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COMISSÃO GULBENKIAN

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Prévia do material em texto

I:WO:>(l1l300
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ISBN-972-1-04099-1
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5 "601072"003040
100304961
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BIBLlOT~cAjtc. . .....~
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ASCIENCIAS
SOCIAIS
Relatório
da Comissão Gulbenkian
sobre a reestruturação
das Ciências Sociais
PUBLICAÇÕES' EUROPA-AMÉRICA
----
FERNAND BRAUDEL'
t:;:;
I
...
I':
1
I
I
A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA
DAS CIÊNCIAS SOCIAIS,
DO SÉCULO XVIII ATÉ 1945
Pense-se na vida como um imenso problema,
uma equação ou, melhor ainda, uma família de
equações em parte dependentes mas também parcial-
mente independentes umas das outras ... subenten-
dendo-se que tais equações são bastante complexas
e cheias de surpresas e que muitas vezes somos inca-
pazes de lhes descobrir as «raizes».
,,
-:
A ideia de que somos capazes de reflectir de uma maneira
inteligente sobre a natureza do ser humano, sobre as relações
que este mantém com os'seus semelhantes e com as forças es-
pirituais, e sobre as estruturas sociais que ele mesmo criou e
dentro das quais se move, é uma ideia pelo menos tão antiga
, Prefácio a Charles Morazé, Les bourgeois conquérants (Paris: Liv. Ar-
mand Colin, 1957).
15
..
C:OlvIlSSIW (/(/l./lliNf,'/IIN
qunnto n pl'(ípl'lll hl/'ll(~rln vonhccidc. Estas são questões já
v{\I'HndnH I'nntopt\IOf
'
texlOH religiosos que chegararn até nós,
('01110 Ill\lmlll\xh)H [I quechamamos filosóficos. E há ainda a
Hnl")(\dol'loornl trunsmitlda ao longo dos tempos e tantas ve-
ln O rcgisto escrito. É evidente que muita desta sa-
Iwd()I'i o ro i rcsLIltado de UITlprocesso' de recolha indu tiva,
11nH111 aiti d iversas paragens e ao longo de UlTIgrande período
lc tempo. feita a partir da plenitude da experiência vivencial
hurnana, não obstante os resultados serern apresentados sob
" forma de revelação ou de UlTIadedução racional a partir de
algumas verdades eternas e intrínsecas.
Aquilo a que hoje chamamos ciências sociais são o her-
deiro desta sabedoria. Mas trata-se de UlTIherdeiro distante
e porventura frequentemente ingrato e nada reconhecido, já
que as ciências sociais se defiriirarn a si próprias C01l10sendo
a busca de verdades para lá dessa sabedoria obtida por le-
gado ou dedução. As ciências sociais constituíram UlTI
ertrpreerrdirnentodo rnurido moderno. As suas raízes lTIergu-
lham na tentativa - UlTIatentativa plenamente arnaclurecida
já desde o século XVI, e que é parte integrante da construção
do nosso mundo moderno - de desenvolver UlTIsaber siste-
mático e secular acerca da realidade, que de algum modo
possa ser empiricamente validado. A esse saber chamou-se
scientia, UlTIapalavra que significavasimplesmente conhe-
irnento. É claro que, etimologicamente, filosofia também
ignifica conhecimento - ou/ mais exactamente, o gosto pelo
nhecimento,
hamada visão clássica da ciência, dominante desde há-----vários séculos, foi erigida sobre duas premissas. UlTIadelas
fo iomodelo newtoniano, segundo o qual existe UlTIasimetria
/6
PARA ABRIR AS CIÊNCIAS SOCIAIS
'.
ent:e ..2-'pass~c!~_~-ºJ:t-!tl!Xº,~Estava-lhesubjacente UlTIaE~.r.s-;
p~;gÇl~qllase ,t~.ol.~giç~_ª..exemplo de Deus, nós podemos
chegar a certezas, e por esse motivo não precisamos de
distinguir entre passado e futuro, UlTIavez que tudo coexiste
nUlTIeterno presente. A.segunda premissa foi o d~~~§!110c~=
t:siat:t0' ou seja, o pressuposto de que existe UlTIadi?,!i}"!ç~º
fundamental en tre a na tllJ'~.~S seres l~':.':.~os, entre ama-
'téria e ~!p.-~.!.1te,entre o mundo físico e o mundo sociªl/ espi-
rituaL Quando, no ano ele]663, redigiu os estatutos da Royal
Society, Thomas Hooke fixou C0l110 objectivo desta «aurnen-
tar o corihecirnen to
úteis, Manufacturas, práticas IVICCflI1ICDS, IVIDQlunaS e mven-
ções pela via da Experiment
que não entrem o Divino, a M
tica, a Retórica, ou a Lógíca-". UIHCH CStOLutOH truuuzto m
já, assim, a divisão entre os rnod
Snow iria mais tarde designar por «as ciuns CLlIIUI'nfl»,
A ciência passaria a ser definida
versais da natureza que se manti v
das barreiras de espaço e tempo. AI
tituindo a evolução das concepções
século xv ao século XVTlI, observou o'
o universo infinito da nova COS1...,'"
duração e na extensão, no qual a r
acordo COlTIleis eternas e necessárias, se I
e sem objectivo no espaço eterno, havia her
2 Apud Sir Henry Lyons, The Royal Society, 1660-1940 (NOVA IClrCJlI
Greenwood Press, 1968), p_ 41.
Díverscs - 2 17
COMISSÃO GULBENKIAN
os atributos ontológicos da divindade. Mas só estes:
quanto aos outros, Deus, ao partir do mundo, levou-os
com Ele3.
Os outros atributos do Deus agora ausente eram, é claro,
os valores morais do mundo cristão, tais como o amor, a
humildade e a caridade. Neste seu texto, Koyré não se pro-
nuncia sobre os valores que os vieram substituir, no entanto
sabemos que, ao sair de cena, Deus não deixou atrás de
Si, propriamente, um vazio moral. Se os céus se alargaram
para além de todos os limites, a verdade é que as ambições
humanas não lhes ficaram atrás. O progresso passou a ser a
palavra de ordem - dotada agora deste recém-adquirido
sentido de infinitude, e reforçada pelas conquistas materiais
da tecnologia.
O «mundo» dé que fala Koyré não é o globo terrestre, mas
sim o cosmo. De facto, poder-se-ia afirmar que por essa
mesma altura a percepção do espaço terrestre no mundo oci-
dental sofria uma transformação de sentido inverso, ou seja,
no sentido da finitude. Para a maioria das pessoas, só com as
viagens dos descobrimentos que cruzaram o globo é que a
terra acabaria por fechar-se na sua forma esférica. Écerto que
a circunferência desta esfera era muito maior que aquela que
Colombo havia imaginado, mas ela era, apesar de tudo, fini-
ta. Além disso, por efeito do uso e com o decorrer do tempo,
essas mesmas viagens de descoberta viriam a fixar as rotas
3 Alexandre Koyré, Do Universo Fechado ao Universo Infinito (tradução
de Jorge Pires; Lisboa: Gradiva, s/d), p. 269.
/8
'.
i9
PARA ABRIR AS CiÊNCIAS SOCIAIS
comerciais e o subsequente alargamento da divisão do tra-
balho, factores que, por sua vez, iriam fazer encurtar decisi-
vamente as distâncias sociais e temporais.
Contudo, essa finitude da terra não constituiu fonte de
dissuasão, pelo menos até tempos recentes. Enquanto a visão
ideal de um progresso ilimitado se alimentava da infinidade
de tempo e espaço, a concretização prática do progresso nos
assuntos humanos por via do avanço tecnológico dependia
da disponibilidade do mundo para se deixar conhecer e ex-
plorar, de uma confiança na finitude deste quanto a certas di-
mensões-chave (com destaque para a sua epistemologia e
geografia). Com efeito, era crença geral que para atingir o
progresso se impunha que nos livrássemos completamente
de todas as inibições e de todas as restrições, enquanto des-
cobridores apostados em desvelar os segredos mais recôndi-
tos e em sugar os recursos de um mundo mesmo ao alcance
da mão. Parece que, até ao século xx, a finitude da esfera ter-
restre serviu antes de tudo para facilitar as viagens explora-
tórias e a própria exploração exigidas pelo progresso e para
dar exequibilidade às aspirações de dominação ocidentais.
No século xx, à medida que as distâncias terrestres começa-
vam a encurtar a pon to de se afigurarem constrangedoras, as
limitações da terra puderam ser evoca das como um incenti-
vo mais para as arremetidas exploratórias (agora também pe-
los confins do espaço celeste) necessárias ao alargamento
dessa esfera de dominação. Em suma, a morada do nQSSOvi-
ver presente e passado passou a assemelhar-se menos a um
lar e mais a uma rampa de lançamento, lugar a partir do qual
nós, enquanto homens (e umas tantas mulheres) de ciência,
'(/MISSi\() lill/,/II'NiI/,'IN
ionando-nos como
cósmica.
-chave sejam progresso e
não fica completo sem recorrer a, unidade, simplicidade, domínio, e
universo». As ciências da natureza, tais
rarn construídas no decurso dos séculos XVII e XVIII/
provieram. primordialmente doestudo da mecânica celeste.
