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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – DEDC/CAMPUS I VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA: “NÓS” E “A GENTE” EM TEXTOS DO ENSINO FUNDAMENTAL ELISANGELA DE JESUS DA SILVA ALAGOINHAS - BA 2008 ELISANGELA DE JESUS DA SILVA VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA: “NÓS” E “A GENTE” EM TEXTOS DO ENSINO FUNDAMENTAL Monografia apresentada ao Departamento de Educação do Campus II da Universidade do Estado da Bahia como requisito parcial para obtenção do título de Licenciada em Letras Vernáculas sob a orientação da Profª. Drª. Maria Nazaré Mota de Lima. ALAGOINHAS – BAHIA 2008 2 AGRADECIMENTOS A três pessoas maravilhosas: Deus, meu Pai querido; Jesus Cristo, meu amigo; e ao Espírito Santo, meu consolo constante nos momentos em que pensei que não iria conseguir. À minha mãe, meu amor, que desde 1994, quando meu pai partiu para eternidade, tem sido forte e sempre me incentivando a nunca desistir dos meus objetivos. Durante a produção desta monografia sempre ouvia quando ela dizia para quem que fosse: “Não incomode ela, porque ela está estudando”. Aos meus irmãos e todos os familiares pela paciência, compreensão e palavras que me reanimavam. E também, a todos os irmãos pelas orações para que eu pudesse perseverar até o fim. À professora Drª. Maria Nazaré Lima que com dedicação me aceitou como orientanda, mesmo já tendo iniciado com a Profª. Maria da Glória Rocha a quem também agradeço muito pela contribuição indispensável na minha formação acadêmica. À escola Batista, muito mais que um local de trabalho, uma família, que sabendo da minha dificuldade em conciliar trabalho, monografia, estágio e demais atividades acadêmicas, não mediu distâncias para me conceder alguns dias de licença, quando tive a oportunidade de adiantar muito o meu trabalho. A todos aqueles que de alguma forma me ajudou na elaboração deste trabalho. Não vou citar nomes para não ser injusta. 3 Este estudo é dedicado aos meus sobrinhos e sobrinhas com os quais eu tenho a oportunidade de perceber tão de perto a variação lingüística e, com isso, a riqueza que língua a materna possui. 4 E era toda a terra de uma mesma língua e de uma mesma fala. Eis que o povo é um, e todos têm uma mesma língua. (Gênesis 11. 1,6) 5 RESUMO Esta monografia aborda a questão da variação lingüística com base em uma pesquisa quantitativa cujo objetivo consiste em analisar o fenômeno da variação lingüística através do recorte – nós e a gente – em usuários lingüísticos catuenses, e refletir sobre os fatores que favorecem o uso de uma ou outra forma com o propósito de contribuir para o ensino da Língua Portuguesa, no qual seja possível revelar a riqueza da nossa língua uma vez que ensinar língua materna não é transmitir as regras da gramática normativa e sim proporcionar a aquisição de novas habilidades lingüísticas. Por isso, para alcançar melhor meu objetivo, adotei aqui a concepção sociolingüística de língua onde esta é caracterizada pela sua heterogeneidade num dado contexto social. Nesse sentido, refaço o percurso dos estudos lingüísticos pré e pós saussureanos, até chegar à Sociolingüística laboviana que trabalha com dados quantitativos e serviu de escopo para minha pesquisa. Assim, fundamentada na concepção de que toda língua varia, e essa variação ocorre por fatores lingüísticos e extralingüísticos, tanto na modalidade oral quanto na escrita é que conduzi uma aula de produção textual em duas turmas do Ensino Fundamental II, 5ª e 8ª respectivamente, para então observar o uso do pronome nós e da forma nominal a gente nos textos coletados, e perceber se estas formas apresentam-se em um processo inovador ou conservador da língua. Também me respaldei nos estudos sociolingüísticos e educacionais de Stella Maria Bortoni-Ricardo (dentre outros) para trazer ao final desta monografia uma reflexão sobre variação lingüística e ensino da língua materna, entendendo que não é proveitoso um trabalho sociolingüístico que não reflita sobre sua as conseqüências de um ensino contraditório, que mais afasta os falantes da escola do que os aproxima. Diante do estudo realizado, concluí que mesmo os textos tendo apresentado certo conservadorismo em relação ao pronome nós, os professores de língua não pode deixar de mostrar aos alunos que podemos falar uma mesma coisa de diversas maneiras, isto é, mostrar a riqueza que envolve o uso efetivo da língua como patrimônio maior do qual eles não podem abrir mão. PALAVRAS-CHAVE: Língua – Variação – Sociolingüística – Ensino 6 SUMÁRIO INTRODUÇÃO, 8 1 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS: BREVE REVISÃO TEÓRICA, 12 1.1 Antes e depois de Saussure, 12 1.2 Os subsídios de Saussure para os estudos lingüísticos (as dicotomias), 14 1.2.1 Língua e fala, 15 1.2.2 Sincronia e diacronia, 15 1.2.3 Sintagma e paradigma, 16 1.3 Crítica às dicotomias de Saussure, 16 1.4 A Sociolingüística: língua e teoria da variação, 18 1.5 Oralidade e escrita: algumas reflexões, 21 2 NÓS E A GENTE: GRAMÁTICA NORMATIVA, PESQUISAS E MAIS PESQUISAS, 26 2.1 O que a gramática normativa nos apresenta, 26 2.2 Pesquisas anteriores à minha, 28 2.3 Minha pesquisa, 30 3 A VARIAÇÃO E A MUDANÇA: POR UM ENSINO QUE REVELE A RIQUEZA DA LÍNGUA PORTUGUESA, 38 3.1 Revisitando os conceitos de variação, mudança e ensino, 39 3.2 O ensino: revelando a riqueza da língua materna, 41 CONSIDERAÇÕES FINAIS, 48 REFERÊNCIAS, 49 ANEXOS, 52 7 INTRODUÇÃO Ao ingressar num curso de Letras, principalmente vernáculas, pensamos, ingenuamente, que vamos aprender a ler, a falar e a escrever “certo”. Isso porque, até então, acreditamos que não sabemos falar português ou que falamos tudo “errado”. Logo, acredita-se que a Universidade é o escape para nos salvar das tantas armadilhas dessa língua (a portuguesa) “tão difícil”. Entretanto, e felizmente, é no curso de Letras que temos a oportunidade de (re)descobrir a riqueza da nossa Língua Portuguesa, percebendo que ela não está presa a um conjunto de regras normativas, homogêneas e imutáveis. Essa língua sofre variações e mudanças, isto é, não é estanque, assim como qualquer objeto de estudo das demais ciências. Então, tendo em vista que a língua varia e muda, e que esta variação e mudança partem da língua falada para a escrita, é que me propus pesquisar o uso do pronome sujeito “nós” e da forma nominal “a gente” em textos de estudantes do Ensino Fundamental II, uma vez que se pensa ser forte a tendência de se usar o “a gente” em lugar do pronome sujeito “nós” na produção dos textos escritos, como se observa na fala. Sendo assim, a opção pela temática em torno da variação lingüística deve-se ao fato de entendê-la como uma realidade irrecusável da natureza das línguas naturais e como um campo de pesquisa promissor de debates que envolvem questões de cunho social, cultural, econômico e ideológico. Faz-se necessário, porém, deixar claro que nem todas essas questões serão discutidas nesta monografia, pois demandaria muito mais tempo, tanto para a pesquisa em si quanto para a elaboração do próprio trabalho monográfico. Pensando no meu objeto de estudo, me questionei se os estudantes do Ensino Fundamental e Médio estão usando com mais freqüência o pronome sujeito “nós” ou a forma nominal “a gente”. A variação que ocorre na fala já é presença marcante também nos textos, em especial do material coletado? 8 O objetivo geral da pesquisa consiste em analisar o fenômeno da variação lingüística através desse recorte –nós e a gente – em usuários lingüísticos catuenses, e refletir sobre os fatores que favorecem o uso de uma ou outra forma, com o propósito de contribuir para o ensino da Língua Portuguesa, mas não um ensino que prioriza a homogeneidade da língua; um ensino em que eu e você, professor leitor, possamos revelar a riqueza da nossa língua. A partir desse objetivo geral, têm-se os seguintes específicos: 1) pesquisar em textos narrativos de estudantes do Ensino Fundamental II a freqüência do uso do pronome “nós” e da forma nominal “a gente”; 2) descrever as variáveis lingüísticas que governam o comportamento sociolingüístico dos informantes; 3) apresentar os resultados do comportamento lingüístico em termos qualitativos e percentuais dos dados pesquisados; 4) identificar e analisar os fatores sociolingüísticos e estruturais que explicam a variação do fenômeno estudado. A pesquisa se desenvolveu numa escola de Ensino Fundamental II e Ensino Médio situada no centro da cidade de Catu, por ser uma escola freqüentada por alunos das diversas áreas da cidade, tanto urbana quanto rural, sendo que não foi feito nenhum questionário aos estudantes. Gostaria, porém, de ressaltar, que não considerei tal questionário relevante para este trabalho, mas os dados (além do nome, idade e série) dos informantes são muito importantes para qualquer trabalho na área da lingüística, principalmente da sociolingüística, por se tratar de um campo científico que tem como objeto de estudo a diversidade da língua em seu contexto social. Essa diversidade, por sua vez, pode ser observada e/ou explicada a partir de dados (origem geográfica, classe social, nível escolar dos pais e dos próprios informantes, etc.) que os pesquisadores