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Capítulo 9 Famílias Plurais

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9. FAMÍLIAS PLURAIS
9. FAMÍLIAS PLURAIS
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9. FAMÍLIAS PLURAIS
SUMÁRIO: 9.1 Breve justificativa – 9.2 Família constitucionalizada
– 9.3 Conceito atual de família – 9.4 Matrimonial – 9.5 Informal – 9.6
Homoafetiva – 9.7 Paralelas ou simultâneas – 9.8 Poliafetiva – 9.9
Monoparental – 9.10 Parental ou anaparental – 9.11 Composta,
pluriparental ou mosaico – 9.12 Natural, extensa ou ampliada – 9.13
Substituta – 9.14 Eudemonista – Leitura complementar.
9.1 Breve justificativa
Sempre que se pensa em família ainda vem à mente o modelo
convencional: um homem e uma mulher unidos pelo casamento, com
o dever de gerar filhos. Mas essa realidade mudou. Hoje, todos já
estão acostumados com famílias que se distanciam do perfil
tradicional. A convivência com famílias recompostas, monoparentais,
homoafetivas permite reconhecer que seu conceito se pluralizou. Daí
a necessidade de flexionar igualmente o termo que identifica a família
dos dias de hoje, de modo a albergar todas as suas conformações. No
dizer de Michele Perrot, despontam novos modelos de família, mais
igualitárias nas relações de sexo e idade, mais flexíveis em suas
temporalidades e em seus componentes, menos sujeitas à regra e
mais ao desejo.1
As mudanças das estruturas políticas, econômicas e sociais
produziram reflexos nas relações jurídico-familiares. Ainda que
continue a família a ser essencial para a própria existência da
sociedade e do Estado, houve uma completa reformulação do seu
conceito. Os ideais de pluralismo, solidarismo, democracia, igualdade,
liberdade e humanismo se voltaram à proteção da pessoa humana. A
família adquiriu função instrumental para a melhor realização dos
interesses afetivos e existenciais de seus componentes.2 Nesse
contexto de extrema mobilidade das configurações familiares, novas
formas de convívio vêm sendo improvisadas em torno da necessidade
– que não se alterou – de criar os filhos, frutos de uniões amorosas
temporárias que nenhuma lei, de Deus ou dos homens, consegue
mais obrigar a que se eternizem.3
9.2 Família constitucionalizada
Raras vezes uma constituição consegue produzir tão significativas
transformações na sociedade e na própria vida das pessoas como fez
a atual Constituição Federal de 1988. Não é possível elencar a série
de modificações introduzidas, mas algumas, por seu maior realce,
despontam com exuberância. O constituinte consagrou, como dogma
fundamental, antecedendo a todos os princípios, a dignidade da
pessoa humana (CF 1.º III), impedindo assim a superposição de
qualquer instituição à tutela de seus integrantes.4 Foram eliminadas
injustificáveis diferenciações e discriminações que não mais
combinam com uma sociedade democrática e livre. Houve o resgate
do ser humano como sujeito de direito, assegurando-lhe, de forma
ampliada, a consciência da cidadania.
Rastreando os fatos da vida, a Constituição viu a necessidade de
reconhecer a existência de outras entidades familiares, além das
constituídas pelo casamento. Assim, enlaçou no conceito de entidade
familiar e emprestou especial proteção à união estável (CF 226 § 3.º)
e à comunidade formada por qualquer dos pais com seus
descendentes (CF 226 § 4.º), que passou a ser chamada de família
monoparental. Mas não só nesse limitado universo flagra-se a
presença de uma família. Os tipos de entidades familiares explicitados
são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais
comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa.5 Dentro
desse espectro mais amplo, não se pode excluir do âmbito do direito
das famílias as uniões homoafetivas. Dita flexibilização conceitual
permitiu que relacionamentos, antes clandestinos e marginalizados,
adquirissem visibilidade. Os avanços da jurisprudência fizeram o STF6
declarar, com caráter vinculante e eficácia erga omnes, que as uniões
homoafetivas são uma entidade familiar. A partir daí restou
assegurado o acesso ao casamento.
Nos dias de hoje, o elemento distintivo da família, que a coloca sob
o manto da juridicidade, é a presença de um vínculo afetivo a unir as
pessoas com identidade de projetos de vida e propósitos comuns,
gerando comprometimento mútuo. Cada vez mais a ideia de família
afasta-se da estrutura do casamento. A família já não se condiciona
aos paradigmas originários: casamento, sexo e procriação. O
movimento de mulheres, a disseminação dos métodos contraceptivos
e o surgimento da reprodução assistida fizeram com que esse tríplice
pressuposto deixasse de balizar o conceito de família. Caiu o mito da
virgindade e sexo – até pelas mulheres – se pratica fora e antes do
casamento. A concepção não mais decorre exclusivamente do contato
sexual e o casamento deixou de ser o único reduto da conjugalidade.
Relações extramatrimoniais já dispõem de reconhecimento
constitucional.
O pluralismo das relações familiares ocasionou mudanças na
própria estrutura da sociedade. Rompeu-se o aprisionamento da
família nos moldes restritos do casamento.7 A consagração da
igualdade, o reconhecimento da existência de outras estruturas de
convívio, a liberdade de reconhecer filhos havidos fora do casamento
operaram verdadeira transformação na família.
A mudança da sociedade e a evolução dos costumes levaram a
uma verdadeira reconfiguração, quer da conjugalidade, quer da
parentalidade. Assim, expressões como família marginal, ilegítima,
espúria, impura, adulterina, informal, não mais servem, pois trazem
um ranço discriminatório e estão banidas do vocabulário jurídico. Não
podem ser utilizadas, nem com referência às relações afetivas, nem
aos vínculos parentais. Seja em relação à família, seja no que diz
respeito aos filhos, não mais se admite qualquer adjetivação.
