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1 O espaço da habitação social no Brasil: possíveis critérios de um necessário redesenho Marcelo Tramontano, USP, Brasil istoricamente, o desenho da habitação social brasileira tem-se referenciado a tipologias que vão do modelo da habitação burguesa européia do século 19, caracterizado pela tripartição em espaços de prestígio, de isolamento, e de rejeição - a famigerada trilogia de áreas social, íntima e de serviços -, ao arquétipo moderno da habitação- para-todos, com sua uniformidade de soluções em nome de uma suposta democratização das características gerais dos espaços. Mesmo que agora tendam a habitá-la grupos domésticos cujo perfil difere cada vez mais da família nuclear convencional, e cujos modos de vida apresentam uma diversidade cada vez maior, o desenho dos espaços desta habitação continua imutável, sob a alegação de que chegou-se a um resultado projetual economicamente viável, que atende às necessidades básicas de seus moradores. verdade que o desenho das unidades permanece aproximadamente o mesmo há décadas, apenas com alguma variação da superfície total em função das flutuações da economia do país. O papel dos órgãos públicos produtores de conjuntos habitacionais tem sido, basicamente, o de elaborar projetos urbanísticos, adequando as unidades-padrão pré-definidas. Nas raras ocasiões em que o projeto das unidades é solicitado a escritórios de Arquitetura, seja por encomendas, seja por meio de concursos, as inovações das propostas limitam-se ao uso de alguma técnica construtiva alternativa ou a novos desenhos de fachada incorporando traços da moda, sem que, contudo, a função, o desenho e a articulação dos espaços de habitar sejam sequer questionados. Os autores destas propostas acabam referindo-se aos modelos vigentes, seja a tripartição burguesa social-íntimo-serviços, seja o padrão Moderno com a centralização da cozinha e a bipartição dia-noite. mbos os modelos foram originalmente concebidos para a família nuclear, em um momento em que esta tipologia familiar surgia como absolutamente dominante. No caso da habitação burguesa européia oitocentista, seu funcionamento dependia da presença de pessoal doméstico propositalmentre separado dos patrões. Quartos de empregados, tanto quanto banheiro e cozinha, eram considerados espaços de rejeição e, portanto, relegados aos fundos da moradia. Salas e vestíbulos compunham os espaços de prestígio - a face pública da habitação - em oposição aos espaços de intimidade, os quartos de dormir do dono da casa e de sua família. Já nas propostas Modernas do primeiro pós-guerra europeu, materializadas exemplarmente nas siedlungen patrocinadas pela social-democracia alemã, a cozinha foi trazida dos fundos da casa para, fundida com a sala de estar, tornar-se o espaço privilegiado do convívio entre os membros de uma família nuclear cuja mãe era a principal encarregada das tarefas domésticas. Além disso, a pouca área útil de cada unidade foi tratada com elementos flexíveis - camas escamoteáveis, mesas dobráveis ou sobre rodízios, portas de correr - procurando viabilizar a meta de um cômodo por pessoa, fosse ele minúsculo. claro que as reformas que os moradores costumam fazer nas casas populares brasileiras, às vezes antes mesmo de ocupá-las, são também conseqüência do fato de as unidades serem entregues em seu estado mais mínimo possível - leia-se sem acabamentos e com áreas absolutamente reduzidas -, principalmente por razões de custo. Mas é igualmente certo que a inadequação de seu desenho interno às H É A É 2 necessidades dos usuários está longe de ser um fator desprezível no momento em que se decidem pelas alterações. á há algumas décadas que os novos candidatos a habitantes destas unidades tendem a compor, em proporção crescente, grupos domésticos diferentes da família nuclear convencional. A mãe, antes dedicada prioritariamente às tarefas domésticas, aos filhos e ao marido, passou a trabalhar fora, responsabilizando-se por uma parcela crescente do orçamento familiar. Ela também decidiu ter menos filhos, casar-se mais tarde - ou não casar-se -, e tornou-se mais exigente com a qualidade da relação conjugal, por possuir agora maior autonomia financeira, fazendo aumentar o número de divórcios e separações. Por outro lado, e devido a diversos fatores, a esperança de vida ao nascer do brasileiro, que era de 41,2 anos em 1940, já situa-se em torno dos 66 anos em 1980, com um diferencial a favor das mulheres: elas viveriam 70,02 anos enquanto que os homens morreriam aos 63,3. Em outras palavras, o risco de viuvez é