obtêm dos informantes no momento em que estão constituindo o corpus da pesquisa. No momento em que comecei a pensar no objeto de estudo para minha pesquisa, estava decidida a fazer a coleta do material (textos) com as séries finais de cada nível de ensino: 4ª e 8ª do Ensino Fundamental e 3º do Ensino Médio, o que poderia também contribuir para uma análise no que diz respeito ao grau de escolarização dos estudantes, mas percebi que seria muito material para ser analisado em bem menos de seis meses. Então, optei por alunos da 5ª e 8ª por serem séries que 9 demarcam início e fim do Ensino Fundamental II, que também permitirá uma breve análise no que diz respeito à escolarização. O material para análise foi recolhido numa tarde na qual fui até à escola, com a devida autorização, e conduzi uma aula de produção de texto. Porém, para não impor uma produção de texto sem que os alunos tivessem nenhum conhecimento prévio daquilo que eu iria propor, conversei, antecipadamente, com as professoras regentes das duas turmas, buscando informações sobre os gêneros textuais já trabalhados, bem como o tema proposto para a unidade (IV Unidade). Com as informações de que os alunos estavam trabalhando textos narrativos, ficou bem mais fácil o meu trabalho. Sendo assim, pedi, em ambas as turmas (5ª e 8ª), que produzissem um texto narrando algo que tivesse acontecido consigo e com outra pessoa (pais, amigos, etc.) pois, dessa forma, no desenvolvimento do seu texto, o aluno usaria o “nós” ou o “a gente”, ao contar o que havia acontecido com eles. Assim foi feito. Com o material em mãos, selecionei os textos que apresentavam o “nós” ou o “a gente”. Seleção feita, fiquei com dezesseis textos da 5ª série, sendo oito de meninas e oito de meninos, e dezesseis textos da 8ª série, também sendo oito de meninas e oito de meninos. Já que esta pesquisa está voltada para a área da variação lingüística, pretendi também contribuir, de forma bem tímida, no que diz respeito à escrita, uma vez que a maioria dos trabalhos já produzidos com esse mesmo recorte foi feito baseando-se em um corpus oral, através de gravações (ALBÁN et alii, 1986; FREITAS et alii, 1991; LOPES, 1998). Tais pesquisas, também de cunho variacionista, atêm-se à observação de falantes considerados cultos, isto é, falantes cuja formação é a de nível superior, enquanto que nesta pesquisa trabalhei com usuários lingüísticos que ainda não concluíram o Ensino Médio. Embora tenha seguido referenciais teórico-metodológicos dos estudos anteriores ao meu, busco diferenciar este trabalho monográfico, principalmente, no que diz 10 respeito à amostra, porque se trata de um material coletado por mim mesma1 e, como salientei anteriormente, na modalidade escrita. Esta monografia tem a seguinte organização: no capítulo 1, encontra-se uma breve revisão dos estudos lingüísticos antes e depois de Saussure, passando pelas dicotomias básicas do referido lingüista, bem como pelas críticas que estas sofreram, até chegar à Sociolingüística, com a Teoria da Variação. A partir da complexidade desta última, faço algumas reflexões sobre a oralidade e a escrita. No capítulo 2, explicito minha pesquisa, antes, porém, revisito a abordagem da gramática normativa em relação à variante que escolhi como meu objeto de estudo: a gente e nós; apresentando, também, os resultados de algumas pesquisas anteriores à minha. E, por fim, apresento o capítulo 3, cujo objetivo é refletir sobre o tema variação, mudança e ensino, com o qual encerro este trabalho, com a sensação de que preciso ir além. 1 Os trabalhos de Alban et alii, 1986; Freitas et alii, 1991; Lopes, 1998 foram feitos a partir de amostras coletadas pelo Projeto de Estudo Conjunto e Coordenado da Norma Lingüística Urbana Culta no Brasil (NURC). 11 1 ESTUDOS LINGÜÍSTICOS: BREVE REVISÃO TEÓRICA 1.1 Antes e depois de Saussure Nas últimas décadas, temos presenciado uma multiplicidade de estudos e publicações que buscam explicar, e não apenas compreender, as diferenças existentes no falar do brasileiro, bem como apresentar novas diretrizes para um ensino da língua portuguesa mais eficiente e, como já disse, que revele a riqueza dessa língua (CARDOSO, 1992; MATTOS E SILVA, 1997; BORTONI-RICARDO, 2004; entre outros). Entretanto, para se chegar a essa multiplicidade de estudos, nos quais este se inclui, descobri que a língua sempre foi alvo de investigações, estas, por sua vez, tinham finalidades práticas e precederam o processo da análise científica. (WEEDWOOD, 2002) Enquanto análise científica, os estudos lingüísticos, isto é, a lingüística, cujo objeto de estudo é a linguagem humana, só conseguiu o status de ciência a partir do século XIX (CARVALHO, 1980, p.17). A linguagem, até então, era estudada assistematicamente. Esses estudos tinham um caráter normativo/filosófico, e retrocediam à Antigüidade grega, combinando reflexões da Filosofia sobre a origem da linguagem com estudos filológicos. Segundo Castelar Carvalho (1980), a lingüística, antes de demarcar-se e determinar o seu próprio conceito, passou por três fases sucessivas: filosófica, filológica e histórico-comparatista. Na primeira fase, os gregos, sendo os precursores no estudo da linguagem, preocuparam-se em fazer suas reflexões pautadas na Filosofia, tentando encontrar uma relação entre a palavra e o seu significado. Criaram, então, uma Gramática preocupada com a práxis. A partir daí, surge, no Ocidente, a gramática que é definida como ciência e como arte. Esse mesmo pensamento influenciou Lancelot e Arnaud, e, em 1660, elaboraram a Gramática de Port Royal, que demonstra que a 12 linguagem está edificada na razão, ou seja, é de base puramentelógica, o que faz com que os princípios de análise sirvam a toda e qualquer língua e não apenas a uma língua particular. (CARVALHO, 1980) A fase filológica é caracterizada, historicamente, por estudos que buscavam explicar textos obscuros. A Filologia dos alexandrinos, por volta do séc. II a.C, dedicou-se exclusivamente à Morfologia, à Sintaxe e à Fonética. Esta fase também influenciou a Idade Média. Encontramos mais tarde, no século XVIII, um dos seus maiores divulgadores, Friedrich August Wolf. Mesmo atendo-se apenas à língua escrita – pois relegou a língua falada – os estudos filológicos são de suma importância para a terceira fase da história lingüística: a histórico-comparatista. Essa fase é marcada por uma preocupação diacrônica, pois com a descoberta do sânscrito2, entre 1786 e 1816, os estudiosos buscavam responder como é que as línguas evoluem. Nesse contexto, quem se destaca é Franz Bopp, estudioso que publicou, em 1816, uma obra sobre o sistema de conjugação do sânscrito, mostrando as relações de parentesco entre o grego, o latim, o persa e o germânico, demarcando, assim, o surgimento da Lingüística Histórica. Essa relação de parentesco serve para demonstrar que tais línguas constituem uma família, a indo- européia, formada por membros que têm origem comum, o indo-europeu. A este processo, porém, só seria possível chegar através do método histórico-comparativo, que consiste em comparar as línguas e se estabelecer correspondências, principalmente gramaticais e sonoras. (ORLANDI, 1995) Foi justamente nessa época, meados do século XIX, quando o comparativismo indo- europeu dominava os estudos lingüísticos, que Ferdinand de Saussure recebeu sua formação acadêmica e, com apenas 21 anos, publicou a obra Memoire sur lê systeme primitif dos Voyelles dans les Langues Indo-Européens. Após dois anos, segundo Harold Ramanzini (1990, p. 25), Saussure apresentou sua tese de doutorado, intitulada De l’Emploi du Genitu Absolu em Sanskrit. Infelizmente, Ferdinand de Saussure não nos deixou nenhum livro publicado em vida, mas a sua teoria foi resgatada por seus discípulos, que a transformaram no livro do mestre genebrino como uma obra póstuma: Cours de Linguistique Générale (1916). Trata- se, portanto, de uma obra rica, cujas idéias nela presentes, apesar de terem sido 2 Uma das línguas mais antigas da família Indo-europeu. 13 calcadas em anotações feitas pelos alunos, “vieram revolucionar completamente o pensamento lingüístico ocidental.” (CARVALHO, 1980, p.24) e contribuir para estudos e teorias posteriores ou recentes. 