto capta intelectualmente, a alma Ž tudo, n‹o de uma
maneira global — porque a totalidade leva consigo uma posi‹o em si —, mas
na referncia intr’nseca a princ’pios. O car‡cter infinito da inteligncia Ž
incompat’vel com uma posi‹o separada desta œltima, incompat’vel com a
opini‹o de que a inteligibilidade s— se d‡ na inteligncia humana. A inteligi-
bilidade d‡-se em tudo: na inteligncia e fora da inteligncia. Se tudo Ž inte-
lig’vel, tudo Ž tambŽm formal, n‹o h‡ nenhum acto que n‹o seja formal. Por
isso mesmo, a realidade Ž ordem. A energia Ž intrinsecamente formal, n‹o h‡
energia nua, e o mundo n‹o funciona por golpes fortuitos, mas sim por cana-
I ParteFILOSOFIA CONTEMPORÂNEA32
liza›es formais; isto quer dizer que as formalidades s‹o causais. As formas
transitam pelo universo, n‹o por sua pr—pria conta (como as ideias viajantes
de Plat‹o), mas intrinsecamente, dentro da energia; s— assim a energia pro-
duz efeitos e Ž, por isso mesmo, energia.
Como se viu, h‡ uma preeminncia do logos na cosmologia aristotŽlica,
eminentemente intelectualista; isto n‹o Ž sin—nimo de panlogismo, na acep-
‹o moderna do termo. Porque a inteligncia aristotŽlica n‹o Ž puro reflexo
da realidade; ela ˙v¨ e ˙toca¨, por assim dizer, o real; ela penetra (intus
legere), l ou recolhe desde dentro, Ž transcendente.Esta dimens‹o de transcendncia da inteligncia tem a ver com o seu
car‡cter pr‡xico e imanentista. A teoria — que resume a no‹o grega do
conhecimento — Ž a forma suprema de vida, Ž a praxis por excelncia. A pra-
xis poderia definir-se como a actividade perfectiva daquele que a exerce. Dis-
tingue-se da poiesis, cujo termo da ac‹o Ž exterior a ela mesma. Esta dife-
rena est‡ bem patentizada na afirma‹o de Arist—teles: ˙Quando vejo,
tenho o visto. Quando edifico, n‹o tenho o edificado. Quando tenho o edi-
ficado, deixo de edificar, quando tenho o visto, continuo a ver¨. A poiesis Ž
o acto inacabado do inacabado, enquanto que a praxis Ž acto perfeito do per-
feito. E a teoria Ž a praxis suprema. Se o homem pensa e pensou, entende e
entendeu, isso significa que a actividade noŽtica n‹o Ž processual, mas acti-
vidade perfeita: o seu exerc’cio Ž o seu cumprimento. Os movimentos ou
energias que se detm num termo (peras), s‹o os que tm raz‹o de meio; s‹o
actio e passio; o movimento quinŽtico, ˙construtor¨, tem termo, transita para
o seu termo, e a’ reside a sua peculiar mobilidade. 
Na praxis, esta mobilidade n‹o se d‡: comparada com a quinesis, a pra-
xis Ž im—vel. Os movimentos vitais n‹o s‹o portanto puramente mediais,
transeuntes, n‹o se transladam de um lado para o outro. Isto significa que o
movimento pr‡xico tem um fim, e tem-no j‡. Por isso, o fim est‡ em pretŽrito
perfeito, quando se trata da praxis; eu vejo, e tenho j‡ o visto. O que quer
dizer que a actividade vital m‡xima — a teoria — n‹o Ž um mero dinamismo
em busca da sua perfei‹o, mas Ž um dinamismo perfeito enquanto se exerce
j‡. Quando penso, tenho o pensado. Caso contr‡rio, eu fabricaria com o meu
conhecimento aquilo que conheo e exerceria o meu conhecimento antes de
conhecer algo. Na opera‹o vital, n‹o se d‡ este hiato, na medida em que h‡
uma ’ntima compenetra‹o, em virtude da qual o movimento tem lugar na
33I Parte FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
mesma medida em que j‡, de antem‹o, se logrou o pr—prio acto; este n‹o Ž
resultado do movimento, mas Ž no movimento mesmo. Aqui fica de relevo o
car‡cter ˙Žxico¨ da teor’a aristotŽlica. Se se v, j‡ se tem o visto. E s— porque
isto acontece — porque a praxis Ž ac‹o imanente — Ž que se pode continuar
a ver; a isto poder’amos chamar hiperformaliza‹o ou transcendncia. Uma
opera‹o que alcanou de antem‹o o seu fim, tem ulteriores ˙fins¨ e, por-
tanto, Ž perfect’vel a respeito de si mesma.
