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Curso de Direito da Crianca e do Adolescente - Aspectos Teóricos e Práticos - Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel

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Curso de Direito da Crianca e do Adolescente - Aspectos Teóricos e Práticos - Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel.epub
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 Dos crimes
 Cláudia Canto Condack
 1. INTRODUÇÃO
 Neste capítulo, o Estatuto da Criança e do Adolescente segue o modelo de incluir a previsão de infrações penais também em diplomas da legislação extravagante, embora seja forçoso reconhecer que o próprio diploma repressivo já contemplava, antes mesmo da edição do Estatuto, infrações penais vitimizando especificamente crianças e adolescentes1. Em outros dispositivos, a especial condição de criança ou adolescente do sujeito passivo já justificava a criação de tipos derivados, incidindo o agente nestes casos na sanção penal prevista para a figura qualificada do crime2. Já para aqueles delitos comuns onde não figurem especificamente como sujeitos passivos, resta a incidência da agravante genérica do art. 61, II, h, neste caso apenas quando praticado o crime contra criança, ficando o adolescente excluído da previsão contida na parte geral, impedindo assim a incidência da circunstância nesta última hipótese, pela vedação de analogia in malam partem.
 Ante a tal contexto legislativo, impende fazer coro à crítica de parte da doutrina ao fenômeno de pulverização de tipos penais em diversos diplomas legais, desconstruindo a necessária sistematização da legislação penal, transformada em verdadeira colcha de retalhos3, fato, contudo, que não afasta a inegável necessidade de tutela, na seara penal, dos elevados interesses da infantoadolescência.
 2. DISPOSIÇÕES GERAIS
 Art. 225. Este Capítulo dispõe sobre crimes praticados contra a criança e o adolescente, por ação ou omissão, sem prejuízo do disposto na legislação penal.
 O dispositivo em exame é, inegavelmente, de uma total superfluidade. Isso porque, na sua primeira parte, declara do que trata o capítulo, quando esta conclusão deriva da simples leitura dos tipos penais que se seguem ou mesmo do próprio contexto legislativo onde tais infrações foram inseridas. A seguir, esclarece a plena vigência da legislação penal, quando se sabe que sua inaplicabilidade dependeria de dispositivo expresso neste sentido, inexistente no Estatuto. Ademais, havendo conflito aparente entre infração penal do Estatuto e outra do Código Penal, a solução virá da aplicação do princípio da especialidade, que manda incidir a norma especial quando contenha ela todos os elementos da norma geral, além de outros, denominados especializantes, sendo, por isso, hierarquicamente superior a esta, prevalecendo. Assim, a norma estatutária, por agregar elementos próprios à hipótese normativa geral, prevista no diploma repressivo, seja para agravar ou atenuar a punição, em regra prevaleceria, ainda que no silêncio do legislador.
 Art. 226. Aplicam-se aos crimes definidos nesta Lei as normas da Parte Geral do Código Penal e, quanto ao processo, as pertinentes ao Código de Processo Penal.
 O dispositivo repete a regra geral contida nos arts. 12 do Código Penal e 1º do Código de Processo Penal, que preveem a aplicação das normas gerais de direito substantivo4, bem como aquelas do direito adjetivo, aos crimes previstos em leis especiais. Apenas aos demais procedimentos regulados pelo ECA dar-se-á a aplicação meramente subsidiária da legislação processual, nos termos do disposto no seu art. 152.
 Relativamente à questão da competência para processo e julgamento dos crimes previstos no ECA ou quaisquer outros que vitimizem crianças e adolescentes, esta nos parece ser sempre da vara criminal da comarca do fato, seja pela aplicação da regra geral acima referida, seja pela inexistência, no Estatuto, de qualquer dispositivo que outorgue, ao juízo especializado, a apreciação da matéria criminal5 como se constata da leitura do teor do art. 1486.
 Art. 227. Os crimes definidos nesta Lei são de ação pública incondicionada.
 Sendo dever de o Estado assegurar o respeito aos direitos da criança e do adolescente, nos termos do art. 227 da CF, coerente é que a ação penal pelos crimes previstos no ECA seja de iniciativa do Ministério Público, a quem incumbe não só promover privativamente a ação pública, nos termos dos arts. 129, I, da CF, e 100, § 1º, do Código Penal, mas também zelar, por força do art. 129, II, da CF, pela efetiva tutela dos direitos assegurados constitucionalmente, o que se faz, reflexamente, pela punição daqueles que pratiquem condutas atentatórias aos interesses consagrados no ECA e nele incriminados7.
 A atribuição para conhecer de inquérito policial ou peça de informação que traga notícia de crime contra a criança ou adolescente deve ser do promotor de justiça com atribuição criminal, cabendo àquele que funcione em Juízo da Infância e Juventude encaminhar-lhe os autos ou papéis nos quais se noticie a existência de infração penal prevista na legislação comum ou extravagante8.