1.2 Os subsídios de Saussure para os estudos lingüísticos (as dicotomias) Como disse anteriormente, as idéias de Saussure, expressas no seu Curso de Lingüística Geral, serviram para revolucionar o pensamento lingüístico do ocidente. Por esse motivo, Ferdinand de Saussure pode ser considerado genial, e, como assegura, mais uma vez, Carvalho (p.24) “hoje, [...] depois de seu desaparecimento, Saussure é estudado com o respeito, o cuidado e a atenção que merecem os gênios”. Precisamos, todavia, ter mais aproximação com a teoria desse mestre genebrino, que, por vezes, só temos o conhecimento de que ele é o pai da Lingüística Moderna, sem nos determos às suas verdadeiras contribuições. Ainda no fim do século XIX, o genial mestre de Genebra rompe com a visão historicista e atomista dos fatos lingüísticos, ao conceituar a língua como um sistema e ao preconizar o estudo descritivo desse sistema (SILVA & KOCH, 2005). Esse estudo encontra-se detalhado em sua obra póstuma Cours de Linguistique Générale (1916), que, como já disse, fora compilada por dois de seus discípulos dos três cursos de Lingüística Geral, ministrados entre 1906 e 1911. A língua, desde então, “tem sido concebida como um sistema de signos, em que cada signo é constituído por um significante e um significado e da relação arbitrária entre esses dois elementos.” (CARDOSO, 1999, p 15). Os estudos de Saussure foram de suma relevância para os estudos atuais porque trouxeram à tona as dicotomias usadas, para sistematizar seus estudos sobre a língua. E, não apenas isso, Saussure elaborou um modelo abstrato, a língua, a partir da fala, concluindo, assim, que a língua, uma instituição social, é um sistema de relações, cujos elementos devem ser examinados sincronicamente (CARVALHO, 1980). A partir dessa concepção de língua como um sistema é que nasce o Estruturalismo, com o objetivo de descrever a linguagem como uma entidade autônoma onde as partes estão solidárias com o todo, em outras palavras, trata-se de uma estrutura. Passamos a compreender, deste modo, que a teoria saussureana, lingüística basicamente estrutural, tinha por objetivo estudar “a língua em si mesma e por si 14 mesma”. Por esse motivo, Saussure, buscando sistematizar melhor sua prioridade de estudo (a língua), estabeleceu, do ponto de vista metodológico, dicotomias básicas: língua/fala, sincronia/diacronia, sintagma/paradigma. 1.2.1 Língua e fala Por conceber a língua como um fato social, uma vez que pertence a todos os membros de uma comunidade, o mestre genebrino priorizou o estudo da língua (langue), deixando a fala (parole) de lado, já que esta era considerada heterogênea e não poderia, segundo ele, ser sistematizada. Isso comprova que Saussure não desconheceu, em nenhum momento, o caráter dual da linguagem, constituída por um lado individual e por outro social, não sendo possível separá-los, pois são interdependentes. Sendo assim, a língua, para o mestre suíço, é uma instituição social que, depositada na mente de cada falante, não pode ser criada nem modificada por nenhum indivíduo; é, assim, de natureza homogênea. Em contrapartida, a fala é constituída por atos individuais, o que a faz heterogênea, variável e, portanto, assistemática. 1.2.2 Sincronia e diacronia Além da dicotomia langue/parole, Saussure estabelece uma divisão nítida entre sincronia e diacronia, pois percebeu que a Lingüística moderna preocupava-se, até então, com os estudos históricos, cuja Gramática Comparada do indo-europeu procurava reconstruir o passado da língua, e a gramática tradicional buscava descrever regras normativas para o bem falar e para o bem escrever, principalmente. Na perspectiva sincrônica, ou eixo das simultaneidades, a língua é um conjunto de fatos estáveis que coexistem num determinado momento do tempo e que sem qualquer intervenção deste; sob a ótica das sucessividades, ou da diacronia, recai a responsabilidade de representar os fenômenos do primeiro eixo que foram se transformando num decurso no tempo. Resumindo, portanto, temos a compreensão de que, nesta dicotomia saussureana, a diacronia é um estudo voltado para a evolução histórica da língua, enquanto a sincronia estuda a língua num determinado ponto dessa evolução, ou seja, faz um recorte do fato lingüístico no tempo. (TARALLO, 2002) 15 1.2.3 Sintagma e paradigma Por se deter em um estudo sincrônico da língua, Saussure apresenta mais uma dicotomia: sintagma – ligação de duas ou mais unidades consecutivas X paradigma – elementos que, mesmo não estando presentes no discurso, podem ser colocados no mesmo ponto de uma mesma cadeia (SILVA & KOCH, 2005). Isto porque, para o lingüista genebrino, tudo na sincronia se prende a dois eixos: o associativo e o sintagmático. As relações sintagmáticassão baseadas no caráter linear do signo lingüístico, pois a língua é formada por elementos que se sucedem um após o outro, não existindo a possibilidade de dois elementos serem pronunciados ao mesmo tempo. Em contrapartida, as relações paradigmáticas ocorrem através das associações feitas na memória a partir de palavras que proporcionam algo em comum, formando os grupos onde essas relações se estabelecerão diversificadamente. (SAUSSURE, 1972) Em suma, mesmo reconhecendo a importância de considerações etnológica, histórica, e política, portanto, não desconhecia o aspecto social, Saussure prefere trabalhar com o caráter formal e estrutural da língua, restringindo-se, assim, ao sistema e à sincronia, o que reforça, portanto, o estruturalismo. (ALKMIM, 2001) Essa preferência, entretanto, foi um dos principais motivos que levou Saussure a ser duramente criticado anos mais tarde. Mas não posso deixar de dizer do meu encantamento, pois percebo o quanto um estudo tão aprofundado de alguém pode servir de contribuição para outros, mesmo que seja para discordar e criticar. 1.3 Crítica às dicotomias de Saussure Por considerar a língua homogênea, o estruturalismo deixava de lado a fala, que era considerada heterogênea. Para os estruturalistas, o que interessava, de fato, era o elemento distintivo, opositivo, que produzia o significado. Do ponto de vista de Ferdinand de Saussure, a definição de língua se dá em oposição à da fala. Saussure afirma que língua é o sistema invariante, isto é, homogêneo, que pode ser abstraído das diversas variações, que são observadas na fala. 16 Essa visão dicotômica de Saussure, sobre a natureza da língua, foi duramente criticada, principalmente por Eugênio Coseriu em seu ensaio Sistema, norma e habla, publicado em Montevidéu, 1952 (COSERIU, 1980), cuja proposta foi fazer uma divisão tripartida – sistema/norma/fala -, por não considerar a dicotomia sausureana suficiente. A divisão coseriana parte do pressuposto de que na língua há elementos que se repetem na fala da comunidade, ou seja, são normais. Logo, existe entre o mais concreto (parole) e o mais abstrato (langue) um grau intermediário, que é a norma ou variantes que, por sua vez, estão divididas em dois tipos principais: diatópicas (variantes regionais) e diastráticas (variantes culturais – culta padrão, coloquial e vulgar). (MATTOS E SILVA, 1997) Além de Eugênio Coseriu, Bakhtin (1929) também criticou a atitude desse autor, que é considerado o pai da lingüística, julgando que a verdadeira essência da língua é constituída pelo fenômeno social da interação verbal. Para Bakhtin, o que importa não é o enunciado, isto é, o produto; o importante é a enunciação, ou seja, o processo verbal. É bom deixar claro, entretanto, que essa enunciação não é algo monológico e isolado pois, segundo ele: A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas, nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade da língua. (BAKHTIN, 1979, p. 109) Outros estudiosos, igualmente, questionaram o aspecto dicotômico da teoria de Saussure: Weinreich, Herzog e Labov, dentre outros. Destaco, dentre esses, Willian Labov, porque seu trabalho busca comprovar que não existe antagonismo entre língua e heterogeneidade, sistema e variação, sistema e mudança. Sendo assim, nota-se que a língua é, sim, estrutura, ou seja, é um sistema, mas muda enquanto funciona, sem nenhuma interferência que prejudique a funcionalidade desse sistema. São, portanto, a heterogeneidade, a variação e a mudança lingüísticas objeto de estudos sobre os quais a Sociolingüística se debruçará para comprovar que o fator social da língua, defendido por Saussure, vai além de um acordo estabelecido entre membros da comunidade; pressupõe, porém, uma relação entre 17 língua e sociedade, ou seja, os fatores sociais dos usuários da língua são preponderantes para explicar a diversidade existente nessa própria língua. 1.4 A Sociolingüística: língua e teoria da variação O exposto até aqui, na verdade, é um caminho percorrido para chegar mais próximo da ciência que serve como aparato teórico mais preciso do meu objeto de estudo: a sociolingüística. Desde já, defino um dos meus limites nesta apresentação: nela, não me deterei na explanação da teoria do lingüista Antoine Meillet3 que, segundo Calvet (2002), foi o predecessor do lingüista americano Willian Labov. Assim o faço, trazendo, de forma bem sucinta, a contribuição de Labov para o postulado da Sociolingüística. A Sociolingüística toma maior impulso, justamente, a partir dos trabalhos de Willian Labov, mais precisamente na década de 1960, nos Estados Unidos, quando defendeu sua tese cuja proposta consistiu em analisar um fenômeno de mudança fonética na ilha de Martha’s Veneyard, no estado de Massachusetts (Estados Unidos). Essa escolha do lingüista americano o levou a trabalhar constantemente com situações contemporâneas concretas, enfrentando problemas metodológicos da pesquisa, e, em suma, construindo um instrumento de descrição que tenta transpor os métodos heurísticos4 da lingüística estrutural (CALVET, 2002). A Sociolingüística, portanto, através dos estudos labovianos, “veio mostrar que toda língua muda e varia (sic), isto é, muda com o tempo e varia com o espaço, além de variar também de acordo com a situação social do falante.” (BAGNO, 2001, 43). Sendo assim, podemos perceber que a Sociolingüística traz, em seu bojo, os pressupostos da variação e da mudança lingüística, desenvolvendo, na segunda metade do século XX, uma teoria e uma metodologia precisa e minuciosa para explicar a inter-relação entre eles. (MATTOS e SILVA, 2002). Assim, segundo Mattos e Silva, a sociolingüística contemporânea compreende que qualquer 3 Para os interessados em conhecer um pouco das idéias desse lingüista francês, recomendo a leitura do livro Sociolingüística: uma introdução crítica de Louis-Jean Calvet (2002), principalmente o primeiro capítulo. 