9.3 Conceito atual de família
Difícil encontrar uma definição de família de forma a dimensionar o
que, no contexto dos dias de hoje, se insere nesse conceito. É mais
ou menos intuitivo identificar família com a noção de casamento.
Também vem à mente a imagem da família patriarcal: o homem como
figura central, tendo a esposa ao lado, rodeado de filhos, genros,
noras e netos. Essa visão hierarquizada da família sofreu enormes
transformações. Além da significativa diminuição do número de seus
componentes, houve verdadeiro embaralhamento de papéis. A
emancipação feminina e o ingresso da mulher no mercado de
trabalho a levaram para fora do lar. Deixou o homem de ser o
provedor exclusivo da família, e foi exigida sua participação nas
atividades domésticas.
O afrouxamento dos laços entre Estado e igreja acarretou
profunda evolução social. Começaram a surgir novas estruturas de
convívio sem uma terminologia adequada que as diferencie. As
famílias formadas por quem saiu de outras relações, não têm nome
que as identifiquem e nem seus integrantes têm lugares definidos.
Para Paulo Lôbo, a família é sempre socioafetiva, em razão de ser
um grupo social considerado base da sociedade e unida na
convivência afetiva. A afetividade, como categoria jurídica, resulta da
transeficácia de parte dos fatos psicossociais que a converte em fato
jurídico, gerador de efeitos jurídicos.8
A lei nunca se preocupou em definir a família. Limitava-se a
identificá-la com o casamento. Esta omissão que excluía do âmbito
jurídico todo e qualquer vínculo de origem afetiva, teve um resultado
desastroso, pois levou a justiça a condenar à invisibilidade e a negar
direitos a quem vivia aos pares, mas sem a chancela estatal.
Agora – e pela primeira vez – a lei define a família atendendo a seu
perfil contemporâneo. A Lei Maria da Penha (L 11.340/06), que busca
coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, identifica como
família qualquer relação íntima de afeto (LMP 5.º III). Com isso, não
mais se pode limitar o conceito de entidade familiar ao rol
constitucional. Lei nova alargou seu conceito. E não se diga que este
conceito serve tão só para definir a violência como doméstica. Ainda
que este seja o seu objetivo, acabou porestabelecer os contornos de
seu âmbito de abrangência.
Guilherme Calmon Nogueira da Gama afirma que as relações
familiares são funcionalizadas em razão da dignidade de cada
partícipe.9 As pessoas passaram a viver em uma sociedade mais
tolerante e, com mais liberdade, buscam realizar o sonho de ser
felizes sem se sentirem premidas a permanecer em estruturas
preestabelecidas e engessadoras. Acabaram os casamentos de
fachada, não mais se justificando relacionamentos paralelos e furtivos,
nascidos do medo da rejeição social. Está ocorrendo uma verdadeira
democratização dos sentimentos, na qual o respeito mútuo e a
liberdade individual são preservados. Cada vez mais as pessoas têm
o direito de escolha e podem transitar de uma comunidade de vida
para outra que lhe pareça mais atrativa e gratificante. Traição e
infidelidade estão perdendo espaço. Luiz Felipe Nobre Braga traz o
conceito de família potestativa, qual seja o direito de o sujeito
livremente formar a família, que designa o ímpeto de aproximação
existencial pelo afeto.10 Já Lourival Serejo fala em família virtual que
se constitui pelo Second Life – uma possibilidade inusitada do mundo
moderno que se origina na carência de afeto e da solidão em que se
encontra o usuário desse ambiente. Nesse vácuo existencial, só lhe
resta o consolo de criar uma família com marido/mulher e filhos para
exercer sua vocação de mãe/pai.11
É necessário ter uma visão pluralista da família, que abrigue os
mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar o elemento que
permite enlaçar no conceito de entidade familiar todos os
relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade,
independentemente de sua conformação. Esse referencial só pode ser
identificado no vínculo que une seus integrantes. É o envolvimento
emocional que leva a subtrair um relacionamento do âmbito do direito
obrigacional – cujo núcleo é a vontade – para inseri-lo no direito das
famílias, que tem como elemento estruturante o sentimento do amor
que funde as almas e confunde patrimônios, gera responsabilidades e
comprometimentos mútuos.12 Esse é o divisor entre o direito
obrigacional e o familiar: os negócios têm por substrato
exclusivamente a vontade, enquanto o traço diferenciador do direito
da família é o afeto. A família é um grupo social fundado
essencialmente nos laços de afetividade após o desaparecimento da
família patriarcal, que desempenhava funções procriativas,
econômicas, religiosas e políticas.13
O novo modelo da família funda-se sobre os pilares da
repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemonismo,
impingindo nova roupagem axiológica ao direito das famílias.14 Agora,
a tônica reside no indivíduo, e não mais nos bens ou coisas que
guarnecem a relação familiar. A família-instituição foi substituída pela
família-instrumento, ou seja, ela existe e contribui tanto para o
desenvolvimento da personalidade de seus integrantes como para o
crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a
sua proteção pelo Estado.15
Emblemático o julgamento do STJ: Inaugura-se com a Constituição
Federal de 1988 uma nova fase do direito de família e,
consequentemente, do casamento, baseada na adoção de um
explícito poliformismo familiar em que arranjos multifacetados são
igualmente aptos a constituir esse núcleo doméstico chamado
“família”, recebendo todos eles a “especial proteção do Estado”.