Inicialmente, aqueles que tentaram estabelecer a legitimi-
dade e prioridade da demanda científica das leis da natureza
quase não fizeram destrinça entre a ciência e a filosofia. Do
mesmo modo que distinguiam os dois domínios, assim os
consideravam aliados na busca da verdade secular. 'Mas à
medida que o trabalho experimental e empírico se tornava
cada vez mais crucial para a visão da ciência, a filosofia sur-
gia cada vez mais aos olhos da gente das ciências naturais
como mera substituta da teologia, igualmente culpada de
asserções de verdade apriorísticas não passíveis de serem
postas à prova. Nos p~incípios do século XIX•...a divisão do
conhecímentnemdcíadcmíníos havia descartado a noção de
que se trataria de duas esferas «separadas mas iguais», para
assumir - pelo menos na perspectiva dos cientistas natu-
rais - o aspecto de uma hierarquia: o conhecimento tido
OlUO C~!tgjs!:~!lç.§),por oposição ao conhecimentoimagi-
~ e mesmo imaginário (a não c~~.nci.~).Finalmente, seria
também por volta do início do século ~ que o triunfo da
se iria firmar do ponto de vista linguístico. O termo
provido de adjectivo qualificativo passou, então,
r associado primordialmente (e muitas vezes exclusi-
20
I
i. I
~
I
!
I
I
I
I
l
PARA ABRIR AS CIÊNCIAS SOCIAl
vamente) às~iências da natureza". Este facto assinalou o cul-
minar da tentativa das ciências naturais para chamar a si uma
legitimidade sócio-intelectual que era de todo distinta - e na
verdade até contrária - de uma outra forma de conheci-
mento chamada filosofia.
A ciência, ou seja, a ciência da natureza, foi objectode uma
definição mais clara do que o seu contraponto, para o qual o
mundo -~ã;-~heg;·~~~~~~~~:~q~er"ã!i.~º-i:ª~t n:~l~.~.().~~ úni~().
Umas vezes designada por artes, outras vezes chamada
humanidades, outras ainda letras ou belles-leures, e ainda de
outras vezes apelidada filosofia, simplesmente «cultura» ou,
como sucede em Alemão, Geisteswissenschaften, a alternativa
à «ciência» foi assumindo uma face e uma ênfase variáveis,
uma falta de coesão interna que não foi de molde a ajudar os
respectivos praticantes a defender a sua causa junto das auto-
ridades, principalmente. se se considerar a sua aparente in-
capacidade de oferecer resultados «práticos». Com efeito,
começara a tornar-se evidente que a luta epistemológica por
aquilo que se considerava ser o conhecimento legítimo já não
era uma luta para saber quem havia de controlar o conheci-
mento relativo à natureza (já que os cientistas naturais haviam
claramente adquirido direitos exclusivos sobre este domínio
por volta do século XVIII), mas antes uma luta em torno de
4 Este fenómeno transparece claramente tanto em Inglês como nas lín-
guas românicas. É menos claro em Alemão, onde a palavra Wissensclltljl'
continua a ser utilizada como termo genérico para o conhecimento sistcmá-
tico e onde as ch~madas «humanidades» são designadas por Geistesune-
senschaften, o que à letra significa conhecimen to das co.isasdo espírito ou dn
mente.
21
COMISSÃO GULBENKIAN
quem havia de controlar o conhecimento relativo ao mundo
humano.
A necessidade, sentida pelo Esta~?~~ de ]2.Q.ssuir
u~ C~~~C!_I!l:~!:!~gJ!1_ªiselCa.S::!Q~o]:>r€.9gua]J:>.~d~_~?ebasea~ as
suas decisões havia conduzido ao surgimento de novas cate-----' ---=_'.~p~ ..~_._--.,---.__._--
gorias de conhecimen~o já no século XVIII; no entanto, tais ca-
tegorias afiguravam-se ainda incertas nas suas definições e
frorrteiras. Os filósofos soc_!ai~~omeçaram, então, é!_Lalarde
"-'-".'-'.- _.-- ' ~----_.--
uma «fí~!<:~~<?~C?~ial}),e os pensadores europeus começaram
a reconhecer a existê~5~a, no mundo, de ~~tiplas espécies
de s~~!~m~~.2çiªis (<<comoé que se pode ser persa?»), cuja
variedade se impunha explicar. Foi neste contexto que a~i-
vers.igade (que em larga medida se revelara uma instituição
moribunda desde o século XVI, por força da sua anterior liga-
ção estreita à Igreja) foi revitalizada nos finais do século XVIII
e princípios do século xrx.rtornando-se o lugar institucio_ll_':!.
preferencial E.ara a criação de conhecimento.- -----_ .._--------_.~--
A universidade conheceu, assim, um processo de revitali-
zação e transformação. As faculdades de Teologia perderam
importância - por vezes desaparecendo completamente, de
outras vezes dando lugar a simples departamentos de es-
tudos religiosos no interior das faculdades de Filosofia. As
faculdades de Medicina mantiveram a sua função de centros
de formação prática numa área profissional específica, de-
finida agora inteiramente como conhecimento científico
aplicado. Seria, antes de mais, no interior das faculdades de
Filosofi~ (e, em grau consideravelmente ~o~, nas faculda-
des de I?~r~i!9)_CIueiriam ser erigidas as modernas estruturas
do conhecimento. Seria, enfim, na faculdade de Filosofia
(que em muitas universidades se manteve estruturalmente
~J ..'
"
PARA ABRIR AS CIÊNCIAS SOCIAIS
,.1
unificada, mas que noutras conheceria um processo de sub-
divisão) que os praticantes tanto das artes como das ciências
naturais iriam penetrar para aí edificarem as suas múltiplas
estruturas disciplinares autónomas.
A história intelectual do século XIX é marcada, antes de
"'-'--'-~---- _-_ .._- -.-._, .-- .._ _- ,-, _ ..•.._-
tudo, por este processo de disciplinarização e l2.E0fi§sioilali----=_.~-----,-.._..__..- _.~-,-- &._-
zação do conhecimento, que o mesmo é dizer, pela criação de
estrü.tur;;s·'i~stitü.cfà-n-';;-ispermanentes destinadas; simulta-
neamente, a produzir um. novo conhecimento e a reproduzir
os produtores desse conhecimento. A criação de disciplinas
múltiplas teve por premissa a crença segundo a qual a inves-
tigação sistemática exigia uma concentração especializada
nos múltiplos e distintos domínios da realidade, um estudo
racionalmente retalhado em cachos de conhecimento perfei-
tamente distintos entre si. Essa divisão racional prometia ser
eficaz, ou seja, intelectualmente produtiva. As ç~.~~.c;i._<.tsna-
turaisnão tinham ficado à espera da revitalização da uni-
versidade para gerarem uma vida institucional autónoma. A
razão por que puderam actuar mais cedo foi po~q1,1~conse--- ...-.----_._ ..__ .---_._~-~-----_._- -
guiram angariar apoig_~<?<;:i.9_L~.I?()lí.tiçoa troco da promessa
de produzirem resultados práticos traduzidos numa utili-
dade imediata. O crescimento das academias reais durante
os séculos XVII e XVIII e a criação, por Napoleão Bonaparte, das
grandes écoles reflectem a disposição de promover as ciências
naturais por parte dos governantes. Os cientistas naturais
não precisavam sequer, porventura, das universidades para
levarem a cabo o seu trabalho.
E foram, de facto, outros estudiosos que não os das ciên-
cias naturais - os historiadores, os classicistas, os estudiosos
das literaturas nacionais - quem mais fez para revitalizar a
23
,
'1M IISSiII I tlllll/iJNlliAN
1llllvlII'Hltlndll11111'1111111(\ nl"l'ldo XIX, LIS<1I'ldo-acomo 1.111.'1 me-
lli1~1111i111111'1111nlillllll;tlO dI: npolo estatal aoseu trabalho de
I1Vlliillp,i\(;r!o, IOl~H n ITnIrn m os cientistas naturais para o inte-
1'1111'dll/1 11()I,(\t1~I'IlI'<':Restruturas universitárias, beneficiando
II-Ifllllldu pC\I'fll positivo que os caracterizava. O resultado,
1101'1'111,(oi que a partir de então as universidades passaram
.spaço privilegiado da permanente tensão entre as
11'1<.'1-\ (hLlll1ani~~.d-~.~t~.-ª§._çiên..s::ias,dois modos de conheci-
1,1('11to agora definidos como sendo bast~~.dif.~fgnte..s ou até
dntagónicos.