 3. DOS CRIMES EM ESPÉCIE
 3.1. Omissão do registro de atividades ou do fornecimento da declaração de nascimento
 Art. 228. Deixar o encarregado de serviço ou o dirigente de estabelecimento de atenção à saúde de gestante de manter registro das atividades desenvolvidas, na forma e prazo referidos no art. 10 desta Lei, bem como de fornecer à parturiente ou a seu responsável, por ocasião da alta médica, declaração de nascimento, onde constem as intercorrências do parto e do desenvolvimento do neonato:
 Pena - detenção de seis meses a dois anos.
 Parágrafo único. Se o crime é culposo:
 Pena - detenção de dois a seis meses, ou multa.
 A conduta delituosa em exame deriva da desobediência aos preceitos do art. 10, I e IV, que obrigam hospitais e demais estabelecimentos de atenção à saúde da gestante a manterem registro das atividades desenvolvidas, pelo prazo de 18 anos, ainda que neles não se realize o parto, bem como a fornecerem declaração de nascimento contendo as intercorrências do parto e informações relativas ao neonato, tudo no escopo de viabilizar o regular desenvolvimento da gestação e do recém-nascido, que terá seu prontuário individualizado desde o período de gestação, dando assim concretude ao seu direito fundamental à vida e à saúde.
 Trata-se de delito próprio, imputável apenas a quem ostente a qualidade de encarregado de serviço ou dirigente do estabelecimento de atenção à saúde da gestante, assim entendido o centro hospitalar ou qualquer unidade ou posto de saúde, público ou particular. A identificação, porém, daquele que tenha a incumbência de manter, em prontuários individuais e pelo prazo de 18 anos, o registro das atividades desenvolvidas e de fornecer a declaração de nascimento é vaga, podendo em tese recair no médico, no enfermeiro-chefe ou em empregado burocrático. Da mesma maneira, imprecisa é a indicação de quem seja, pela lei, considerado dirigente do estabelecimento, para fins de imputação da conduta típica, se podendo pensar no diretor-médico, no diretor-geral ou no diretor-administrativo. Por tudo isso, parece clara a violação, neste e em outros tipos penais do Estatuto, ao princípio da taxatividade (nullum crimen nulla poena sine lege certa), decorrência do princípio da legalidade, de clara conotação constitucional9.
 Relativamente ao sujeito passivo, temos que o Estado figurará sempre no polo passivo de forma mediata, seja por deter o monopólio na aplicação da lei, o que o alça à condição de lesado toda vez que ela é infringida, seja porque a Carta Magna outorgou-lhe dever especial de tutela dos direitos da criança e do adolescente. Neste contexto, parece também lógico reconhecer que a criança ou o adolescente igualmente figurarão no polo passivo de todos os delitos, porém de forma imediata, posto que é justamente a ofensa ou atentado aos seus direitos e interesses que justificou a inserção, na lei especial, de capítulo destinado
ao tratamento da matéria criminal10. A genitora, que se pode supor também lesada pela omissão no registro das atividades desenvolvidas durante e após o parto, nos termos do art. 10, I, acima referido, não pode, porém, exigir a declaração de nascimento prevista no inciso IV do mesmo dispositivo, quando, por exemplo, abandone o neonato para que seja colocado em família substituta. É que aludido documento deve ser entregue a quem incumba acompanhar o desenvolvimento da criança, tendo finalidade distinta da atestação a que alude o art. 52, § 1º, da Lei n. 6.015/73, destinada ao Cartório do Registro Civil11.
 Sendo o verbo nuclear do tipo caracterizador de conduta omissiva própria, costuma-se negar a possibilidade de tentativa ao argumento de que não se pode fracionar a inação. Ou o sujeito age e não há crime ou se omite e ele estará consumado, independentemente da produção de resultado, posto que os crimes omissivos próprios são sempre de mera conduta, não possuindo resultado naturalístico como produto possível da ação omitida. Derivam unicamente da omissão de um dever de agir imposto normativamente. Assim, o crime só se consumaria quando vencido o momento adequado à realização do registro das atividades desenvolvidas ou quando concedida a alta médica sem o fornecimento da declaração de nascimento. Enquanto se possa dizer possível a realização das condutas mandadas, não se pode falar em início de ação típica de crime e, portanto, em fato penalmente relevante.
 O delito comporta previsão tanto na modalidade dolosa quanto na culposa, sujeitando-se, por força da alteração introduzida pelo art. 2º, parágrafo único, da Lei n. 10.259/2002 ao art. 61 da Lei n. 9.099/95, e em razão dos limites de pena estabelecidos para ambas as figuras, ao rito especial dos Juizados Especiais Criminais.
 3.2. Omissão de identificação do neonato e da parturiente ou de realização de exames necessários
 Art. 229. Deixar o médico, enfermeiro ou dirigente de estabelecimento de atenção à saúde de gestante de identificar corretamente o neonato e a parturiente, por ocasião do parto, bem como deixar de proceder aos exames referidos no art. 10 desta Lei:
 Pena - detenção de seis meses a dois anos.