Assim, é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção
constitucional do conceito histórico de casamento, sempre
considerado como via única para a constituição de família e, por
vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da
igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção
constitucional do casamento, diferentemente do que ocorria com os
diplomas superados –, deve ser necessariamente plural, porque
plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o
destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário
de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua
inalienável dignidade.16
Na feliz expressão de João Baptista Villela, a teoria e a prática das
instituições de família dependem, em última análise, da competência
em dar e receber amor.17 A família continua mais empenhada do que
nunca em ser feliz. A manutenção da família visa, sobretudo, buscar a
felicidade. Não é mais obrigatório manter a família – ela só sobrevive
quando vale a pena. É um desafio.18
9.4 Matrimonial
Sob a justificativa de manter a ordem social, tanto o Estado como
a igreja sempre se imiscuíram na vida das pessoas. Na tentativa de
limitar o livre exercício da sexualidade e garantir a perpetuação da
espécie, mediante estritos padrões de moralidade, eram
estabelecidos interditos e proibições de natureza cultural e não
biológica.
A Igreja Católica consagrou a união entre um homem e uma
mulher como sacramento indissolúvel: até que a morte os separe.
As únicas relações afetivas aceitas são as decorrentes do casamento
entre um homem e uma mulher, em face do interesse na procriação. A
máxima crescei e multiplicai-vos atribuiu à família a função reprodutiva
com o fim de difundir a sua fé. Daí a origem do débito conjugal como
obrigação à prática da sexualidade. Aliás, outro não é o motivo para
ser vedado, de modo irresponsável, o uso de contraceptivos. O
casamento religioso pode ser anulado se algum dos cônjuges for
estéril ou impotente. Essa conservadora cultura, de larga influência no
Estado, acabou levando o legislador, no início do século passado, a
reconhecer juridicidade apenas à união matrimonial.
O Código Civil de 1916 solenizou o casamento como uma
instituição e o regulamentou exaustivamente. É o Estado que o
celebra mediante o atendimento de inúmeras formalidades. O
legislador reproduziu o perfil da família então existente:
matrimonializada, patriarcal, hierarquizada, patrimonializada e
heterossexual. Só era reconhecida a família constituída pela
chancela estatal. O homem exercia a chefia da sociedade conjugal.
Ele era merecedor de respeito, sendo que a mulher e os filhos deviam-
lhe obediência. A finalidade essencial da família era a conservação do
patrimônio, precisando gerar filhos como força de trabalho. Como era
fundamental a capacidade procriativa, claro que as famílias
necessitavam ser constituídas por um par heterossexual e fértil.
O interesse estatal na manutenção do casamento levou, em um
primeiro momento, à consagração de sua indissolubilidade e à
obrigatória identificação da família pelo nome do varão. Ao casar, a
mulher tornava-se relativamente capaz, não podia trabalhar nem
administrar seus próprios bens. O regime da comunhão universal de
bens, como modelo oficial, mostra o significado que tinha o
casamento. Duas pessoas fundiam-se numa só, formando uma
unidade patrimonial, sendo o homem o elemento identificador do
núcleo familiar. O casamento não podia ser desconstituído, só
anulado por erro essencial quanto à identidade ou à personalidade do
cônjuge. Era possível ao marido pedir a anulação do casamento
alegando o desvirginamento da mulher. Fora disso, só cabia o
rompimento do casamento pelo desquite, que, no entanto, não
dissolvia o vínculo matrimonial, restando os cônjuges numa situação
sui generis. Não eram mais casados, cessavam os deveres
matrimoniais, mas eles não podiam casar novamente.
O Estado sempre resistiu em admitir vínculos de convivência
formados sem o selo da oficialidade. Apesar do verdadeiro repúdio da
legislação em reconhecer quaisquer outras uniões, sempre existiram
vínculos afetivos à margem do casamento. As famílias formadas pelos
egressos de relacionamentos anteriores não tinham a possibilidade de
serem formalizadas.
Foi a Lei do Divórcio, que, em 1977, consagrou a dissolução do
vínculo matrimonial, mudou o regime legal de bens para o da
comunhão parcial e tornou facultativa a adoção do nome do marido.
Ainda assim, até 1988, ocasamento era a única forma admissível
de formação da família. Foi quando entrou em vigor a atual
Constituição Federal, que houve o reconhecimento de outras
entidades familiares. Esse prestígio à família extramatrimonial atende
aos interesses do Estado, que delega a ela a formação dos seus
cidadãos, tarefa que acaba quase sempre onerando exclusivamente a
mulher. Há um certo descomprometimento, tanto do homem como das
entidades públicas e dos entes governamentais, em assumir o
encargo de formar e educar crianças e jovens, único meio de
assegurar o futuro da sociedade. Por isso é que consagra (CF 226): A
família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
O Código Civil de 2002 procurou deixar expressa essa proteção
ao proibir qualquer pessoa, de direito público ou privado, de interferir
na comunhão de vida instituída pela família (CC 1.513).
Desnecessária e pleonástica essa vedação, pois, se fosse necessário
impedir interferências, deveria dirigir-se a todas as pessoas, fossem
naturais ou jurídicas, sem qualquer limitação.19
Apesar das mudanças, são enormes as exigências à celebração do
casamento, de pouco ou quase nada valendo a vontade dos nubentes.
Cláusulas, condições, regras e até algumas posturas são prévia e
unilateralmente estabelecidas por lei. Os direitos e deveres são
impostos para vigorarem durante sua vigência e até depois de sua
dissolução, pelo divórcio e até pela morte. Até se poderia chamar o
casamento de verdadeiro contrato de adesão. O alcance da
expressão “sim” significa a concordância de ambos os nubentes com o
que o Estado estabelece, de forma rígida, como deveres dos
cônjuges.20 Os noivos podem, no máximo, mediante pacto antenupcial,
eleger o regime de bens a vigorar quando da dissolução do
casamento.
