Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
André-Jean Arnaud número significativo de comunicações foi proposto neste Seminário sobre os Direitos fundamentais, o que conduziu-nos a abrir uma seção dedicada a este tema. O Atelier Justiça e os Direitos Humanos teve co- mo diretores os Profs. Maria Teresa de Cárcomo Lobo e Jacques Commaille. Agradecemos a todos a preciosa e eficaz cooperação e destaca- mos o ativismo presente no decorrer dos trabalhos, e muito especial- mente à Sra. Marianne Cornec, colaboradora indispensável do Réseau Européen Droit et Société. A ela devemos a organização dos textos e a preparação desses Atos. Notar-se-á na leitura deste livro a dimensão interdisciplinar e comparativa dos artigos, os coordenadores, respeitando esta exigência do nosso Programa GEDIM, cujo intuito é promover o diálogo entre os pesquisadores juristas e sociólogos do Mercosul e da União Européia. Esperamos, portanto,. que esta publicação possa contribuir para um maior intercâmbio científico entre o Brasil e a Europa. André-Jean Arnaud ~.)JflV\))~ _ _,.- , !!!--, . o G .. <"" i I li t '/ ., . _ . .. ·..J. _ """ . '-E.Ja z::.a c~ ...Q dl~~.· ~ f~ '·f, :si :1 " '"' '~ - . I V1t.r· ci...c1;)/ /) 1...D é-e.~if?.C-l.;_1 . >-r íX..;r. th~atA. JI.J t~~d- ' --;--, . .. ,j ._j) . l9- -- { ~)u_..Qv{ t .f'--<-e L-{f, )'ct~<JI.hj ,'Ú,..,(_, ~~ ~- ~ ~~~$". !ô> X Introdução Alguns Impactos da Globalização sobre o Direito André-Jean Arnaudl Se nós sabemos o que estamos falando quando evocamos a pala- vra "direito"- ou seja, a regulação à qual se referem os profissionais do direito: constituição, direitos nacionais, direito internacional, costumes, jurisprudência, essencialmente - por outro lado, nada é propriamente claro quando se evoca a globalização. Adquirimos, nesses últimos anos, o hábito de falar de globalização quando um acontecimento exterior, que nos parece incompreensível ou inatingível ou muito complexo, vem subverter nossas práticas cotidia- nas ou, pior, nos causa um prejuízo sem que saibamos contra quem devemos nos voltar. Um MacDonald se instala no lugar de um antigo restaurante: é a globalização do fast-food. Um imbecil esfaqueia um político: é a globalização do crime. A Bolsa está em baixa: é a globaliza- ção dos mercados financeiros. E assim por diante. Tudo isso pode não ser totalmente falso, mas também não é exatamente verdadeiro. Um fato é certo: nos anos 1980, o mundo mudou radicalmente. Uma nova ordem se impôs- uma ordem a princípio desconcertante, à medida em que as nações erigidas em Estados até então soberanos foram se revelando cada vez menos capazes de controlar suas econo- mias, seus mercados financeiros e suas moedas. Quanto a nós, juristas, nós percebemos que os nossos direitos nacionais não nos protegem mais como antes, que o direito não possui mais a mesma capacidade de assegurar a função para a qual ele foi erigido como modo privile- giado de regulação social, que as políticas públicas têm frequentemen- te ocupado o espaço da regulação jurídica, que os códigos privados e/ou de comportamentos se multiplicam, e que, portanto, os sociólogos juristas não estão errados quando voltam seus interesses a modos de regulação outros que não ao do direito em estrito senso - isso não im- Prof. Dr., Diretor de Pesquisa Emérito, Centre National de la Recherche Scientifique, Cen- tro de Teoria do Direito, Université de Paris X - Nanterre, Diretor do GEDIM (MOST/ UNESCO), Diretor da REDS (Maison des Sciences de l'Homme, Paris). Amlre-Jean Arnaud pede que nas Faculdades de Direito continue-se imperturbavelmente a ignorar esse assunto e a formar (ou antes, deformar) os estudantes, inculcando-lhes a idéia de que o direito é a emanação de um poder soberano único, absoluto, inteiro, exclusivo: O Estado. A idéia específica de urna globalização surgiu com a tomada de consciência do fato de que a sociedade contemporânea tornou-se uma sociedade do risco,2 da existência de interesses comuns a tudo o que recobre a superfície da terra e de sua indispensável gestão por ca- minhos outros que não os das regulações tradicionais, as quais se mos- tram hoje inapropriadas. Com efeito, o processo de globalização pare- ce questionar a ordem mundial, que mantém o equilíbrio entre Esta- dos-nações soberanos com base no direito internacional. Por exemplo, contr~ os traficantes ou os terroristas que utilizam a Internet, o que podem as legislações nacionais ou mesmo a legislação internacional? E as polícias, mesmo as de fronteiras transnacionais, quando elas exi- stem? Que podem os acordos duaneiros? Não muito, pois confrontamo- nos a estruturas que não foram concebidas segundo o modelo nacional ou internacional clássico. A globalização é um processo tão novo3 e tão alheio às fronteiras tradicionais que, para se dar conta de um certo número de aconte- cimentos impossíveis de serem qualificados segundo as categorias do direito interno ou as categorias do direito internacional, inventou-se recentemente o termo "transnacionalização". Há casos, hoje em dia, em que certos fluxos comerciais, financeiros ou monetários passam de uma nação a outra sem que as trocas se originem propriamente no direito nacional ou no direito internacional. A linha de demarcação não é nítida. Há imbricações, interrelações, interpenetrações que confun- dem ao ponto de paralisar a aplicação das regras de uma ou de outra ordem jurídica. E é necessário reconhecer que um número razoável de grandes negócios, implicando numerosos países por todo o planeta, passa, na realidade, por cima, por baixo ou ainda através dos Estados- nações. Mais ainda, esses negócios não se fazem certamente de ma- neira transparente e nem se submetem às leis nacionais ou interna- cionais. Em outros termos, esses negócios não levam em consideração os direitos nacionais e o direito internacional. ~ 2 C f. por exemplo. Anthony G1ddens. Les conséquences de la modernité, Paris, I..:Harmattan, 1994: Ulnch Beck, La société du risque, Paris, Aub1er, 2001. 