Em muitos países - com especial saliência para a Crã-
=Bretanha e a França - assistiu -se a uma certa clarificação de
toda esta discussão, forçada pelo surto cultural desenca-dea9:~~!~ R_~v~uçã.? Fr~~ce~a. As pressões no sentido da
efectivação de transformações político-sociais haviam assu-
mido uma premência e uma legitimidade que dificilmente
podiam continuar a ser contidas através da mera procla-
mação de teorias respeitantes a uma ordem supostamente
natural da vida social. Em vez disso, muitos foram os que de-
fenderam que a solução estaria antes em organizar e raciona-
lizar a mudança social que surgia agora como inevitável num
mundo em que a soberania do «povo» passava cada vez mais
a constituira norma, sem dúvida na tentativa de limitar, por
essa via, a extensão do fertórneno. Mas se o que havia a fazer
ra organizar e racionalizar a mudança social, a verdade é
.1e primeiramente se impunha estudá-Ia e entender as re-
ras que lhe subjaziam. Verificava-se, assim, não apenas
xistir um espaço para aquilo a que viríamos a chamar ciên-
is, mas também uma profunda necessidade social
seu surgimento. Além disso, parecia ainda evi-
21/
••
PARA ABRIR AS CIt.NCIAS SOCIIII
dente que, nesse esforço de organizar uma nova ordem social
sobre uma base estável, quanto mais exacta (ou «positiva»)
fosse a ciência, melhor. Com esta ideia em vista,muitos
daqueles que - sobretudo na Crã-Bretanha e na França ------_ .._----_._------------
começaram a lançar as bases das modeJ;".!:!:ª$.çignc.Íi:ls$ociais----_-..._---_._-----_ ..,.. -_._-- --.- .._.-,
na primeira metade do século XIX volrararn-se para a física
newtoniana, tomando-a como modelo a seguir.
s>uh·.~,·~~i~·pr~~--'=up~ªgie~~rep<?f~Uitfé!él?~-~~~~~I_dos_
Estacios. que tinham conhecido a n:!:e.b:~~ou que por ela se
viam ameaçados, vo!t~~~:-.s~_ E.(i~<3._a_<:..riaç~g_.~..as n~r:.:~.!i~as
históricas naciona!~.=- narrativas agora mais centradas nos<--------~--'--- -" ~_.-.'-- .-.---
«povos» do que nos.príncipes - como forma de escorar as
novasou potenciais soberanias. A reformulação da «histó-
ria» em termos de geschichte - isto é, de um acontecer real e
efectivo - fez com que ela conquistasse credenciais inata-
cáveis. A história deixaria de ser uma hagiografia de justifi-
cação de ~~n~as para se tornar um v~dad_eir~rela..!Q.<!o
passado, capaz de explicar o preser:.!~~_c:!~_2f~!~s_er_~. basf.ê..--_._ ..__ _ ~.-" -.-- _-- _---_ .. - -,,"- ..- _.'.- ..~..--._ .. -. _. ".
para uma escolha avisada n0ut!1rQ. Este tipo de história (ba-
seada na investigação empírica de arquivos) associou-se às
ciências sociais e naturais na rejeição da «especulação» e da
«dedução» (práticas acusadas de serem mera «filosofia»).
Mas precisamente porque se preocupava profundamente
com as histórias dos povos na sua grande diversidade ernpí- .
rica, é que este tipo de história encarava com suspeição e at
hostilidade as tentativas dos expoentes da nova «ciência so-
cial- no sentido de generalizar, ou seja, de estabelecer lei
universais para a sociedade.
No decurso do século XIX, as várias disciplinas como eu
I
f;
2.5
COMISSÃO GULBENKIAN
se abriram em leque cobrindo toda uma gama de posições
epistemológicas. Num dos extremos situava-se a matemática
(uma actividade de natureza não empírica), e lo~o encostadas
a ela as ciências naturais experimentais (perfiladas, por sua
vez, numa espécie de ordem decrescente segundo o respec-
tivo grau de determinismo - a física, a química, a biologia).
No extremo oposto achavam-se as humanidades (ou artes e
letras), começando pela filosofia (contraponto da matemá-
tica enquanto actividade não empírica), seguida do estudo
das práticas artísticas formais (as literaturas, a pintura e a
escultura, a musicologia), que na sua prática concreta se
aproximavam muitas vezes da própria história, ao prefigura-
rem-se como uma história das artes. Por fim, entre as huma-
nidades e as ciências naturais ficava o estudo das realidades
_,_._. .. ~ .••._~~---_.-_._._, ••.•_.-----~.-_ .•.•-_ •._--_._ .••• " _"o" -' - .•.•----'---'---~ -
soçj.~is,c::<:)J:Il..~J:ti.?!_~~~aiidiggráfica)a situar-se junto das facul-
dades de artes e letras ou mesmo no seu interior ,e comas
«ciên<::iA~_~ç~-ªi.§.~(!!ºmºté.!iç_as)na pr.ºxiIIlÍ:ci~~~.9-asciências
dª:rtª.t.ucr:e~-ª..Postos perante uma separação cada vez mais rí-
gida dos saberes em duas esferas diferentes, cada uma delas
com a sua ênfase epistemológica própria, os estudiosos das
realidades sociais viram-se como que entalados e profunda-
mente divididos por estas questões epistemológicas.
Tudo isto, porém, se desenrolava num contexto em que a
ciência (newtoniana) havia triunfado sobre a filosofia
(especulativa). afirmando-se como a incarnação mesma do
prestígio social no mundo do conhecimento. Augusto ÇOlIl:-:-
te tinha-se referido ao corte entre ciência e filosofia em termos- ._--~---~'"-"-----------_._--~
de um divórcio, não obstante ele representar de facto, antes
de mais, uma rejeição da metafísica aristotélica e não tanto de
preocupações filosóficas propriamente ditas. Mesmo assim,
26
'.
PARA ABRIR AS CIÊNCIAS SOCIAIS'
as questões colocadas pareciam bem reais: será que o mundo
é regido por leis deterministas? ou será que há lugar;ouca-
bimento, para a inventiva e para a imaginação (humanas)?
Além disso, as questões intelectuais fizeram-se acompanhar
das suas alegadas implicações políticas. Do ponto de vista
político, o conceito de ,leis deterministas afigurava-se mais
. útil às. tentativas de controlo tecnocrático dos movimentos
- potencialmente anarquizantes - apostados na mudança.
E ainda do ponto de vista político, a defesa do particular, do
não determinado e do imaginativo afigurava-se particu-
larmente útil não só para os que se opunham às mudanças
tecnocráticas em nome da conservas;ão das instituições e das
tradições vigentes, mas também para aqueles que se batiam
por possibilidades mais espontâneas e mais radicais de inter-
ferência da acção humana no terreno sociopolítico. Tratou-se
de um debate contínuo mas desequilibrado, que teve como
resultado, no mundo do conhecimento, a circunstância de
em toda a parte a ciência (física) passar a ser colocada num
pedestal e de em muitos países a filosofia ser relegada para
um canto ainda mais esconso do sistema universitário. Neste
cenário, uma das reacções assumidas pelos filósofos consis-
tiu em redefinir as respectivas actividades de maneira mais
consentânea com o eihos científico (veja-se a filosofia analítica
dos positivistas de Viena).
A ciência foi proclamada como sendo a descoberta da
realidade objectiva através do recurso a um método que nos
permitia sair para fora da mente, ao passo que aos filósofos se
não reconhecia mais do que a faculdade de cogitar e de escre-
ver sobre as suas cogitações. Esta visão da ciência e da filoso-
27
(
! '1IAI/SS,1fI 1/11/ lI/NA I,IN
11/1 1'!1I11i11'llItltlll til' 111[111\111'111IIlIIlo 1'101'0 na primeira metade
1/11111'11'1110 \1\ 1'111' ('tlllIl(' I' Mlllulturn crn que ambos os pen-
IIII! 111/'1 'li l'I'\I('lll'r!I'1I 1)1 ('/1Loh<.:l<.:ccl" as regras que iriam presidir
11 1\llIlIrlll'H do mundo social. Ao fazer renascer a expressão
Illlkll H()çI(lI», Corntc tornou claras as preocupações políticas
Itll' () moviam. Era seu desejo salvar o Ocidente da «corrup-
rica» que havia sido «elevada ao estatuto de ferra-
mcn ta indispensável da governação.» por força da «anarquia
intelectual» instalada desde a Revolução Francesa. Na sua
opinião, o partido da ordem assentava em doutrinas desac-
tualizadas (de índole católica e feudal), enquanto o partido
do movimento assentava em teses - absolutamente negati-
vas e destrutivas - bebidas no Protestantismo. Para Comte,
a físicasocialjria.permitir _ªJ~conciliação da.ordem.c .do .
progr~so ao entregar a solução dos problemas sociais a um---=-- ----~----_ ..--~_._-_...__ ._~...._--
«número reduzido de inteligências de elite» dotadas do nível
de instrução adequado. Deste modo, pôr-se-ia fim à Revo-
lução a partirdo momento em que fosse instalado um novo
poder espiritual. A base tecnocrática e a função social da
nova física social tornavam-se, assim, evidentes.
De acordo com esta nova estrutura do conhecimento, os
filósofos tornar-se-iam - para usar uma expressão bem
conhecida - «especialistas em generalidades». O que isso
significava era que eles iriam aplicar ao mundo social a lógica
mecânica celeste (aperfeiçoada pela versão laplaciana do
rotótipo de Newton). A ciênci~p_<?~iti~a visava a libertação
total relativamente à teologia e à metafísica, bem como a
todos os demais modos de «e;pli~ação»-da realidade. «As
nossas investigações positivas [00'] devem limitar-se, sob
28
PARA ABRIR AS Clt.NC/IIS /II/S
todos os aspectos, ao estudo~!l'.!~mático do que é, renun-
ciando e descoberta da causa primeira e do destino finalx".
[ohn Stuart Mill, que no conte~t()J~g!.~ correspondeu, de
alguma forma, ãCômte e que com ele se correspondeu, não
falou de uma ciência positiva mas sim de uma ciência exad'i:
Contudo, o modelo da mecânica celeste manteve-se omesmo:
----------
«[A ciência da natureza humana] fica muito aquém
dos padrões de exactidão que actualmente vigoram na
Astronomia; mas não há razão para que ela não seja
uma ciência corno hoje o é o estudo das Marés ou como
à era a Astronomia quando os seus cálculos davam
conta dos fenómenos principais mas não ainda das per-
turbações»>.