9.5 Informal
A lei emprestava juridicidade apenas à família constituída pelo
casamento, vedando quaisquer direitos às relações nominadas de
adulterinas ou concubinárias. Apenas a família legítima existia
juridicamente. A filiação estava condicionada ao estado civil dos pais,
só merecendo reconhecimento a prole nascida dentro do casamento.
Os filhos havidos de relações extramatrimoniais eram alvo de enorme
gama de denominações de conteúdo pejorativo e discriminatório.
Assim, filhos ilegítimos, naturais, espúrios, bastardos, nenhum direito
possuíam, sendo condenados à invisibilidade. Não podiam sequer
pleitear reconhecimento enquanto o genitor fosse casado.
O legislador, além de não regular as relações extramatrimoniais,
com veemência negava consequências jurídicas a vínculos afetivos
fora do casamento, alijando qualquer direito à concubina. Tal ojeriza,
entretanto, não coibiu os egressos de casamentos desfeitos de
constituírem novas famílias, mesmo sem respaldo legal. Quando do
rompimento dessas uniões, seus partícipes começaram a bater às
portas do Judiciário. Viram-se os juízes forçados a criar alternativas
para evitar flagrantes injustiças, tendo sido cunhada a expressão
companheira, como forma de contornar as proibições para o
reconhecimento dos direitos banidos pela lei à concubina. Porém, tal
era a rejeição à ideia de ver essas uniões como família que a
jurisprudência, quando ausente patrimônio a ser partilhado, as
identificava como relação de trabalho, concedendo à mulher
indenização por serviços domésticos prestados. No máximo, em
face da aparência de um negócio, aplicava-se, por analogia, o direito
comercial, e as uniões eram consideradas sociedades de fato. Ditos
subterfúgios eram utilizados para justificar a partição patrimonial e
evitar o enriquecimento injustificado do homem. Mas nada mais se
cogitava conceder à mulher, nem alimentos, nem direitos sucessórios.
Essas estruturas familiares, ainda que rejeitadas pela lei, acabaram
aceitas pela sociedade, fazendo com que a Constituição as
albergasse no conceito de entidade familiar. Chamou-as de união
estável, mediante a recomendação de promover sua conversão em
casamento, norma que, no dizer de Giselda Hironaka, é a mais inútil
de todas as inutilidades.21 A legislação infraconstitucional que veio
regular essa nova espécie de família22 acabou praticamente copiando
o modelo oficial do casamento. O Código Civil impõe requisitos para o
reconhecimento da união estável, gera deveres e cria direitos aos
conviventes. Assegura alimentos, estabelece o regime de bens e
garante ao sobrevivente direitos sucessórios. Aqui também pouco
resta à vontade do par, sendo possível afirmar que a união estável
transformou-se em um casamento por usucapião, ou seja, o decurso
do tempo confere o estado de casado. A exaustiva regulamentação da
união estável gera um dirigismo não querido pelos conviventes, uma
vez que optaram por não casar. Eles escolheram seu próprio caminho
e não desejam qualquer interferência. Como são relações de caráter
privado, cabe questionar a legitimidade de sua publicização coacta.
9.6 Homoafetiva
Só pode ser por preconceito que a Constituição emprestou, de
modo expresso, juridicidade somente às uniões estáveis entre um
homem e uma mulher. Ora, a nenhuma espécie de vínculo que tenha
por base o afeto pode-se deixar de conferir status de família,
merecedora da proteção do Estado, pois a Constituição (1.º III)
consagra, em norma pétrea, o respeito à dignidade da pessoa
humana.
Em nada se diferencie a convivência homossexual da união estável
heterossexual. A homoafetividade não é uma doença nem uma opção
livre. Assim, descabe estigmatizar a orientação homossexual de
alguém, já que negar a realidade não soluciona as questões que
emergem quando do rompimento dessas uniões. Não há como
chancelar o enriquecimento injustificado e deferir, por exemplo, no
caso de morte do parceiro, a herança aos familiares, em detrimento de
quem dedicou a vida ao companheiro, ajudou a amealhar patrimônio e
se vê sozinho e sem nada.
As inúmeras decisões judiciais atribuindo consequências jurídicas
a essas relações23 levou o Supremo Tribunal Federal a reconhecê-las
como união estável, com iguais direitos e deveres.24 A partir desta
decisão passou a Justiça a admitir a conversão da união homoafetiva
em casamento. De imediato o Superior Tribunal de Justiça admitiu a
habilitação para o casamento diretamente junto ao Registro Civil, sem
ser preciso antes formalizar a união para depois transformá-la em
casamento.25 Até que o Conselho Nacional de Justiça26 proibiu que
seja negado acesso ao casamento e reconhecida a união homoafetiva
como união estável.
9.7 Paralelas ou simultâneas
A determinação legal que impõe o dever de fidelidade no
casamento, e o dever de lealdade na união estável, não consegue
sobrepor-se a uma realidade histórica, fruto de uma sociedade
patriarcal e muito machista. Mesmo sendo casados ou tendo uma
companheira, homens partem em busca de novas emoções sem abrir
mão dos vínculos familiares que já possuem. Dispõem de habilidade
para se desdobrar em dois relacionamentos simultâneos: dividem-se
entre duas casas, mantêm duas mulheres e têm filhos com ambas. É
o que se chama de famílias paralelas. Quer se trate de um casamento
e uma união estável, quer duas ou até mais uniões estáveis.