3 Cf. meu livro Entre modernidade e globalizaçâo, Renovar, Rio de Janeiro, 1999, Lição 1 (sobre a especificidade da globalização contemporãnea). 2 I ;§ i~ .., ~ ~ ! ~ J! ,, i! I ·~ I ·~ 1 I t d .~ ~J j ' ~ ~ ~ l '3 Introdução A globalização ameaça, assim, em muitos aspectos e de maneira bastante radical, a regulação jurídica de tipo clássico. Esta última foi, até aqui, o apanágio dos Estados soberanos, tanto no que tange os li- mites de seus territórios, como os laços que eles sustentavam com outras nações.Os grandes problemas do momento passam a ser, prio- ritariamente, o da transformação do modo de produção do direito, o da forma de tratamento dos litígios e o da proteção dos indivíduos - asse- gurada até então pelo Estado - contra a opressão de grupos sociais li- gados ao processo de transnacionalização econômica, social e política. Tudo muda diante de nossos olhos, mas algumas interrogações maiores perseguem os juristas: Que relação está em vias de se instaurar entre esse Estado e as instâncias com pretensão planetária, que pretendem impor um tipo de governo supra-estatal? Que regulação sui generis supõe o desenvol- vimento dos acordos regionais (no sentido de regiões do globo) - pos- suem eles objetivos puramente econômicos, ou igualmente políticos? Em que medida essa regulação pode vir a usurpar prerrogativas esta- tais? Que impacto terá, sobre o direito, a prática anunciada dos princí- pios neo-liberais de privatização e de retorno a um Estado mínimo? O direito, afinal de contas, não viveu no passado seus melhores anos ... ? Não viveu, simplesmente? Que significa questionar os fundamentos de um direito sobre o qual nós vivemos até aqui? Que dizer da pretensão daglobalização ao universal? Que dizer do lugar do Estado na regula- ção pelo direito, em relação às diversas escalas: global, regional, nacio- nal e local? Que será do direito no século que se abre diante de nós? São tantas as questões que convém considerar e avaliar em novos termos! Para fazê-lo, anteporei aqui as teses seguintes: 1!:) que o direito está realmente e diretamente relacionado ao processo da globalização, porque a globalização renova os princípios que fundam nossos direitos, dando um novo sen- tido a termos como: eqüidade, mercado, democracia, direitos humanos; 2!:) que, por vias de conseqüência, o direito está prestes a evoluir de uma ordem "imposta" para uma ordem "negociada", a produção das normas jurídicas evoluindo de uma natureza autoritária para uma natureza "participativa"; 3!:) e, concluindo, que, quando se vai ao fundo das coisas, veri- fica-se que são as raízes do contrato social, que liga o povo a 3 Andre~Jean Arnaud seus governantes, que devem ser reconsideradas; e que, en- quanto isso não acontecer, nosso direito, nossa justiça e seus servidores, os profissionais do direito, permanecerão em crise. 1. Os Fundamentos de um Direito Globalizado Nossos direitos são objeto de um remanejamento profundo, pois o conteúdo dos princípios gerais muda, de tal maneira que as ordens jurídicas terminam por ser superadas. 1.1. Um novo conteúdo para os princípios gerais do direito Nossa tradição jurídica é fundada sobre um certo número de prin- cípios: a justiça, a igualdade entre as pessoas, a democracia, os direi- tos humanos. Esses princípios não parecem ser questionados pela glo- balização. Ao contrário, eqüidade, democracia e direitos humanos são leitmotivs na boca de nossos governantes e até mesmo nos escritos dos pensadores neo-liberais, em cujas teorias se fundamenta a globa- lização. O que se esquece de dizer é que as palavras têm o sentido que se lhes é dado. Ora, os sentidos desses grandes princípios baseavam-se na filosofia que os engendrou, uma concepção de mundo onde o indi- víduo estava no centro do universo. O sujeito era o eixo de toda regu- lação e, principalmente, do direito. Hoje, a despeito das grandes decla- rações sobre a democracia global e o necessário respeito aos direitos humanos, é o mercado que vem substituir o indivíduo no centro de toda regulação social. E é a uma verdadeira hegemonia dos conceitos neo- liberais que somos confrontados. Em matéria de relações econômicas e, por via de conseqüência, no domínio político, as palavras-chave se tornaram: mercado privatizado, livre mercado internacional, desre- gulação, descomprometimento do Estado, ajustamentos estruturais. Com efeito, após a época das grandes declarações humanistas e após variadas tentativas de adaptação das economias industrializadas aos princípios enunciados, o desenvolvimento dos países pós-indus- trializados se efetuou num contexto de concorrência mundial crescente e, em seguida, no contexto do desaparecimento f5rutal da economia da guerra fria. Face ao desamparo geral, a ideologia de mercado foi apre- sentada como uma panacéia. Isso pode ser visto na perturbação de nossos políticos: se direita e esquerda têm ainda um sentido em polí- tica, é graças à clivagem que se estabelece entre aqueles governantes 4 ',\ 1 ~ ' ~ Introdução que rezam na cartilha da ideologia de mercado e os que tentam mini- mizá-la para, tanto quanto possível, barrar o caminho às conseqências selvagens de um neo-liberalismo radical. Ao mesmo tempo viu-se desenvolver uma tendência generalizada à democratização, à proteção dos direitos humanos. O Estado de direito tornou-se a referência simbólica, senão uma justificativa para o merca- do. Existe um laço político forte com aquilo que precede. É que as economias liberais só podem crescer num contexto mundial de Estados não dirigistas, que desenvolvam constituições e corpos de direito asse- gurando a transparência, o direito de todos a se exprimir e a se benefi- ciar dos frutos da economia de mercado - pois eles existem - bem como a abertura das fronteiras e o fortalecimento do poder dos juízes. O neo-liberalismo tem seus pensadores. E esse