Embora os fundamentos das divisões existentes no inte-
rior das ciências sociais mostrassem uma clara tendência
para cristalizarem já durante a primeira metade do século XIX,
a verdade é que só no período de 1850 a 1914 é que a diver-
sidade intelectual reflectida nas estruturas disciplinares das
ciências sociais teve um reconhecimento formal por parte das
principais universidades, sob as formas por que hoje as
conhecemos. É certo que já entre 1500 e 1850 existira biblio-
grafia respeitante a muitas das questões centrais tratadas
5 Augusto Comte, Discurso sobre o Espírito Positivo (tradução, intro-
dução, tábua cronológica e sincrónica, e notas de [oel Serrão; Lisboa: Seara
Nova, 1947), p. 57.
6 [ohn Stuart Mill, A System ofLogic Raiiocinative and Induciiue, Vol. VTlf
das Collected Works of J0I171 Stuart Mill (Toronto: Univ. of Toronto PrA.,
1974), Livro VI; cap." III, par. 2, p. 846.
29
COMISSÃO GULBENKIAN
naquilo a que hoje chamamos ciências sociais: o funciona-
mento das instituições políticas, as políticas macroeconómicas
dos Estados, as regras que presidem às relações interestatais,
a descrição dos sistemas sociais não europeus. Ainda hoje
lemos Maquiavel e Bodin, Petty e Grócio, os Fisiocratas
franceses e o Ilurninismo escocês, assim como os autores da
primeira metade do século XIX, desde Malthus a Guizot,
passando por Ricardo, Tocqueville, Herder e Fichte. Temos
inclusivamente, no período em questão, algumas das pri-
meiras discussões sobre o tema do desvio social, como por
exemplo na obra de Beccaria.Mas a realidade é que tudo isto
não constituía exactamente ainda aquilo que hoje em dia
entendemos por ciências sociais, da mesma maneira que ne-
nhum dos pensadores aqui mencionados se via ainda a si
próprio a funcionar no quadro daquilo que mais tarde viria
a ser considerado como .as diversas disciplinas do saber ~
A criação das múltiplas disciplinas das ciências sociais
inseriu-se no esforço global empreendido pelo século XIX no
sentido de garantir e de faze!:aV-ª~~ª};-o1J.m.s:onhecjmen.t~ob-
jeçJi.Yº~.~:LQ.bxe.ooª._~<.r:~ªl!.~tª-c:l_~r:~obas~od~o.~chad()~l!l12íricos
(entendidos por oposição ao trabalho de «especulação»). O
intuito era «aprender» a verdade, em vez de a inventar ou
intuir. O processo de institucionalização deste tipo de activi-
dade do conhecimento não foi nada simples nem linear.
Antes de mais, começava por não ser claro se uma tal activi-
dade deveria ser singular ou, antes, dividida em disciplinas
várias, como mais tarde viria a acontecer. Como claro não era
também, inicialmente, qual a melhor via para esse conhe-
cimento - ou seja, que tipo de epistemologia seria mais fru-
tuoso ou até legítimo empregar. E, sobretudo, não era nada
10
'0
PARA ABRIR AS CIÊNCIAS SOCIAIS
claro se as ciências SOCIaISpoderiam de algum modo ser
pensadas como fazendo parte de uma «terceira cultura», si-
tuada - na formulação posterior de Wolf Lepenies - «entre
a ciênciaea literatura». Emverdade, nenhuma destas questões
foi alguma vez resolvida em definitivo. O mais que podemos
fazer será dar nota das decisões efectivamente tomadas ou
das posições maioritárias que se revelaram tendencialmente
prevalecentes.
O primeiro aspecto a registar é onde é que esta instit.!:l_<;'ÍQ-:.o
Il~~i~~çãotevelugar. No decurso do século XIX a actividade
das ciências sociais deu-se em cinco espaços principais: a
Grã-Bretanha, a França, as Alemanhas, as Itálias e os Estados
Uni~i~~.·oÃo~~io!:ia~~oõs·~~!.t:~ioso~~odª-~_l,mi;~!~~da_de;(em-
bõrao~ãotodos, obviamente) en~on.!rayª_~.S~.numde~es cinco
espaços. Quanto às universidades dos restantes países, falta-
va-lhes o peso ou o prestígio internacional das destes cinco.
E até hoje a verdade é que a maior parte das obras oitocen-
tistas que ainda lemos foram ali escritas.
O segundo aspecto a registar é ovasto e diversíssimo con-
junto de nomes de «assuntos» e de «disciplinas» avançados
no decurso do século passado. Todavia, por altura da
I Guerra Mundial verificava-se uma convergência ou con-
senso geral em torno de um punhado de nomes específicos,
ao mesmo tempo que os demais candidatos eram mais ou
menos preteridos. Como adiante veremos, os nqg!es.elILc.au-
~~_~!am,fundamentalmente, cinco: a história, a economia, a
s09g!<?g~~L.~_r:.~êonc~~_polític~ ~~~.!!_<:P_<?!2Zi.a..:Poderíamos
- ---~--- - ---
acrescentar à lista, como de resto veremos também, as chama-
das ciência~~i.en~~s (também designadas por orieritalisrno),
não obstante o facto de estas se não verem a si próprias como
31
'liMISSA!i 11//1 III';NI\'//IN
lllll' l'xplictll'cmos ainda o motivo pelo
rafia, a psicologia e o di-
(IIml Il
I'l'lio.
 pl'll"ncil'odL--r--
lOncininstitucional autónoma foi, de facto, a história. E
•• '_ ' • 0'0 _.~ - --,., ---
llle rruritos historiadores rejeitaram vigorosamente o
1'(") tulo de ciências sociais - como de resto ainda hoje sucede
rn algt.U'\s.Consideramos, porém, que estas disputas entre
s historiadores e as restantes disciplinas das ciências sociais
são divergências internas das ciências sociais, como aqui
iremos procurar demonstrar. É óbvio que a história corres-
pondia já a uma prática de longa data, e a própria palavra é
bastante antiga. Os relatos alusivos ao passado, e em parti-
cular os relatos alusivos ao passado dos povos e dos Estados,
constituíam urna actividade já sobejamente conhecida no
mundo do conhecimento. A hagiografia, por seu lado, fora
sempre objecto de apoio por parte de quem detinha o poder.
O que distinguia a n~,:a <~disciE-~~~a»da his~ria tal como esta
se veio a desenvolver no século XIX era a ênfase rigoro~or-_._------
ela posta na des~~~er!,ade - segundo a famosa expressão de
Leopold von Ranke - wie es eigentlich gewesen ist (<<oque
aconteceu efectivamente»). E isso por oposição a quê? Acima
de tudo, por~窺-ª __ç-ºJ1taLhistórias__imaginadas ou
xageradas, fosse por estas lisonjearem os leitores ou por
rvirem os fins imediatos dos governantes ou de quaisquer
utros grupos poderosos.
Não passará certamente despercebido o facto de este lema
Ranke reflectir em grande medida os temas utilizados
Ia «ciência» na luta que travou com a «filosofia»: a ênfase
na existência de um mundo real e tido por objectivo e cognos-
;,")Iinadas ci~~c~a~~oci~i~~adquirir uma
32
"
PARA ABRIR AS CIÊNCIAS SOCIAIS
natural ....,
rova empírica, a ênfase na neutralidade do
a exemplo do estudioso das ciências
deve buscar a informação que
xistentes (ou seja, a biblioteca,
processosdo seu próprio
studo, lugar por excelência da
spaço onde é possível reunir, ar-
munip ular uma informação objectiva e
rio ou () arquivo, que é o lugar da inves-
pr
lugar d
pensament
reflexão), m
mazenar, controlar
exterior (o laborat
tigação).
Esta rejeição comum
a história e a ciência enquan t
demos- (que omesmo é dizer, n
os h~~t~~~?:9:!?~~~_!"':~~~n:trejeit
facto de esta implicar a busca d
explicar os dados empíricos, era ~~a
busca de eventuais «leis» científicas
--·_· .• 0_,, __ ._. ••• ·• .-~ •• -. -. , ••• ~ •• ,,_~. _ •• ,.u· .•..•.....__ ."...•... . .
reconduziria necessariamente à via d
significado q:uê para os historiador
losofia que explica o porquê de terem síd
âmbito do seu trabalho, não só de espelharcrn
mado da ciência no pensamento europeu, m
surgirem como grandes arautos e defensor
idiográfica e antiteórica. Por isso é que, ao lon
culo XIX, a maioria dos historiadores insistiu na id
pertencia às faculdades de Letras e se mostrou renit
identificar-se com as ciências sociais, essa nova cat
lentamente passava a estar na moda.
Não obstante o facto de alguns dos primeiros histori
res oitocentistas terem encarado a ideia de se abalançarem
:1.,-1-
33
Diversos-3
COMISSÃO GULBENK1AN
uma história universal (numa espécie de derradeiro elo de
ligação à teologia), a acção conjunta dos seus vínculos idio-
gráficos e da pressão social exercida pelos Estados e pela
opinião pública mais informada levou os historiadores a en-
veredarem primordialmente pela escrita,das suas histórias
nacionais, sendo que a definição de nação era mais ou menos
circunscrita pelo recuo temporal do espaço ocupado, no
tempo presente, pelas fronteiras estatais já existentes ou em
vias de construção. Sejacomo for, a ênfase posta pelos histo-
riadores no uso dos arquivos, baseada num conhecimento
contextual e aprofundado da cultura, fez com que a inves-
tigação histórica fosse vista como particularmente válida
quando o historiador a levava a cabo no seu próprio quintal.