Sendo a actividade da inteligncia a praxis mais excelente, ela Ž a pr—pria
faculdade de transcender. Neste contexto, n‹o se pode opor, em termos irre-
dut’veis, a imanncia ˆ transcendncia. Rigorosamente, s— a vida pode trans-
cender. Aquilo a que mais tarde Tom‡s de Aquino chamar‡ o acto do ser
radica precisamente da no‹o aristotŽlica de praxis.
A no‹o de teoria Ž portanto consent‰nea com a de vida como dota‹o
formal prŽvia. A vida Ž um operar referido a princ’pios chamados faculdades,
e a opera‹o n‹o Ž nenhum movimento que persiga ˙resultados¨, de tal
maneira que nesse movimento exista qualquer tramo din‰mico, carente de
formaliza‹o. Nenhum ser vivo se move, de tal maneira que o seu movi-
mento tenha um tramo anterior a uma configura‹o possu’da. Esta no‹o
cl‡ssica de natureza dotada de forma previamente, pro’be uma eficincia
cega, em busca de uma formaliza‹o ulterior ao seu desencadeamento. 
A congruncia da teoria aristotŽlica reside no facto do dinamismo estar
em estrita contemporaneidade com o pr—prio acontecer. Isto quer dizer que,
nem as formas vitais est‹o fora do dinamismo — simplesmente dadas —, nem
o dinamismo despido de formalidade. Podemos considerar que, do ponto de
vista gnoseol—gico, os erros s‹o incongruncias, ou por excesso de mŽtodo,
ou por defeito de mŽtodo. Deste equil’brio mŽtodo-tema, poderemos desviar-
-nos, ou por excesso ou por defeito. Para citarmos um exemplo, um desvio
por excesso seria o mŽtodo hegeliano, e por defeito a intui‹o intelectual; esta
œltima n‹o Ž vital, porque o que se intui n‹o est‡ suficientemente dotado de
mŽtodo; pelo contr‡rio, o mŽtodo hegeliano n‹o est‡ suficientemente dotado
de possess‹o formal em cada um dos seus momentos, pelo que tambŽm n‹o
Ž vital. O suced‰neo da intui‹o intelectual em Hegel Ž precisamente o movi-
mento dialŽctico que progride desde o ser indeterminado (carente de forma-
liza‹o) atŽ ˆ ideia absolutamente determinada (formaliza‹o conclusa, e,
portanto, n‹o din‰mica ou actual).
I ParteFILOSOFIA CONTEMPORÂNEA34
Em Arist—teles, o conhecimento, enquanto tal, Ž pura congruncia, e n‹o
inclui portanto o erro (onde h‡ erro n‹o h‡ conhecimento). Mas, na medida
em que h‡ seres que n‹o consistem exclusivamente na sua actualidade, na
medida em que h‡ seres que n‹o s‹o capazes de pura praxis — como o
homem — o erro Ž poss’vel; por isso mesmo, viver de acordo com o logos Ž
coisa sobre-humana; s— Deus deveria desfrutar de semelhante privilŽgio; no
entanto, Ž indigno do homem n‹o ir em busca de uma cincia a que pode
aspirar. O homem, enquanto conhece Ž, em certa medida, todas as coisas; ser
em certa medida significa que o eidos (forma ideal) n‹o se identifica sem
mais com a morfŽ (forma real); mas t‹o pouco aquela Ž distinta desta: o eidos
Ž-o da morfŽ, Ž a pr—pria morfŽ em situa‹o de abstrac‹o, pela imperfei‹o
inerente ao conhecimento humano. O que se conhece em situa‹o de eidos
Ž a morfŽ, a forma realmente exercida. 
