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O Direito da Sociedade Centro Universitário La Salle Reitor: Paulo Fossatti Vice-Reitor: Cledes Antonio Casagrande Pró-Reitora Acadêmica: Vera Lúcia Ramirez Pró-Reitor de Desenvolvimento: Luiz Carlos Danesi Editora Unilasalle Conselho Editorial: César Fernando Meurer, Cristina Vargas Cademartori, Evaldo Luis Pauly, Rafael Kunst, Tamára Cecília Karawejszyk, Vera Lúcia Ramirez, Zilá Bernd, Ricardo Neujahr (Secretário). Programa de Pós-Graduação em Direito Coordenador: Germano André Doederlein Schwartz Coordenadora-adjunta: Selma Rodrigues Petterle ppgdireito@unilasalle.edu.br (51) 3476.8708; (51) 3476.8717 e (51) 3476.8490 Produção: Editora Unilasalle Projeto grá+ co e diagramação: Ricardo Figueiredo Neujahr O Direito da Sociedade Anuário Volume 1 Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros Germano André Doederlein Schwartz Organizadores 5 Sumário Germano André Doederlein Schwartz e Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros Apresentação / p. 07 Germano André Doederlein Schwartz Dizer o direito, dizer à saúde / p. 11 Marco Félix Jobim Os novos paradigmas culturais do direito na sociedade contemporânea / p. 33 Leonel Pires Ohlweiler O direito administrativo como conceito interpretativo: questões hermenêuticas sobre a sua efetividade no constitucionalismo contemporâneo / p. 53 Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros Animais não-humanos: uma re> exão acerca da proteção jurídica no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro / p. 103 Paula Pinhal de Carlos O julgamento da ADI nº 4277 pelo STF e o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como união estável: Interseções entre direito e sexualidade / p. 149 Maria Cláudia Cachapuz Argumentação discursiva e as esferas do público e do privado nos direitos de personalidade / p. 165 6 Marcos Catalan Abrindo + ssuras nas paredes da Matrix: A revisitação da compreensão doutrinária do prazo visando à correção dos vícios do produto no sistema consumerista / p. 177 Selma Rodrigues Petterle A pesquisa cientí+ ca com seres humanos e o direito internacional / p. 193 Daniel Achutti Do idealismo abolicionista ao realismo político-criminal: considerações sobre a potencialidade da justiça restaurativa para a administração de con> itos criminais / p. 213 Renata Almeida da Costa Policontexturalidade, risco e direito: abismos superáveis para o delineamento da criminalidade contemporânea / p. 229 Salo de Carvalho Sobre a criminalização da homofobia: perspectivas desde a criminologia queer / p. 257 Diógenes Vicente Hassan Ribeiro O mito da sociedade como um projeto jurídico / p. 283 Jayme Weingartner Neto Direitos e efetividade: a boa governança no sistema de justiça / p. 297 Sérgio Urquhart de Cademartori e Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori A construção de garantias para o direito de acesso / p. 313 Sobre os autores / p. 351 7 Apresentação O livro que ora é apresentado à comunidade acadêmica é fruto de um projeto institucional e de um grupo de pesquisadores organizados em torno de um tema. Assim, além de possuir os objetivos típicos de uma obra em conjunto, traz ainda outros bastante especí+ cos. O projeto referido é bifurcado. De um lado, a projeção futura da transfor- mação do Centro Universitário Unilasalle em Universidade. A pesquisa, nesse âmbito, assume grande relevo. Investimentos a respeito estão sendo feitos de forma maciça em nossa IES, reforçando, ainda mais, os recursos que já eram alocados sob tal rubrica. De outro lado, e, por causa do primeiro objetivo, desde o + nal do ano de 2011, o Unilasalle decidiu propor, perante a CAPES, em 2013, um Programa de Pós-Graduação em Direito stricto sensu, projeto esse que já foi aprovado e já se encontra com a primeira turma em andamento. O livro, mais precisamen- te, é resultado desse vetor. Em outras palavras: o Direito da Sociedade é a cris- talização de um primeiro movimento do grupo de doutores – em número de dezesseis – que compõem o quadro de professores do Mestrado. Mais, é uma publicação, realmente, com o espírito de um grupo, isto é, ela é aderente à área de concentração e às linhas de pesquisa do PPGD. A área de concentração escolhida é Direito e Sociedade. Ela se circuns- creve às correlações – necessárias – entre a crescente complexidade social e o papel do Direito frente a essas transformações. Preocupa-se, portanto, com mi- radas transversais a respeito da juridicização das esferas sociais, entendendo-se tal como a incidência do Direito no conjunto de relações sociais estabelecidas, e, também, nas formas como a Sociedade percebe o Direito e vice-versa. Suas linhas de pesquisa são (a) Efetividade do Direito na Sociedade e (b) Sociedade e Fragmentação do Direito. Como é objetivo de todo PPGD, são 8 linhas que se conectam e se complementam em função das temáticas em co- mum quem ambas possuem. Nesse sentido, a linha Efetividade do Direito na Sociedade está focada na questão da legitimidade do Direito perante a sociedade, ou seja, de que modo o processo de produção estatal das normas jurídicas é recebido, cumprido e observado pela sociedade. Dessa forma, é seu objetivo, também, perscrutar que expectativas a sociedade possui sobre as legislações vigentes e como ela reage ao processo de implementação do Direito e às propostas de elaboração de novas leis. Por conseguinte, intenta veri+ car o papel das Instituições na maneira pela qual se aplica o Direito, procurando, assim, descobrir as razões do baixo índice de sua coercitividade na sociedade (brasileira). Isso toma especial relevo para que se busque compreender a efetividade das normas jurídicas em uma socie- dade em constante e contínuo processo de transformação. Na mesma esteira, a linha Sociedade e Fragmentação do Direito parte do pressuposto de que o Direito Moderno foi pensando por intermédio das características de uma sociedade idem. Assim, na medida em que a sociedade global se apresenta com características de funcionamento em rede e de clara eliminação de fronteiras, o Direito, pensado – e aplicado – a partir das ideias de hierarquia e de Estados-Nação encontra-se em um momento de transformação. Sua fragmentação, portanto, deriva das forças sociais – interdisciplinares – que sobre ele atuam e produzem mudanças decisivas. Procura, com isso, abarcar o processo de juridicização das esferas sociais (reais e virtuais), da produção de um Direito Não-Estatal, da necessidade de alternativas ao processo de legitima- ção da produção de normas jurídicas, do enfrentamento da formação de um direito privado e público extra (e ao largo) do Estado, de formas alternativas de composição de con> itos, entre outras temáticas relacionadas ao papel do Direi- to em uma sociedade contemporânea. A abordagem feita no primeiro volume do Direito da Sociedade centrou- se na segunda linha e os textos ora publicados, todos, possuem relação direta com ela, a demonstrar a interconexão de assuntos e de objetos. Importante sa- lientar que se trata de uma série de livros, anual, sendo este o primeiro, com um título que espelha uma das obras centrais das teorias sociais sobre o Direito: “O 9 Direito da Sociedade” de Niklas Luhmann. É uma homenagem, e, pela questão semântica, possui um evidente elo com o Mestrado em Direito e Sociedade. A cada edição serão escolhidos temas que, gize-se, não estarão presos ao autor citado, mas, sim, restarão afeitos às linhas de pesquisa e à área de concentração em comento. Como se vê, portanto, está-se diante do primeiro resultado do PPGD, que, como tal, requereu de todos os envolvidos muito sacrifício e incomensurá- vel dedicação. Esperamos que os leitores reconheçam, além da qualidade intrín- seca dos ensaios, aquilo que percebemos: a maturidade de um grupo de dou- tores que possui muito, ainda, a ofertar para a pesquisa jurídica em nosso país. Até o próximo! Os Organizadores. Dizer o direito, dizer à saúde1Germano André Doederlein Schwartz 1. Introdução Em entrevista publicada na Revista Veja (8 de abril de 1998, p. 11-13), o so- ciólogo alemão Claus OQ e defendia categoricamente o + m do Estado do bem-estar social. Como resposta à falência desse modelo estatal, sustentava a necessidade de um pacto social tripartido: Estado, Mercado e Comunidade deveriam interagir para a solução de problemas que lhes dizem respeito. Partindo-se desse pressuposto e recordando-se de que, de uma forma ou de outra, as Teorias de Estado2 e de Mercado já se encontram relativamente desenvolvi- das dentro de seus campos teóricos de atuação, pode-se asseverar que a perspectiva teorética ausente na proposta de OQ e diz respeito à comunidade, ou seja, inexistem análises mais percucientes sobre que formas de observação é possível investigar o poder da sociedade civil.3 Com efeito, não é novidade alguma nesta etapa do século vigente pugnar pela necessidade da participação da comunidade nos processos decisórios de ta- refas outrora exclusivas do Estado, como é o caso da saúde. Nesse caso especí+ co, o campo sanitário merece destaque. Como bem recorda Bolzan de Morais (2000, p. 12), as transformações sociais oriundas daquilo que comumente se denominou pós-modernidade colocaram em xeque duas das grandes bases do Direito: o Es- tado e a Constituição. Suas funções são, hoje, questionadas, principalmente fren- te à constatação fática da prevalência de processos globalizatórios de expansão da lex mercatoria (TEUBNER, 1988). Estado e Constituição aparecem como instru- mentos desatualizados, não competitivos, até mesmo jurássicos, quando contrapos- tos à velocidade dos fenômenos jurídico-sociais típicos de uma sociedade transna- cionalizada. Dessa forma, quando se parte do fato de que a regulação da participação da comunidade na área da saúde em nosso país é dada a partir de um princípio constitucional (Art. 198, III, CF/88) e que essa mesma saúde ainda é um dever do Estado no Brasil (Art. 196, CF/88), não é difícil de sustentar, com base no anterior- mente a+ rmado, que esse modelo, por consequência, resta ine+ ciente na sociedade 12 contemporânea. Será isso correto? A hipótese aqui defendida não pretende abordar analitica- mente os métodos de consecução da tarefa estatal-constitucional da participação da comunidade em saúde. Pretende, sim, propor uma releitura dessa diretriz a partir de um novo formato regulatório, defendendo-se que os métodos de percepção hoje utilizados embaçam a necessária intervenção do cidadão no campo da saúde. 