E foi assim que os historiadores, que se haviam negado a
continuar a alinhar na justificação dos reis, se acharam na
posição de justificar as «nações» e amiúde os seus novos so-
beranos - os «povos».
Isso seria, sem dúvida, útil aos Estados, mas apenas indi-
rectamente, porquanto terá contribuído para lhes reforçar a
coesão social.Não os ajudou a tomar decisõ~~~nto..às-po-
líti~.ri~ -~;isad~~~-~;;;p~;;~d~~~~·-p;~sente,e por certo
c{lie pouco lhes ensinou quanto às modalidades do refor-
mismo racional. Entre 1500e 1800vários foram os Estados
que se foram habituando a recorrer a especialistas, muitas ve-
zes funcionários públicos, para que os ajudassem na tarefa de
concepção de políticas, sobretudo nos momentos mais marca-
damente mercantilistas dos respectivos percursos históricos.
Estes especialistas ofereceram o seu conhecimento nos mais
diversos âmbitos, como sejam a jurisprudência (um termo
antigo) e o direito das nações (termo novo), a economia
, ~
.14
·:t?~"
PARA ABRIR AS CIÊNCIAS SOC1AIS
".
política (um termo igualmente novo, que designava, de
forma bastante literal, a macroeconomia ao nível das socie-
dades politicamente organizadas), a estatística (outro termo
novo, que inicialmente designava os dados quantitativos re-
lativos aos Estados), e as Kameralunssenschaften (ciências da
administração). A jurisprudência já era ensinada nas facul-
dades de Direito das universidades, e, quanto às Kameraluiis-
senechaften, é no século XVIII que passam a ser matéria de es-
tudo nas universidades alemãs. Contudo, só no século XIX é
que começamos a encontrar uma disciplina ~a~~d~-~~q~o_-:..
I!!!~ªtumas vezes no interior da faculdade de Direito, mas
mais frequentemente na faculdade (por vezes ex-faculdade)
de Filosofia. E dadas as teorias económicas liberais preva-
lecentes no século XIX; a expressão «economia política» (urna
expressão corrente no século XVIII) desaparece, na segunda
metade de oitocentos, em favor da palavra «economia». Ao
descartarem o adjectivo «política», os economistas ficavam
em condições de defender que o comportamento económico
era reflexo de uma psicologia individualista universal e não
de instituições socialmente construídas, argumento que pôde
então ser utilizado para afirmar o carácter natural dos prin-
cípios do laissez [aire.
A presunção de pressupostos universalizantes por parte
da economia fez com que o estudo desta se tornasse muito
voltado para o presente. Em consequência desse facto, a his-
tória económica foi sempre relegada para lugares inferiores
nos currículos da economia, e quando surge como subdisci-
plina essa evolução dá-se mais a partir da história (da qual se
irá parcialmente separar) do que da economia. A única
grande tentativa feita no século XIX no sentido de desenvolver
'u.
t:
35
(
('()MISSMI til/l/I/NtdtlN
IlllllIl'I(.1IH'lflIIUl'lnl 1111\' 1\/111 ImlHI.' n~il1 nomotética nem ídio-
1\1'1'11'11'11, IIIIHI 1111\('1\ (11)\11 huscn uos leis subjacenres a sistemas
111,/11111l'rll'Ilt'II'I'I!',l1do/\ por Limo especificidade histórica pró-
pl'lll, fui ri \.'()IIHII'!H,:1'I0,na área alemã, de um campo do saber
'11(11111\(10 SIIIII/i1'1JJisse/lscltaften. Abrangendo uma mistura de
1/)('1'1'1'1 quI.' (para usar uma linguagem actual) incluía a his-
I órln uconómica e a jurisprudência, a sociologia e a economia,
O CDi11pO em. questão caracterizava-se por acentuar a especi-
(icidade histórica dos diferentes «Estados», abstendo-se de
tabelecer as distinções entre disciplinas que então começa-
vam a ser prática corrente tanto na Grã-Bretanha como na
França. A própria designação de Staatswissenschaften (ou
«ciências do Estado») apontava já para a circuristância de os
seus proponentes procurarem preencher aproximadamente
o mesmo espaço intelectual antes ocupado pela «economia
política» na Grã-Bretanha ena França, desempenhando assim,
por conseguinte, a mesma função de facultar aos Estados um
conhecimento úfil, pelo menos a longo prazo. Esta invenção
disciplinar conheceu um florescimento acentuado, sobre-
tudo na segunda metade do século XIX, vindo no entanto a su-
.cumbir em face dos ataques dirigidos do exterior e de uma
certa tibieza interna. Na primeira década do século XX, as
ciências sociais alemãs começaram a adoptar as categorias
disciplinares em vigor na Crã-Bretanha e na França. Alguns
dos principais vultos das Staatswissenschaften, como Max
Weber, encabeçaram a fundação da Sociedade Alemã de So-
íología. Por altura da década de 20, a palavra Sozialswissen-
hafien (<<ciências sociais») havia substituído a designação
taa tswissenschaften.
,.w~empo que a eCQnmnia -nomotética e voltada
.,6
PARA ABRIR AS CIÊNCIAS SOCIAIS
para o presente - se incrustava firmemente como discipliTl~
dentro das universidades, assistia-se à invenção de uma ou------------._~ __ .. .. ~.
tr~~~~_<:~p!!l"!atotalmente nova: a sociologia. Para o seu inven-
tor, Comte, a sociologia haveri~'aeser-a~~i~ha das ciências,
uma ciência social integrada e unificada e caracterizada pelo
«positivismo» (outro nelogismo criado por Comte). Na práti-
ca, porém, a soci~}_~~~aen_q~~~!~,i~~i_pl~_~9~~~J:!Y-?~ve~~~~e
no decurso da segunda metade do século' XIX principalmente
a partir dainstitucionalização e da transformação,dentro das
t.mi~~~~!~~i~~~ªQ_!~~§~!li()~!:~alizado pelas associa~6;;--p~;;_
a reform~ da s0S:~~<:l:~_c!~,_5=ujoprograma de acção se tinha
ocupado primordialmente do mal-estar e dos desequilíbrios
vividos pelo número imparável da população operária ur-
bana. Ao levarem o seu trabalho para um ambiente univer-
sitário, estes defensores das reformas sociais acabaram, em
grande medida, por abdicar da sua militância activa em prol
de medidas legislativas imediatas. No entanto, a sociologia
manteve sempre a sua preocupação com a gente comum e
com as consequências sociais 'da modernidade. Em parte
para consumar o corte com essas suasorigens filiadas nas or-
ganizações para a reforma social, os sociólogos começaram a
cultivar o impulso positivista que, juntamente com a sua dis-
posição para o estudo do presente, os empurrou, também a
eles, para o campo nomotético.
A ciê2:.ciapolítica enquanto disciplina viria a ê!![gi~p~
mais tarde' __llão porque o respectivo conteúdo - o Estado
contemporâneo e a sua componente política - se prestas
menos à análise nomotética, mas antes de mais devid.
r~sistência oferecida pelas faculdades de Direito_.guant
ceder o monopólio que detinham nesta área. A resistência
37
~
COMISSÃO GULBENKIAN
esta matéria por parte das faculdades de Direito pode ex-
plicar a importância atribuída pelos cientistas políticos ao es-
tudo da filosofia política - por vezes sob a designação de
teoria política -, pelo menos até à revolução behaviorista do
período posterior a 1945. A filosofia política permitiu que
essa nova disciplina que era a ciência política reivindicasse
como sua uma herança que já vinha dos gregos, detendo-se
na leitura de autores desde há muito com lugar firmado nos
currículos universitários.
Mesmo assim, a filosofia política não chegava para justi-
ficar a criação de uma nova disciplina; em verdade, bem po-
dia continuar a ser estudada no interior dos departamentos
de Filosofia, como de resto veio a suceder. Enquanto discipli-
na à parte, a ciência política iria cumprir um outro objectivo;
o de legitimar a economia como--&ciplina autónoma. A-----_._-_.--------_._---_~_---_._ ...-~.~_.•.- .._--_._-._ ...~~-... .,-
economia política fora rejeitada como matéria de estudo com
o argumento de que oEstado e omercado fLmcionavam,e de-
viam funcionar, através de lógicas distintas. Tal facto exigia
logicamente, como garantia, o estabelecimento a longo prazo
de um estudo científico autónomo da esfera política.
Desde o momento em que a história, a economia, a socio-
logia e a ciência política se tornaram disciplinas universitá-
rias no século XIX (e de facto até 1945), o quarteto por elas
constituído não só se limitou a ser praticado nos cinco países
em que elas tiveram, colectivamente, origem, como se dedi-
cou, em grande medida, a descrever a realidade social desses
mesmos países. Não se pode dizer que as universidades dos
cinco países em causa ignorassem o resto do mundo. O que
sucedia é que nelas esse estudo era segregado para disci-
plinas diferentes.
1/-1
PARA ABRIR AS CIÊNCIAS SOCIAIS
A criação do moderno sistema-mundo implicou o encon-
tro - e, as mais das vezes, a conquista -, pelos europeus, dos
povos do resto do mundo. Em termos da experiência euro-
peia e das suas categorias, esses encontros foram o deparar
com dois tipos bastante diferentes de povos e de estruturas
sociais. Havia os povos que viviam em grupos relativamente
pequenos, sem um sistema de registos escritos, desinseridos
. de' qualquer sistema religioso geograficamente amplo, e mi-
litarmente débeis em relação à tecnologia europeia. Recor-
reu-se então a diversos termos genéricos para designar tais
povos: em Inglês, eram normalmente apelidados de «tribos».