4 Método científico que visa favorecer o acesso a novos conhecimentos empíricos baseados na intuição e circunstância. 18 mudança diacrônica implica em variação sincrônica, e que a mudança, conseqüentemente, pode ser estudada na sua complexidade. A Teoria da Variação, então, pressupõe que as línguas naturais variam e mudam, e essas mudanças ocorrem porque elas variam num determinado espaço geográfico, social, temporal, e são decorrentes ainda das características pessoais de cada falante. Analisar o caráter sistemático da variação é, portanto, o objetivo da Teoria da Variação, desvelando incontestavelmente que as línguas não são homogêneas, mas vivem em constantes vicissitudes de estabilidade e modificação. (FARACO, 1991) Segundo Fernando Tarallo (2002), a Teoria da Variação assume como objeto de estudo a heterogeneidade e o “caos” lingüístico, uma vez que o fenômeno da variação está presente em todos os aspectos de análise, sejam eles lingüísticos ou extralingüísticos. Dentro dos aspectos lingüísticos, observa-se variação no nível fonológico, morfológico, sintático, semântico e lexical (CAMACHO, 2001). Já o aspecto extralingüístico engloba, segundoo próprio Camacho, variantes em função da identidade social do emissor (variante geográfica, e sociocultural); variante em função da identidade social do receptor e em função das condições sociais de produção discursiva (variantes de registros ou estilísticas). Dino Preti (1994), ao classificar as variantes geográficas ou diatópicas, afirma que estas ocorrem num plano horizontal da língua e são responsáveis pelos conhecidos regionalismos; é uma linguagem comum, geograficamente falando, que “contribui para o nivelamento das diferenças regionais” (p. 24). Diferentemente da variante geográfica, as variantes socioculturais ou diastráticas acontecem num plano vertical, ou seja, dentro de um mesmo local geográfico, a linguagem de uma comunidade específica, seja ela urbana ou rural, apresentará variações que serão influenciadas por fatores diretamente ligados ao falante, à situação ou aos dois ao mesmo tempo. (op. cit) As variantes ligadas ao falante podem ser influenciadas por alguns fatores que serão descritos a seguir: 19 • Grupos etários: este fator representa as variações decorrentes da diferença de idade. Ele é perceptível com mais clareza no interior da família, onde os filhos e netos apresentam diferenças da fala dos pais e dos avós. • Gênero: representa as variações de acordo com o sexo de quem fala, ou seja, homens e mulheres falam de maneiras diferentes. Bortoni-Ricardo (2004) enfatiza que essas variações entre os repertórios feminino e masculino relacionam-se com os papéis sociais que, por sua vez, são condicionados culturalmente. Só em nível de exemplificação, a autora afirma que as mulheres costumam usar mais diminutivos, enquanto os homens usam mais palavrões e gírias mais chulas. • Status socioeconômico: diz respeito às desigualdades na distribuição de renda, isto é, de bens materiais e bens culturais, que, como conseqüência, se estende para uma diferença sociolingüística. É de suma importância que o professor esteja atento a este fator, pois irá se deparar com alunos que fazem parte de um contexto socioeconômico bastante desigual. • Grau de escolarização: esse fator está intimamente ligado ao anterior, porquanto a qualidade da escola também será fator relevante na influência que terá sobre o repertório sociolingüístico dos alunos. A variante lingüística daquele indivíduo que possui anos de escolarização, e ainda de acordo com a qualidade desta escola, será, com certeza, diferente daquele que possui menor grau de escolarização. O professor precisa ficar atento a isto, pois num país tão diversificado quanto o Brasil, o aluno que chega à escola pode ser filho de pais cujo grau de escolarização não seja o mesmo, e, portanto, o repertório dessa criança poderá apresentar variações, oscilando por influência do pai ou da mãe. • Mercado de trabalho: ao desempenhar determinada atividade profissional, o repertório sociolingüístico do indivíduo sofre alterações. Segundo Bortoni-Ricardo (2004), os professores, os atores, os comunicadores sociais, os jornalistas, os advogados, os juízes, entre outros, necessitam ter maior flexibilidade estilística, variando sua fala numa gama de estilos. • Rede social: esse fator é determinante, pois os indivíduos apresentam comportamentos lingüísticos semelhantes ao das pessoas com as quais convivem em sua rede social, constituindo, assim, um repertório sociolingüístico variado. A exposição desses fatores, vale ressaltar, é de suma importância para que os professores tenham ferramentas para acabar ou diminuir o preconceito lingüístico, 20 pois, como demonstra Marcos Bagno (2006) em sua quinta cisão5 para um ensino de língua não (ou menos) preconceituoso, é necessário “conscientizar-se de que toda língua muda e varia.” E acrescenta: O que hoje é visto como “certo” já foi “erro” no passado. O que hoje é considerado “erro” pode vir a ser perfeitamente aceito como “certo” no futuro da língua. Um exemplo: no português medieval existia um verbo leixar (que aparece até na Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel I). Com o tempo, esse verbo foi sendo pronunciado deixar, porque [d] e [l] são consoantes aparentadas, o que permitiu a troca de uma pela outra. Hoje quem pronunciar leixar vai estar cometendo um “erro” (vai ser acusado de desleixo), muito embora essa forma seja mais próxima da origem latina, laxare (...). Por isso é bom evitar classificar algum fenômeno gramatical de “erro”: ele pode ser, na verdade, um indício do que será a língua no futuro. (BAGNO, 2006, p 143) É possível, também, notar, nesta cisão, que a variação e, conseqüentemente, as mudanças lingüísticas ocorrem em todas as partes da língua, ou seja, na fonética/fonologia, na morfossintaxe, no léxico, na semântica e na pragmática. Percebe-se, então, que o estudo da variação lingüística é intrincado. Esse modo intrincado equivale à própria ação humana, que é determinada por fatores biológicos, psicológicos, sociológicos e culturais. (BORTONI-RICARDO, 2004) 1.5 Oralidade e escrita: algumas reflexões Por ser um estudo complexo, como foi dito anteriormente, a variação lingüística pode ser observada tanto na oralidade quanto na escrita. Antes, porém, de abordar a questão da variação num corpus falado ou escrito, no meu caso, escrito, faz-se necessário comentar, um pouco, algumas questões concernentes à oralidade e sua relação com a escrita. Nessa perspectiva, Fávero et al (2002) apontam que muitas pesquisas, em diversas áreas – humanas, sociais – têm se dedicado a esta temática, porém há pouquíssima concordância entre os trabalhos que buscam analisar as características da fala e da escrita. Podemos perceber aí, que, historicamente, o grande equívoco cometido foi de se pensar a escrita, principalmente a literária, como única forma de linguagem, 5 Na verdade, são dez cisões que Marcos Bagno apresenta em seu livro Preconceito Lingüístico, com as quais ele acredita que será possível “um corte umbilical que sempre nos prendeu às velhas doutrinas gramaticais” (2006, p.142). Para mais informações sobre as outras cisões, recomendo a leitura do livro. 21 relegando a fala ao segundo plano ou deixando-a de lado totalmente. Saussure, embora reconhecesse sua importância, não se preocupou em estudá-la, pois considerava a fala heterogênea, difícil, portanto, de ser sistematizada. Convém deixar claro, que nem toda escrita literária desconsiderou a oralidade ou sua influência. É o que revela Pinto (1992): Como os escritores românticos, além de reivindicarem certo grau de liberdade em face das prescrições gramaticais e dos modelos literários portugueses, também prezavam a espontaneidade da expressão, os textos de certos autores, sobretudo os mais radicais, nesse sentido, deixam entrever traços da oralidade. Entretanto, essa tentativa dos românticos de colocarem traços da oralidade em suas produções, segundo a autora, foi interrompida devido à emergência dos ideais de universalidade, e, então, a forma oral e a forma escrita que tentavam se aproximar com a “intermediação dos escritores, interessados na espontaneidade da expressão, tendem agora a dissociar-se e até hierarquizar-se, considerando-se a fala popular uma forma ‘inferior’ de língua.” (PINTO, 1992, p.27). Mais uma vez, a visão dicotômica, fala x escrita, é reforçada. Em outras palavras, ou melhor, nas palavras de Marcuschi (2003), essa dicotomia apresenta a fala como imprecisa, não- planejada, fragmentária, redundante, não-normatizada,implícita, dependente e contextualizada, enquanto a escrita é enaltecida, sendo caracterizada como precisa, planejada, completa, condensada, normatizada, explícita, autônoma e descontextualizada. A mudança