2. Dizer o direito, dizer a saúde A inovação da Constituição cidadã no estabelecimento da saúde como direi- to de todos representou inequívoco avanço no trato da questão sanitária no Brasil. Uma das esperanças dessa positivação era a da que, via Direito, a realidade da saúde dos cidadãos brasileiros pudesse ser modi+ cada. De fato, isso ocorreu, porém não com a velocidade pretendida. Basta, para tanto, relembrar a posição ocupada pelo Brasil no último ranking da Organização Mundial de Saúde (125 em 191 países). Sem embargo, o dire le droit pelo Estado foi um instrumento bastante e+ caz para a transformação da realidade social em tempos não muito distantes. A atuação estatal tornou-se elemento decisivo para a manutenção da pax. Em sociedades com baixo grau de complexidade, onde, por consequência, as alternativas decisórias não se mostravam contingentes, a atuação do Estado via sistema jurídico se subsumia ao esquema clássico da produção normativa exaustivamente analisada por Kelsen (2000, p. 309-354). O droit imposé, fruto do esquema representativo emergido dos resquícios da Revolução Francesa, símbolo da liberdade, igualdade e fraternidade, pode, no caso da saúde, ser merecedor de reprovação. Uma análise su+ cientemente comprometi- da revela que a conceituação da saúde em um ordenamento legal é uma tentativa fadada à estaticidade, renegando seu caráter dinâmico em uma sociedade de risco e de incertezas. Daí que o dire la santé via Direito deve ser uma construção elaborada também pelos destinatários das normas de direito da saúde. Para que se possa chegar a esse nível de abstração, impõem-se algumas con- siderações. Nesse sentido, a construção da saúde como Direito é, em si mesmo, uma ideia paradoxal. Quando o Art. 25 da Declaração Universal dos Direitos do Homem estabeleceu a relação obrigacional entre cidadão (credor) e Estado (devedor), quase todas as Constituições do mundo a+ rmaram-na como direito fundamental do ho- mem (SANZ apud BALADO; REGUOIRO, 1996, p. 293). Típico de uma época em que a produção legislativa tinha pretensões universais, visando à simplicidade e a 13 segurança (ARNAUD, 1999, p. 203),4 a saúde como Direito, no caso brasileiro, de- monstrou-se uma ideia generosa no plano teórico, porém inadequada ao contexto social. Abordando a a+ rmação sob outro ângulo, é inegável o avanço, tardio, da inserção da saúde como direito de todo cidadão brasileiro (declaração do direito). Sabe-se, contudo, que a simples a+ rmação constitucional não surtiu os efeitos ima- ginados. Muito embora etapas de evolução de conquistas históricas da humanidade (BOBBIO, 1992), o preceito descritivo dos direitos fundamentais (declaração) ne- cessita, para sua convalidação, de seu descumprimento (LUHMANN, 2000, p. 158). A ideia embora pareça contraditória, torna-se elemento propulsor da saúde como direito do homem. A simples declaração, como já dito, não tem o pendor de efetivar a norma jurídica. Ao contrário. É a sua não-observação que torna latente a necessidade de sua proteção. Quanto maior a inobservância, maior a busca pela a+ rmação. O que se pretende com a assunção desse paradoxo é referi-lo como algo a ser trabalhado em uma perspectiva contingencial. Isso signi+ ca levar em consideração o fato de que para uma hipótese não existe uma resposta única. As possíveis deci- sões são, de fato, uma redução de complexidade. Nessa linha de raciocínio, o campo sanitário oferece mais plausibilidades de decisão do que se pode imaginar. Dizer que a saúde é direito é somente reforçar o fato de que sempre houve saúde? Não. É inferir que sempre houve doença (SCH- WARTZ, 2004, p. 56-62). A positivação torna-se, pois, um reforço de constatação desse fato. As decisões advindas para a redução do desvelamento paradoxal desse leque devem levar em consideração seu contraposto, sob pena de não se transmu- darem nas expectativas normativas geradas pelo advento da Constituição Federal de 1988. Quanto à hipótese de preenchimento de sentido do que signi+ ca a saúde para os cidadãos brasileiros, revela-se que as decisões tendentes à consecução de tal desi- derato necessitam ser direcionadas a partir da doença, como se explicitará adiante. E, mais, é sensato referir que o processo da produção decisório também pressupõe participação popular. Não pode ser exclusivo do Estado. A este cabe o dire le droit (elevar a saúde como direito); àqueles, o dire la santé (de+ nir as políticas públicas tendentes à persecução da saúde). As características da sociedade moderna, além das já ultracitadas globaliza- ção e transnacionalização, apontam para uma sociedade cada vez mais policontex- turalizada (TEUBNER, 1999), em que a emergência de regulações não é exclusivida- 14 de do Estado, passando a ser compartida com seus componentes. Esse é o resultado daquilo que alguns doutrinadores denominam de sociedade de risco (LUHMANN, 1999).5 De fato, a função do Estado é, antes de segurança, descartar riscos. Nessa linha de raciocínio, como bem relembra Arnaud (1999, p. 192), a pro- blemática do dizer o Direito (declará-lo), tem uma origem “moderna”, com funda- mentos na regulação social feita única e exclusivamente pelo Direito, que, por sua vez, é monopólio exclusivo do Estado. Contudo, especialmente na área da saúde, o dire le droit por parte do Estado apresenta uma grande distância daquilo que se pode denominar de tempo da sociedade (OST, 1999, p. 10).6 Paraque se consiga sincronizar o tempo do Direito com o tempo da socieda- de é necessária uma lógica nova para o que se pode denominar de dire la santé. Esse dizer a saúde é, de fato, um elemento completivo daquela declaração de direito ema- nada do Estado. A comunidade, pois, participa de um processo decisório que antes era monopólio estatal. Isso signi+ ca, na esteira de Arnaud (1999, p. 193), que “nem toda regulação social passa necessariamente pelo direito, que a melhor regulação social não é forçosamente o direito, e que o Estado perde terreno na sua soberania, inclusive no que diz respeito ao direito”. Assim, há a necessidade de um direito negociado (droit négocié),7 que não abandona a necessidade da produção normativa do Estado, mas que a complementa. Com isso, cabe ao Estado a declaração do Direito e, em alguns casos, sua posterior proteção. À comunidade cabe a participação nos procedimentos que faticamente selecionarão, dentre as várias possibilidades existentes, a hipótese que melhor redu- za a complexidade na área sanitária. Formam-se, assim, policontextos (TEUBNER, 2005, p. 34-35) normativos, todos eles interligados e, ao mesmo tempo, autônomos. Esquematicamente, pode-se ilustrar essa ideia a partir do seguinte grá+ co: Para que os modelos legalistas-positivistas possam ser suplantados, é neces- sária uma nova lógica na produção normativa. No campo sanitário isso se clari+ ca de forma ainda mais evidente, pois a concepção de saúde, como bem preconiza nossa Constituição por intermédio do princípio da descentralização dos serviços de 15 saúde (Art. 198, I), deve ser regionalizada, pois os vários níveis de diferenças (so- ciais, econômicos, geográ+ cos) constatadas no Brasil, sinalizam para a urgência de se implantar formas diversas de se dizer a saúde (já direito – dito pelo Estado). Essa nova lógica vem apoiada na ideia de Constituições Civis apresentadas por Teubner. 