Todos os vínculos atendem aos requisitos legais de ostensividade,
publicidade e notoriedade. Inclusive, no mais das vezes, os filhos se
conhecem e as mulheres sabem uma da existência da outra. No fim
um arranjo que satisfaz a todos. A esposa tem um marido que ostenta
socialmente. A companheira nada exige e se conforma em não
compartilhar com o companheiro todos os momentos, mas o acolhe
com afeto sempre que ele tem disponibilidade.
Ainda que tal configure adultério – que nem mais crime é – os
homens assim agem.
Fechar os olhos a esta realidade e não responsabilizar esta
postura é ser conivente, é incentivar este tipo de comportamento. O
homem pode ter quantas mulheres quiser porque a Justiça não lhe
impõe qualquer ônus. Livrá-lo de responsabilidades é punir quem,
durante anos,acreditou em quem lhes prometeu amor exclusivo.
Mulheres que ficaram fora do mercado de trabalho, cuidaram de filhos
e, de repente, se veem sem condições de sobrevivência.
Ao baterem às portas do Judiciário não podem ouvir um solene:
“Bem feito, quem mandou te meter com homem casado!” É o que
ocorre toda a vez que se negam efeitos jurídicos a estes
relacionamentos. Tanto é assim que, quando a mulher nega que sabia
ser “a outra”, é reconhecida união estável putativa de boa-fé e
atribuídos os efeitos de uma sociedade de fato. Um embaralhamento
de institutos absolutamente inconcebível.
Não há como deixar de reconhecer a existência de união estável
sempre que o relacionamento for público, contínuo, duradouro e com a
finalidade de constituir família. O só fato de o homem ter uma família
não quer dizer que não tem o desejo de constituir outra. Dito elemento
de natureza subjetiva resta escancarado quando são comprovados
longos anos de convívio. Ao depois, a fidelidade não é pressuposto
para a configuração da união estável.
A Justiça não pode ser conivente com esta postura. Não pode ser
cega, fazer de conta que não vê. Não impor quaisquer ônus não vai
fazer os homens deixarem de assim se comportar.
É preciso impor os deveres inerentes à entidade familiar a quem
assume um relacionamento afetivo, independente de manter outra
união.
9.8 Poliafetiva
Ninguém duvida que no coração de um homem cabe mais de um
amor. A prova é a existência de uniões paralelas que, a Justiça
começa a reconhecer e a responsabilizar. Esta é uma realidade
masculina. Ou um casamento e uma união estável ou duas ou mais
uniões estáveis. Duas famílias, duas casas, duas entidades familiares
com todas as características legais. De fato os homens são seres
desdobráveis.
Mas quando o vínculo de convivência de mais de duas pessoas
acontece sob o mesmo teto, não se chama de união paralela, mas de
união poliafetiva, ou poliamor. Esta é outra realidade que existe e que
todos procuram não ver.
Por isso a escritura pública declaratória de união poliafetiva de um
homem com duas mulheres27 repercutiu como uma bomba. Foi
considerada por muitos como nula, inexistente, além de indecente, é
claro. E acabou rotulada como verdadeira afronta à moral e aos bons
costumes.
Eventual rejeição de ordem moral ou religiosa à dupla
conjugalidade não pode gerar proveito indevido ou enriquecimento
injustificável de um ou de mais de um frente aos outros partícipes da
união. Negar a existência de famílias poliafetivas como entidade
familiar é simplesmente impor a exclusão de todos os direitos no
âmbito do direito das famílias e sucessório. Pelo jeito, nenhum de
seus integrantes poderia receber alimentos, herdar, ter participação
sobre os bens adquiridos em comum. Nem seria sequer possível
invocar o direito societário com o reconhecimento de uma sociedade
de fato, partilhando-se os bens adquiridos na sua constância,
mediante a prova da participação efetiva na constituição do acervo
patrimonial.
Claro que justificativas não faltam a quem quer negar efeitos
jurídicos à escritura levada a efeito. A alegação primeira é afronta ao
princípio da monogamia, desrespeito ao dever de fidelidade – com
certeza, rejeição que decorre muito mais do medo das próprias
fantasias. O fato é que descabe realizar um juízo prévio e geral de
reprovabilidade frente a formações conjugais plurais e muito menos
subtrair qualquer sequela à manifestação de vontade firmada
livremente pelos seus integrantes.
Há que se reconhecer como transparente e honesta a
instrumentalização levada a efeito, que traz a livre manifestação de
vontade de todos, quanto aos efeitos da relação mantida a três.
Lealdade não lhes faltou ao formalizarem o desejo de ver partilhado,
de forma igualitária, direitos e deveres mútuos, aos moldes da união
estável, a evidenciar a postura ética dos firmatários. Nada afeta a
validade da escritura. Tivessem eles firmado dois ou três instrumentos
declaratórios de uniões dúplices, a justiça não poderia eleger um dos
relacionamentos como válido e negar a existência das demais
manifestações. Não se poderia falar em adultério para reconhecer,
por exemplo, a anulabilidade das doações promovidas pelo cônjuge
adúltero ao seu cúmplice (CC 550) ou a revogabilidade das
transferências de bens feitas ao concubino (CC 1.642 V).
Não havendo prejuízo a ninguém, de todo descabido negar o
direito de as pessoas viverem com quem desejarem.
9.9 Monoparental
A Constituição, ao esgarçar o conceito de família, elencou como
entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes (CF 226 § 4.º). O enlaçamento dos vínculos familiares
constituídos por um dos genitores com seus filhos, no âmbito da
especial proteção do Estado, subtrai a conotação de natureza sexual
do conceito de família. Tais entidades familiares receberam em sede
doutrinária o nome de família monoparental, como forma de ressaltar
a presença de somente um dos pais na titularidade do vínculo familiar.