A forma enquanto conhecida tem a universalidade que, na coisa, est‡
sempre singularizada; por isso, quem abstrai n‹o mente, n‹o junta nada que
n‹o esteja no fundamento, na ousia. E, por isso mesmo, na actividade noŽ-
tica perfeita (noŽsis noŽseos), cognoscente, conhecimento e conhecido s‹o o
mesmo. O conhecimento Ž assim automovimento que n‹o Ž causado. O acto
noŽtico n‹o tem em si mesmo qualquer conteœdo, porque o conteœdo Ž sem-
pre limite (peras), recorte. Na alma humana n‹o h‡ recorte que venha das
formas corp—reas; por isso mesmo, ela Ž um ˙lugar vazio¨ (cheio de todas as
coisas). Porque a alma s— Ž as coisas em certo modo, isso quer dizer que Ž
desde a sua psique corporeizada e que, se est‡ chamada ao acto infinito, em
si mesma ela n‹o Ž tal infinito.
Concluindo, o saber filos—fico como teoria Ž o desvelamento discursivo da
actualidade como prioridade transcendental. Éo conhecimento da forma na
sua actividade mais pr—pria. Conhecer o acto como noesis implica portanto,
conhecer a actividade mais pr—pria do acto. A noesis noeseos Ž o conheci-
mento habitual do acto que est‡ presente no homem. Este conhecimento s—
Ž pleno quando se possui a sabedoria: em rigor, ele Ž pr—prio da divindade;
mas Arist—teles encontra no esp’rito humano esses rasgos do divino, j‡ ˙vis-
lumbrado¨ como Acto Puro.
A filosofia Ž a forma te—rica da sabedoria. Teorizar Ž ter que ver com a rea-
lidade em condi›es tais que esta se desvele, aparea ou se mostre a partir ˙de
si mesmo¨, isto Ž, de um modo fundamental. Historicamente esta defini‹o
35I Parte FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
de filosofia est‡ indissoluvelmente unida ˆ descoberta de uma dimens‹o
humana especial, capaz, em princ’pio, de estrita correspondncia com o real.
A esta dimens‹o desveladora chamaram os gregos nous (intelecto) e a teoria Ž
o desenvolvimento da capacidade intelectual, a sua consecu‹o.
A realidade desvelada teoricamente Ž a realidade formalmente verda-
deira, que se mostra a partir de si mesma, n‹o ˙inquietada¨, (como em
Hegel). O nous abre para o homem o sentido do ser como verdade, na
medida exacta em que permite uma forma de saber humano que n‹o Ž pro-
priamente um saber fazer, embora tambŽm n‹o seja uma forma de passivi-
dade. Poderia caracterizar-se como compartir, respeitando-se, centrando-se
naquilo com que se trata. O nous torna poss’vel a vis‹o da realidade, porque
possui, deixando estar. N‹o Ž um esteticismo passivo de espectador; a teoria
capta o ser sem se separar dele; exige a prim‡ria limpidez do olharintelec-
tual que n‹o turva a verdade no seu ˙mostrar-se¨. 
Filosofar Ž viver a verdade, que tem no ser o car‡cter de fundamento; a
mostra‹o da verdade faz-se desde o pr—prio ser. Esta mostra‹o Ž princ’pio,
e permite a adequa‹o cognoscitiva. O princ’pio da filosofia Ž assim o prin-
c’pio da verdade. Neste sentido, a teoria n‹o obedece a qualquer inten‹o
particular; Ž uma certa autonomia frente ao resto da vida humana, porque,
ao tratar de chegar ao princ’pio, o homem encontra-se com o facto de que
este ˙j‡ est‡ sendo¨, e assim se estabelece intelectualmente na sua verdade.
Neste estabelecimento consiste a ˙Magna Carta¨ do realismo te—rico.
O acesso aos elementos da teoria d‡-se no homem, a partir do sens’vel,
por via abstractiva; o homem capta a essncia das coisas em actos diversos:
ˆquilo que se conheceu, segue-se um novo conhecimento. Aquilo que se
logra, logra-se plenamente, mas nunca se logra a plenitude; isto Ž, quando
conheo a essncia de uma coisa conheo-a plenamente (e assim posso reba-
ter os sofistas). No conhecimento do eidos h‡ intencionalidade, h‡ remetn-
cia ˆ realidade (que n‹o implica capta‹o exaustiva); como afirm‡mos ante-
riormente, o eidos Ž sempre ˙inferior¨ ˆ morfŽ; Ž certo que h‡ uma determi-
nada gan‰ncia, porque elevar a forma a eidos Ž elev‡-la ao status da mente,
superior ao da physis; mas h‡ perda, porque se escapa o ser activo da coisa,
que n‹o comparece como tal (o fogo pensado n‹o queima). 