Noutras línguas, receberam o nome de «raças» (muito em-
bora posteriormente esta designação caísse em desuso, por
causa da confusão com o uso da palavra «raça- com referên-
cia a agrupamentos bastante mais vastos de seres humanos
feita na base da cor da pele e de outros atributos biológicos).
O estudo destes povos passou a ser domínio de uma nova
disciplina chamada antropologia. Tal como a sociologia ti-
nha, em grande medida, começado por ser uma actividade
das organizações para a reforma da sociedade levada a cabo
fora das universidades, assim também a antropologia come-
çou sobretudo fora das paredes da instituição universitária,
e antes de mais como uma prática de exploradores, viajantes
e funcionários dos serviços coloniais das potências euro-
peias; e a exemplo ainda da sociologia, viria a ser mais tarde
institucionalizada como disciplina universitária, embora se-
gregada das demais ciênciassociais dedica das ao estudo do
mundo ocidental.
Não obstante alguns dos primeiros antropólogos terem
sido atraídos pela ideia de uma história natural da humaní-
39
( f,
r
~l,
COMISSÃO GULBENKIAN
dade de contornos 1.111Iv(~rflniH (eOI\\ {)to} [1()\11-1H\.lpo8t08 estádios
de desenvolvirncnto), 1.111IrH'Hnln manelrn que os prirneiros
til'l.l'\oli"l141do ntl'C\fdoA pela história universal, as
'1\IMl pelo mundo exterior acabaram por
s a tornar-se etnógrafos deste ou da-
n.ormalmente por objecto de estudo os
rrtrav arri nas colónias internas ou externas
respectivos países. Daí resultou, como consequência
quase inevitável, a adopção de uma metodologia muito espe-
cífica, construída em torno do trabalho de campo (respon-
dendo assim à exigência do ethos científico da investigação
empírica) e da observação participante numa área deter-
minada (em resposta à exigência de se atingir um conheci-
mento aprofundado sobre a cultura em estudo, tão difícil de
conseguir nos casos em que a cultura se apresenta como
muito estranha para o cientista).
A observação participante ameaçou desde sempre violar
o ideal da neutralidade científica. Outra ameaça no mesmo
sentido era a que advinha da tentação sentida pelo antropó-
logo (à semelhança do missionário) de se transformar num
mediador entre o povo que estudava e o mundo dos conquis-
tadores europeus, principalmente devido ao facto de aquele
tender a ser um cidadão da potência colonizadora do povo a
estudar (como seja o caso dos antropólogos ingleses na África
Oriental e Meridional, dos antropólogos franceses na África
idental, ou dos antropólogos italianos na Líbia, ou dos an-
tropólogos dos Estados Unidos que se dedicaram ao estudo
ia ilha de Guam e dos índios americanos). O enraizamento
antropólogos nas estruturas da universidade foi o factor
40
"
'PARA ABRil? AS ClCNCII\S socuis
que mais pesou para que estes mantivessem a prática da et-
nografia dentro das premissas normativas da ciência.
Acresce que a busca pelo estado primitivo das culturas
(por um estado de «pré-contacto») empurrou os etnógrafos
para uma crença na ideia de que estariam a lidar - para usar
a penetrante expressão de Eric Wolf - com «povos sem his-
tória». Isso poderá ter feito com que assumissem uma posição
. nomotética e debruçada sobre o presente.isemelhante à dos
economistas. e a verdade é que a seguir a 1945 a antropologia
estrutural viria, efectivarnerite, a conhecer uma evolução
desse tipo. Mas de início foi dada prioridade à necessidade de
justificar o estudo da diferença, bem como de defender a legi-
timidade moral de não se ser europeu. E por isso, seguindo
a mesma lógica dos primeiros historiadores, os antropólogos
resistiram à exigência de formular leis, dedicando-se, na sua
maioria, à prática de uma epistemologia idiográfica.
Mas nem todos os povos não europeus se prestavam a ser
classificados como «tribos». Desde há muito que os europeus
mantinham contados com outras civilizações ditas «avança-
das», como fossem o mundo islâmico-árabe e a China. Essas
regiões eram consideradas como correspondendo a «civili-
zações avançadas» precisamente porque tinham escrita,
porque dispunham de sistemas religiosos que cobriam um
vasto espaço geográfico, e porque politicamente se encon-
travam organizadas (pelo menos por períodos de tempo
alargados) sob a forma de grandes impérios burocráticos. O
estudo dessas civilizações por parte dos europeus começara
com os clérigos medievais. Entre o século XIII e o século XVUl
a sua capacidade militar revelar-se-ia ainda suficientement
forte para opor resistência às tentativas de conquista por
41
COMISSÃO GULBENKIAN
parte dos europeus, sendo por isso olhadas com respeito e,
por vezes, com admiração e até mesmo com uma certa estu-
pefacção e assombro.
No séculoXIX, contudo, e em consequência dos novos pro-gressos tecnológicos europeus, estas «civilizações» foram
transformadas em colónias - ou pelomenos semicolónias -
da Europa. Os estudos orientais, que tiveram as suas origens
no interior da Igreja e que inicialmente tiveram por justifica-
ção ser um auxiliar da evangelização, passaram a ser uma
prática de carácter mais secular, acabando finalmente por
encontrar o seu lugar no quadro evolutivo das estruturas
disciplinares das universidades. Emverdade, a instituciona-
lização dos estudos orientais foi precedida pela do antigo
mundo mediterrânico, ou seja, pelo estudo da Antiguidade
da própria Europa, vulgarmente chamado «cultura clássi-
ca». Tratava-se também de um estudo de uma civilização di-
ferente da da Europa moderna, no entanto a abordagem era
diferente da que era utilizada nos estudos orientais. Assim,
o que esse estudo versava era a história dos povos que eram
definidos como sendo os antepassados da Europa moderna,
em contraste, por exemplo, com o estudo do Antigo Egipto
ou da Mesopotâmia. Explicava-se a civilização da Antigui-
dade como tendo sido a fase inicial de um desenvolvimento
histórico uno e contínuo, que teria culminado com a moder-
na civilização «ocidental». Ela faria, assim, parte de uma sa-
ga única: primeiro a Antiguidade; depois, com as conquistas
dos bárbaros, a continuidade assegurada pela Igreja; a seguir,
com o Renascimento, a reincorporação da herança greco-ro-
mana; e por fim a criação do mundo moderno. Neste sentido,
a Antiguidade não possuiria uma história autónoma, consti-
./
.
PARA ABRIR AS CIÊNCIAS SOCIAIS
,ti
tuindo antes, de facto, como que o prólogo da modernidade.
Emcontraste - mas seguindo a mesma lógica -, as demais
«civilizações» também não possuiriam uma história autó-
noma; a história que delas se contava resumia-se a um
conjunto de histórias paradas no tempo, desprovidas de pro-
gressão e desse desembocar culminante na modernidade.
O estudo da cultura clássica revestia-se de um carácter es-
sencialmente literário, apesar de claramente coincidir com o
estudo histórico da Grécia e de Roma. Ao procurarem criar
uma disciplina distinta da filosofia (e da teologia), os classi-
cistas definiram o objecto do seu estudo como sendo uma
mistura formada por todos os tipos de literatura (e não ape-
nas a que era reconhecida pelos filósofos), pelas artes (bem
como pela arqueologia, sua nova associada), e pela história
possível de fazer, dentro dos parâmetros da nova história (o
que não seria muito, dada a escassez de recursos primários).
Essa mistura fazia com que, na prática, a cultura clássica se
aproximasse daquelas disciplinas - então também em vias
de surgimento - que se debruçavam sobre as literaturas
nacionais de cada um dos principais Estados da Europa Oci-
dental.
Marcado, assim, por este seu pendor literário, o estudo da
cultura clássica preparou o terreno para as muitas variada-
des de estudos orientais que começaram a dar entrada nos
currículos universitários. No entanto, osOrientalistas, dadas
as suas premissas, adoptaram uma prática muito própria. O
interesse não estaria, como no caso da história europeia, em
reconstruir as sequências diacrónicas, visto que se partia do
princípio de que a história em causa era desprovida de
progressão. O que interessava, isso sim, era chegar a uma
43
• . . . , , , ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ I,·",
COMISSÃO GULBENKIAN
ão corrccta do conjunto de va-
rigclT\, de civilizações que,
"nçn<.lns», oram vistas como sendo
), dlzin-se. s6 podia ser conseguida
rnlnuciosa dos textos que eram a
ria; e isso exigia capacidades
(' ri íológtcas semelhantes às que haviam tradicio-
rtílízadas pelos monges no estudo dos textos
'l'ií1lrlml. Neste sentido, os estudos orientais ofereceram total
rcslstência à modernidade, mantendo-se, de um modo geral,
m do ethos científico. Os Orientalistas viram nas
iências sociais ainda menos vantagens do que' os historia-
dores. Por isso se furtaram escrupulosamente a qualquer
contacto com elas, preferindo considerar-se integrados nas .