3. As constituições civis e a nova lógica regulatória Gunther Teubner propõe, atualmente, uma nova visão acerca da constitucio- nalização do sistema global, procurando atualizar temporalmente a Constituição e seu conteúdo (saúde) perante os fenômenos da re> exividade e da juridi+ cação. Sem embargo, o autor é o sistêmico-jurídico de maior relevância no cenário mundial. Tal fato se deve ao seu aprofundamento na teoria luhmanniana com a tentativa da (re) de+ nição de certos conceitos quando contrapostos à sociedade atual. Nesse sentido, Teubner agrega ao conceito biológico-autopoiético, que, em Luhmann, é uma proposta radical (CLAM, 2006, p. 166), alguns elementos histó- ricos. Tenta conectar o contexto social ao Direito. Entidades tais como as classes sociais, as corporações jurídicas e os movimentos sociais (TEUBNER, 1996, p. 149- 170) são co-partícipes de uma re> exividade que “autodelimita o Direito dentro de seus vínculos com a realidade social” (MELLO, 2006, p. 357). Essa é a juridi+ cação, a nascença dos múltiplos corpos do Rei (TEUBNER, 1997, p. 736-787),8 a razão da falência da hierarquia e da supremacia das Constitui- ções dos Estados-Nação. A correlação sistema x ambiente é, portanto, observada a partir de interpenetrações desse código inicial com os subsistemas do Direito, da Política e da Economia, entre outros. Porém, toda essa análise, que inclui o problema da regulação da saúde, pres- supõe uma espécie de autopoiese em níveis, também defendida por Clam (2001, p. 48) em sua tentativa de aclaração da teoria luhmanniana. Ao contrário de Luhmann, Teubner (1989) entende que há níveis de autonomia diferenciados no sistema jurí- dico. Com isso, a autopoiese vai-se constituindo no sistema jurídico, a partir da auto-observação, da autoconstituição e da auto-reprodução. Essa constelação auto são ciclos. Auto-referentes. Quando há articulação entre os três elementos, ocorrem o hiperciclo e a autonomização do Direito. Nas palavras de Teubner (1999, p. 68): Uma coisa é um subsistema social observar os seus componentes (ele- mentos, estruturas, processos, limites e meio envolvente) através de comunicação re> exiva (auto-observação); outra diferente é um sistema de+ nir e colocar em operação por si só o conjunto dos componentes sistê- 16 micos (autoconstituição); ainda uma outra coisa diferente é a capacidade de um sistema para se reproduzir a si mesmo através da produção (circu- lar e recursiva) de novos elementos a partir de seus próprios elementos (autopoiese). Há, portanto, uma espécie de autopoiese gradativa do Direito, como, sob ou- tra perspectiva, também defende Clam (2006, p. 143-189).9 Todavia, os hiperciclos não são encontráveis de forma pronta e acabada. Eles se autoconstituem. É o caso do fenômeno constitucional sanitário. No nível da comunicação re> exiva e auto- -reprodutiva, e no contexto de uma sociedade globalizada, resta constatável que a juridi+ cação de determinada Constituição se dá, hoje, em níveis diferenciados. Aduzindo-se, some-se a ideia de direito re> exivo, elaborada pelo próprio Teubner (1996, p. 19), cujo entendimento parte de um pressuposto tripartite: (1) Direito Formal – racionalidade interna; (2) Direito Material – racionalidade nor- mativa; (3) Direito Re> exivo – racionalidade sistêmica. É, especi+ camente, na racionalidade sistêmica (re> exiva), que se pode ob- servar o direito constitucional à saúde com os olhos requeridos pela sociedade con- temporânea. A grande e nova característica (TEUBNER, 1996, p. 04) é o fato de que o surgimento de uma lei globalizada não pode ser mensurada e/ou avaliada por ícones do Estado-Nação, tais como a Constituição. A racionalidade re> exiva impõe à constatação da impossibilidade uma noção hierárquica de ordenamento jurídica em uma sociedade de redes (TEUBNER, 1996, p. 04). Problemas como a digitaliza- ção, a privatização e a globalização (TEUBNER, 2003, p. 02) colocam em dúvida a tríade Constituição/Estado-Nação/Soberania. De fato, em vários autores (TEUBNER, 1996, p. 04) clássicos, a Constituição foi erigida como um símbolo de limitação do Poder. Dentro do contexto apresen- tado, resta saliente que o ponto legitimador é outro: a sociedade necessita regula- mentar dinâmicas sociais que operam de forma diferenciada. Daí, portanto, o de- sa+ o temporal: caso simbolizada dentro dos padrões liberais, não estaria, hoje, a Constituição, limitada ao que La Salle, corretamente, denominou de fatores reais do poder? Ela não correria riscos de se tornar uma folha em branco? (TEUBNER, 2003, p. 02). Ela (re)institucionalizaria tempo? Dentro da perspectiva adotada, a manutenção dessa lógica importaria em uma falha nos quatro ciclos do tempo do Direito, bem apontados por Ost (1999): Memória, Perdão, Promessa e Requestionamento. Não há uma nova promessa e, muito menos, um requestionamento. A Constituição – e seu direito à saúde – não cumpre com as expectativas normativas lançadas pela sociedade. Nessa linha de raciocínio, alerta o mesmo autor (1999, p. 28): “Como sempre, é no presente que se 17 tem de triar, na herança do passado, aquilo que ainda é necessário para que o futuro tenha sentido”. Dito de outra forma: uma observação de segundo grau da Constitui- ção deve levar em consideração seu entorno. Assim, por via de consequência, as co- municações sociais in> uenciam e (re)transformam seu sentido (da Constituição). A lógica do Direito não corresponde mais, segundo Teubner e Fischer-Les- cano (2004, p. 1039), a um sistema de julgamento de Cortes Superiores, mas sim de networks. Nessa modalidade, a Lei não se posiciona como o centro do sistema jurí- dico. Em sua visão, de policontextos, o autor refere que as decisões juridi+ cadas são absorvidas mutuamente, restando conectadas por suas recursividades, cuja origem varia e possui signi+ cados diferenciados. Assim, a unidade do ordenamento jurídico passa a ser observada como re- gimes normativos compatíveis. Essa é a consequência dos já referidos vários corpos do rei. Todavia, a Constituição, nesse contexto, possui, ainda um grandesentido: uma limitação de danos (LUHMANN, 1998). Como já alertava Luhmann (1997, p. 13-48), a unidade de diferença é uma realidade em um mundo de subsistemas di- ferenciados funcionalmente. Logo, pretender a superioridade, pressupõe racionali- dade forçada, quando, ao contrário, deveria ser evolutiva. A construção de regimes que, ao invés de se colidirem, pressuponham a conexão citada, pode reconstruir tanto o sistema jurídico quanto os subsistemas por ele in> uenciados mediante as possibilidades advindas da repartição do poder regulatório. 4. A gestão compartida regulatória da saúde no Brasil – ‘Le pouvoir en partage’10 O plexo comunicativo de possibilidades advindas da comunicação/opinião oriundas das Constituições Civis e dos policontextos anteriormente abordados, re- colocam a necessidade de se (re)pensar a forma regulatória sanitária e contemporâ- nea em solo brasileiro. Nesse sentido é que se devem avaliar quais os instrumentos jurídicos e po- líticos postos na realidade da saúde do Brasil para a regulação deste bem público. Da mesma forma, a fundamentação teórica já discutida neste trabalho agrega-se aos elementos jurídicos pré-existentes para a necessária (re)construção de novos mecanismos regulatórios destinados à proteção/promoção da saúde. Com essa proposta, é que se tentará racionalizar complexa e civilizatoria- mente as gamas de perspectivas de inclusão social no seio das decisões sanitárias, visto que assumidas como compromisso social. Nessa seara a participação popular 18 na moldagem da nova regulação - compartida – também pode ser vista como um instrumento de controle e de participação social na gerência dos interesses públicos. Dentro desta perspectiva, poder-se-ia a+ rmar que o objetivo de correção das desigualdades estabelecido pelo amplo aspecto dirigente e vinculativo do Estado Democrático instalado no Brasil pela Carta Política de 1988 teria uma efetiva e real possibilidade de se concretizar no mundo dos fatos via gestão compartida sanitária, onde o requisito da descentralização dos serviços e competências de saúde assu- mem grande relevo e se tornam princípios legitimadores das ações nesse sentido. 4.1 A descentralização sanitária Uma pretendida regulação compartida sanitária somente pode ser alcançada quando é vista como um papel de articulação e de auto-instituição da sociedade. Um palco de discussão para a negativa da cidadania de baixa intensidade (CITTA- DINO, 1999). Um espaço em que se produza um embate de ideologias mediante o contraditório e tendente a formar uma opinião pública sobre o assunto. Atenta a tal ideia é que a Constituição Federal de 1988, em seu Art. 198, I, elenca que o sistema sanitário brasileiro deve ser organizado a partir de uma des- centralização, ainda que o comando ainda seja único e regido mediante determina- ções gerais, como é o caso do Art. 196 e seguintes da Lei Maior. De forma sintética, a Carta Magna traz as diretrizes tanto do direito à saú- de como da organização de seu Sistema Único. O SUS deverá ser gerido de forma descentralizada, tendo direção única em cada esfera do governo. Vale ressaltar que a forma federativa brasileira já possuía esse escalonamento de esferas bem solidi+ - cado, o que facilita sobremaneira o objetivo descentralizador. Assim, como salienta Sueli Dallari, tanto os Estados-Membros quantos os municípios brasileiros têm função de editarem normas próprias que estabeleçam sua organização e tenham por objeto tudo aquilo que não lhes tiver sido vedado pela Constituição (Art. 25, §1º) ou disponham sobre todos os assuntos de interesse local (Art. 30, I), ou ainda, suplementem legislação federal ou estadual, quando couber (Art. 24, §2º c/c 30, II) (DALLARI, 1992, p. 40). Pode-se dizer, portanto, que a descentralização é uma das formas de transfe- rência de poderes a autoridades eleitas localmente. Nessa linha de raciocínio é que a descentralização sanitária está intimamente ligada ao aspecto democrático, de vez que, até do ponto de vista psicológico, torna mais palpável a possibilidade do controle e participação dos mecanismos demo- 19 cráticos de decisão e de procedimentos sanitários, transformando-se