pensamento se funda inicialmente sobre alguns princípios claramente expressos. A ligação entre mercado, Estado e democracia aparece nitidamente. Cer- to, o papel do Estado deve ser reduzido, dizem os pensadores neo-libe- rais, afim sobretudo de impedi-lo de exercer um papel protecionista, que seria prejudicial ao bom desenvolvimento do mercado. Mas o Es- tado permanece uma necessidade, se quisermos salvaguardar os direi- tos de todos. A condição é que o Estado seja democrático. Isso significa que deve-se poder mudar de governo de maneira pacífica. A demo- cracia oferece uma moldura dentro da qual os cidadãos têm a faculdade de agir de maneira mais ou menos organizada e coerente. Os verdadeiros guardiães dessa ordem não são mais os gover- nantes: são os juízes. O liberalismo prega a evolução e não a revolução. Contra a inflação legislativa na cultura jurídica romano-canônica, os pensadores liberais exaltam a importância da tradição. É aí que se encontra a "moldura moral"- o enquadramento moral- de uma socie- dade, que integra sobretudo o sentido tradicional da justiça e da eqüi- dade que anima essa sociedade, o grau de sentido moral com o qual ela se identifica. Essa moldura moral serve de referência e permite, quan- do se faz necessário, encontrar um compromisso justo ou eqüitativo entre interesses opostos. Quanto às instituições, elas fornecem a arma- dura jurídica da sociedade, correspondendo à sua moldura moral. A moldura moral tradicional não sendo, evidentemente, imutável, não pode, em todo caso, suportar transformações senão lentamente. Os princípios universais têm por função servir para avaliar e, se o caso s:J apresenta, para modificar ou para transformar as instituições éxis- tentes, mas não objetiva substituí-las por outras. 5 Anclre-Jean Arnaud Daí o crescimento do papel do juiz. A vida é uma série de proble- mas cotidianos que só encontram soluções práticas na referência às tradições e aos costumes existentes, bem como a um sentido da justiça que vem da tradição: para os neo-liberais cabe ao juiz apreciar a eqüi- dade em cada ocasião. Dado que todas as leis são princípios univer- sais, elas demandam interpretação para poderem ser aplicadas; ora, a interpretação requer um certo número de regras, que permitam que as ditas leis sejam determinadas mais concretamente. E essas regras, só uma tradição viva pode oferecê-las. Isso é particularmente necessário quando se trata dos princípios universais extremamente abstratos que definem o liberalismo. Manifestamente, os corpos de direito fundados sobre o sistema do Com~on Law estão prontos para o que consideramos como subver- sões. Os direitos de origem romano-canônica, mais rígidos, foram fundados à luz de uma certa interpretação da filosofia jurídica e política elaborada na idade "moderna"- ou seja, entre a baixa Idade Média e o século das Luzes. As circunstâncias econômicas, políticas, sociais que ambientaram a emergência desse pensamento não tinham evidente- mente nada a ver com a globalização tal como ela se impõe em nosso tempo. 1.2. Novas ordens jurídicas A globalização é um movimento em direção a uma sociedade pla- netária, "sociedade aberta" segundo os termos de Karl Popper, "gran- de sociedade" segundo os de Adam Smith e, o ainda mais próximo de nós, Friedrich A. Hayek. Cada vez mais os Estados perdem elementos de sua soberania nacional em proveito de instâncias superiores (o nível global e aquele dos acordos regionais- no sentido de região do globo) assim como em proveito de instâncias inferiores: o que se nomeia como"local" infra-estatal. Isso se verifica em larga medida, hoje, no que concerne à economia, à moeda, à defesa. O que acontecerá com o direito? Quem diz "direito", diz soberania estatal, soberania nacional. Segundo as premissas filosóficas, políticas e jurídicas ocidentais "modernas", uma nação soberana detém toda soberania sobre seu território e sobre a populaçã~ que o povoa. Em que medida será um direito globalizado compatível com a definição tradicional daquilo em que, para nós, consiste o direito? Também transforma-se o Direito das relações internacionais. A planetarização da "segurança" transformou de alto a baixo os modelos 6 I" f1 ~~ ' ~ ~ a ~ :i !, lntroduçao com os quais nós estávamos acostumados. É sabido que tudo que diz respeito às intervenções humanitárias ou à luta contra o que se chama comumente, hoje, o terrorismo internacional, tem implicações nacio- nais: sobre as empresas, sobre o comércio e, ao final, sobre a vida dos cidadãos. Mais ainda transforma-se o direito dos mercados financeiros. Será necessário insistir nesse assunto? A globalização é, antes de tudo, um desenvolvimento de mercados de capitais que se encontram vincula- dos para além das nações. Um fluxo livre de investimentos se produz sem levar em conta as fronteiras nacionais. Graças às novas tecnolo- gias, os mercados permanecem abertos 24 horas sobre 24. Antigami:m- te, os Estados comandavam as Bolsas nacionais, hoje, especuladores invisíveis e intocáveis fazem a lei, e as autoridades de regulação mal conseguem impor regras éticas.4 É também o direito dos contratos comerciais internacionais que é subvertido. A globalização, que é um processo inicialmente econômico, se caracteriza por uma expansão crescente das multinacionais. A aber- tura dos mercados e dos capitais lhes permitiu intensificar sua produ- ção. Graças à planetarização das trocas, seu poder de negociação e de comércio foi consideravelmente reforçado. Esse mercado supõe regras que asseguram a abertura internacional e a promoção do livre-comér- cio. Essas regras foram sendo criadas dia após dia, se impondo aos direitos nacionais e sendo erigidas em um verdadeiro direito internacional paralelo do comércio. O advogado vive quotidianamente os problemas dos empresários obrigados a se curvar às regras impostas pelas multinacionais para sobreviver. Essas regras freqüentemente não têm nada a ver com aquelas do direito nacional ao qual estão submetidos. O programa GEDIM da UNESCO, que trabalha sobre o Mercosul, tem precisamente uma linha de pesquisa sobre esse tema.s Do ponto de vista do jurista, essas operações, quando requerem regulamentos jurídicos, terminam por se efetuarem em grande parte segundo regras inéditas, inventadas pelas circunstâncias, geralmente baseadas no costume. Vê-se assim emergir uma nova lex mercatoria, cujas regras são freqüentemente vo- láteis, dificilmente referenciáveis, requerendo muita experiência prá- tica dos negócios, assim como um conhecimento das legislações e das 4 C f. meu estudo .. As transformações do D1reito dos Mercados Finance1ros ''. in: Revista do Direito Mercantil (São Paulo), vol. 117. 