concernente à postura dicotômica, segundo Fávero et al (2002), só começou a ocorrer no século passado, a partir dos anos 80, na Alemanha, com Grimm, e na Inglaterra, com Sweet e Jones. Nesses estudos, porém – ressalta a própria Fávero –, os resultados não serviram para comparar fala e escrita, revelando suas especificidades, serviram para mostrar que a primeira (fala) é vista como primária e a segunda (escrita), é dela derivada. A autora ainda cita alguns autores que reforçam essa idéia: • Sapir: “a escrita é o simbolismo visual da fala” (19212:19); • Bloomfield: “a escrita não é a linguagem, mas uma forma de gravar a linguagem por marcas visíveis” (1933:21); 22 • Fillmore: “a comunicação escrita é derivada da norma conversacional face a face” (1981:153); • e, entre nós, Mattoso Câmara: “a escrita decorre da fala e é secundária em referência a esta” (1969:11). (FÁVERO, 2002, p. 10). Essa convicção – a fala é primária, a escrita é secundária – é, para Marcuschi (2003), tão generalizada quanto equivocada, pois mesmo sendo possível, do ponto de vista central da vida humana, definir o homem não como um ser que escreve, mas sim como um ser que fala, não se pode fazer afirmações categóricas que superiorizem a escrita em relação à fala. O que ocorre, para o referido autor, é que a fala e a escrita possuem, em certos casos, proximidades tão estreitas que parece mesclarem-se quase numa fusão das duas, revelando-as, portanto, como práticas indissociáveis. Desta forma, a escrita e a oralidade constituem-se práticas e usos da língua que acabam por determinar a variação lingüística, já que a variação acontece por causa dos usos que fazemos da língua. Assim, por exemplo, cito as formas pronominais que aqui estão sendo objeto de estudo: nós e a gente. O que determina esta variação lingüística, não são as regras contidas na gramática prescritiva, mas sim, os usos dos falantes/escritores e das práticas sociais neles imbuídas. Há de se compreender, então, que “são as formas que se adequam aos usos e não o inverso.” (MARCUSCHI, 2003, p.16). É conveniente salientar aqui, que Marcuschi, além de criticar a visão dicotômica entre língua e fala – anteriormente citada –, apresenta a tendência fenomenológica de caráter culturalista, cujo objetivo é observar “muito mais a natureza da oralidade versus escrita” e fazer “análises sobretudo de cunho cognitivo, antropológico ou social [...]. Esta visão não serve para tratar questões lingüísticas, já que vê a questão em sua estrutura macro” (p. 28, 29). Outra forma de analisar a questão da fala e da escrita, demonstrada pelo próprio Marcuschi, é a perspectiva variacionista, que objetiva “detectar as variações de usos da língua sob sua forma dialetal e socioletal” (p. 31). Essa é uma proposta bem vista pelo autor, porém ele não acredita que a questão esteja de todo respondida. Por fim, é apresentado o ponto de vista sociointeracionista “que trata das relações entre fala e escrita dentro da perspectiva dialógica.” (p. 32). Assim, a fala e a escrita não são 23 dicotomizadas; ambas apresentam dialogicidade, usos estratégicos, funções interacionais, envolvimento, negociação, situacionalidade, coerência e dinamicidade. Mas, como nada é perfeito, ..., pode-se dizer que esta perspectiva, mesmo que livre dos problemas ideológicos e preconceitos das anteriores, padece de um baixo potencial explicativo e descritivo dos fenômenos sintáticos e fonológicos da língua, bem como estratégias de produção e compreensão textual. A rigor, esses fenômenos fogem aos interesses de tais teorias. (MARCUSCHI, 2003, p.33) O autor não só apresenta a imperfeição da perspectiva sociointeracionista, mas acredita que ...se concebida na fusão com a visão variacionista e com os postulados da Análise da Conversação etnográfica aliados à Lingüística de Texto, poderia dar resultados mais seguros e com maior adequação empírica e teórica. Talvez seja esse o caminho mais sensato no tratamento das correlações entre formas lingüísticas (dimensão lingüística), contextualidade (dimensão funcional), interação (dimensão interpessoal) e cognição no tratamento das semelhanças e diferenças entre fala e escrita nas atividades de formulação textual-discursiva. (p. 33) Acredito então que a junção das duas últimas perspectivas de análise da língua escrita e da língua oral: variacionista e sociointeracionista, sejam peças fundamentais para este trabalho, onde busco estudar a variação lingüística a partir de um corpus escrito e não falado. Lembrando, também, que a maioria dos estudos sociolingüísticos, preocupados, em especial, com as variações da linguagem, faz análises e traz conclusões a partir de um corpus falado. Entretanto, Dino Preti (1994) traz à tona a idéia que é reforçada por Marcuschi (2003) quase dez anos depois: a sociolingüística não pode ignorar o papel da língua escrita, pois esta muito tem a revelar no que diz respeito às variações e mudanças que ocorrem na língua. Vale ressaltar, ainda, que “a própria lingüística [...] se serviu de documentos escritos, na falta de corpus gravado [...], chegando a reconstituir assim, às vezes, toda língua falada de uma época...”. Não quero aqui, com isso, enaltecer a escrita, em detrimento da fala, pois estaria cometendo ou repetindo um grande equívoco, sustentado durante muito tempo. Quero, entretanto, mostrar que a pesquisa que será apresentada não é de menor 24 prestígio, sociolingüisticamente falando, por ser constituída por/de um corpus escrito. É o que veremos no segundo capítulo. 25 2 NÓS E A GENTE: GRAMÁTICA NORMATIVA, PESQUISAS E MAIS PESQUISAS Em quase todas as pesquisas, senão em todas, o pesquisador inexperiente, ou mesmo o experiente – não sei – tem certa dificuldade em escolher o seu objeto de estudo. Porém, nada melhor do que orientadores que nos ajudem a enxergar um caminho possível nesse emaranhado de estradas, que é o campo de pesquisa. Aí eu me encontrava, olhando para um lado e para o outro. Mas, encontrei: verificar, num corpus escrito, a variação lingüística através da forma nominal a gente e do pronome nós. Por isso, trago, neste capítulo, uma breve abordagem de como a gramática normativa apresenta tais fenômenos; em seguida, apresento alguns trabalhos que foram realizados usando um corpus falado e, ao final, apresento como foi coletado o corpus que constitui essa pesquisa, bem como sua análise. 2.1 O que a gramática normativa nos apresenta A alternância das formas nós e a gente, representando tanto a primeira pessoa do plural quanto um recurso de indeterminação do sujeito, tem sido alvo de diversos estudos (ALBAN et alii, 1986; FREITAS et alii, 1991; LOPES, 1998), pois esse fenômeno já ocorre comumente entre os falantes no Brasil, sendo, então, confirmado, através dos dados coletados. Mas, o que a gramática normativa traz sobre isso? E, se traz, como o faz? As diversas gramáticas prescritivas não apresentam divergências significativas em relação aos pronomes pessoais sujeitos que são elencados, bem como sobre a forma de apresentá-los (cf. LIMA, 1985; CUNHA e CINTRA, 1985; BECHARA, 1967). Geralmente, elas apresentam os pronomes pessoais como indicadores universais das três pessoasdo discurso: quem fala (eu, nós), com quem se fala (tu, vós) e de quem se fala (ele, ela, eles elas), sendo admitido o singular e seu correspondente no plural. Segundo Lopes (1998), esse leque de pronomes que nos é dado pelos gramáticos, além de não incluir as formas amplamente utilizadas na linguagem coloquial, como é perceptível no caso de você/vocês/a gente, concebe de 26 maneira equivocada nós e vós como formas plurais de eu e tu, isto é, equivocam-se nas noções de pessoa e número. Sobre isso, comento mais à frente. Quem traz à baila a noção do a gente é Neves (2000) na Gramática de usos do Português. A autora explicita que o sintagma nominal a gente é empregado na linguagem coloquial como pronome pessoal, podendo referenciar tanto à primeira pessoa do plural, nós, quanto a todas as pessoas do discurso, ou seja, nesse segundo caso, é empregado para referência genérica que indetermina o sujeito, “embora a forma A GENTE sempre deixe indicado o envolvimento da primeira pessoa no conjunto.” (p. 469) Vale ressaltar, que dentre as gramáticas normativas observadas, encontrei uma, de cunho didático, que aborda a expressão a gente. Os autores, Faraco e Moura (2002), parecem fazer isso de maneira bem tímida, já que ocupam bem menos de uma página para comentarem sobre a expressão. Trazem o seguinte: A expressão “a gente” Na linguagem coloquial, o pronome nós é freqüentemente substituído por a gente. Esta expressão também pode ter caráter singular, equivalendo a eu. A expressão pode ainda representar valor impessoal indeterminado. (FARACO & MOURA, 2002, p. 297). O que me chama atenção é a maneira como eles concluem sua explanação: “A norma culta da língua tende a rejeitar essas construções, comuns na fala coloquial”. Isto porque trata-se de uma gramática que foi publicada em 2002, ou seja, bem depois das diversas pesquisas e estudos que comprovam que a norma culta brasileira vem mudando, paulatinamente, e o uso da expressão a gente está sendo cada vez mais comum entre os falantes cultos do Brasil, isto é, “indivíduo com grau de escolaridade superior completa, nascido e criado em zona urbana6”. (BAGNO, 2004, p. 39) Como disse antes, alguns equívocos acontecem nas noções de pessoa e número dos pronomes nós e vós. Mas, como isso ocorre? A resposta a essa pergunta pode 6 Marcos Bagno deixa claro, em nota de rodapé, que o conceito de falante culto, que é usado no seu livro Portugês ou brasileiro: um convite à pesquisa (2004), “pertence ao vocabulário técnico da Sociolingüística e não deve ser confundido com o uso mais amplo e corriqueiro dos adjetivos culto e inculto“. (p. 39) 27 ser obtida através das pesquisas que já foram desenvolvidas ao longo desses anos. Vejamos algumas. 