em um dos pilares da regulação compartida na área da saúde. Mais, a descentralização é parte integrante da democracia e dela não pode se dissociar, ainda mais em um país de proporções continentais como é o Brasil. A descentralização é uma reforma de Estado que procura adaptá-lo à sua nova feição de cunho democrático. Como refere Peces-Barba (1998, p. 94), as competencias administrativas se distribuyen entre el Estado, las regiones o comunidades autónomas, en su caso, las provincias o departamentos y los municipios. Son varios escalones que se coordinan y cooperan en la consecución de los + nes legalmente o constitucionalmente determinados para cada uno de ellos. Respondendo ao questionamento de Luhmann (1983, p. 103) sobre a ques- tão da saúde pública,11 pode-se a+ rmar que a opção do Constituinte brasileiro foi a de compartilhar os deveres/funções da área sanitária, inclusive regulatórios, reco- nhecendo que somente novas formas de gestão poderiam dar respostas à sua com- plexidade. Lembra Sonia Fleury (1997, p. 40) que o desenvolvimento de estratégias de construção de um novo tecido so- cial descentralizado e participativo, repõe a nossa especi+ cidade regional em um patamar distinto, capaz de reivindicar um modelo de democracia onde impere a cogestão pública, retomando os princípios de solidarie- dade e igualdade em uma complexidade que seja capaz de reconhecer a subjetividade e a diversidade como parte da cidadania. No Brasil, a faceta descentralizada/democrática da regulação sanitária assu- miu duas formas que interagem e não se excluem: a municipalização e os Consór- cios Administrativos Intermunicipais de Saúde, mais conhecidos como Distritos Sanitários. Assim, a o pouvoir en partage, em saúde, passa a ter maiores possibilidade de consecução de seu desiderato, (re)criando novas formas administrativas, como é o caso, por exemplo, dos Distritos de Saúde. 4.1.1 A municipalização da saúde como marco institucional do compar- tilhamento sanitário Muito embora não se possa negar que ainda se constitua em um marco ins- titucional, admite-se que a municipalização sanitária vem de encontro com a nova posição do Município na federação, desde a promulgação da Constituição de 1988. 20 Uma posição de vanguarda que privilegia o poder local e que, ao mesmo tempo, valoriza o espaço localizado e a constitucionalização das regiões. A responsabilidade sobre a saúde é dividida entre todas as esferas do go- verno. O SUS também assim se reparte, possuindo cada ente os órgãos, poderes e instrumentos para tal. À direção nacional do Sistema Único de Saúde, mais especi- + camente ao Ministério da Saúde – em que o responsável (gestor) será o Ministro da Saúde, compete as matérias elencadas pelo Art. 16 da Lei 8080/90. Destaca-se o dever de participar na formulação e na implementação das políticas públicas de saúde, bem como promover a descentralização para as Unidades Federadas e para os Municípios, dos serviços e ações de saúde, respectivamente, de abrangência es- tadual e municipal. À direção estadual do SUS, através da respectiva Secretaria de Estado – onde o responsável (gestor) será o Secretário de Saúde do Estado –, compete o estabele- cido pelo Art. 17 da Lei 8080/90, como, por exemplo, promover a descentralização para os Municípios dos serviços e das ações de saúde. Caso o Estado decida pela municipalização da saúde, como é o caso do Rio Grande do Sul (Art. 241, caput, da Constituição Farroupilha), não poderá mais de- cidir sobre o planejamento do sistema, bem como passará a colaborar técnica e + nanceiramente com os Municípios. À direção municipal do Sistema Único de Saúde, por intermédio da Secreta- ria Municipal de Saúde ou o órgão equivalente (o gestor responsável será o Prefeito Municipal e o Secretário Municipal de Saúde – oudiretor do órgão equivalente), caberá, face ao disposto pelo Art. 18 da Lei 8080/90, participar do planejamento, programação e organização da rede regionalizada e hierarquizada do SUS, em ar- ticulação com sua direção estadual, bem como formar consórcios administrativos intermunicipais. Assim, a municipalização da saúde é uma exigência da organização nacional, pois descentralizar é, antes de tudo, repartir alternativas regulatórias, visto que co- loca em primeiro plano as necessidades locais. Também é fato que é uma forma de melhor racionalização na busca da participação popular na saúde, já que procura detalhar, a partir de uma realidade local, o sistema e o conceito de saúde. O Município, quando trata ou legisla sobre saúde (Art. 30, I e II, da CF/88) há que levar em consideração o interesse local, que vem a ter o sentido de conve- niência, utilidade ou proveito. Os benefícios da municipalização da saúde são vários: (i) o interesse maior é 21 da localidade, devido às especi+ cidades locais; (ii) faz com que caiba ao Município parcela mais importante da prestação sanitária, pois é ele que dispõe legal e mate- rialmente sobre assuntos de interesse local – saúde; (iii) grande parte da proteção à saúde é realizada no espaço local, respeitando-se as particularidades de cada região; (iv) viabiliza uma administração moderna, privilegiando a competência, pois há uma vigilância maior sobre os encarregados do sistema, já que estes estarão em permanente contato com os cidadãos, que possuem participação no SUS (Art. 198, III, CF/88). A possibilidade de uma regulação sanitária compartida em nível municipal é feita basicamente através de duas instâncias colegiadas: (i) A Conferência de Saúde, que avalia a situação sanitária e propõe a formulação da política de saúde no nível correspondente – Art. 1º, §1º, da Lei 8142/90; (ii) O Conselho de Saúde, que for- mula estratégias e atua no controle da execução da política de saúde – Art. 1º. §2º, da Lei 8.142/90. Mas a participação pública não se esgota aí, conforme suas modalidades in- diretas estabelecidas pela nossa Constituição em seus artigos 1º e parágrafo único, 14, 61, §2º, 58, §2º, II, 49, XV e 103, VIII e IX. Também há modalidades diretas e previstas na Carta Magna (vide artigos 29, X, 74, §2º e 85, III). Entretanto, são os Conselhos Municipais de Saúde que se apresentam com a maior positividade na construção da gestão compartida sanitária. É um órgão colegiado composto por cidadãos. Essa é a diferença. São eles que irão propor a for- mulação de estratégias locais de saúde e no controle das ações e serviços sanitários. Cada Conselho poderá ter uma diretriz, uma orientação diferente. Ou seja, aplicará uma decisão de política pública diferencia dos demais. Isso porque a saúde é um sistema, variando de acordo com sua comunicação e diferenciação com os demais sistemas sociais, que também são variáveis em cada localidade. Logo, todas essas decisões vêm incutidas com a + gura do risco, que tornará possível a pretendida democracia sanitária mediante gestão compartida, de vez que não comporta solução única, tornando-se o espaço de (re)invenção, da pluralidade de opiniões e decisões, como quer Lefort (1983). Essa indeterminação sanitária oriunda dos Conselhos Municipais de Saúde é fonte vívida de sua democracia e elemento essencial da regulação compartilhada da saúde. Não há verdade ou certeza absoluta. Mas existe minimização de risco (e de dano) com a participação de quem é o alvo das políticas sanitárias, uma vez que se baseia em experiências locais e pessoais. 22 4.1.2 Os consórcios administrativos intermunicipais (Distritos Sanitá- rios) Os Consórcios Intermunicipais são autorizados pelos artigos 10 e 18 da Lei 8080/90, e Art. 3º, §3º, da Lei 8142/90. Também são formas de descentralização das ações e de serviço da saúde, no que também atendem ao preceito estabelecido pelo Art. 198, I, da Lei Fundamental. Têm como função reunirem-se para resolver um problema especí+ co, no caso, a saúde. É um consórcio administrativo que visa suprir eventuais impossibilidades de um Município, de forma isolada, dispor de todo o aparato necessário para a prote- ção necessária, mediante uma ação corporativa, que formará um distrito sanitário, tornando, em tese, mais e+ ciente a prestação sanitária nas localidades abrangidas pelos consórcios. Veri+ ca-se, portanto, que o que se procura com a formação dos consórcios administrativos intermunicipais de saúde não é a racionalização administrativa, mas sim uma outra forma de atendimento e prestação sanitária. Como assevera Eugênio Mendes (1999, p. 162): Em outras palavras, o que se busca com a construção dos Distritos é re- direcionar e modi+ car a forma de organização e o conteúdo das ações e serviços de saúde, de modo a se responder às demandas da população, atender às necessidades de saúde e, fundamentalmente contribuir para a solução dos problemas de saúde da população que vive e trabalha no espaço territorial e social do Distrito Sanitário. Os Consórcios são uma parceria formada entre Municípios a partir de um acordo comum de vontades, já que não é imposição legal. Facilita, pois, o processo de regionalização e hierarquização prevista no sistema (CRUZ, 1998, p. 38). Possuem personalidade jurídica própria, fazendo com que se sujeitem às normas de criação especí+ ca de tais institutos. Vale ressaltar que os consórcios fazem parte do SUS, e, logo, devem obedecer a seus princípios. Avelar Bastos (1999, p. 88-89) os considera essenciais por que se constituem “num elemento fundamental para a consecução de políticas públicas na área de saúde a nível regional, por meio da concertação entre instituições estatais e diferentes segmentos privados, objetivando a garantia do espaço público e dos direitos de cidadania”. Também são os Consórcios Sanitários (Distritos) formas de gestão compar- tilhada. Mitigam-se responsabilidades em nível municipal, ouvindo-se os Conse- lhos de Saúde de cada região – onde há a participação do indivíduo –, na busca de 23 uma saúde que tenha um regulação compartilhada. 