2000, p.32-52. 5 Ding1do pelo Prol. José Gabriel Assis ele Alme!cla, do Rio de Janeiro. 7 Andre-Jean Arnaud jurisprudências. As culturas jurídicas, as condutas, os modos de com- portamento têm aqui um papel privilegiado. Nada a ver com o simples manuseio dos códigos e da jurisprudência nacional. Não é apenas a parte do direito relativa às relações internacionais que é atingida pela globalização. Os direitos nacionais trabalhistas o são de maneira importante. A globalização se concretiza por mudanças dentro dos modelos qe produção. Observa-se um deslocamento da atividade econômica, que facilita as transferências de uma parte das operações de trabalho de um país a outro, contribuindo para a emer- gência de uma nova divisão internacional do trabalho. É certo que o incentivo de rendas importantes e rápidas vira a cabeça de um certo número de dirigentes de empresas multinacionais e transnacionais, que P,rocuram os recursos humanos que poderão utilizar a um custo mínimo. A utilização de uma mão de obra barata provoca, assim, o deslocamento de unidades de produção de um lugar a outro, o que se chama de deslocalizações. Nesse processo, os países em que os salários apresentam custo mais elevado são os primeiros ameaçados pelo aumento das taxas de desemprego, os empregos fugindo para as regiões de baixos salários onde a proteção social é inexistente. A isso é necessário acrescentar a emergência de regras comu- nitárias nos blocos regionais de integração econômica. Esses blocos econômicos se multiplicam, os Estados não se sentindo mais à altura de afrontar a nova ordem mundial. Aqui estamos diante, ainda, de um direito de estilo tradicional, aquele que o advogado sabe enfrentar. Mas a situação se torna extremamente complexa: às subdivisões tradicio- nais entre o internacional, o nacional e o local decentralizado, vem se acrescentar acordos regionais - uma escala, de decisão intermediária, cada vez mais presente. Uma dialética se estabelece, então, entre os diversos níveis, cuja complexidade pode-se constatar, entre outros critérios, pela capacidade transformacional que possuem as interações recursivas entre uns e outros. Como se operam as relações entre o global, de uma parte, o regio- nal, o nacional, o local, de outra? Como se operam as relações entre esses três últimos? Qual é a incidência dessas interações sobre cada um dos escalões? O advogado se encontra diante de uma tarefa consi- deravelmente complicada por essa situação. >11 É, portanto, verdadeiramente uma nova ordem jurídica que está em vias de se instalar através do mundo. Constatá-lo não é novidade. Importante é perceber, para além do conteúdo das regras, para além da questão de saber o que é feito da soberania sobre os direitos nacionais, 8 Introdução perceber o quanto é a natureza mesma do direito que se encontra em plena mutação. 2. Ao Encontro de um Direito Negociado Que os processos de produção do direito sejam abalados, percebe- se pela multiplicação dos atores. Isso é, no entanto, uma conseqüência normal da diminuição do papel do Estado. Se o Estado não assume mais todas as tarefas que lhe incumbiam no passado, é porque outras instâncias o substituem.6 Que se sonhe com a importância assumida pelas ARI: Autoridades de Regulação Independentes. Essas instân- cias, copiadas de um modelo que encontra seu lugar natural em um sis- tema de Common Law, são historicamente e por tradição absoluta- mente estrangeiras aos sistemas dos direitos de tradição romano- canônica. No entanto, elas invadiram muitos espaços até aqui reser- vados à regulação estatal. Mas a grande novidade reside sobretudo na importância assumi- da pelo que se chama comumente, hoje, a "sociedade civil". Na nossa tradição jurídica e política, o ator único da regulação de uma dada sociedade era aquele que possuía a legitimidade para fazê-lo. Nas nossas democracias, isso é feito segundo os termos da constituição. O povo ou a nação se exprimem nas urnas, dando a representantes um mandato que lhes permite agir em prol do bem público. São eles, E:: somente eles, que podem fazer o direito. Com a reaparição da "sociedade civil", tudo isso está prestes a mudar. A sociedade civil chega a ser definida, na relação com o Estado, como o conjunto dos movimentos não governamentais.? É interessante notar, no entanto, que desse ponto de vista, a globalização tem efeitos positivos. Trata-se da aparição de atores supranacionais e transna- cionais promovendo a democracia e a proteção dos direitos humanos. Nunca antes as Organizações não governamentais (ONGs) foram tãofortes. Os próprios juristas criaram uma Organização não governa- mental e transnacional dos conselhos de justiça (TANGO, Transnatio- nal Advocacy Non Governmental Organization). 6 Sobre o lugar do Estado e de seu direito em um mundo globalizado, cf. a Lição 5 de meu livro O Direito entre Modernidade e Globalização, Rio de Janeiro, Renovar, 1999. 7 "Global Civil Society is best expressed in the global non-governmental movement", lido no Relatório remetido à ONU, em 1995, pela Commission on Global Governance, intitulado Our Global Neighborhood. 