De forma injustificável, o legislador omitiu-se em regular seus
direitos, que acabaram alijados do Código Civil, apesar de esta ser a
realidade de um terço das famílias brasileiras.
9.10 Parental ou anaparental
Mesmo que a Constituição tenha alargado o conceito de família,
ainda assim não enumerou todas as conformações familiares que
existem. A diferença de gerações não pode servir de parâmetro para
o reconhecimento de uma estrutura familiar. Não é a verticalidade
dos vínculos parentais em dois planos que autoriza reconhecer a
presença de uma família merecedora da proteção jurídica. No entanto,
olvidou-se o legislador de regular essas entidades familiares. A
convivência entre parentes ou entre pessoas, ainda que não parentes,
dentro de uma estruturação com identidade de propósito, impõe o
reconhecimento da existência de entidade familiar batizada com o
nome de família parental ou anaparental.28
A convivência sob o mesmo teto, durante longos anos, por
exemplo, de duas irmãs que conjugam esforços para a formação do
acervo patrimonial, constitui uma entidade familiar. Na hipótese de
falecimento de uma delas, descabe dividir os bens igualitariamente
entre todos os irmãos, como herdeiros colaterais, em nome da ordem
de vocação hereditária. Também reconhecer mera sociedade de fato
e invocar a Súmula 380,29 para conceder somente a metade dos bens
à sobrevivente,30 gera flagrante injustiça para com quem auxiliou a
amealhar dito patrimônio. A solução que se aproxima de um resultado
justo é conceder à irmã, com quem a falecida convivia, a integralidade
do patrimônio, pois ela, em razão da parceria de vidas, antecede aos
demais irmãos na ordem de vocação hereditária. Ainda que inexista
qualquer conotação de ordem sexual, a convivência identifica
comunhão de esforços, cabendo aplicar, por analogia, as disposições
que tratam do casamento e da união estável. Cabe lembrar que essas
estruturas de convívio em nada se diferenciam da entidade familiar de
um dos pais com seus filhos e que também merece proteção
constitucional.31
Rodrigo da Cunha Pereira distingue família conjugal do que chama
de família parental, quando as pessoas, movidas pelo desejo de
terem filhos, escolhem alguém para fazerem uma parceria. Sem que
mantenham qualquer vínculo de natureza amorosa ou sexual,
concebem o filho que é registrado em nome de ambos. Estabelece-se
uma paternidade compartilhada em que os dois exercem o poder
familiar. Inclusive é comum existirem sites em que homens e mulheres
procuram alguém para compartilhar a paternidade e a maternidade.32
9.11 Composta, pluriparental ou mosaico
Nomes existem, e muitos, tentando definir as famílias constituídas
depois do desfazimento de relações afetivas pretéritas: reconstruídas,
recompostas e até a bela expressão famílias ensambladas, em voga
na Argentina – estrutura familiar originada no matrimônio ou união de
fato de um casal,no qual um ou ambos de seus integrantes têm filhos
provenientes de um casamento ou relação prévia.33 Aliás, a ausência
de um nome, por si só, mostra a resistência que ainda existe em
aceitar essas novas estruturas de convívio. São famílias
caracterizadas pela multiplicidade de vínculos, ambiguidade das
funções dos novos casais e forte grau de interdependência. A
administração de interesses visando equilíbrio assume relevo
indispensável à estabilidade das famílias.34
A cada dia surgem novas expressões – composta, mosaico e
binuclear –, na tentativa de identificar as famílias que resultam da
pluralidade das relações parentais, especialmente fomentadas pelo
divórcio, pelo recasamento, seguidos das famílias não matrimoniais e
das desuniões.35 A multiplicidade de vínculos, a ambiguidade dos
compromissos e a interdependência desta nova estrutura familiar, no
entanto, não dispõe qualquer previsão legal, que imponha deveres ou
assegure direitos. Sequer existem nomes que identifiquem este
caleidoscópio familiar. A especificidade decorre da peculiar
organização do núcleo, reconstruído por casais onde um ou ambos
são egressos de casamentos ou uniões anteriores. Eles trazem para a
nova família seus filhos e, muitas vezes, têm filhos em comum.36 É a
clássica expressão: os meus, os teus, os nossos.
No entanto, nestas novas famílias, a tendência é considerar, ainda,
como monoparental o vínculo do genitor com o seu filho, até porque
o novo casamento dos pais não importa em restrições aos direitos e
deveres com relação aos filhos (CC 1.579 parágrafo único).
Admite a lei a possibilidade da adoção pelo companheiro do
cônjuge do genitor, que recebe o nome de adoção unilateral (ECA 41
§ 1.º). Pelo que diz a lei, seria indispensável a concordância do pai
registral, o que, praticamente, inviabilizaria esta possibilidade.
Começou a jurisprudência a atribuir encargos ao – na ausência de
melhor nome – padrasto. Sob o nome de paternidade alimentar é
reconhecido ao filho do cônjuge ou companheiro direito a alimentos,
comprovada a existência de vínculo afetivo entre ambos, e que tenha
ele assegurado sua mantença durante o período em que conviveu
com o seu genitor. Em nome do princípio da solidariedade é
reconhecido também o direito de convivência.
Seguindo a trilha da jurisprudência, a L 11.924/09 admitiu a
possibilidade de o enteado agregar o nome do padrasto, o que, no
entanto, não gera a exclusão do poder familiar do genitor.