maior entre as mulheres, que vão compor uma parcela significativa dos novos singles urbanos. Frente a estas mudanças, o número de membros do grupo familiar tem-se tornado cada vez menor, ao mesmo tempo em que aumenta a quantidade de grupos e, conseqüentemente, a demanda por mais habitações. Pessoas de várias idades vivendo sozinhas - como boa parte dos trabalhadores braçais sem qualificação na Grande São Paulo -, famílias monoparentais, geralmente chefiadas por mulheres, casais vivendo em união livre e grupos de trabalhadores vivendo sob o mesmo teto, são alguns dos grupos domésticos emergentes. É dizer que tanto o tamanho, a estrutura e a função da família, como as relações entre seus membros vem-se alterando profundamente nas últimas décadas, e que esta tendência não exclui a família nuclear que, apesar de modelo ainda dominante, estaria se tornando, cada vez mais, apenas um momento transitório - e não obrigatório - da trajetória individual de cada vez menos pessoas. Estes novos grupos domésticos inscrevem-se em uma tendência muito mais ampla de privatização do grupo familiar, iniciada há pelo menos quatro séculos, quando a noção de clã vai cedendo terreno a um individualismo de costumes que resultará em uma progressiva valorização do indivíduo e, já às portas do nosso século, na aceitação da família nuclear como modelo de família moderna. Não restrito ao Brasil, muito menos às camadas mais pobres da população, este quadro se verifica, com intensidade variável - mas crescente e, aparentemente, irreversível -, em grande parte das metrópoles do planeta, ricas ou não. Estes desenvolvimentos devem, no entanto, ser considerados não pelas suas conseqüências, ainda moderadas, mas pelo enorme potencial de transformações que representam. sta diversidade de perfís, que permite supor uma diversidade ainda maior de modos de vida, abre-nos uma série de questões que, se por um lado ainda se encontram longe da agenda dos que tomam as decisões no campo da habitação social no Brasil, nos levam a refletir sobre habitações mais em fase com nosso tempo: 1. A evolução da maneira de realizar atividades quotidianas nos leva a repensar cada função da habitação: à finalidade higienizadora do banho acrescenta-se uma dimensão de relaxamento, inscrita em uma tendência mais ampla de culto ao corpo que abrange toda a sociedade; as atividades produtivas parecem esboçar uma volta ao espaço doméstico; as refeições são feitas individualmente em horários diversos, deixando de constituir um momento privilegiado de convívio; o televisor - presente em extensa maioria das moradias - e, eventualmente, o telefone, contribuem para alterar as relações entre os membros do grupo, e entre o grupo e o mundo exterior; etc. Quais novos desenhos poderiam corresponder a cada espaço da casa, repensado em função destas solicitações emergentes? 2. Deveria a casa popular atual continuar a ser concebida como uma redução da casa burguesa oitocentista? A tripartição social- íntimo-serviço, ou mesmo a bipartição dia- noite, ainda se justificariamem unidades com J E 3 áreas tão reduzidas e problemáticas tão distintas? 3. Os novos conceitos de produção flexível mas também as atividades da economia informal recolocam a questão do trabalho-feito- em-casa, tão comum nas classes populares: o trabalho ocupa ao menos uma parte do espaço doméstico. Esta parte é reservada temporária ou exclusivamente ao trabalho? De que maneira integra-se ao restante da habitação? Deveria situar-se dentro da casa ou apartamento, ou em relação próxima? Na esfera privada, coletiva ou pública ? 4. A casa transforma-se, pouco a pouco, no território de cruzamento de vidas individuais, agora respeitadas, dado o aumento do grau de autonomia dos membros do grupo doméstico. Como trabalhar a crescente reivindicação por privacidade nos interiores populares, cuja área reduzida e compartimentada é freqüentemente abarrotada de móveis e equipamentos que acabam não deixando muita escolha para os próprios moradores? O problema seria, principalmente, a área muito exígua? Ou seriam os interiores compartimentados demais? Ou, antes, a função dos atuais cômodos é que deveria ser revista? Espaços individuais deveriam possuir acessos externos também individuais? Quais novas estruturas espaciais corresponderiam ao abrigo de coabitantes com crescente necessidade de independência? 5. A demanda por casas populares parte de um número crescente de grupos domésticos cuja composição inclui cada vez menos pessoas, o que significaria um aumento do número de unidades necessárias para abrigar uma mesma população. Com que critérios deveria ser repensada a relação entre a área de uma habitação e o número de seus ocupantes? Seriam estas novas unidades forçosamente menores? Ou a ênfase deverá ser colocada sobre a divisão interna dos espaços? 