9 Andre-Jean Arnaud Mas em contrapartida o direito, aquele que nós praticamos, o direito instaurado e protegido pelo Estado, passa de uma natureza autoritária a uma natureza progressivamente negociada. 2.1. Os movimentos da sociedade civil, expressão de uma vontade participativa; sua via: a "governança" A razão está no fato de que os movimentos da sociedade civil aparecem doravante não como simples movimentos reivindicatórios, mas como expressão de uma verdadeira vontade de participação por parte dos cidadãos. De Seattle a Gênova e Porto Alegre, viu-se a sociedade civil se mobiÍizar para criar uma resistência à mundialização capitalistaS para denunciar a ideologia do livre-comércio que, em nome da redução das desigualdades, pretende que o universo seja constituído em um espaço homogêneo de trocas. Ao apelo dos oponentes da globalização, setores dos mais importantes da sociedade civil se mobilizam. e chega a ser curioso ver as novas tecnologias, que favoreceram as trocas comerciais a uma escala planetária, permitir aos adversários da globalização organizar, por exemplo, fóruns de debates na Internet, criarem palavras de ordem e promoverem encontros nas barbas das instituições de livre- comércio, das instâncias globais e dos governos.9 Alguns sites alter- nativos totalizariam até mesmo meio milhão de visitantes por dia. Relatam-se e comentam-se neles os incidentes, freqüentemente gra- ves, que acompanham os ápices políticos. A informação está prestes a se tornar um meio de ação para aqueles que querem "participar" das grandes decisões sobre o futuro do planeta, do seu país, da sua cidade. Eis aí uma outra face da globalização: uma ordem se estabelece, com agências de contra-informação que não pretendem ficar só nas palavras. Esses movimentos da sociedade civil são, pois, complexos. E pode- se fazer duas observações a esse respeito. Primeiramente, se a sociedade civil considera necessário se mobilizar dessa forma, é porque não encontra espaço legítimo e eficaz para se fazer ouvir no processo de produção das normas. É necessário então encontrá-lo, sob pena de "' 8 Christophe AgUiton et Daniel Bensaid, "Seattle, Porto Alegre, Gênes. Mondíalisation capítahste et domínatíons ímpéríallstes", em ContreTemps, 2/2001, pg 7. 9 " Les réseaux d'mformation alternatífs snr le Net dérangent". titula o jornal Le Monde de 18 de Dezembro de 2001, pg 23. 10 ~ ~ I ~ ~ ~ 1 ' ,, ~' ~ Introdução destruir completamente a ordem jurídica instaurada pelo sistema político da representação que, até prova em contrário, deu excelentes resultados, mesmo que hoje se os verifique como insuficientes. Em segundo lugar, a sociedade civil não participa como um todo dos movimentos de reivindicação. Em certas áreas ela participa já , de fato, do estabelecimento de um determinado número de regulações, tanto em nível global (as ONGs) como em nível local (políticas territo- riais, organização dos serviços públicos etc.). Mas essa participação, até o presente, é aleatória, pragmática e conjuntural. Ela não se faz sistematicamente, por falta de uma teoria política e jurídica renovada. Ela acontece essencialmente graças a um instrumento estrangeiro aos sistemas de regulação e de gestão de tradição romano-canônica: a governança. Fala-se tanto de governança, hoje em dia, sem se saber realmente do que se trata, que nós adotaremos uma definição que reúne o conjunto dos critérios desse modo de gestão. Trata-se do conjunto das diversas vias pelas quais os indivíduos, grupos sociais e instituições, tanto da esfera pública como da esfera privada- setor privado (com fins lucrativos) e sociedade civil (com fins não lucrativos) - conduzem seus negócios comuns, participaiP no exercício da autoridade política, econômica e administrativa na gestão dos negócios nos diversos níveis: global, regional, nacional e local, pro- movem e articulam seus interesses, gerem seus desacordos e exercem seus direitos e obrigações Trata-se de processos de coordenação destinados a atingir obje- tivos próprios, discutidos e definidos coletivamente em espaços fragmentados e incertos. Isso acontece dentro de e por meio de configurações específicas de instituições, organizações e práticas governamentais (hierárquicas) e extra-governamentais (não hierárquicas). Esse processo complexo de tomada de decisão interativa, dinâ- mica, projetiva, deve evoluir constantemente para responder a cir- cunstâncias em mutação. A contribuição de uma diversidade de pes- soas e de instituições, competentes e interessadas em um bom resul- tado da gestão, é inestimável. Parcerias, redes, atores globais tornam- se conceitos que vêm substituir a antiga idéia de tomada de decisão soberana top down em nome do poder público. A disponibilização da informação, do saber, dos recursos e das capacidades permite desen- volver as políticas e as práticas mútuas nos interstícios da intervenção estatal ou inter-estatal, sobre questões de interesse comum. 11 André-Jean Arnaud Segundo a escala, estamos, pois, em presença de mecanismos de governança transnacionais ou de mecanismos de governança subnacionais. Essas formas de controle diferem no que concerne às suas ligações através das fronteiras nacionais: as primeiras são todas, por definição, formas de controle que ignoram as fronteiras, ·~nquanto que as outras podem não se estender para além da jurisdição estatal. Isso apresenta um grande número de problemas: coordenar os atores, grupos sociais e instituições, com vistas à elaboração de pro- gramas de ação e políticas públicas concertadas; objetivar 'a constru- ção de um consenso; para além da representação, assegutlÍr uma gestão coletiva através da purticipação dos atores sociais, discutindo e definindo coletivamente seus objetivos; saber articular as lógicas de ação d\vergentes; reabilitar a "sociedade civil" para novas formas de governo; em uma palavra: reinventar o político. Nossas instituições não nos prepararam para isso. Senão, por que os serviços de segurança nacionais redigiriam relatórios inquietos sobre o potencial de violência existente nos movimentos anti-mundialização? E por que estes movimentos seriam objeto de repressões policiais sistemáticas, massivas e brutais? Uma conclusão se impõe: mesmo quando a sociedade civil rea- grupa confusamente os "soberanistas", os marxistas que sonham com uma nova internacional, verdadeiros cidadãos do mundo, os inquietos ao lado de conservadores, como também os partidários de uma terceira via, pelo menos um traço os une: são r::idadãos responsáveis e cons- cientes que têm por objetivo o estabelecimento de um mundo huma- nizado bem como a segurança das proteções estatais. 