Por isso mesmo, h‡ sempre remetncia ao ser real; porque h‡ intenciona-
lidade — essncia Ž essncia de —, est‡ sempre presente a necessidade de res-
I ParteFILOSOFIA CONTEMPORÂNEA36
gatar o que se perdeu, resgate que se faz noutro acto; isto exige actividade
judicativa; o s’nolon recupera-se — no conhecimento — a n’vel judicativo, que
Ž onde, rigorosamente, se d‡ a verdade. H‡ que entender a abstrac‹o aris-
totŽlica, n‹o como um recuo do real, mas como um regresso incessante a ele.
Porque o conhecimento Ž abstractivo e intencional, regressa ˆ realidade uma
e outra vez. ƒ neste sentido que se deve entender a reflex‹o. O resultado da
abstrac‹o n‹o Ž algo abstracto: Ž algo tomado de e referido a (ousia, coisa
real). Discursar n‹o Ž sin—nimo de discorrer num logos apartado da reali-
dade, mas reunir (t˜ lŽgein). O homem, porque Ž um ser noŽtico que n‹o tem
noemas, tem que os alcanar discursivamente.
37I Parte FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
3. 
O universo de discurso 
da modernidade como 
«especulação»
Em resumo, no contexto cl‡ssico, o tema ou fundamento da filosofia Ž a
subst‰ncia e o mŽtodo a teoria que, considerada em termos radicais (noesis
noeseos), se comensura exactamente com o fundamento.
Vejamos agora como esta no‹o de teoria se transforma na de especula-
‹o. Tal transforma‹o diz respeito a um dos transes mais importantes do
pensamento humano, do qual dependemos, en grande parte, ainda hoje:
Escoto e Ockam, autores do segundo per’odo anteriormente assinalado,
desempenham um importante papel na gŽnese de tal transforma‹o; s‹o per-
cursores da Žpoca moderna.
O pensamento de ambos os autores prende-se directamente (cada um ˆ
sua maneira) com a interpreta‹o de Arist—teles, na sua intr’nseca rela‹o
com o tema da Revela‹o. Arist—teles aparece como um autor perigoso, j‡
que a sua teoria, eminentemente intelectualista, poderia tornar supŽrfluo o
dado da FŽ. Outra foi a interpreta‹o de Tom‡s de Aquino e a de Eckart,
que, por vias diferentes, aceitam a concep‹o aristotŽlica.
A quest‹o da rela‹o entre Raz‹o e FŽ Ž vital ao longo de toda a Žpoca
moderna. Nesta circunst‰ncia, a quest‹o p›e-se da seguinte maneira: se o inte-
lecto aristotŽlico, eminentemente activo, pode ˙ser¨ de alguma maneira todas
as coisas (na medida em que as conhece), ent‹o o nous poietik—s, como algo de
divino no homem, poder‡ superar, ou incluso prescindir, da Revela‹o. Escoto
denuncia esta concep‹o aristotŽlica, e pronuncia-se acerca do insuficiente tra-
tamento da vontade pelo Estagirita. A vontade Ž algo mais do que mero ape-
tite, mera orexis posta em marcha pelo entendimento; para o Estagirita, a von-
tade, parasit‡ria do intelecto, Ž passiva frente ˆ actividade noŽtica. Se, em Aris-
t—teles, o intelecto est‡ altamente valorizado, a vontade est‡ deprimida; neste
I ParteFILOSOFIA CONTEMPORÂNEA38
ponto, o cristianismo trouxe novas luzes: a vontade n‹o Ž mero apetite, tem os
seus actos pr—prios, a vontade ama; alŽm disso, a vontade pode p™r-se em
Deus, enquanto que o desejo n‹o, porque em Deus n‹o h‡ qualquer apetite.
Muito mais tarde, J. Bohme dir‡ que Deus Ž desejo, introduzindo uma grave
distor‹o no pensamento moderno, com influncia decisiva em Hegel.
O dilema intelecto-vontade, reportado a Deus, poderia formular-se da
seguinte maneira: se a vontade fosse precisivamente desejante, em Deus n‹o
haveria vontade. Mas se em Deus h‡ vontade, ent‹o, nem a vontade Ž pre-
cisivamente desejo, nem a inteligncia Ž prim‡ria, como queria Arist—teles. A
grande transforma‹o operada nos finais do sŽculo XIII, princ’pios do
sŽculo XIV, consiste na discord‰ncia relativa ˆ posi‹o aristotŽlica que privi-
legia a actividade da inteligncia, em contraste com a passividade da von-
tade. D‡-se, por assim dizer, um giro: a vontade Ž o elemento preponderan-
temente activo, e o entendimento preponderantemente passivo. 