9.12 Natural, extensa ou ampliada
O conceito de família natural é trazido pelo Estatuto da Criança e
do Adolescente (25): comunidade formada pelos pais ou qualquer
deles e seus descendentes. A expressão família natural está ligada à
ideia de família biológica, na sua expressão nuclear. Nem a
Constituição Federal (art. 227), ao garantir o direito à convivência
familiar, e nem o ECA (art. 19), ao assegurar a criança e adolescente
o direito de ser criado e educado no seio de sua família, estão se
referindo à família biológica.
Ainda assim há uma verdadeira sacralização da família biológica,
quando a nuclear é chamada de família extensa ou ampliada (ECA
25 parágrafo único: aquela que se estende para além da unidade pais
e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com
os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de
afinidade e afetividade). Parece que ninguém percebe que este
conceito dispõe de um pressuposto além do elo consanguíneo. A lei
exige que já exista um vínculo de convivência, afinidade e
afetividade para se reconhecer algum parente como família extensa.
No entanto, não é o que a Justiça faz. Quando a mãe não quer ou
não pode ficar com o filho, sai à caça de algum parente. Ora, quando
se trata de recém-nascido, nem existe este tipo de vinculação, que é
pressuposto para reconhecer a família como extensa.
Depois de esgotados todos estes esforços é que começa o
processo de destituição do poder familiar, que pode durar anos.
Enquanto isso a criança permanece abrigada, perde a primeira e
melhor infância e, às vezes, lá fica tanto tempo que nem tem mais
chance de ser adotada.
Manifestando a mãe o desejo de abrir mão da maternidade,
imediatamente deve ser encaminhado à adoção, disponibilizando-se
foto e vídeo da criança na rede nacional dos candidatos cadastrados à
adoção.
O mesmo deve ocorrer quando são denunciados maus tratos ou
abandono de crianças ou adolescentes. Ouvidos os pais, em sede
liminar, o juiz os disponibiliza à adoção.
Questionamentos surgem sobre se a família extensa é uma
espécie do gênero família natural; uma espécie do gênero família
substituta; ou um novo gênero de família. A tendência da doutrina é
reconhecer que se trata de uma espécie de família substituta, até
porque, sob uma perspectiva prática, os parentes próximos precisam
regularizar a situação por meio da guarda, tutela ou mesmo adoção.37
De qualquer modo, o legislador ampliou o conceito constitucional
de convivência familiar, dando preferência à família extensa sobre a
família substituta ou qualquer outra forma de inserção de crianças e
adolescentes.
A dificuldade é encontrar esses núcleos familiares e as inúmeras
tentativas que são feitas para que assumam a condições de
guardiões. Tais diligências se estendem no tempo e, enquanto isso,
crianças e adolescentes permanecem institucionalizados, perdendo,
muitas vezes, a chance de serem adotados. Ao depois, sempre serão
estigmatizados. O passado sempre estará presente em suas vidas,
pois não passam a desfrutar de condição de filhos. Certamente esta
solução não atende ao comando constitucional que determina que
lhes seja garantida proteção integral, com absoluta prioridade. E viver
na casa dos avós ou de tios não é assegurar convivência familiar, pois
a solução não é nem definitiva nem segura, como, por exemplo, a
adoção.
9.13 Substituta
A colocação de crianças e adolescentes em famílias substitutas
tem caráter excepcional. Claramente a preferência estabelecida pelo
ECA (19 § 3.º) é pela reinserção na família biológica: a natural ou a
família extensa. Somente não havendo tal possibilidade é que se
passa a falar em família substituta.
O Estatuto da Criança e do Adolescente não define o que seja
família substituta (ECA 28), mas a tendência é assim definir as
famílias que estão cadastradas à adoção. São convocadas segundo
o perfil que elegeram. Recebem a criança ou o adolescente mediante
guarda, firmando o devido compromisso (ECA 32).
Lá permanecem até se esgotarem as possibilidades de serem
reinseridos na família natural ou aceitos pela família extensa. Só
depois de frustradas essas iniciativas é que tem início o exasperante
processo de destituição do poder familiar até a inclusão no cadastro à
adoção. Um longo caminho a percorrer até serem adotados. Só então
terão direito a um nome, a ter a certeza de ter um lar, um pai e uma
mãe.
Em face da precariedade do vínculo que se estabelece, tudo é
insegurança. Todos passam a conviver com o fantasma da
possibilidade da separação.
Outra tentativa absolutamente desastrosa é o Programa Famílias
Acolhedoras38 – nada mais do que a colocação de crianças e
adolescentes em famílias que, mediante remuneração, as acolhem em
caráter precário e temporário. Como tais famílias não podem adotá-
las, ainda que se estabeleça um vínculo de filiação socioafetiva, tal se
mostra como mais uma experiência dolorosa a quem já amargou
tantas perdas.
9.14 Eudemonista
A busca da felicidade, a supremacia do amor, a vitória da
solidariedade ensejam o reconhecimento do afeto como único modo
eficaz de definição da família e de preservação da vida. São as
relações afetivas o elemento constitutivo dos vínculos interpessoais. A
possibilidade de buscar formas de realização pessoal e gratificação
profissional é a maneira de as pessoas se converterem em seres
socialmente úteis.