2.2. Em direção a uma produção participativa do direito Mas corao fazê-los participar do processo de criação da norma, uma vez que, repetimos, 'é o legislador, representando o povo ou a nação através de seu mandato, quem possui a legitimidade para regular a sociedade? 2.2.1. A incapacidade do processo "one best way" de ~ produção do direito em integrar a participação O processo tradicional de tomada de decisão é fundado sobre as premissas da "representatividade"e não permite integrar qualquer que seja a "participação". 12 1 i l I . . ' ' j Pt'"llllot:ot Introdução A criação do direito : modelo tradicional não tem lugar para a participação cidadã ~·,lalutu,. p.lpl'ío,, in,tituiçõc' '"í:tllldn n ,i.,H·ma de dirdto i _ 1Sobre-codagem, forma legal constitucional l)et'l'l.oau .___. Decisão de criação de uma norma I "lwrwli''"' I ~f A Deliberação ~ - ,._ \ntt•s dt ditrr o llil·eito ~ono pu uJinJ " .. ~ ~ ·I As oportunidades \ l',ícolúgil.'a' \Ociulú~ica:-. / tl'OJH~,mh .. ·a, ['~! \ndrc:-k.111 \R \J \{ '1>. 2()02 top down I 'i Observamos aqui, de fato, como se constrói uma decisão segundo o modelo clássico de criação da lei. A regra de direito só existe por decisão, da autoridade delegada legitimamente, de dar a forma cons- titucional ao texto que, até aquele momento, era apenas a expressão de uma vontade de legislar. As instituições, estatutos e papéis definidos por lei, são o reflexo de uma pretensa "vontade geral". Ora, essa última só pode presumir o fato de que são os representantes da sociedade que a exprimem. Quando o curso da vida era relativamente simples (ou podia ser simplificado na perspectiva de uma tomada de decisão), esse esquema podia funcionar. Já com a complexidade que invade cada um dos espaços da sociedade hoje, as coisas se tornaram difíceis a apreender. O problema é que o debate sobre a oportunidade de uma mudança do direito, seguido da escolha da regra a estabelecer ou reformar, não prevê nenhuma forma legítima de participação cidadê. Pede-se, cer- tamente, às instituições de sondagem, que dêem ao legislador uma fotografia do estado da população; demanda-se igualmente aos ex perts a avaliação de um projeto de lei. Mas formalmente o povo não tem voz no caso. Uma vez delegado a seus representantes o poder de dizer 13 Andre-Jean Arnaud o direito, só cabe ao povo se retirar. O direito vem do alto. Nós estamos diante de um processo top-down. Os sociólogos juristas, há tempos, chamaram a atenção dos go- vernantes para os li91ites desse modo de criação do direito. Já haviam analisado o direito concebido, o direito vivido, as alternativas do direito e esses modos de regular a vida social que se fazem abaixo ou à margem do direito, até mesmo contra ele. Mas não estamos mais nesse caso. As coisas se tornaram extremamente complexas. Movimentos sociais existem e suas reivindicações são freqüentemente justas, mas sua solução não está prevista fora da representação constitucional dos indivíduos membros. Quem decide não pode deixar de levá-los em conta. Mas como se deter no quadro de um direito fechado em torno dos atores legítimos que são os representantes democraticamente eleitos', únicos detentores do poder de exprimir a vontade geral? Quais são, então, os modos de ação desses movimentos sociais, cuja legitimidade tende a se impor sob o qualificativo de "cidadão" - movimentos cidadãos; ações cidadãs; participação cidadã? Eles foram reduzidos a se exprimir em termos seja de pressão - se os cidadãos se sentem obrigados a se conformar ao processo constitucional-, seja, em caso contrário, de contestação através de movimentos adequados. Se falará, aqui, em termos de alternativas, de opinião pública, de lobby e de influência (sobretudo por grupos de pressão) no nível de deliberação e antes da tomada de decisão. Ora, a governança é, como vimos, mais que uma palavra, bem mais que um modismo: ela é uma oportunidade de participação em domínios onde alternativas, ações diretas, movimentos cidadãos reve- laram, para além de simples reações de mau humor, revoltas ou reivin- dicações corporativistas, uma vontade de construir um projeto. Os atores são, aqui, pessoas e grupos não implicados legitimamente em processos governamentais. Eles não podem, portanto, valer-se de ex- primir a "vontade geral". A questão é: como levar em conta seu desejo sem atingir as formas legítimas do consentimento à criação do direito? Isso só é possível em se procedendo a um renovamento completo dos fundamentos sobre os quais repousa o processo que acabamos de apresentar. "'' 2.2.2. Em direção a uma produção "complexa" do direito É necessano introduzir aqui a noção de complexidade, não no sentido de "complicação", mas com a conotação específica que adotou 14 I ·.1 ~ ' ~ f -~ i 'l -·~ I ~ ~ ~ ~ i ~ i!