Esta passividade do intelecto conota com a sua fei‹o especular: a inteli-
gncia Ž espelho da realidade. Esta œltima ˙coloca-se¨, por assim dizer, de
um dos lados do espelho, e do outro lado est‡ a imagem reflectida; essa ˙ima-
gem¨ corresponde ˆ zona ideal, ˆ raz‹o latu sensu. ConvŽm precisar que
Escoto n‹o nega de modo algum que a nossa inteligncia conhea a reali-
dade, tal como ela Ž; o que afirma Ž que tal conhecimento Ž virtual, ou seja,
que o estatuto que, na minha inteligncia, tem aquilo que conhecemos, Ž,
relativamente ˆ realidade, uma virtualidade. A imagem que h‡ no ˙espelho¨
pensa-se inteiramente, Ž ˙simŽtrica¨: Ž o ˙duplo¨ da realidade reflectida.
Mas, enquanto reflexo, n‹o Ž propriamente real, Ž mental. Aqui est‡ a subti-
leza do Doutor Subtil, que se pode exprimir metaforicamente por especula-
‹o. A palavra latina utilizada por Escoto Ž a palavra ˙tantum¨. O pensado
Ž s— pensado; o pensado n‹o Ž real de nenhum outro modo; enquanto que Ž
reflexo, a realidade est‡ fora.
Se o pensado Ž reflexo, Ž incoativamente um problema; o cepticismo e
agnosticismo que posteriormente surgiu, depende precisamente de que se
tome a imagem, ou o objecto pensado, como reflexo da realidade. Porque,
logicamente, a partir do tantum, pode desenvolver-se uma ˙suspeita¨. Na
verdade, se ˙essentia cogitata est essentia tantum¨, como afirma Escoto, n‹o
se priva de objecto a especula‹o, mas o ser propriamente dito reserva-se
para a vontade; quem penetra o real, quem toma contacto com ele Ž a von-
39I Parte FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
tade, e isto Ž o verdadeiramente activo e real no homem. A vontade controla
o estatuto do pensado, reduzindo-o a si mesmo na sua correspondncia dual
com a realidade. AlŽm disso, a correspondncia Ž um ˙esse¨ diminuto. Deste
modo, parece abrir-se, sem problema, o campo pr—prio da Revela‹o. AlŽm
disso, a vontade Ž espontaneidade; est‡, portanto, desperta; desencadeia-se
por si mesma, sem ter de esperar a not’cia intelectual (perseitas da vontade). 
A interpreta‹o fundamental do ser proposta pelos gregos transforma-se
assim em ˙espontaneismo¨; e daqui radica o c‡racter ˙simŽtrico¨, caracte-
r’stico de toda a filosofia moderna. O intelecto j‡ n‹o penetra a realidade
(intus legere), e a ˙suposi‹o¨ passar‡ a ˙representa‹o¨ no futuro raciona-
lismo. A rela‹o com o real passa a ser transversal , ˙ob-jectiva¨, superficial,
frontal. Comea a perfilar-se a substitui‹o de uma filosofia da subst‰ncia
por uma filosofia da sua representa‹o eidŽtica, com a correspondente entro-
niza‹o da intui‹o como conhecimento filos—ficopor excelncia; perde-se
assim a rela‹o horizontal, de penetra‹o, de transcendncia com o real,
caracter’stica do pensamento te—rico-abstractivo. Com o novo universo de
sentido especulativo, conhecer Ž reflectir o ˙fora¨, a ˙figura¨; porque o ˙den-
tro¨ n‹o se pode reflectir; a menos que se extirpe ou disseque analiticamente,
mas ent‹o j‡ n‹o Ž um ˙dentro¨ propriamente dito. O ˙dentro¨ tornar-se-‡
inacess’vel, furtar-se-‡ ˆ extirpa‹o e ficar‡ s— a exterioridade. Ver ser‡ ˙pre-
ver¨, ˙ante-ver¨, ˙re-presentar¨. Assim, a especula‹o desvia-se da no‹o de
teoria entendida como uma espŽcie de ˙dar ˆ luz da pr—pria luz¨ (uma ˙cin-
tila‹o¨ da entranha do real entendida como logos).