5. O orçamento participativo O caso do orçamento participativo de Porto Alegre tornou-se + gura emble- mática nos modos de participação popular em nível mundial. Vários estudiosos do tema vêm cotidianamente a capital farroupilha para veri+ car os pressupostos e modos de aplicação desse novo instituto (re)inventado pela democracia. Pode-se dizer, de certa forma, que o orçamento participativo é a descentra- lização da descentralização. A regionalização da regionalização. O seu + to é a par- ticipação comunitária mediante o esquadrinhamento da cidade em determinadas regiões. A ideia era (é) a de simpli+ car as operações decisórias “e magni+ car os re- sultados potenciais, pois o diálogo seria entre governo e as já existentes associações comunitárias” (NAVARRO, 1999, p. 305). Nesse sentido, a saúde municipalizada e/ ou organizada em Consórcios Administrativos Intermunicipais possui mais uma modalidade de gestão compartida sanitária. O Orçamento Participativo tem, desde o seu início, caracterizado seu modus operandi mediante reuniões deliberativas, que ocorrem de março a junho de cada ano, constituindo-se na primeira etapa do processo. Conforme elucida Feddozi (1999, p. 115), este processo de participação popular nas de+ nições do orçamento municipal dá-se em três etapas e segundo duas modalidades de participação: a re- gional e a temática. As Assembleias Regionais e as Assembleias Temáticas ocorrem no mesmo período, e, portanto, são concomitantes. Também obedecem à mesma dinâmica: demandas territorializadas, no primeiro caso, e temas especí+ cos, mas referentes ao conjunto das regiões, no segundo. As etapas do ciclo anual do orçamento participativo porto-alegrense são: (i) realização das Assembleias Regionais e Temáticas; (ii) formação das instâncias institucionais de participação, tais como o Conselho do Orçamento e os Fóruns de Delegados; (iii) discussãodo orçamento do Município e aprovação do Plano de Investimento pelos representantes dos moradores no Conselho de Orçamento Participativo. Na segunda etapa, realizada no segundo semestre do ano, é que efetivamen- te se constata a efetiva participação da comunidade nas decisões. É aqui que se formam as instâncias institucionais de participação comunitária: O Conselho do Orçamento Participativo (COP) e os Fóruns de Delegados. 24 Muito embora existam outros momentos em que se efetua, de forma direta ou indireta a concretização de uma real esfera pública, é no Conselho do Orçamen- to Participativo que este objetivo se cristaliza. É um órgão de participação direta da comunidade, tendo por + nalidade planejar, propor, + scalizar e deliberar sobre a receita e despesa do Orçamento do Município de Porto Alegre. Nisso se inclui a saúde municipalizada. Os membros do COP e dos Fóruns de Delegados são eleitos mediante apre- sentação de chapas, sendo os representantes eleitos proporcionalmente à votação recebida por cada uma das chapas apresentadas (FEDOZZI, 1999, p. 122). Isso le- gitima o procedimento, e transforma o Conselho na principal instância participati- va. A terceira etapa ocorre com a posse dos novos conselheiros e delegados, nos meses de julho e agosto, iniciando-se a fase de detalhamento na feitura do orça- mento. Assim, pretende-se certa visibilidade no processo regulatório mediante um procedimento democrático, que insere e torna possível novos pensamentos e ideais para uma gestão compartida na área da saúde. 6. As ONG’s As chamadas ONG’s – Organizações Não-Governamentais – atuam primária e suplementarmente em um espaço que deveria ser do Estado, mas que o mesmo não ocupa devido à sua inércia. Também podem ser caracterizadas como uma for- ma de gestão compartida, inclusive na área da saúde. Assinala Juan Navarro, que as áreas de atuação das ONG’s são aquelas classicamente consideradas próprias da atividade governamental, como a prestação de serviços sociais e, em geral, a produção de bens públicos ou quase-públicos, como educação, saúde, nutrição infantil, habitação de baixo custo, promoção comunitária, proteção do meio ambiente natural etc. (FEDOZZI, 1999, p. 122). Na área da saúde, apenas para exempli+ car, pode-se citar como ONG’s sani- tárias: Liga Feminina de Combate ao Câncer, Greenpeace, SOS Erro Médico, entre tantas outras. São organizações privadas e que não possuem natureza empresarial. Não possuem + ns lucrativos. Fazem parte de um fenômeno que se alastrou pela América Latina no início dos anos 90. Tendem para a inovação, muitas vezes pelos parcos re- 25 cursos; outras, por ser de sua natureza acompanhar as novidades da mundialização, procurando incorporá-las à sua área de atuação. A inovação “está na diversidade de iniciativas em cada país, região, localidade ou campo de ação em que operem as ONG’s” (FEDOZZI, 1999, p. 91). Em vários casos as ONG’s buscam metodologias participativas nos progra- mas sociais, e, frequentemente, atuam em conjunto com o Estado em matéria que seria de sua competência exclusiva. Por isso, constituem-se em uma associação coo- perativa/participativa baseada em um novo paradigma de regulação. Sua grande responsabilidade é encontrar um meio termo entre os deveres/direitos de ambas as partes (ONG’s x Estado). Todavia, temer a inserção dessa nova modalidade originária da democracia inventiva é algo que deve ser combatido, visto que as ONG’s já são realidade em nosso país e na América Latina. Portanto, como parte da aquisição evolutiva da sociedade, resultam de um processo favorável à visibilidade e à participação do in- divíduo em uma gestão regulatória compartilhada. 7. Demais formas de participação popular em saúde Cabe referir que a participação popular em saúde também se dá via judiciá- ria, quando as promessas de política públicas não satisfazem à necessidade sanitária da população, ou, até mesmo, quando as decisões advindas do espaço juridi+ ca- do não são cumpridas/acatadas pelos demais Poderes Constituídos. Assim, cabe ao Poder Judiciário, quando provocado, ou nos casos em que tem o dever de agir de ofício, e porque é o órgão legitimado para tanto, proferir decisão corretiva da desigualdade, atendendo sempre aos princípios fundantes do Estado Democrático brasileiro. Relembre-se que a saúde é direito fundamental. Portanto, possui(rá) todos os remédios e ações existentes – e que vierem a existir – para sua efetivação. Logo, quando o indivíduo exerce sua cidadania via ação judicial ele está amparado juridi- camente. Daí que o Poder Judiciário deverá se pronunciar sobre a questão em tela. Nesse sentido, assevera Leal (1997, p. 166): Em busca de novos paradigmas e pautas de ação política, talvez os di- reitos humanos de todas as gerações possíveis e imagináveis, entre eles o direito de um meio ambiente e de uma cidade sadia e justa, sirvam como um novo paradigma à constituição de um pacto associativo que preserve e releve valores como a democracia, o pluralismo jurídico, a igualdade a justiça social. 26 Nessa linha de raciocínio, e da mesma forma, é que o Ministério Público (vide Art. 129, da CF/88) tem o dever de lutar pela defesa dos interesses difusos, como é o caso da saúde. Portanto, havendo necessidade, o MP deverá agir para restabelecer o status quo sanitário. Ainda, aos carentes é reservada a faculdade/direito de, em não tendo condi- ções de pagar um patrocínio, recorrer à Defensoria Pública. Esta procederá e dispo- rá dos meios para proteger a lesão reclamada. De outra banda, face às características do Estado Democrático de Direito e na busca de uma regulação que adote a possibilidade de consecução de uma gestão compartida sanitária, ainda existem outros mecanismos por meio dos quais pode ocorrer a participação popular mediante atuação direta na gestão e no controle da Administração Pública. Para Pietro (1993, p. 127), o indivíduo interage com a Administração me- diante intermediários ou individualmente. Nesta última forma é que melhor se cristaliza a participação, pois na primeira corre-se o perigo de os intermediários colocarem em primeiro plano seus interesses e não os de seus representados. Ain- da, a interação individual é melhor porque se presta a uma ideologia psicológica e direta, visto que os ideais têm a direta aproximação entre eleitor e eleito e inexiste a + gura do intermediário. Para a mesma autora, a participação popular pode ainda ser dividida de maneira diversa: direta e indireta. A modalidade direta consiste, basicamente em quatro hipóteses: (i) no direito de ser ouvido; (ii) enquetes, como, por exemplo as audiências públicas do Art. 58, §2º, II, da CF/88. Aduzindo, dentro da modalidade direta ainda é possível acrescentar a iniciativa popular em processo legislativo – in- clusive o sanitário, da mesma forma que o acesso ao Judiciário nas modalidades das garantias individuais do direito à saúde. Já a modalidade