( ~ -,'rr,l 101 I 1~ ~ i I i 'f Introduçao o termo nas teorias elaboradas para os sistemas de tomada de decisão em administração de empresas. Essa teoria é fundada sobre alguns princípios: o do equilíbrio organizacional e o da decisão organizacional inteligente. Em função desses princípios, existe uma correspondência fundamental e recur- siva entre informação, organização e decisão. A organização, com efei- to, é organização do processo de decisão complexa, cujo objetivo primeiro é organizar a organização social; mas, para o fazer, o processo de decisão é informado e formado pelo processo informacional, que se encontra, por sua vez, transformado pelo processo de decisão. Informação I 4 ~. Decisão A decisão é, pois, inerente à teoria da complexidade tanto quanto à toda teoria jurídica, existindo o direito somente pela decisão. Os critérios da decisão complexa podem ser aplicados à decisão em direito. Pode-se nomeá-los: união sistêmica, abertura sistêmica e recursividades transformacionais; perspectiva teleológica. União sistêmica significa que considerar-se a complexidade no processo decisional supõe que se comece por definir estruturalmente os níveis distintos, tendo cada um uma função específica. A decisão complexa não consiste somente em uma operação de nível superior: a escolha de uma solução ótima. A decisão complexa resulta da conjunção de três operações sistemáticas: a construção dos problemas; sua projeção sob forma de planos; a seleção da "boa" decisão, no sentido de solução "a mais satisfatória". Cada um desses níveis é constituído em sistema. Em se tratando precisamente de sistema de tomada de decisão em direito, os teoremas são os seguintes: Teorema 1: A possibilidade de elaboração de planos de ação é função da capacidade das partes conflituadas em 15 André-Jean Arnaud construir por si mesmas o problema que as levou a querer uma outra regulação. Teorema 2: Aprecia-se a pertinência dos planos elaborados em função 12) de sua consideração pela construção dos problemas tal como lhes foi apresentada e 22) de sua qualidade teleológica. Teorema 3: A efetividade da decisão será tanto maior quanto ela constitua uma escolha respondendo ao critério de "satisfação" entre os planos de ação apresentados respondendo às condições enunciadas nos teoremas precedentes. Retomemos esses teoremas sob a forma de uma modelização do processo de decisão complexa. integra a participação cidadão a traves da Governao ça 11 A criação das normas segundo o processo da Oecis ão Compf=ex. a·. . . Caráter de satisfaçllq da h ·. . . . Deci~ão em ~:::o ao projeto l \ I ••"'l•<emo DKi•ódo do Govemo sele ão de lanos de a ão t t subsistema de concepção de plano de açllo (especialistas, ] vatórios pesquisadores etc.) Governança (Ú Audre-Jc<.~u ARNAlfD. 2ll02 * Nós nos encontramos em presença de três sub-sistemas forman- do, por conjunção, o sistema de decisão complexa. A cada um desses sistemas corresponde um certo número de atores. 16 f i I i 'i~ .. ' ' ', I Introdução No nível da construção dos problemas, nós encontramos pre- cisamente a sociedade civil. É a ela que cabe "construir" o pro- blema sobre uma matéria determinada, onde trata-se de criara regulação. Ao nível intermediário incumbe a tarefa de elaborar planos de ação sobre os fundamentos de um objeto reconstruído pelos próprios interessados. Isso depende da pesquisa, dos "experts", dos chamados tecnocratas, que são administradores preparados para dar aos textos sua forma legal. Mas somente quando o problema já está construído na base e pela base, intervêm esses técnicos do direito. Ao terceiro nível pertencem a escolha e a decisão; em função do caráter "satisfatório" decide-se por determinado plano de ação em detrimento de outros, que serão ao mesmo tempo rejeitados. É a tarefa do legislador. Segundo esse sistema, o Estado não é mais um déspota que dita as leis àqueles que lhe deram anteriormente a legitimidade para o fazer. O Estado, seu governo, suas Assembléias colaboram com a sociedade civil e com os especialistas (pesquisadores, experts ... ) para assegurar a regulação da sociedade. A necessidade da conjunção dos três níveis é uma condição da produção de decisões complexas; uma outra condição remete às recursividades entre esses níveis. É dentro das recursividades, dos emaranhados de relações e retro ações de um nível institucional a outro, que se manifesta ao máximo a complexidade. Toda recursividade provoca, com efeito, uma transformação. Uma instância que produz o Direito é produtora, na verdade, de ação e provoca- por retroação- uma modificação das experiências (quer dizer, da maneira pela qual a sociedade civil vai considerar seus próprios problemas) e vice-versa. Há um vai-e-vem permanente de um nível a outro: ofertas partem do nível da seleção para o da concepção, seguido de informações deste último para o nível da construção, suscitando uma enquete sobre as condições do meio social e a escuta das proposições participativas cidadãs. Daí surgirão planos que, elaborados por especialistas, serão submetidos àquele que detém legitimidade para tomar decisões, para "dizer o direito". Este último pode estar satisfeito e operar imediatamente uma se- leção que terá valor de decisão e desembocará em uma ação concreta; ele pode, ao contrário, querer um complemento de informação (retorno ao estado da construção) ou um complemento de reflexão (retorno ao estado de concepção). A conseqüência é, respectivamente, uma nova projeção seguida de uma nova apresentação, ou apenas uma nova 17 Andre-Jean Arnaud apresentação. A recursividade não está limitada a urna operação, e pode ser renovada até que o enunciador do direito esteja em condições de qualificar corno "satisfatório" um dos planos de ação dos que lhe são apresentados. A satisfação pode ser definida corno a coincidência entre urna decisão e o projeto que provocou essa decisão. Segundo o processo tradicional de decisão, fundado sobre o princípio do one best way, é suficiente, em qualquer situação, calcular qual é a melhor decisão de comportamento possível. A decisão complexa, ao contrário, está fun- dada sobre urna tríplice exigência: não só devemos considerar os pro- blemas carentes de uma decisão como aptos a ser construídos, por- que não são "dados a priori"; não só devemos comparar as avaliações dos plànos de ação para chegarmos à decisão; mas também ternos que reconhecer na decisão