Heidegger considerar‡ esta vis‹o moderna como a desola‹o da ostenta-
‹o pura, encobridora do ser. A no‹o de verdade como adequa‹o entre o
entendimento e a coisa passa a entender-se, desde o ponto de vista especular,
como uma espŽcie de c—pia. A vis‹o especulativa dar‡ azo ˆ suscita‹o (ainda
que de facto em Escoto isso n‹o ocorra) da suspeita de que a adequa‹o n‹o
seja c—pia, mas mera ˙caricatura¨. ƒ a suspeita de que as famosas ˙formali-
dades¨ escotistas n‹o sejam realmente verdadeiras: porque o espelho n‹o Ž
mais do que um ˙Žcran¨, e n‹o propriamente uma energia. O conhecimento
perde progressivamente o c‡racter ˙Žxico¨, actualista, que tinha na teoria. Se
o pensamento Ž ˙precisivamente¨ objectivo, especulativo, Ž impar‡vel a sus-
peita acerca do valor cognoscitivo do nosso pensamento, do seu alcance
ontol—gico. AlŽm disso, como Ž imposs’vel que tudo se possa conhecer de um
I ParteFILOSOFIA CONTEMPORÂNEA40
modo reflexo — porque s— se pode conhecer a superf’cie e nada mais —, est‡
aberto o caminho do empirismo ingls, que se conforma com esta restri‹o.
Por isso mesmo, a intui‹o Ž o modo excelente do conhecimento (intui‹o
intelectual ou capta‹o directa de essncias — essencialismo metaf’sico —, e
intui‹o sens’vel ou capta‹o directa de factos — empirismo positivista).
Ockam, radicalizando o tema da vontade, transforma-a em pura arbitra-
riedade. Se a œnica actividade real Ž a vontade, ela actua sem ter que ver com
nenhum plano ou forma, enquanto tal vontade: a vontade Ž pura arbitrarie-
dade, e n‹o h‡ forma que lhe resista. Caberia ent‹o perguntar: o que se cor-
responde como realidade, com respeito ˆ vontade? A resposta ser‡ a pura fac-
ticidade contingente, mero produto da arbitrariedade de Deus (ou do homem).
Esta Ž a forma mais extremada do voluntarismo. As consequncias de tal posi-
‹o ser‹o graves para a filosofia primeira. Uma vontade como puro arb’trio
gera a ruptura do ˙espelho¨; nisto consiste fundamentalmente o nominalismo,
e, a partir dele, o cepticismo: realmente, n‹o podemos conhecer nada (nem
Deus nem as coisas): Poder’amos encontrar uma ’ntima conex‹o entre esta
asser‹o e o que mais tarde dir‡ Lutero acerca da pervers‹o da raz‹o.
Aquilo que classicamente se designa por Idade Moderna, com in’cio no
sŽculo XVII, tem as suas ra’zes no final da Idade MŽdia. Da vis‹o do homem
como pura vontade, deriva o conhecimento transformador ou tŽcnico. Sendo
o homem o ser mais volunt‡rio e, portanto, com maior poder, compete-lhe
dominar as criaturas. Mas se estas s‹o alheias a tal prop—sito, a domina‹o
poder‡ consistir em transforma‹o degradante. Levada esta posi‹o ˆs suas
œltimas consequncias, poderemos ter a tŽcnica como autntico ˙ataque¨
ontol—gico. A significa‹o antropol—gica do nominalismo Ž profunda e tem
grandes consequncias. Reflectir-se-‡ designadamente na no‹o de medo
c—smico de Hobbes. A sua famosa tese de que ˙homo homini lupus¨ Ž uma
glosa do voluntarismo ockamista, a n’vel humano. O espec’fico do homem Ž
a previs‹o do medo, j‡ que se sente perdido na imensidade do universo, no
puro energitismo espont‰neo de um universo mec‰nico, desteleologizado,
homogŽneo, sem marcos referenciais qualitativos.
A transforma‹o do saber te—rico em saber especulativo acarretar‡ uma
cis‹o gnoseo-ontol—gica, uma separa‹o irredut’vel e frontal entre o sujeito e
o objecto, um dualismo insuper‡vel entre esp’rito e matŽria, pensamento e
extens‹o (pense-se em Descartes).