2.2 Pesquisas anteriores à minha No que diz respeito à pessoa gramatical, sabe-se que o ato comunicativo se constrói a partir da relação entre falante e ouvinte, entendendo, então, de acordo com Benveniste (1976, apud FREITAS, 1991), que a 3ª pessoa, por poder assumir um número infinito de sujeitos, não participa do ato comunicativo, pois também não pode ocupar a posição do eu e do tu na inversão dos papéis que acontece no momento da interação verbal. Quanto à noção de número, nota-se que as gramáticas normativas insistem em afirmar que nós é plural do eu. Lopes (1998), porém, nos faz refletir que a noção de número implica o agrupamento de elementos de mesma natureza, entretanto, isso não acontece com a forma nós. Essa forma, ou mesmo a forma a gente, pode incluir, além do falante, o ouvinte e outras pessoas, é o que Benveniste (apud LOPES, 1998) chamou de “eu-ampliado”. É justamente baseado em Benveniste que Freitas et alii (1991) e Albán et alii (1991) realizaram estudos, identificando as diferentes possibilidades de formas pronominais, mais especificamente nós e a gente, como expressão do “eu- ampliado”. Sendo assim, o grau de ampliação do eu expresso por nós e a gente, de acordo com os estudos de Freitas, apresentou quatro possibilidades: EU (emissor), EU + NÃO-EU (emissor + receptor), EU + ALIA, isto é, eu + outras pessoas ou seres que não fazem parte do discurso; e a quarta, EU + NÃO-EU+ALIA. Se não estou enganada, Neves (2000) sai na frente ao se apropriar de dados como esses para mostrar os usos do português. A autora afirma que “os pronomes plurais de primeira pessoa (nós ou nos) nunca se referem apenas à primeira pessoa, isto é, sempre envolvem um não-eu” (p. 459) que: a) Ou representam a soma da primeira pessoa com a segunda; b) Ou representam a soma da primeira pessoa com a terceira; c) Ou representam a soma da primeira com a segunda e com a terceira. (idem p. 459,460) 28 Albán et alii (1991), com base em dados de falantes cultos de cinco capitais brasileiras – Salvador, Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro e Recife –, examinam o aspecto do nós e do a gente em função de sujeito, confrontando os resultados apresentados por informantes H3 (maiores de 55 anos) com os que foram depreendidos de informantes da mesma faixa etária, em trabalhos anteriores (FREITAS & ALBÁN, 1981 e 1985). A autora observa que, mesmo tendo em comum a faixa etária, há pelo menos dois desempenhos dignos de serem ressaltados: “o de Salvador, que se apresenta como falante conservador do conjunto, e o de Porto Alegre, que [...] apresentou um desempenho inovador no que se refere ao uso de a gente, contrariando a expectativa já confirmada sobre a possível norma baiana.” (ALBÁN et alii 1991, p.154) Lopes (1998), autora que já citei anteriormente, faz uma análise do uso das formas pronominais, também baseada em falantes cultos, com amostras de três capitais: Rio de Janeiro, Porto Alegre e Salvador. A autora levantou suas hipóteses preliminares a partir da pesquisa de Omena (apud LOPES), buscando verificar se os falantes cultos apresentam o mesmo comportamento lingüístico que os falantes com pouca escolaridade. Dentre tantas outras conclusões, Lopes revela que o processo de mudança lingüística nos dois grupos (falantes cultos e falantes com pouca escolarização) ocorre de maneira diferenciada: esse estágio é mais avançado entre os falantes de baixa escolaridade do que entre os falantes cultos, no que diz respeito à substituição de nós por a gente. Nota-se, portanto, que o processo é bem gradativo, apresentando variações não apenas lingüísticas, mas nos próprios resultados obtidos. Quanto a isso, basta comparar os trabalhos de Albán e Lopes e veremos que, enquanto Albán conclui que Porto Alegre apresenta uma inovação no uso do a gente, Lopes destaca que o uso do nós é bem mais freqüente justamente em Porto Alegre. Ambas, porém concordam num ponto: o Rio de Janeiro é a cidade onde mais se usa o sujeito a gente. Gostaria de lembrar que esses resultados foram obtidos a partir de um corpus falado. E, pensando nisso, faço as seguintes perguntas: Nós e a gente também apresentam variação lingüística significativa no texto escrito? Será que, na escrita, o falante/escritor apresenta traços conservadores ou inovadores? Estas perguntas, na 29 verdade, servem como pretexto para minha pesquisa, uma vez que esta foi pautada num corpus escrito e veremos a seguir o que ela tem a nos revelar. 2.3 Minha pesquisa As hipóteses iniciais desse trabalho foram levantadas a partir das observações em pesquisas (FREITAS, ALBÁN, LOPES) cujas análises foram feitas com base num corpus, da modalidade oral, de falantes cultos.Na minha pesquisa, a intenção básica é averiguar o fenômeno da variação lingüística através do recorte nós e a gente em textos escritos. Outro objetivo é verificar se há diferenças entre o comportamento lingüístico, no texto, de alunos da quinta série e de alunos da oitava série, além de refletir sobre os fatores que favorecem uma ou outra forma em suas produções. Partindo da metodologia sociolingüística laboviana (MONTEIRO, 2000), constituí um corpus com uma amostra de trinta e dois textos do tipo narrativo, coletada por mim numa escola de Ensino Fundamental II e Ensino Médio situada no centro da cidade de Catu, por ter conhecimento de que é uma escola freqüentada por alunos das diversas áreas da cidade, tanto urbana quanto rural. Houve uma distribuição proporcional de oito textos de cada faixa etária pelas duas séries escolhidas (quinta e oitava), ficando assim: oito textos de meninas e oito de meninos da quinta série; e oito textos de meninas e oito de meninos, da oitava série. Embora seja possível fazer uma análise dos dados coletados mesclando fatores lingüísticos com fatores extralingüísticos, como o fez Lopes (1998), optei por analisar, em um primeiro momento, os aspectos lingüísticos e, posteriormente, os extralingüísticos, por considerar que seja melhor para se compreender tanto a própria análise quanto os seus resultados. Dentre os aspectos lingüísticos, foram depreendidas quatro possibilidades de expressar o “eu-ampliado” – nós explícito, nós implícito, a gente e eu + ... , isto é, sujeito composto com a inclusão do eu explícito. Quanto aos aspectos extralingüísticos, foi priorizado sexo, associado ao grau de escolaridade. 30 Obteve-se um total de 169 dados, sendo 43 de nós explícito (25,5%), 22 de a gente (13,0%), 92 de sujeito ø seguido de verbo com desinência –mos (54,4%) e 12 de sujeito composto com a inclusão do eu explícito (7,1%). Numa análise quantitativa geral têm-se 135 dados de nós, explícito ou não, contra 22 de a gente, sujeito ou não, restando os 12 dados com o sujeito composto que também usam o verbo com a desinência –mos. TABELA 1 – FORMAS PRESENTES NOS TEXTOS 5ª SÉRIE 8ª SÉRIE TOTAL Nós (explícito) 25 18 43 Nós (implícito) 50 42 92 A gente 19 3 22 Eu + ... 6 6 12 Total 100 69 169 Observemos a seguir, então, alguns exemplos dessas quatro possibilidades que foram levantadas. Antes, porém, faz-se necessário esclarecer que, por respeito à identidade dos alunos que gentilmente produziram os textos, optei por não colocar seus nomes, apresentando os textos, portanto, através do código T1F5ª – 11 ANOS, onde T significa texto; o número 1 refere-se ao número do texto; a letra F ou M, que vem em seguida, diz respeito ao sexo (feminino ou masculino); depois, tem a série, representada pelo ordinal 5ª ou 8ª; e, por fim, a idade do meu informante. 1. Nós explícito. T14M5ª – 13 ANOS Uma vez campeão sempre campeão Minha história conta de acampamento de colegas e teve uma prova de bicicleta na qual nós não sabíamos quem iria fazer. No meio de tanta confusão nós saímos com dois concorrentes meu irmão e meu melhor amigo ai então nós decidimos que quem iria era o meu melhor amigo ninguém ficou triste nem com inveja nem mesmo meu irmão então quando a prova começou nós começamos a torcer e então quem venceu fomos nós. Foi um recorde no qual ninguém tinha quebrado antes e então foi por isso que nós vencemos porque não teve inveja e ele não foi porque ele era o melhor ele foi porque foi votado e enquanto não tiver inveja nem ciúmes pode ter certeza que tudo dará certo. 