um caráter fundamentalmente teleológico. Urna decisão só existe pelo projeto que permite finalizar; é nesse sentido que se fala, ao nível intermediário, de "planos de ação". Com efeito, o recurso à complexidade faz intervir o princípio de ação inteli- gente, que se opõe ao princípio de menor ação, e conduz a inventar ou elaborar urna ação ou estratégia de ação propondo a adequação entre urna situação percebida e um projeto concebido no centro do sistema de comportamento pelo qual nos interessamos. O conheci- mento não é mais aquele de um objeto e de sua objetividade, idéia que tanto turvou a visão não somente dos juristas dogmáticos, mas também de seus críticos. O que prima, doravante, é o projeto. Se há sujeito e objeto, é a interação entre eles que focaliza a atenção do pesquisador engajado numa análise das relações jurídicas. Só inte- ressa o projeto de ação que é suscetível de emergir dessa dinâmica. O conhecimento é o conhecimento de um projeto, o que é chamado princípio de projetividade. O projeto será, portanto, onipresente no processo de decisão, qualquer que seja o nível de que se trata: construção do problema, elaboração dos planos de ação, escolha do plano mais satisfatório. 3. Conclusões "" A maior parte dos problemas aparentemente insolúveis para o Direito e a instituição judiciária, problemas agravados pelas condições contemporâneas de um mundo em vias de globalização, vem do fato de que nosso modelo de produção do direito é proveniente da filosofia 18 I 1.t< " ·N' ~- i ·lw 'f -~ "4' I ~ :1:' '~- Introduçao "moderna" do direito e do Estado, forjada pelos pensadores dos sécs. XVI, XVII e XVIII. Hoje em dia, é o questionamento de toda a ordem social que está em evidência. Hayek, considerado um dos fundadores do pensamento neo-liberal, observava que a divisão em domínios de especialidade das "duas mais antigas [ ... ] disciplinas, a economia e o direito" é, a esse respeito, absolutamente desastrosa. Ele se explica: "as regras de justa conduta que o jurista estuda servem a um gênero de ordem cujo caráter 0 jurista ignora em larga medida; e [ ... ] esta ordem é principalmente estudada pelo economista que, por sua vez, é igualmente ignorante em relação ao caráter das regras de conduta sobre as quais repousa a ordem que ele estuda. "10 É bem verdade que as raízes intelectuais de urna sociedade explicam o conjunto de seus produtos, e que o direito não escapa disso. O processo de criação da norma jurídica foi fundado, nos nossos sistemas de Direito, sobre o princípio político do contrato social, cuja expressão mais perfeita encontramos em Jean-Jacques Rousseau. A sociedade globalizada, com as vantagens que apresenta, à me- dida em que enaltece o retorno da sociedade civil sobre a cena política, no fundo, questiona a sustentação mesma desse tipo de contrato so- cial. À representação, a sociedade civil quer inegavelmente, hoje, acrescentar urna dose de participação. Em que medida isso é possível? A teoria da decisão complexa fornece um esquema; a prática da gover- nança fornece uma ferramenta. Se nós seguimos o esquema e utili- zamos a ferramenta, temos urna modelização constitucional que permi- te pensar que nossos problemas maiores poderiam encontrar urna solução no futuro: 10 HAYEK. Law. Legislation and L1berty, vol.l, Rules and Order, Routledge & Kegan Paul, London & Henley, 1973, Introduction, p. 5. 19 Andre--Jean Arnaud G o~· e r fi o G o t· ('r na n ~ a Jnstinci881ntemacionais Sociedàde civil global 11 f~~ --\~lp·dUIHl , -,~ I t lnstlncias Regionais ' -- -· ' ~ --- r: ,-;-. --- -_- ..., .. JY...... • .. J~& 1 ] ~ •1']\ '\ • • __ · __ *, :;. Soctedade civil ....:.;J-· \ ~~~ {alle"_lathas -" ao Direito c • 4, à Justiça l f ..., ........ J ··~~~· •••• ':>> , I I fus®lcias ,sub -nacio!lllls ... 11 I'Ç jil' ~ ~~...--1 • ..;__---l['~t ' ';;) I JiiJ--~-m-·up --~ Os Cidadãos __ , As próprias profissões jurídicas tendem a se transformar profun- damente. Os grandes escritórios, sob o modelo americano, já o com- preenderam muito bem: eles lidam com tudo o que concerne à vida eco- nômica, e evoluem com ela, se modelando de acordo com as neces- sidades de consulta e de transação manifestadas pelos seus clientes, a começar pelos próprios agentes econômicos. Pode-se arriscar a conjecturas: o que será da profissão de advogado daqui a cinqüenta anos? Certamente não mais o que ela significa hoje, ao menos nos países de tradiçãoromano-canônica: uma ante-câmara do Palácio onde se formaliza, nas formas requeridas pelo direito, os negócios que che- gam a uma contenda. Restará certamente divórcios e percalços a regular; Mas serão futilidades com relação à verdadeira função de advogado. O escritório do advogado se tornará - conquanto já não o seja - um dos lagares onde os operadores do direito virão sistematica- .., mente projetar suas ações antes mesmo de as empreender, e regular amigavelmente os negócios contenciosos entre as partes, acessíveis cada vez mais à negociação e procurando, cada vez menos, transitar pelas vias "normais" judiciárias ou administrativas de regulamentação dos conflitos. 20 Introdução Essa transformação não tem nada de anódina; e não somente para os membros das profissões jurídicas. É, com efeito, a uma mudança na lógica mesma das práticas jurídicas que se assistirá, vinda da globa- Jização da economia. Ao lado de sua participação neste fenômeno e de suas reações diante das novas oportunidades, os profissionais do direito, intervindo na prática local, nacional, regional ou internacional, contribuem na realidade para a transformação da natureza do campo jurídico. Concluindo, práticos e teóricos do direito devem, mais do que nunca, caminhar de mãos dadas: o estatuto dos primeiros será ainda, por um bom tempo, aquele da crise, enquanto as raízes do problema, diga-se a filosofia - e no que nos toca, a jurídica e política do contrato social- não houverem sido reconsideradas. 21
Compartilhar