Para essa nova tendência de identificar a família pelo seuenvolvimento afetivo surgiu um novo nome: família eudemonista,39 que
busca a felicidade individual vivendo um processo de emancipação de
seus membros.40
O eudemonismo é a doutrina que enfatiza o sentido da busca pelo
sujeito de sua felicidade. A absorção do princípio eudemonista pelo
ordenamento altera o sentido da proteção jurídica da família,
deslocando-o da instituição para o sujeito, como se infere da primeira
parte do § 8.º do art. 226 da CF: o Estado assegurará a assistência à
família na pessoa de cada um dos que a integram.41
No momento em que o formato hierárquico da família cedeu à sua
democratização, em que as relações são muito mais de igualdade e
de respeito mútuo, e o traço fundamental é a lealdade, não mais
existem razões morais, religiosas, políticas, físicas ou naturais que
justifiquem a excessiva e indevida ingerência do Estado na vida das
pessoas. A família identifica-se pela comunhão de vida, de amor e de
afeto no plano da igualdade, da liberdade, da solidariedade e da
responsabilidade recíproca.42
Este é um traço tão significativo que, em contrapartida ao Produto
Interno Bruto, surgiu um novo índice para o desenvolvimento social,
capaz de medir o bem-estar do país: Felicidade Interna Bruta.
Leitura complementar
BRAGA, Luiz Felipe Nobre. O conceito hoperbólico, existenciário e
potestativo de família. Revista Brasileira de Direito das Famílias e
Sucessões, Porto Alegre, Magister; Belo Horizonte, IBDFAM, n. 30. p.
108-122, out.-nov. 2012.
FERRARINI, Letícia. Famílias simultâneas e seus efeitos jurídicos:
pedaços da realidade em busca da dignidade. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2010.
GRISARD FILHO, Waldyr. Famílias reconstituídas. Novas uniões
depois das separações. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2010.
LÔBO, Paulo. Famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Novas
modalidades de família na pós-modernidade. São Paulo: Atlas, 2010.
MATOS, Ana Carla Harmatiuk. “Novas” entidades familiares e seus
efeitos jurídicos. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.). Família e
solidariedade: teoria e prática do direito de família. Rio de Janeiro:
IBDFAM/Lumen Juris, 2008. p. 35-48.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem
psicanalítica. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem. Trad. André
Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
TANNURI, Claudia Aoun; HUDLER, Daniel Jacomelli. As famílias
simultâneas no ordenamento jurídico brasileiro e seus efeitos jurídicos.
Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões. Belo Horizonte: IBDFAM,
2014, v. 6. nov./dez. p. 111-128.
1.
Michelle Perrot, O nó e o ninho, 81.
2.
Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Das relações de parentesco, 101.
3.
Maria Rita Kehl, Em defesa da família tentacular, 165.
4.
Gustavo Tepedino, Temas de direito civil, 350.
5.
Paulo Lôbo, Entidades familiares constitucionalizadas:…, 95.
6.
STF, ADI 4.277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Brito, j. 05/05/2011.
7.
Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho, Famílias simultâneas…, 146.
8.
Paulo Lôbo, Despatrimonialização do direito de família…, 37.
9.
Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Direito de família e o novo Código Civil, 93.
10.
Luiz Felipe Nobre Braga, O conceito hoperbólico…, 115.
11.
Lourival Serejo, Novos diálogos do direito de família, 267.
12.
João Baptista Villela, Repensando o direito de família, 20.
13.
Paulo Lôbo, Entidades familiares constitucionalizadas:…, 96.
14.
Fabíola Santos Albuquerque, Poder familiar nas famílias recompostas…, 162.
15.
Mônica Guazzelli, O princípio da igualdade aplicado à família, 331.
16.
STJ, REsp 1.183.378/RS, 4.ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 25/10/2011.
17.
João Baptista Villela, As novas relações de família, 645.
18.
Renato Janine Ribeiro, A família na travessia do milênio, 23.
19.
Euclides de Oliveira e Giselda Hironaka, Do casamento, 11.
20.
Paulo Lins e Silva, O casamento como contrato de adesão…, 354.
21.
Giselda Hironaka, Família e casamento em evolução, 8.
22.
Lei 8.971, de 29/12/1994, e Lei 9.278, de 10/05/1996.
23.
Decisões disponíveis no site www.direitohomoafetivo.com.br.
24.
STF, ADI 4.277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Brito, j. 05/05/2011.
25.
STJ, REsp 1.183.378/RS, 4.ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 25/10/2011.
26.
CNJ, Resolução 175/2013.
27.
Escritura lavrada em 13/02/2012, na cidade de Tupã-SP.
28.
Sérgio Resende de Barros, Direitos humanos da família:…, 151.
29.
Súmula 380 do STF: Comprovada a existência de sociedade de fato entre os
concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido
pelo esforço comum.
30.
Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Das relações de parentesco, 130.
31.
Maria Berenice Dias, Manual das sucessões, 99.
32.
Rodrigo da Cunha Pereira, As novas estruturas parentais e conjugais, 37.
33.
Cecília Grossman e Irene Martínez Alcorta, Famílias ensambladas, 35.
34.
Idem, 528.
35.
Jussara S. B. N. Ferreira e Konstanze Rörhmann, As famílias pluriparentais ou
mosaico, 508.
36.
Idem, 513.
37.
Sérgio Luiz Kreuz, Direito à convivência familiar, 119.
38.
Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e
Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, instituído pelo Conselho Nacional
dos Direitos da Criança e do Adolescente.
39.
Expressão que, na sua origem grega, se liga ao adjetivo feliz e denomina a doutrina
que admite ser a felicidade individual ou coletiva o fundamento da conduta humana
moral, isto é, que são moralmente boas as condutas que levam à felicidade (Aurélio
Buarque de Holanda Ferreira, Novo dicionário da língua portuguesa, 592).
40.
Belmiro Pedro Welter, Estatuto da união estável, 32.
41.
Carlos Eduardo Pianoviski Ruzyk, Famílias simultâneas e monogamia, 205.
42.
Paulo Lôbo, A repersonalização das relações de família, 138.

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