31 2. Nós implícito, seguido de verbo com desinência –mos. T23F8ª – 15 ANOS Durante ontem a noite eu fui para casa da minha irmã para a seula antes de acabar estávamos conversando sobre o que ela iria fazer para a última seula, ela pediu a opinião dos componentes cada um deu sua opinião depois ficou duas menina conversando com migo e ela o que nós iríamos levar depois eu liguei para minha conhada para saber se lea estava em casa para minha irmã fazer a ficha dela, saimos para casa dela quando chegamos lar começamos a conversar sobre igreja, sobre vigília e etc... Minha irmã foi a que mais estava falando porque ela é nossa líder e ai esperamos a minha conhada compreender e fomos embora eu, minha irmã e meu sobrinho fui direto para casa conversando sobre o meu cabelo que não deu tempo para arrumar eu disse a ela que depois pegava minha Bíblia na casa dela e ela me disse que antes de eu ir para o monte era pra eu passar la eu passei mas ela disse que não iria então foi eu e meus dois irmãos, conversando se iria ter muita gente no monte quando chegamos la fomos orar e depois de 1 hora vinhemos todos embora e no caminho de casa meu irmão de casa meu irmão mandou eu começar a cantar uma música porque ele so sabia algumas parte então chegamos em casa e fomos dormir. 3. A gente T5F5ª – 12 ANOS Um certo dia eu fui para praia com minha tia, minhas primas meus irmões e minha mãe. Ao chegrar eu e meus primos e meus irmão nós tiramos a roupa e fomos tomar banho. Minha mãe e minha tia ficaram na mesa na beira da prais, eu tomando refrigerante as minhas primas e meus irmãos, depois a gente tomou sorvete crimousinho, picolé, bebemos água de coco, cocada de coco da branca e da preta, pamonha, amendoim, carangueijo, acarajé, nesse dia eu fiquei como um bocado de coisas que a gente comprou catei buso na beira da praia e eu sei que eu mim dirverti muito e o tempo pausou e eu para casa voltei a gente no ônibus os homens e mulheres fazendo batuque, cantando, eu sei que a gente cheigou 9:00 em casa e assi dese geitinho acaba a minhas histórias. FIM!!!!!! 4. Eu + ... T22F8ª – 15 ANOS Em um belo dia de sol, no dia de quinta feira eu e meus amigos resolvemos alugar uma moto que meu primo estava com ela, mas a moto não era dele era de um amigo dele e nosso então meu primo entregou a moto e pediu ao outro primo meu que também alugou 32 para levar ele em casa, então eles foram nós juntamos dinheiro e botamos gasolina na moto foi um dia maravilhoso nesse dia não teve aula eu fiquei pilotando eu não sabia direito, ai comecei a pegar sozinha e agora eu já aprendi, então foi bom passiei com minha prima de moto nós foi em vários lugares. No momento da verificação do uso por uma das formas de expressão do eu- ampliado foram consideradas as expressões que continham o nós (explícito ou não) apenas na forma de sujeito, enquanto que com a expressão a gente foram considerados os dois únicos casos (que ocorreram em apenas um dos textos) em que essa expressão aparece como objeto: de + a gente = da gente. Foi feito dessa maneira, pois a intenção é quantificar a presença do pronome pessoal nós e do sintagma nominal a gente, empregado como pronome pessoal, nos textos examinados. A Tabela 1 demonstra a preferência dos estudantes por uma das formas do eu- ampliado, ao produzirem seus textos. Entretanto, é uma demonstração generalizada. Abaixo, veremos os dados apresentados de maneira mais minuciosa, pois os estudantes que, individualmente, colaboraram na constituição deste corpus, se distribuem em turmas, sendo, assim, analisada a distribuição por série e sexo das quatro possibilidades do eu-ampliado. TABELA 2 – EU-AMPLIADO EM TEXTOS DA 5ª SÉRIE. Eu ampliado Nós(explícito) Nós(implícito) A gente Eu + ... Feminino 10 5,92% 25 14,79% 6 3,55% 3 1,775% Masculino 15 8,87% 25 14,79% 1 3 7,69% 3 1,775% Total 25 14,79% 50 29,58% 1 9 11,24 % 6 3,55% Obs.: O número total dos dados consideradosé 169. Na quinta série, notei que não é tão grande a diferença no uso do nós (explícito) em relação ao sexo, já que no masculino a diferença é de apenas 2,97% se comparado ao feminino; a diferença é bem menor quanto ao uso do sujeito composto com a forma eu explícita. Constatei que, nessa série, tanto o sexo masculino quanto o feminino usaram o mesmo número de vezes a forma implícita seguida de desinência – mos. Maior é a diferença, entretanto, quanto ao uso de a gente, já que, segundo 33 os dados, há uma preferência mais ampla por parte do sexo masculino: seis vezes as meninas usam a gente, já os meninos fazem o uso da forma nominal a gente treze vezes. TABELA 3 – EU-AMPLIADO EM TEXTOS DA 8ª SÉRIE. Eu ampliado Nós(explícito) Nós(implícito) A gente Eu + ... Feminino 6 3,55% 23 13,61% 0 0% 3 1,775% Masculino 12 7,1% 19 11,24% 3 1,775 % 3 1,775% Total 18 10,65% 42 24,85% 3 1,775 % 6 3,55% O total das formas apuradas em textos de estudantes da 8ª série aponta um uso maior da forma nós (explícito) por parte do sexo masculino, porém o que se eleva bem mais é a forma implícita usada pelas meninas desta série que, também, dentre todos os textos coletados, não fizeram, em nenhum momento, uso da forma a gente; essa forma só foi encontrada em apenas três textos dos meninos, o que pode ser sinal do rigor que, por vezes, permeia o estudante no momento em que ele é levado a escrever, por mais que não sejam ditadas regras antes da escrita, ou seja, uma escrita mais informal. No que diz respeito ao uso do sujeito composto com pronome eu explícito, observei que na quinta série a diferença é mínima, mas existe: três usos ocorreram por parte das meninas e quatro pelos meninos; na oitava série, esse uso se iguala: três meninos e três meninas. É interessante observar o quanto o fator extralingüístico, grau de escolarização, é preponderante nesta análise, uma vez que fica claro, na oitava série, que o uso da variante em exame – nós e a gente – é diferente daquele usado pelos estudantes da quinta série. Quer dizer, enquanto aparece dezenove vezes a forma nominal a gente nos textos da quinta série, aparece apenas três vezes nos textos da oitava. Confirma-se, portanto, segundo Bortoni-Ricardo (2004), que a variante lingüística daquele indivíduo que possui anos de escolarização, e ainda de acordo com a qualidade desta escola, será, com certeza, diferente daquele que possui menor grau de escolarização. Outro fator extralingüístico, fortemente demarcado, é o de gênero, que representa as variações de acordo com o sexo do informante, ou seja, homens e mulheres falam/escrevem de forma diferente. Só em nível de exemplificação, notei 34 que os homens usaram mais a forma a gente, enquanto as mulheres usaram mais a forma conservadora do nós. Parece haver, na escrita, pelo menos na que foi coletada, uma forte tendência em seguir um caráter conservador no que diz respeito ao uso do nós e do a gente, pois tanto na quinta série quanto na oitava há uma predominância no uso do nós (explícito ou não). Considerando algumas conclusões do trabalho de Lopes7 (1998), concluí que os alunos podem ter optado em seguir um caráter conservador da língua porque eventualmente estavam narrando, na modalidade escrita, um fato que haviam vivenciado e, por isso, o seu comprometimento com o que estava sendo enunciado é bem maior, levando-os a utilizar o pronome nós já que este “possui um caráter mais específico e determinado, daí a sua presença em ambientes lingüísticos em que o referente é identificável e conhecido e o tempo verbal é pretérito” (p. 420). Notei, além disso, em algumas produções textuais, que o aluno alterna, dentro do seu próprio texto, o uso da variante padrão (nós + verbo com desinência –mos) com o uso da variante não-padrão (por exemplo, nós vai). Observemos nos dois textos abaixo o trecho em destaque: T7F5ª – 13 ANOS Era uma vez, certo dia pró Lúcia ensinou muita coisa a gente como o texto da utilidade dos animais, porquinho-da-índia, o velho crocodilo, os poemas, estranhas gentilezas, a reunião geral dos ratos, palavras aladas, bilhete, o sapo e o boi, a rosa e a borboleta, a volta do pássaro encantado etc... A gente aprendeu muita coisa com a professora, fizemos apresentação das lenda uma equipe ficou com lenda, adivinha, provérbio, dança de roda etc... Nós também fez muita pesa e muito mais, aprendemos sobre verbo, artigo adjetivo, fazer texto, língua portuguesa, substantivo etc... T22F8ª – 15 ANOS Em um belo dia de sol, no dia de quinta feira eu e meus amigos resolvemos alugar uma moto que meu primo estava com ela, mas a 7 Lopes conclui que “Em primeiro lugar, tem-se o uso da forma a gente para referências discursivas mais vagas, indefinidas e amplas. Ao se referir a um grupo grande de pessoas, indeterminado e difuso, o falante prefere tal forma pelo seu caráter genérico. [...] Com a forma a gente o falante se descompromete com o seu discurso, comentando assuntos gerais e particulares.” (1998, p.420) 35 moto não era dele era de um amigo dele e nosso então meu primo entregou a moto e pediu ao outro primo meu que também alugou para levar ele em casa, então eles foram nós juntamos dinheiro e botamos gasolina na moto foi um dia maravilhoso nesse dia não teve aula eu fiquei pilotando eu não sabia direito, ai comecei a pegar sozinha e agora eu já aprendi, então foi bom passiei com minha prima de moto nós foi em vários lugares. No primeiro texto (T7F5ª – 13 ANOS), aparecem as duas formas (a gente e nós), sendo usadas de acordo como reza a gramática normativa, entretanto, diante do verbo irregular fazer, surge a variante não-padrão nós... fez. Na verdade, a aluna se utilizou de um advérbio (também) para