indireta é exercida de várias formas, tais como: (i) a autori- zação do Congresso Nacional para liberar referendo e convocar plebiscito, previsto no Art. 49, XV, da CF/88; (ii) a possibilidade de o particular denunciar irregulari- dades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União (Art. 74, §2º, CF/88); (iii) o fato de ser crime de responsabilidade o ato do Presidente da República que atente contra o exercício dos direitos individuais e sociais (Art. 85, III, CF/88); (iv) a proposição de ação de inconstitucionalidade mediante o Conselho Federal da Or- dem dos Advogados do Brasil e/ou partido político com representação no Congres- so Nacional (Art. 103, VII e VIII, da CF/88). Pietro (1993, p. 137) elenca, ainda, outras possibilidades de atuação do par- 27 ticular na Administração Pública, todas elas aplicáveis ao direito à saúde. A saber: (i) participação popular em órgãos de consulta; (ii) participação popular em órgãos de decisão. Diz ainda a autora que três medidas deveriam ser tomadas para que se ele- vasseainda mais a gama de atuação do indivíduo na Administração Pública: (i) a outorga de legitimidade ativa aos entes coletivos para a propositura da ação popu- lar; (ii) criação de um ombudsman nos moldes escandinavos, sendo um verdadeiro órgão de proteção dos interesses dos cidadãos junto ao Parlamento, com prerroga- tivas de + scalização da Administração Pública; (iii) a adequada interpretação do mandado de injunção, em que este não seja mais um mero sucedâneo da Ação Di- reta de Inconstitucionalidade. Assim, em face de todos os caminhos expostos, ter-se-ia uma delegação de competência societária de modo compartido. Mais, essa enorme capacidade de compartilhamento de decisões, geradora de mais possibilidades de que se possa realizar (complexidade), é resultado de um paradigma sistêmico de sociedade, onde a + gura do risco e da (re)invenção democrática tornam-se necessárias para produ- zir na sociedade global complexa um sentido mais democrático e so+ sticado tanto para o direito como para a sociedade. 8. Considerações ) nais Mesmo sabendo-se da impossibilidade de uma verdade/solução (mágica) absoluta para a crise do sistema de saúde brasileiro, pode-se entender a regulação compartida (Dizer o Direito, Dizer a Saúde) como mais uma das formas/alternati- vas – e talvez a mais democrática e legítima – de efetivação do direito à saúde. Quando se reporta à saúde há que veri+ car que este é um conceito altamente subjetivo e modi+ cável. Que este conceito depende da sua atuação/interação com os demais sistemas sociais. Por isso mesmo, a saúde deve ser analisada por uma teoria mais apta para entender sua complexidade: a teoria dos sistemas sociais. Dita teoria, quer em sua ótica luhmannina, adotada no presente trabalho, responde às incertezas trazidas no bojo da pós-modernidade. O Estado, visto tal ótica, não está imune às in> uências dos demais sistemas. Dada a locução do Art. 196, da CF/88. Ele avocou para si o dever de garantir a saúde mediante políticas públicas e sociais. Portanto, a questão sanitária passa por entender também o modelo de Estado adotado pelo Brasil: o Estado Democrático de Direito. 28 A inovação democrática dessa modalidade estatal autorizou o Estado a lan- çar mão de novas técnicas burocráticas e novos procedimentos, tudo na procura da efetivação do dever assumido. É assim que o Estado passa a ter fundamental importância na consecução da saúde, uma vez que legalmente autorizado, e, face às características corretivas do Estado Democrático, passa a ter uma atuação primária – no sentido de antecedência – aos demais Poderes Constituídos. Todavia, é fato que o Estado não consegue mais cumprir as promessas da modernidade a contento. Passam a surgir novas formas autopoiéticas de sua atua- ção, inclusive delegando/permitindo a atuação dos particulares nesse sentido. Disso tudo nasce a gestão regulatória compartida sanitária. Entretanto, como a gama de possibilidades de uma decisão sempre implica na análise do porquê de não se haver decidido de outra maneira – seja de forma explícita ou implícita –, mister admitir que o risco será + gura presente no campo da esfera pública sanitária. No entanto, mesmo que se pense o contrário, o risco não é uma má característica. Ao contrário. É uma qualidade democrática. Democrático- inventiva, assim como quer Lefort, e que se completa via regulação compartida. Dessa maneira, passa-se a admitir que não existe uma verdade anterior e absoluta. Ela se (re)produzirá a partir do debate das e posições contraditórias es- tabelecidas no palco da relação sistema x ambiente. A democracia sanitária não é lugar do pensamento único, até porque a saúde deve ser analisada tanto do ponto de vista individual como do ponto de vista coletivo. Com essa lógica, foi que a Constituição Brasileira descentralizou a proteção/ promoção sanitária, entendendo que a mesma seria mais bem atendida a partir de uma especi+ cidade adaptada às características regionais. As formas assumidas para tanto – municipalização e distritos sanitários – são instrumentos em que há a concreta participação popular na gestão sanitária, especialmente nos Conselhos Municipais de Saúde. As ONG’s e o Orçamento Participativo são exemplos cristalinos da (re)in- venção democrática possibilitada pela novo modelo de produção regulatória. São novos modelos técnico-procedimentais em que os indivíduos são autorizados a atuarem na defesa de seus interesses. Muito embora sejam diferentes em suas con- cepções, ambos são administrados de forma compartilhada. Todas essas novas formas aliam-se àquelas elencadas pela Carta Magna, em que aparece com grande destaque o acesso ao Poder Judiciário e as novas formas de consulta à população, tais como o referendo e o plebiscito. Isso sem citar a variedade de institutos protetivos da gestão compartida já declinados. 29 Portanto, além de uma construção recente, a gestão compartida sanitária é também legalmente autorizada. Isso pressupõe que o direito à saúde não é um mo- nopólio. É, isto sim, um direito de todos, e, mais do que tudo, uma regulação de, por e para todos. Notas 1 O presente texto foi elaborado para apresentação na mesa de debate intitulada “Uma releitura constitucional da “Participação da Comunidade” em Saúde”, ocorrida durante o I Encontro Nacional de Direito Sanitário, realizado na capital brasileira e sediado na Universidade de Brasília, no ano de 2008. Foi revisado especialmente para a edição deste livro. 2 Uma análise sintética, mas analítica, a respeito dessas teorias, pode ser encontrada em Steinmetz (2004). 3 Uma das poucas teorizações relevantes nesse sentido pode ser encontrada em Arnaud (2003). 4 O Direito da modernidade possui uma série de características, particularmente o mo- nopólio da produção legislativa pelo Estado, o que impõe uma “certeza” dentro dos limites do Estado-Nação da qual faz parte. É, pois, um Direito com pretensão de longa duração, ligado à velocidade das mudanças sociais da época. A urgência do mundo atual requer formas mais céleres de resposta do Direito, nem sempre “seguras”, porém conectadas às relações contingenciais da pós-modernidade. Um resumo das caracte- rísticas do Direito moderno e da juridicidade pós-moderna é encontrado em Arnaud (1999, p. 203). 5 Em especial, entendo o risco como um fenômeno contigencial da aquisição evolutiva da sociedade. 6 O Direito vive em um “não-tempo mortífero”, ou seja, um passado que não passa, pouco adaptado a uma época em que o tempo social se (re)modi+ ca incessantemente. 7 É este o sentido, por exemplo, da obra de Gérard e Ost (1996). 8 Essa é a expressão usada por Teubner (1997) para explicitar a fragmentação do siste- ma jurídico em uma sociedade global. 9 Há uma autopoiese basal, estruturada circularmente, cuja paradoxidade é pura e ope- rativa, e existe uma autopoiese derivada, possuidora de uma circularidade evolutiva e de uma semântica paradoxal, abrindo novos espaços de estruturação. 10 Expressão utilizada por Arnaud (2003, p. 271). 11 “Por exemplo, podemos estar seguros de defender um valor considerável e não nos 30 ridicularizarmos ao propugnarmos pela saúde pública. Em termos grosseiros isso tam- bém delimita o campo de eventos e ações que podem ser observados da mesma forma; permanece porém em aberto quais são as ações que devem fomentar a saúde públi- ca, e que por isso deveriam ser esperadas normativamente, quanto dinheiro (de outras pessoas) a saúde pública poderia custar, e também se ela seria preferencial no caso de con> ito com outros valores, por exemplo, econômicos, culturais, da liberdade e da dig- nidade individuais”. (LUHMANN, 1983, p. 103). Referências ARNAUD, André-Jean. Critique de la raison juridique 2: gouvernants sans frontières. Entre Mondalisation et Post-Mondialisation. Paris: L.G.D.J., 2003. ARNAUD, André-Jean. O direito entre modernidade e globalização: lições de + loso+ a do direito e do Estado. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. BASTOS, FranciscoAvelar. O consórcio intermunicipal da saúde da região centro do Estado do Rio Grande do Sul – CIS. Redes/Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul, v. 4, n. 1, 1999. 