«humanidades», Mesmo assim, preencheram um importan-
te nicho nas ciências sociais, dado que durante muito tempo
os estudiosos do Oriente foram praticamente os únicos que
na universidade se dedicaram à investigação das realidades
sociais relativas à China, à Índia ou à Pérsia. É certo que, para
além deles, existiram alguns cientistas sociais interessados
em comparar as civilizações do Oriente com as do Ocidente
(como foi o caso de Weber, Toynbee e - embora de forma
menos sistemática - Marx). Mas estes comparativistas, ao
contrário dos estudiosos do Oriente, não se mostravam inte-
ressados nas civilizações orientais em si mesmas. Ao invés, a
.sua principal preocupação intelectual foi sempre explicar a.
razão por que foi o mundo ocidental, e não estas civilizações,
quem caminhou no sentido da modernidade (ou do capita-
lismo).
Impõe-se dizer também uma palavra com respeito a três
compreensão e a uma avalia
lores e de prá ticas que est
nsidcrndns
dll'IlV
44
'{~'
.1:-~lu.t~
PARA ABRIR AS CIÊNCIAS SOCIAIS
campos que nuncalugraranLs.er.-CQillFwnenj:es bª~!lar~ das ...
ciências s~iais..:.~g~º~§.jia.!.~ E~<:...()~?g:i.~.~o .~ireito. A geogra-
fia, tal como a história, correspondia a uma prática já antiga.
N os finais do século XIX ela procedeu à sua própria reconstru-
ção como disciplina nova, sobretudo nas universidades ale-
mãs, que assim serviram de inspiração à evolução verificada
noutras paragens. Apesar de partilhar com as ciências sociais
~s suas grandes preocupações, a geografia resistiu à categori-
zação. Procurou fazer a ponte com as ciências naturais pela
via da atenção à geografia física e com as humanidades pela
via da atenção à chamada geografia humana (desempe-
nhando um trabalho de algum modo semelhante ao dos an- .
tropólogos, se bem que com uma ênfase nas influências exer-.
cidas pelo meio). Além disso, durante o período anterior a
1945 a geografia foi a única disciplina que se esforçou de
forma consciente por ter uma prática verdadeiramente
mundial quanto ao seu objecto de estudo. Essa foi a sua vir-
tude, e porventura também a sua perdição. À medida que,
nos finais do século XIX, o estudo da realidade social se foi
compartimentando em disciplinas distintas, de acordo com
uma nítida divisão do trabalho, a geografia tornou -se anacró-
nica devido ao seu pendor generalista, sintetizante, e não
analítico.
Talvez em resultado desse facto, a geografia manter-se-ia,
durante todo o período em causa, uma espécie de parent
pobre tanto em número como em prestígio, servindo fre-
quentemente como mero acólito da história. Em consequên-
cia, o tratamento do espaço e dos lugares nas ciências socí
foi relativamente negligenciado. A tónica posta no pr
e as políticas para a organização das transformaç
fizeram com que a dimensão temporal da existên
45
': ~
COMISSÃO GULBENKIAN
adquirisse uma importância de primeiro plano, mas deixa-
ram a dimensão espacial no limbo da indefinição. Se os pro-
cessos eram universais e subordinados a um determinismo,
o espaço era teoricamente irrelevante. Se eram praticamente
únicos e irrepetíveis, então o espaço não passava de um mero
aspecto (e um aspecto menor) daquilo que era específico.
Segundo a primeira perspectiva, o espaço era encarado
simplesmente como uma plataforma em que ocorriam aconte-
cimentos ou se desenrolavam processos - um espaço es-
sencialmente inerte e como que volátil. De acordo com a
segunda perspectiva, o espaço passava a ser um contexto que
exercia uma determinada influência sobre os acontecimentos
(fosse na história idiográfica, nas relações internacionais de
cariz realista, nos «efeitos de vizinhança», e até mesmo nas
externalidades e nos processos de aglomeração marshal-
liana). Na sua maior parte, porém, esses efeitos contextuais
eram vistos como simples influências - aspectos residuais a
ter em conta para se obter melhoresresultados empíricos,
mas não essenciais para a análise.
Apesar disso, na prática as ciências sociais baseavam-se
numa visão específica - ainda que não assumida - da espa-
cialidade. O conjunto de estruturas espaciais que; no pressu-
posto dos cientistas sociais, presidiam à organização da vida
das pessoas eram os territórios soberanos que colectiva-
mente definiam o mapa político mundial. Na sua grande
maioria, os cientistas sociais tinham como assente a ideia de
que estas fronteiras políticas fixavam os parâmetros es-
paciais de outras interacções fundamentais: a sociedade do
sociólogo, a economia nacional do macroeconomista, O sis-
tema político do cientista político, a nação do historiador.
46
'.
PARA ABRIR AS CIÊNCIAS SOCIAIS
Cada um deles partiu do pressuposto de que os processos
políticos, sociais e económicos estavam ligados por uma
congruência espacial fundamental. Neste sentido, as ciências
sociais terão sido um produto mais ou menos directo dos Es-
tados, cujas fronteiras elas encararam como sendo factores
cruciais de confinamento social.
A psicologia foi um caso diferente. Também aqui a disci-
plina cindiu da filosofia, buscando reconstituir-se de acordo
com a nova forma científica. Contudo, a sua prática passou a
ser definida como residindo, não no terreno social, mas prin-
cipalmente no terreno médico, e em resultado desse facto a
sua legitimidade passou a estar dependente do grau de pro-
ximidade da sua associação com as ciências naturais. Acresce
que os positivistas, partilhando da premissa de Comte (<<o
olho não se pode ver a si próprio»), empurraram a psicologia
nesta direcção. Para muitos, a única psicologia cientifica-
mente legítima teria de possuir uma natureza fisiológica e até
mesmo química. Daí que procurassem que a psicologia fosse
«para além» das ciências sociais, por forma a transformar-se
numa ciência «biológica», e daí também que, em consequên-
cia desse facto, na maior parte das universidades a psicologia
acabasse por se mudar das faculdades de ciências sociais
para as de ciências naturais.
Havia na psicologia, evidentemente, modalidades teó-
ricas que punham a tónica na análise do indivíduo visto em
sociedade. Esses estudiosos, que se dedicavam à chamada
psicologia social, tentaram de facto permanecer no campo
das ciências sociais. Mas a psicologia social, na maior parte
dos casos, não conseguiu estabelecer urna autonomia institu-
cional completa, sofrendo por parte da psicologia o mesmo
47
,l,~
-, -
COMISSÃO GULBENKIAN
tipo demarginalização que a história econômica havia so-
frido por parte da econorn ia. Em muitos casos, ela sobreviveu
por absorção, continuando a existir mas só como subdisci-
plina da sociologia. É verdade que existiam várias espécies
psicologia não positivista, como por exemplo a psicologia
lstesioissenschofiliche (de Windelbrand) ou o gestaltismo. A
ria freudiana - a mais forte emais influente teorização da
psicologia, e por isso mesmo aquela que se apresentava mais
apaz de fazer com que esta se autodefinisse como ciência so-
cial- não o fez, e isso por duas razões. Em primeiro lugar,
porque saiu da prática da medicina; e, em segundo lugar,
porque o ambiente de escândalo que inicialmente a envolveu
tornou-a uma espécie de actividade pária, o que Ievou os psi-
canalistas a criar estruturas de reprodução institucional to-
talmente fora do sistema universitário. Essa circunstância
poderá ter ajudado a preservar a psicanálise enquanto prá-
tica e enquanto escola de pensamento, mas por outro lado
teve como resultado que dentro da universidade os conceitos
freudianos encontraram abrigo em departamentos que não
os de psicologia.
Um terceiro campo que nunca chegou a atingir o estatuto
de ciência social foi o dos estudos jurídicos. Diga-se que já
existia a faculdade de Direito, cujo currículo se achava es-
treitamente ligado à sua função primeira, que era a de formar
advogados. Os cientistas sociais de vocação nomotética en-
ravam a «jurisprudência», ou a filosofia do direito, com
pticismo. Aos seus olhos, ela parecia-lhes demasiado nor-
mativa e insuficientemente enraizada na pesquisa empírica.
As suas leis não eram leis científicas. O seu contexto afigura-
va-se demasiado idiográfico. A ciência política desistiu de
48
, .
I
hl~_,
PARA ABRIR AS otNCIAS SuelAIS
analisar essas leis e a sua história para se dedicar à análise das
regras abstractas que presidiam aos comportamentos polí-
ticos, a partir das quais se haveria de tornar possível extrair
sistemas jurídicos apropriadamente racionais.
Há um último aspecto da institucionalização das ciências
sociais que é importante referir. Todo esse processo teve
lugar ao mesmo tempo ,que a Europa finalmente confirmava
o seu donúnio sobre o resto do mundo. E daí a pergunta ób-
via: por que razão é que esta pequena porção do mundo foi
capaz de derrotar todos os rivais e de impor a sua vontade às
Américas, à África e à Ásia? Tratava-se, de facto, de uma per-
gunta de magna importância, e a maior parte das respostas
avançadas situaram-se, não ao nível dos Estados soberanos,
mas sim ao nível da comparação de «civilizações» (facto para
que já acima chamámos aaterição). A Europa, na acepção de
civilização «ocidental» - e não apenas a Grã-Bretanha, a
França ou a Alemanha, independentemente da dimensão
dos respectivos impérios - fora quem havia patenteado um
poderio militar mais forte e mais eficaz. Esta preocupação
com omodo como a Europa se tinha expandido até dominar
omundo coincidiu com a transição intelectual darwiniana. A
secularização do conhecimento promovida pelo Iluminismo
foi confirmada pela teoria evolucionista, e as teses de Darwin
alastraram muito para além das suas origens biológicas.