provocar um afastamento na concordância, evitando, assim, usar o verbo na sua conjugação padrão (fizemos). Esse tipo de falta de concordância é comum acontecer quando se distancia o sintagma nominal (sujeito) do sintagma verbal (predicado) através de outros sintagmas prolongados (vocativos, apostos, etc.). Isso, porém, não acontece da mesma forma no segundo texto (T22F8ª – 15 ANOS). A aluna utiliza em praticamente todo o seu texto a variante padrão; na última frase, “então foi bom passiei com minha prima de moto nós foi em vários lugares.”, ela foge a regra e faz uso da não-padrão nós foi, comprovando, dessa forma, a constante variação da língua, isto é, podemos dizer a mesma coisa de diversas maneiras. Essas diversas maneiras, ou seja, as variações lingüísticas, que não se amoldam à língua-padrão, defendida pela gramática normativa, sofrem muito preconceito, principalmente pelo fato de fazerem parte do repertório oral do aluno. Este repertório é carregado de diversos estigmas, visto que, historicamente, se criou no nosso imaginário uma supervalorização da escrita em detrimento da oralidade. Essa supervalorização da escrita é reforçada pela gramática normativa e, notamos isso nas ressalvas que são feitas quando apresentam alguma variante considerada de menor prestígio, mas que são usadas freqüentemente pelos falantes. Por exemplo, temos a própria expressão a gente, que já faz parte do repertório dos falantes cultos, entretanto, a gramática normativa insiste em afirmar que a “norma culta da língua tende a rejeitar essas construções, comuns na fala coloquial” (FARACO & MOURA, 2002, p. 287). 36 Daí surge a seguinte questão: Por que a gramática normativa admite e, mais, valoriza a presença de características da linguagem escrita na linguagem oral e o inverso, apresença de traços da oralidade no escrito é tão combatida e estigmatizada? A resposta para essa pergunta nos daria uma outra monografia, mas, mesmo não tendo a possibilidade de respondê-la como um todo, não posso fechar os olhos para o que está patente: a desvalorização da oralidade está entrelaçada à desvalorização de quem possui essa tradição (oral) bem desenvolvida. Isto é, tanto os negros como os índios, que possuíam uma tradição oral desenvolvida, foram dizimados e obrigados a se naturalizarem para a sua completa dominação (COSTA, 1998) e, com eles, também, a valorização da própria tradição oral foi (não diria apagada) censurada e reprimida pelo fato de não fazer parte da cultura oficial dominante. E, é exatamente a língua dessa cultura oficial dominante que a escola por muito tempo se propõe ensinar, entretanto, o ensino da língua culta à grande parcela da população brasileira, que tem como língua materna variedades populares da língua, portanto estigmatizadas, tem, segundo Bortoni-Ricardo (2005), pelo menos duas implicações desastrosas: “não são respeitados os antecedentes culturais e lingüísticos do educando, o que contribui para desenvolver nele um sentimento de insegurança, nem lhe é ensinada de forma eficiente a língua-padrão” (p. 15) Diante disso, o que fazer? Como lidar com os alunos que chegam à escola falando “nós fez/fizemu”, “a gente viemu”, dentre outras formas que são ridicularizadas pelos colegas, ou mesmo pelos professores? Sobre essas e outras questões é que farei uma pequena reflexão no capítulo seguinte: A variação e a mudança: por um ensino que revele a riqueza da língua materna. 37 3 A VARIAÇÃO E A MUDANÇA: POR UM ENSINO QUE REVELE A RIQUEZA DA LÍNGUA MATERNA Conduzirei a minha reflexão, neste capítulo, para a questão da variação lingüística do português brasileiro e de seu reflexo no ensino do português como língua materna da maioria dos brasileiros. É bom deixar claro que coloco maioria dos brasileiros porque, como defende Mattos e Silva (2002), não podemos esquecer dos povos indígenas, com suas 150 – 180 línguas, fazendo parte, também, da diversidade lingüística brasileira. Entretanto, não me deterei no ensino dessa língua materna (a indígena), o que não me impede de deixar registrado aqui que a convivência das línguas maternas indígenas com o português brasileiro tem desencadeado, atualmente, diversos problemas relacionados ao ensino dessas línguas, em particular a língua portuguesa, por ser majoritária e de dominação (MATTOS e SILVA, 2002). Sendo assim, o objetivo da exposição deste capítulo se fixará na variação do português brasileiro (em especial a variável em estudo - nós e a gente) e nas relações com seu ensino como língua materna majoritária da população brasileira. Assim como está exposto no título deste capítulo – A variação e a mudança: por um ensino que revele a riqueza da língua materna, entendo que o foco em discussão deva ser o ensino, até porque não considero de nenhuma relevância uma pesquisa que apenas conste dados quantitativos e não tenha utilidade para o ensino. Afinal, esse foi também um dos meus objetivos: contribuir para o ensino da Língua Portuguesa. Sendo assim, desenvolvo a minha reflexão abordando, em um primeiro momento, revisão dos conceitos variação, mudança e ensino de língua, procurando desenvolver mais as questões relacionadas ao ensino, por ser de extrema importância para nós, professores, que buscamos um ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa mais efetivo. Em um segundo momento, apresento alguns aspectos da minha pesquisa em que se entremeiam as questões da variação, bem como o estigma frente aos usos do português não-padrão, através de textos que compõem o meu corpus. 38 3.1 Revisitando os conceitos de variação, mudança e ensino Segundo Rosa Virgínia Matos e Silva, “a intuição da variação e da mudança recua para tempos imemoriais” (2002, p. 293), pois relembramos a passagem bíblica da Torre de Babel8, da tradição hebraica e a história dos Asuras (tradição indiana), considerados bárbaros e que falavam uma língua “corrompida”, e não o sânscrito dos brâmanes. Contudo, os estudos que foram desenvolvidos tanto na fase filosófica quanto na fase filológica da lingüística não se centraram nem na variação nem na mudança. A tradição gramatical dessas fases teve como centro a norma prescritiva, ou seja, preocuparam-se em prescrever regras a serem seguidas. No tocante ao ensino não foi diferente, pois o ideal prescritivo, homogeneizador e segregador, mantém-se como modelo ainda dominante para a instrução das línguas maternas na instituição escolar, já que esta, historicamente, “não é mais do que um instrumento de reprodução da sociedade em que está inserida, [...] e o privilégio de um padrão normativizador, segundo a variante socialmente dominante, é uma poderosa peça dessa engrenagem ideológica” (MATTOS e SILVA, 2002, p. 295). A questão da mudança das línguas entra em cena a partir dos estudos da fase histórico-comparatista (séc. XVIII – XIX), através da inesperada descoberta científica do sânscrito cujo objetivo principal, como foi visto no primeiro capítulo, era mostrar as relações existentes entre o grego, latim, persa e germânico. A mudança lingüística, portanto, era o cerne da ciência da linguagem nesse momento, constituída com hipóteses, objetivos e metodologias de extremo rigor (MATTOS e SILVA, 2002). Ainda no século XIX, no interior do comparativismo, foi aberto o caminho para o estudo da variação, em especial a geográfica, através da vertente que trabalhava o subgrupo românico das línguas indo-européias, buscando encontrar caminhos possíveis para a reconstrução do latim “vulgar”, de menor prestígio, na época, e que se opunha ao latim padrão. Trazendo essa situação do latim para os nossos dias, podemos estabelecer uma relação com a língua portuguesa cuja variação tem sido alvo constante de estigmatização frente ao português padrão. O estudo de outros 8 Esta passagem está registrada em Gênesis capítulo 11. Relata que toda terra possuía uma mesma língua e uma mesma fala, mas após o desejo de construir uma torre alta que tocasse o céu houve a confusão da língua para que um não pudesse compreender o outro. 39 tipos de variação (social e dialetal, por exemplo) contribui para o avanço de demais estudos sobre a mudança das línguas no tempo e para avançar também no que diz respeito à própria variação, desta feita, a variação espacial das línguas. Ratifica Matos e Silva que variação e mudança não mais deixaram de fazer parte do rol das principais preocupações dos estudiosos da linguagem. Entretanto, mesmo com o alargamento do campo dos estudos lingüísticos em que se privilegia qualquer variedade de uma língua, a Lingüística Moderna, inicialmente, através do estruturalismo, deixou de se preocupar com a variação e a mudança da língua, já que, por acreditar numa homogeneidade lingüística, optou, principalmente, pelo caminho teórico de captar o sistema, que possibilitava que as línguas funcionassem da maneira como funcionam, teoria elaborada por Saussure. Contudo – e é para isso que as ciências existem, para concordar, discordar e elaborar novas propostas – a preocupação com as mudanças lingüísticas voltam à tona, pois alguns estudiosos, principalmente Jakobson e Martinet, dentre os estruturalistas, dedicaram-se em compreender a mudança diacrônica com o objetivo
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