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TEUBNER, Gunther; FISCHER-LESCANO, Andreas. Regime-Collisions: the vain search for legal unity in the fragmentation of global law. Michigan Journal of Interna- tional Law, v. 25, 2004. VEJA, São Paulo: Editora Abril, 08 de abril de 1998. p. 11-13. Os novos paradigmas culturais do direito na sociedade contemporânea Marco Félix Jobim 1. Introdução Este texto é uma reelaboração do capítulo primeiro da obra “Cultura, Escolas e Fases Metodológicas do Processo” (JOBIM, 2012). Após algumas re> exões mais aprofundadas, reviu-se alguns posicionamentos para trazer ao leitor outros aspec- tos importantes do ambiente cultural brasileiro e mundial que se vive na atualidade e as suas ligações com o Direito. Num primeiro momento serão abordados aspectos importantes ligados à cultura e ao Direito, para que se tente elaborar uma concepção de que existe um relacionamento muito forte entre ambos, em especial no referente às modi+ cações que afetam um e outro. Num passo adiante serão abordados os paradigmas que estão hoje permean- do o ambiente cultural no Brasil, quais sejam, o da pós-modernidade, da globaliza- ção, da sociedade da pressa, do hiperconsumismo e da venda de praticamente tudo que se possui em termos de bens. Ao + nal, será concluído se o Direito vem abarcando essa nova realidade cul- tural que se coloca na atualidade. Não se pretende a+ rmar que somente os paradig- mas que o estudo aponta são aqueles que estão hoje alocados na cultura da socie- dade, mas sim, que, partindo deles, haja uma análise se o Direito está cada vez mais longe ou perto dos valores sociais. 2. Direito e cultura A cultura é fenômeno social que traduz o momento de determinada socieda- de em determinado local e tempo. O questionamento que ora se transfere ao estudo é saber se esse momento cultural vivenciado por determinada sociedade deve espe- lhar, de mesma forma, o momento jurídico que ela vive. 34 Para início de debate deve-se buscar em Galeno Lacerda (2008, p. 04) a gê- nese da discussão ora trazida à lume, pois, em suas palavras, aponta ser a cultura um elemento importantíssimo para o crescimento de uma civilização. Poéticas ou não suas palavras, é inegável que o Direito não pode estar infenso aos fenômenos culturais da sociedade e vai mais além, a+ rmando que deve ser, inclusive, um modo de modi+ car o pensamento dela. Ângelo Falzea, ao se referir ao Direito, aponta ser ele um subsistema do que vem a ser o sistema maior que seria a própria cultura, ao dizer “[...] che Il diritto è un fenomeno culturale; che la cultura è con+ gurabile come un sistema interna- mente articolato in sottosistemi; Che Il diritto à uno dei sottosistemi del sistema culturale” (FALZEA, 1999, p. 02).1 Ora, sendo o Direito um subsistema do sistema que vem a ser a “cultura”, conclui-se que, modi+ cadoo sistema, os seus subsistemas sofrerão igualmente con- sequências, modi+ cando-os também, e vice-versa, ou seja, modi+ cando o subsis- tema (Direito), a cultura (sistema) também poderá ser atingida e modi+ cada. Na mesma linha de considerar o próprio Direito como parte integrante da cultura de um povo, pode-se ler Guido Fernando Silva Soares (2000).2 Nada mais exempli+ cativo e atual que a recente decisão do Supremo Tri- bunal Federal,3 a qual igualou as relações homoafetivas à de união estável entre homem e mulher, fazendo com que este novo norte, que faz parte do Direito, deverá ter condições de possibilidade de efetivar uma nova orientação cultural na socieda- de brasileira. E o desfecho com que se pode + nalizar esse tópico de Ovídio Baptista A. da Silva, que assim de+ ne as ligações existentes entre cultura e Direito, ao mencionar: Em resumo, superar o dogmatismo, fazendo com que o Direito apro- xime-se de seu leito natural, como ciência da cultura, recuperando sua dimensão hermenêutica. Isto poderia parecer uma tarefa desnecessária, pois hoje ninguém mais tem dúvida de que o Direito é uma construção humana, não havendo uma ordem jurídica previamente inscrita na na- tureza das coisas; e a lei deve ser apreendida como uma proposição cujo sentido altera-se na medida em que se alterem as variantes necessidades e contingências históricas (SILVA, 2006, p. 01-02). Diante de tais pensamentos, mesmo que emanados de alguns poucos autores pesquisados, não há como deixar de registrar a uniformidade de pensamento de todos eles ao referirem que a cultura in> ui diretamente no Direito.4 Diante de tais fatos, pode-se a+ rmar que o Direito deve se adaptar àquela determinada cultura na época ou na sociedade na qual se vive, assim como esta 35 adaptar-se às inovações porventura trazidas por ele. 2.1 O momento do Direito na sociedade contemporânea brasileira Essa passagem do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito traz no- vas responsabilidades ao pro+ ssional do Direito, entre elas pensar sobre qual o mo- mento atual do Direito na sociedade contemporânea. Será que a legalidade, que era a+ rmação do Estado Liberal desde a célebre obra de Montesquieu, ainda é uma realidade na atualidade, ou ela cede espaço a no- vas teorias que tentam explicar os fenômenos jurídicos hodiernos. Luiz Guilherme Marinoni (2010) abastece essa parte doutrinária, enaltecendo o rompimento com o Estado legalista, devendo dar-se norte a um novo Estado de Direito ligado à seara constitucional. Então, sabe-se que o momento cultural jurídico que hoje prepondera no Bra- sil, assim como em muitos ordenamentos estrangeiros, denomina-se de neoconsti- tucionalismo (CAMBI, 2009, p. 27).5 Contudo, é de se questionar se a cultura que se vivencia hoje fora das questões jurídicas está in> uenciando o Direito brasileiro. 2.2 A cultura da sociedade atual Inegável que as transformações trazidas pela cultura in> uenciam o âmbito do direito brasileiro, não sendo nem preciso a leitura da vasta bibliogra+ a da ma- téria que assim entende, a qual foi parcialmente citada no capítulo sobre o tema, mas tão somente o cidadão partir de seu bom sendo para chegar a esta indubitável conclusão. O que interessa, então, neste momento, é saber quais são os novos paradig- mas sociais que interessam a esta nova etapa do Direito contemporâneo. Quando da elaboração da obra “Cultura, Escolas e Fases Metodológicas do Processo” haviam sido encontrados três novos alicerces culturais – pós-modernidade, hiperconsumis- mo e globalização – os quais ganham mais dois reforços: o da sociedade da pressa e da compra e venda de quase tudo. 2.2.1 A pós-modernidade O ser humano já foi alguém desprovido de fala e de escrita, mas, mesmo 36 assim, não deixou de sobreviver e de se comunicar pela linguagem atribuída a esta determinada época da história da humanidade. Isso se explica pelo simples fato de que talvez esse tenha sido o momento cultural ideal para aquela determinada classe de indivíduos, ou seja, não falar, não escrever, comunicando-se de outras formas. A história relata que a sociedade, salvo raros casos, não permanece estagna- da. Felizmente, o mundo evoluiu, ao passo de o elemento cultural preponderante evoluir num mesmo patamar para que momentos da história global pudessem ser hoje conhecidos, estudados e compreendidos para a melhoria da qualidade de vida. Não é à toa que, quando se abre um livro destinado à história mundial, ou outro, que tente explicar o posicionamento político de determinada época, ou ainda mais, um de história do Direito, serão objetivos, seus capítulos, no que concerne aos diversos estágios existentes na sociedade mundial, sabendo-se que havia os povos da chamada Antiguidade (SILVA; SILVA, 2010, p. 19)6 (dentre os mais conhecidos, pode-se citar os gregos e os romanos), e que, quando da derrocada destes últimos, ingressou-se numa nova era, chamada de Idade Média (PALMA, 2011).7 Posterior- mente, vimos o Absolutismo (SILVA; SILVA, 2010, p. 11),8 seguido do Renascimen- to (SCHWANITZ, 2007, p. 61),9 estes últimos dois importantes momentos na his- tória que deram entrada ao que se conhece por Idade Moderna. Mais recentemente ainda poderiam ser lembrados outros momentos, como a modernidade líquida ou > uida (BAUMAN, 2001)10 e o estágio mais atual, o da pós-modernidade (CHEVA- LIER, 2009, p. 19-20).11 A exempli+ cativa caminhada, sem qualquer pretensão de esgotamento das fases históricas da humanidade, serve para demonstrar que o mundo evolui de acordo com determinados momentos culturais que a sociedade daquela época vi- venciou, e que o passar do tempo pode vir a ser um elemento modi+ cador da cultu- ra e, consequentemente, do momento social que se vive. Vivencia-se, hoje, o que se passa a chamar de pós-modernidade. Isso se dá pelos diversos elementos culturais que hoje estão a cada dia modi+ cando o modo de pensar e de agir do ser humano. Mas o que vem a ser pós-moderno? Uma das explicações é conferida por Mike Featherstone, ao assim se manifestar sobre a con- ceituação: Se “moderno” e “pós-moderno” são termos genéricos, é imediatamente visível que o pre+ xo “pós” (post) signi+ ca algo que vem depois, uma que- bra ou ruptura com o moderno, de+ nida em contraposição a ele. Ora, o termo “pós-modernismo” apóia-se mais vigorosamente numa negação do moderno, num abandono, rompimento ou afastamento percebido das características decisivas do moderno, com uma ênfase marcante no sen- 37 tido de deslocamento relacional. Isso tornaria o pós-moderno um termo relativamente inde+ nido, uma vez que estamos apenas no limiar do ale- gado deslocamento, e não em posição de ver o pós-moderno como uma positividade plenamente desenvolvida, capaz de ser de+ nida em toda a sua amplitude por sua própria natureza. Tendo isso em mente, podemos olhar os pares mais profundamente (FEATHERSTONE, 2007, p. 19). As certezas se esvaíram. Não se sabe hoje o que se espera do amanhã, dife- rentemente de como era sabido na Modernidade. As incertezas tomam conta do dia a dia e isso vai se tornando cada vez mais corriqueiro para o ser humano, que acaba achando ser completamente normal viver desta forma. 