41I Parte FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
As no›es matriciais do universo do discurso moderno — na sua dupla ver-
tente racionalista e empirista — geram-se, portanto, nos finais da Idade
MŽdia. O mŽtodo especulativo dissocia a realidade em duas regi›es simŽtri-
cas; a subst‰ncia aristotŽlica como sujeito real de predica‹o sofrer‡ uma
idntica dissocia‹o. No caso do racionalismo metaf’sico, ver-se-‡ reduzida ˆ
eidetiza‹o de predicados intelectualmente intu’dos (em casos extremos, a
subst‰ncia ser‡ a hipostazia‹o de um predicado essencial’ssimo). A metaf’-
sica essencialista aparece-nos assim, de acordo com o j‡ referido, como um
c‰ntico ˆ subst‰ncia (o caso mais extremo Ž o monismo da subst‰ncia de
Espinosa). No caso do empirismo, a subst‰ncia aristotŽlica, como sujeito real
e activo, ser‡ considerada progressivamente como um resto, um res’duo que
se difumina (Locke) para desaparecer definitivamente (Hume). A existncia
fica aqui reduzida a pura posi‹o pontual, ˆ cega facticidade.
N‹o podemos, no entanto, abordar o terceiro universo de discurso ante-
riormente mencionado — a filosofia do idealismo alem‹o — sem referir a
import‰ncia da cincia no pensamento moderno, designadamente na filoso-
fia. O mŽtodo experimental de Galileu, a revolu‹o coperniciana na astro-
nomia e a integra‹o sistem‡tica da cosmologia newtoniana contribuem
para reforar, quer o tema, quer o mŽtodo da filosofia especulativa. A inter-
preta‹o moderna do ser est‡ intimamente ligada ˆ revolu‹o por que passa
o conceito de natureza na nova cincia matem‡tica. Os grandes cientistas
desta Žpoca s‹o tambŽm fil—sofos. 
Conhecer a natureza significa, neste contexto, discutir as leis das suas
conex›es condicionais como rela›es matem‡ticas e exactas e reconstruir
univocamente, partindo destas, tudo o que h‡ de individual naquela. Trata-
-se de uma analogia com a matem‡tica pura que constr—i cada figura
mediante os seus fundamentos elementares. Os sistemas ideais das disciplinas
matem‡ticas (por exemplo, o edif’cio da geometria euclidiana, constru’do
sobre a base de escassos axiomas, postulados e defini›es) s‹o os que devem
dar o exemplo para toda a interpreta‹o cient’fica das coisas. O sistema das
leis da natureza real Ž assimilado integralmente ˆ conex‹o ordinal (por
influncia da matem‡tica). A natureza parece resumir-se a um conjunto de
puros princ’pios ideais; por isso mesmo, a cincia est‡ em condi›es de cons-
truir a realidade, uma vez conhecidos os princ’pios.
Como afirma Heimsoeth, na sua obra A Metaf’sica Moderna, o pathos
I ParteFILOSOFIA CONTEMPORÂNEA42
deste conceito da natureza e a certeza do xito do pensamento construtivo
transmitem-se ˆ metaf’sica. H‡ tambŽm um pathos religioso que se enlaa
com este impulso do conceito de natureza. Estar na raz‹o divina, una, requer
uma ordem universal e infinita, uma harmonia inquebrantada das raz›es de
ser. A racionalidade ontol—gica de todo o real (sistemas de ˙raz›es¨ de ser e
de necessidades) aparece como uma consequncia essencial da origem unit‡-
ria de todas as coisas num mesmo princ’pio espiritual, supremo e unit‡rio.
Deus Ž o grande matem‡tico, o arquitecto universal, cujos c‡lculos e cons-
tru›es representam o sistema do universo. Todo o real Ž racional-ideal, e o
grande livro da natureza est‡ escrito em letras matem‡ticas. 
Enquanto que a cincia em Arist—teles se integrava no sujeito como
h‡bito, aperfeioando indefinidamente a faculdade intelectiva e volitiva de
quem a exercia, no racionalismo conserva-se ou retm-se a cincia como um
Iivro, como um conjunto de representa›es sistematicamente deduzidas a
partir de princ’pios ou axiomas. A constru‹o da realidade efectua-se
mediante a combinat—ria de elementos atom’sticos, elementos r’gidos, sob a
inspira‹o do tratado

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