Embora a metodologia das ciências sociais fosse dominad
pelo paradigma da física newtoniana, a biologia darwiniann
teve uma influência bastante grande nas teorias do social
graças a essa metaconstrução irresistivelmente apelativa q1.1
dava pelo nome de evolução, com a Sua enorme ênf
conceito de sobrevivência do mais apto.
DiversOS_4
49
COMISSÃO GULBENKIAN
o conceito de sobrevivência do mais apto foi sujeito a
muitos usos e abusos, e frequentemente confundido com o
conceito de obtenção de êxito por via da competição. Assis-
tiu-se, assim, à utilização de interpretações demasiado livres
da teoria da evolução para dar legitimidade científica ao
pressuposto de que o progresso culmi~ava nessa auto-evi-
dência que era a superioridade da sociedade europeia
contemporânea: vejam-se, por exemplo, as teorias dos es-
tádios do desenvolvimento da sociedade até se atin.gir a ci-
vilização industrial, as interpretações liberais (<<Whig») da
história, o determinismo climatérico, ou ainda a sociologia
spenceriana. No entanto, estes primeiros estudos comparati-
vos das civilizações não se centravam tanto no Estado como
o que sucederia com as ciências sociais quando já perfeita-
mente instaladas e institucionalizadas. Eles foram, por isso,
vítimas do impacto das duas guerras mundiais, que conjun-
tamente contribuíram para minar o optimismo liberal em
que assentavam as teorias progressivas das civilizações. Daí
que no século xx a história, a antropologia e a geografia aca-
bassem finalmente por marginalizar completamente o que
restava das suas antigas tradições universalizantes, e que a
trindade formada pela sociologia, pela economia e pela ciên-
cia política, com a sua ênfase no Estado, consolidasse a res-
pectiva posição como cerne (nomotético) das ciências sociais.
En~850 e 1945 houve, então, uma série de dísciplinas
que passaram ;S;r definidas como fazendo parte de uma
área do conhecimento a que foi dado o nome de ~s
~ociais». Isso foi feito através da criação, nas principais uni-
v~r:s~ª~des, primeiramente, de cátedras, e, a seguir, de de-
partamentos que ofereciam cursos conducentes à obtenção
()
I
l
r
l
"
PARA ABRIRAS CIÊNCIAS SOCIAIS
de graus nessa disciplina. A institucionalização da formação
foi acompanhada pela institucionalização da investigação:
veja-se a criação de revistas esp~9~J~_zaç!asem cada uma das-----_._-------- ----~_._._--------:-._-.-
discip~!~!:s.; a constituiçã?_c!~_a~~.<?s.i5!çº.~~U;-I~..i.~E~§'_!~g.~9()E~_S._
P?~.9:isciP.u.lléj$ (primeiro, de âmbito nacional, depois, de
âri:lbito internacional); ou a catalogação das colecções das
bibliotecas também de acordo comas diferentes áreas disci-
plinares.
Elemento essencial neste processo de institucionalização
das disciplinas foi o esforço feito por cada uma delas no
sentido de definir aquilo que a distinguia das demais, e em
particular o que a diferenciava das que lhe pareciam estar,
quanto ao conteúdo, mais próximas no estudo das realidades
sociais. Os historiadores, a começar por Ranke, Niebuhr e
Droysen, afirmaram ter uma relação privilegiada com um
tipo especial de materiais, com destaque para as fontes con-
tidas em arquivos e textos afins. Esses mesmos historiadores
sublinharam estar interessados na reconstrução da realidade
do passado, para o que se propuseram relacioná-Ia com as
necessidades culturais do presente. E fizeram-no seguindo a
via interpretativa e hermenêutica e insistindo em estudar os
fenómenos - mesmo os mais complexos, como as culturas e
as nações na sua globalidade - enquanto entidades indivi-
dualizadas e enquanto momentos (ou partes) de contextos
diacrónicos e sincrónicos.
Os antropólogos procederam à reconstrução de modos de
organização social muito diversos das formas que caracte-
rizavam os povos do Ocidente. Com o seu trabalho, demons-
traram que certos costumes que se afiguravam estranhos aos
olhos dos ocidentais não eram, de facto,irracionais, funcio-
5/
('liN/ISSAO 1I/11111':NiI"/IN
IllllHln [llllt'H \'OIl\O !nt;(ul' dv pr<':HC'I'VólÇi:'íO e reprodução das
( )I'\{ 'I) InI iHln!' <.:Bludaran.1., explicaram e tradu-
k civ i Iizações não ocidentais «avançadas» e
ra a legitimação do conceito de «re-
que constituiu um verdadeiro corte
'(1)\ lIH perspectivas de tipo cristocêntrico.
1\ mOI ior parte das ciências nomotéticas privilegiaram an-
teRele mais aquilo que as disting1..11a'da·aXsClplínada história:
interesse em chegar às leis gerais que supostamente rege1u.~ ....• .•... 'N_'~ •. __."_0'
o cOluportamento humano; a prontidão em detectar guais os
.- - ~_ _-----_ .._-_.----_ ..
fen?.E.1-~~_e~.!~~~::...<:.om<?.,~~~os(enão como entidades indi-
vidualizadas); a neces1?id~i~ d~e~m~~!~! a realidade hu-
mana para poder arialiaá-Ia: a possibilic!.~dee a vantagem de
rec~~re~~ métodos eStrit~~ente científicos (como seja a for-
_ .._---_._----. -'
mulação d_~,.~~pjte~..::~-teó!i~~~a-testar posteriormente em
confronto com as provas disponíveis e através de procedi-
mentos rigorosos e, se possível, quantitativos); a opção por
provas produzidas de forma sistemática (como por exemplo-_ .._---_ ..-----_ ..__ ._-_._-
dado~Qbtiº'º§.....ªtravé.§_deing~~_~~~~porquestionário) e pe~
bst:rva.ç~ºçQ:Il._trqtªçt,ª(de preferência a textos preexistentes
a outros elementos residuais.
ma vez estabelecida, assim, a separação entre as ciências
a história idiográfica, os cientistas sociais de orien-
motétíca -- economistas, cientistas políticos e soció-
trararn-se. eles também, ansiosos por demarcar
tívos territórios relativamente aos restantes, vin-
diferenças que se lhes afiguravam essenciais (tanto
mo nas metodologias). Os economistas fize-
rnrn-no através da insistência na validade do pressuposto de
52
~'.
PARA ABRIR AS CIÊNCIAS SOCIAIS
que, ceteris paribus, se impunha estudar as'operações do mer-
cado. Quanto aos cientistas políticos, fizeram-no limitando a
sua investigação às estruturas governamentais formais. E os
sociólogos fizeram-no por via da insistência numa proble-
mática social emergente, descurada tanto pelos economistas
como pelos cientistas políticos.
Pode afirmar-se que tudo isto se traduziu, em ampla
medida, numa história de sucesso. O estabelecimento das es-
truturas disciplinares gerou estruturas de investigação, de
análise e de formação que não apenas se revelaram produ-
tivas e viáveis, como também deram origem à considerável
bibliografia que hoje consideramos ser legado das ciências
sociais contemporâneas. Por volta de 1945,a panóplia de dis-
ciplinas compreendidas pelas ciências sociais encontrava-se
praticamente institucionalizada na maioria das universida-
des de todo o mundo. Nos países fascistas e comunistas
verificara-se uma resistência a estas classificações (e até
mesmo a sua recusa). Com o fim da IIGuerra Mundial, as ins-
tituições alemãs e italianas passaram a alinhar inteiramente
por aquilo que já era o padrão geralmente aceite, o que no
caso dos países do bloco soviético viria a suceder nos finais
da década de 50.Além disso, ainda por volta de 1945,as ciên-
cias sociais distinguiam-se claramente, por um lado,
das ciências naturais - que estudavam os sistemas não hu-
manos -, e, por outro lado, das humanidades - que toma-
vam para seu objecto de estudo a produção cultural, mental
e espiritual das sociedades humanas «civilizadas».
Todavia, no preciso momento em que, pela primeira vez,
as estruturas institucionais das ciências sociai
./
COMISSÃO GULBENKIAN
finalmente montadas e claramente definidas, as práticas dos
cientistas sociais iriam começar a mudar após a II Guerra
Mundial. Tal circunstância iria criar um fosso cada vez mais
fundo entre, de um lado, as práticas e as posições intelectuais
dos cientistas sociais, e, de outro lado, a organização formal
das ciências sociais.
~·I
T.
'···~·,·1..•.•..
~ ; 1.:;': _ •
!-, .:
• .s Ó:
. "".
.
Após 1945,três desenvolvimentos vieram afectar profun-
damente a estrutura das ciências sociais montada ao longo
dos cem anos precedentes. O primeiro foi a mudança verifi-
. cada na estrutura política mundial. Os Estados Unidos emer-
giram da IIGuerra Mundial dotados de um poder económico
esmagador, num mundo que, do ponto de vista político, era
agora definido por duas novas realidades geopolíticas: a
II
OS GRANDES DEBATES
NO INTERIOR DAS CIÊNCIAS SOCIAIS,
DE 1945 ATÉ AO PRESENTE
As disciplinas constituem um sistema de con-
trolo da prod ução do discurso, fixando-lhe os limites
através da acção de uma identidade que assume a
forma de uma permanente reactivação das normas.
MICHEL FOUCAULT7
7Michel Foucault, TireArchaeologu of Knotoledge and the Discourse 071 Lan-
gllage (Nova Iorque: Pantheon, 1972),p. 224.
55

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