2.2.2 A globalização (ADOLFO, 2001, p. 59)12 Com o advento da pós-modernidade surge algo que não pode deixar de ser também um de seus maiores alicerces: a Globalização. Talvez a obra que melhor re- trate o mundo globalizado seja a do colunista do New York Times, ~ omas L. Fried- man, que entendeu, após passar um tempo na Índia, que o mundo como conhece- mos não é o mesmo, denominando este fator de plani+ cação do mundo, razão pela qual sua festejada obra denomina-se de “O Mundo é Plano: o Mundo Globalizado do Século XXI”. Em certa passagem aponta o autor como chegou neste conceito: Lá estava eu, em Bangalore – mais de quinhentos anos depois de Colom- bo, munido apenas das primitivas tecnologias de navegação da sua época, desaparecer no horizonte e voltar em segurança, comprovando em de+ - nitivoque a Terra era redonda –, e um dos mais brilhantes engenheiros indianos, que havia estudado na melhor escola politécnica do seu país e tinha as mais modernas tecnologias da atualidade ao seu dispor, vi- nha basicamente me comunicar que o mundo agora é plano – tão plano quanto aquele telão em que ele podia presidir uma reunião de toda a sua cadeia de fornecimento global. E o mais interessante é que, a seu ver, era ótimo, constituía um novo marco do progresso humano e uma extraordi- nária oportunidade para a Índia e o mundo, o fato de que havíamos acha- tado o planeta! No banco de trás daquela van, rabisquei quatro palavras no meu bloquinho: “O mundo é plano”, e, assim, que as vi no papel, tive a certeza de que aquela era a mensagem subjacente de tudo o que eu tinha visto e ouvido em Bangalore em 15 dias de + lmagens. Estávamos aplai- nando o terreno da concorrência global. Estávamos achatando o planeta (FRIEDMAN 2009, p. 19). Com as de+ nições da era pós-moderna e da mundialização das relações so- ciais, políticas, econômicas, entre outras características da globalização, existe ou- tra de+ nição que pode ter muito a ver com as ideias destes dois conceitos acima 38 referidos, mas que, mesmo se não houvesse, deveria ser estudada pela rapidez com que vem ocorrendo nos dias atuais, quer seja globalizadamente, quer seja apenas circunscrevendo ao âmbito brasileiro. Sobre o alcance do fenômeno da globalização, Luiz Gonzaga Silva Adolfo (2001, p. 47)13 a+ rma ser ele uma realidade a todas as áreas do conhecimento hu- mano, não estando cingido apenas aos aspectos econômicos, jurídicos, históricos, políticos e sociais. 2.2.3 O hiperconsumismo Trata-se da noção de hiperconsumismo, ou seja, de as pessoas estarem a cada dia mais sendo hiperconsumidoras de um mercado altamente atrativo para este + m. Um livro que chama a atenção é “Consumido: como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos”. O autor, Benjamin R. Barber (2009, p. 16- 17),14 traz uma assustadora visão de como as crianças estão + cando adultas mais jovens e como os adultos estão entrando numa era de sua infantilização, o que acaba sendo uma das razões desse hiperconsumismo. Tudo isso acaba sendo fruto de uma cultura massi+ cada (MORIN, 2011, p. 04-05)15 e instantânea, na qual estamos sendo vigiados e vigiamos a vida de cada um a cada instante, em todas as partes do globo. A preocupação não está mais no ser individual, mas no ser coletivo, modi+ cando uma cultura herdada do Moder- nismo e que hoje se vê desabar frente aos comportamentos industrializados que compramos todos os dias de modelos que sequer se compactuam com o nosso. O hiperconsumismo acaba sendo, em dois momentos, um alavancador de processos perante o Poder Judiciário. Numa primeira visão, as pessoas, consumin- do mais, estão mais propensas a que ocorram problemas nestas relações,16 aca- bando por estes serem resolvidos no Poder Judiciário. Por segundo, essas mesmas pessoas que consomem em damasia tudo em sua vida, também um dia serão consu- midoras do Poder Judiciário, pela própria cultura incorporada em seu ser, levando a julgamento casos sem sentido e recebendo, tudo em nome de uma equivocada interpretação do artigo 5º, XXXV,17 da Constituição Federal, muitas vezes denomi- nado, equivocadamente, de acesso à justiça ou inafastabilidade da jurisdição (SAM- PAIO JÚNIOR, 2008, p. 145),18 quando, na verdade, nada mais é do que direito fundamental de o cidadão poder levar sua pretensão de direito material às portas do Poder Judiciário, embora grandes nomes defendam que existem duas concepções para o chamado “acesso à justiça”: o primeiro, de somente poder acessar o Poder 39 Judiciário, e, o segundo, de que este acesso seja justo (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 8).19 2.2.4 A sociedade da pressa Deve-se esquecer aquela velha concepção de tempo que grande parte de nos- sos antepassados vivenciou, que era consubstanciado em fragmentar o tempo em séculos, décadas, anos, dias, horas, minutos, segundos, décimos de segundos, milis- segundo, microssegundo, pois chega-se a hora de, numa visão mais contemporânea de tempo, citar os novos paradigmas que o dividem em nanossegundos (LABRA- DOR, 2007),20 picossegundos (LABRADOR, 2007),21 femtossegundos (LABRA- DOR, 2007)22 e attossegundos (STIX, 2007).23 Isso dá-se já nessa nova concepção da sociedade da pressa. Os conceitos de outrora sobre tempo são difíceis de serem sustentados numa sociedade pós-moderna, tendo em vista que as pessoas vivem constantemente sem tempo. A velocidade com que alguns acontecimentos ocorrem não poderia sequer ser imaginada alguns anos atrás. Uma pesquisa que poderia demorar anos ou até mesmo uma vida inteira pode ser feita em milésimos de segundos pela internet, bas- tando fazer um cruzamento de informações e clicar o botão “Enter”.24 E isso é fruto de uma sociedade que necessita dessa agilidade, pois, ao invés de um compromisso apenas, o ser humano tem dezenas a realizar no mesmo dia, na mesma hora, o que acaba por tornar escasso o tempo, mesmo que existam ferramentas que facilitam o dia a dia como a acima mencionada. E o ser humano sente epidermicamente o passar do tempo e se preocupa, constantemente, com essa falta existente nos dias de hoje. Tanto é assim que não é de se estranhar que o conhecido e antigo adágio po- pular “time is money” (tempo é dinheiro) (STIX, 2007, p. 07)25 nunca esteve tão em voga, e não apenas pela força da expressão, mas sim, pois, estando a sociedade sem tempo, nada mais justo que aqueles que o têm consigam vendê-lo para aqueles que não o têm, e sejam devidamente compensados, da melhor forma possível. Gary Stix (2007, p. 07),26 em lição sobre o tema, a+ rma que “[...] o tempo, no século XXI, tornou-se o equivalente do que foram os combustíveis fósseis e os me- tais preciosos em outras épocas”, mostrando que ele está se tornando uma raridade e, pior, comercializável. Mais radical ainda é o pensamento de Philip Zimbardo e John Boyd que, ao 40 estudarem em profundidade as questões relacionadas ao tempo e ao ser humano, ao analisarem milhares27 de questionários acerca do tema, relatam ser o tempo nosso bem mais valioso ao a+ rmarem: O tempo é nosso bem mais valioso. Na economia clássica, quanto mais escasso for um recurso, maior será a quantidade de usos que se pode fazer dele e maior o seu valor. O ouro, por exemplo, não tem nenhum valor intrínseco e não passa de um metal amarelo. Entretanto, os veios de ouro são raros no planeta, e esse metal tem muitas aplicações. Primeiramente o ouro era usado na confecção de jóias, e mais recentemente passou a ser usado como condutor em componentes eletrônicos. A relação entre escassez e valor é bem conhecida, e por isso o preço exorbitante do ouro não é nenhuma surpresa. A maioria das coisas que podem ser possuídas – diamantes, ouro, notas de cem dólares – consegue ser reposta. Novas reservas de ouro e diamante são descobertas, e novas notas são impres- sas. O mesmo não acontece com o tempo. Não há nada que qualquer um de nós possa fazer nesta vida para acrescentar um momento a mais no tempo, e nada permitirá que possamos reaver o tempo mal-emprega- do. Quando o tempo passa, se vai para sempre. Então, embora Benjamin Franklin estivesse certo a respeito de muitas coisas, ele errou ao dizer que tempo é dinheiro. Na verdade o tempo – nosso recurso mais escasso – é muito mais valioso do que o dinheiro (ZIMBARDO; BOYD, 2009, p. 16). Assim, a sociedade é da pressa, o que re> ete diuturnamente na vida de to- dos, fazendo com que já acordemos atrasados, deitemos com a cabeça no amanhã e, inclusive, durmamos pouco para poder compensar os atrasos dos dias passados. Entramos no que Vince Poscente (2008) defende ser a era da velocidade. 2.2.5 O vender tudo O + lósofo estadunidense Michael J. Sandel, um dos grandes críticos na atua- lidade da ótica utilitarista que predomina no mercado empresarial, o que o fez em sua obra “Justiça: o que é fazer
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