6. O carro como prolongamento da organização familiar da vida quotidiana é, em muitos casos, onipresente. Como seria possível ligá-lo funcional e simbolicamente à função da habitação? Que relações existiriam de fato entre carro e moradia? Quais qualidades devem ser atribuídas aos lugares reservados aos carros? Como é possível proteger-se da poluição e dos perigos causados pela circulação motorizada? 7. Os novos perfís de grupos domésticos existem, muitas vezes, em apenas certos períodos do ciclo de vida familiar, de maneira simultânea ou alternada. Pode-se, por exemplo, morar sozinho quando jovem, posteriormente em união livre, ter filhos e preferir casar-se, divorciar-se voltando a viver só ou com os filhos, etc. Seria razoável pensar que a esta alternância de configurações poderia corresponder uma flexibilidade do espaço da habitação capaz de absorver esta transformação contínua? Deveriam ser previstas diferentes tipologias nos conjuntos habitacionais visando abrigar esta nova diversidade de grupos e de modos de vida? 8. As etapas do processo de privatização do grupo familiar iniciado há, pelo menos, quatro séculos, seriam, em última instância, passos em direção a um novo - e, talvez, futuramente dominante - padrão social: as pessoas vivendo sós. Que tipo de habitação social se pensaria para estes novos solitários urbanos? 9. Enquanto lugar onde mesclam-se usos sociais e funcionais, o espaço público situa-se no centro das problemáticas qualitativas da habitação. Como seriam integrados os diversos aspectos sensíveis como forma, estrutura, materiais, cores, sons, ambiência à noite? Os modelos tradicionais seriam ainda adequados? Seria possível atualizá-los ou inventar novas formas de espaços públicos? 10. A profunda separação entre espaço público e espaço privado, a imutabilidade das normas sobre a maneira de construir, a crença no ideal moderno segundo o qual um único tipo de moradia seria capaz de satisfazer necessidades humanas consideradas universais, o uso indistinto desta unidade- padrão como abrigo de quaisquer grupos domésticos, contribuíram para a produção de conjuntos habitacionais por demais uniformes e sem qualificativos, onde a área pública destina- 4 se quase exclusivamente à circulação motorizada. Caberiam, entre as esferas privada e pública, zonas de transição pertencentes ao coletivo dos moradores contendo, eventualmente, extensões da esfera privada? Quais os limites desejáveis do espaço privado de cada habitação? Que tipo de espaços coletivos e públicos assegurariam condições para o desenvolvimento de novas relações sociais e de relações já existentes? Quais serviços tradicionalmente locados em uma destas esferas tenderiam a deslocar-se para alguma outra? 11. Os conjuntos habitacionais tem sido concebidos, em sua grande maioria, utilizando uma única tipologia de habitações, seja ela a habitação unifamiliar em lotes contíguos, as unidades geminadas ou a habitação coletiva em barras, torres, etc. A mescla de diferentes tipos de agrupamentos poderia, além de enriquecer a paisagem monótona dos conjuntos, contribuir a induzir a maneiras diversas de relacionamento social? 12. Em casa como estrangeiros: o confronto entre os viajantes e a gente do lugar. Nos grandes conjuntos das periferias metropolitanas brasileiras há um grande número de imigrantes, moradores originários de outras regiões do país. Como trabalhar a integração destas populações? Quais relações de vizinhança a serem estimuladas, quais novos tipos de espaços coletivos e públicos? abemos que o processo de tomada de decisões, no que concerne o desenho da habitação social brasileira, envolve uma infinidade de parâmetros de natureza política e econômica - e não apenas reflexões específicas de projeto - assim como um grande grupo de profissionais, entre os quais o arquiteto. No entanto, acreditamos que a este profissional cabe estar atento às transformações cada vez mais intensas e profundas da sociedade cuja moradia ele é chamado a projetar. E que seus desenhos de novos espaços de morar serão fundamentais para influenciar os que detêm o poder de efetivar mudanças. São Carlos, inverno de 1995 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO . BRASIL ESCOLA DE ENGENHARIA DE SÃO CARLOS DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO tramont@sc.usp.br S
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