 Parágrafo único. Se o crime é culposo:
 Pena - detenção de dois a seis meses, ou multa.
 O Estatuto prossegue tratando das condutas atentatórias à vida e à saúde da gestante e do neonato, impondo ao médico, enfermeiro ou dirigente de estabelecimento de saúde a obrigação de realizar os procedimentos previstos nos incisos II e III do art. 10 da lei.
 Trata-se de crime próprio, imputável apenas àqueles que ostentem as qualidades exigidas pelo tipo penal. Assim, relativamente à primeira conduta típica, que consiste na omissão de identificação do neonato e da parturiente, podem figurar como sujeitos ativos do crime quaisquer das pessoas nele elencadas, a saber, o médico, enfermeiro ou dirigente do estabelecimento, valendo também aqui as observações relativas à imprecisão na indicação de quem seja o autor do delito, feitas nos comentários ao art. 228. Quanto à segunda modalidade típica, parece-nos que, embora somente o médico possa indicar exames de diagnóstico e terapia de anormalidades do neonato, podem o enfermeiro ou dirigente deixar de proceder a tais exames, por meio do desatendimento à solicitação do médico. Assim, se pode o dirigente figurar como autor do crime de omissão na identificação da gestante ou neonato, não vemos motivo para excluí-lo do rol de sujeitos desta segunda figura delituosa12. A simples ausência, porém, de identificação da gestante ou do neonato, ou ainda de realização dos exames previstos em lei, não conduz, automaticamente, à punição desses agentes. Isso porque o direito penal contemporâneo já não mais se coaduna com a responsabilidade objetiva, derivada do simples advento do resultado típico, exigindo-se que o agente tenha obrado com dolo ou culpa. É a consagração do princípio nullum crimen sine culpa13. Sem a demonstração dos elementos caracterizadores de uma destas duas formas de atuar típico, imperiosa será a decretação de atipicidade do fato, não por ausência de tipicidade objetiva, mas pela ausência de seu correspondente subjetivo, sem o qual a ação humana, desconsiderado o conteúdo da vontade, daria origem a um processo causal “cego”14.
 A par da verificação da indispensável atuação dolosa ou culposa do agente, cabe indagar da possibilidade de coautoria ou participação em delito omissivo, como é o caso do dispositivo em exame. Nilo Batista decreta a impunidade do terceiro não obrigado à ação exigida pelo tipo, recusando a possibilidade de coautoria, ao argumento de que a falta de ação retira o pressuposto fundamental da coautoria, que é a divisão de trabalho. Relativamente à autoria mediata, se terceiro impede a realização da ação mandada por parte do obrigado, deve responder pelo crime, segundo afirma, a título de autoria direta por ação15. Caso não ostente os requisitos objetivo-pessoais de autoria exigidos pelo tipo, deve ficar impune, em respeito à opção legislativa que estabeleceu restrições à qualidade do autor punível desta modalidade delituosa. Por fim, nega igualmente a participação, em qualquer de suas formas, de instigação ou cumplicidade, posto que representam, em última análise, uma dissuasão ao nada16. Juarez Tavares perfila igual entendimento, ao decretar o descabimento de concurso de pessoas nos crimes omissivos, eis que só será autor de crime omissivo próprio quem está apto a agir em determinada situação típica ou, nos omissivos impróprios, quando tenha condições de afastar o perigo e uma vinculação especial para com a vítima17. Em sentido contrário é o entendimento de Cezar Bitencourt e Rogério Greco, ante a possibilidade, ventilada pelos autores, de divisão de trabalho na coautoria em crime omissivo, quando duas pessoas igualmente obrigadas, deixem, de comum acordo, de realizar a ação mandada18. Da mesma forma vislumbram a possibilidade de participação por meio da instigação para que o autor deixe de fazer aquilo a que está obrigado por lei19. Assim, poderia o sujeito figurar como partícipe em crime omissivo toda vez que não ostentasse as qualidades necessárias para figurar como autor direto, e sem possuir o domínio final do fato.
 Relativamente ao descabimento de tentativa no delito em exame, reportamo-nos ao quanto já foi dito antes, nos comentários ao art. 228. Os limites de pena estabelecidos para ambas as figuras também as sujeitam ao rito especial dos Juizados Especiais Criminais.
 3.3. Privação ilegal da liberdade de criança ou adolescente
 Art. 230. Privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à sua apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da autoridade judiciária competente:
 Pena - detenção de seis meses a dois anos.
 Parágrafo único. Incide na mesma pena aquele que procede à apreensão sem observância das formalidades legais.
 O ECA parte, neste dispositivo, para a tutela da liberdade do adolescente, direito fundamental de qualquer pessoa, previsto na cláusula pétrea do caput e inciso LXI do art. 5º da CF, sancionando sua apreensão fora das hipóteses previstas no art. 10620. Note-se que a criança não deveria figurar como sujeito passivo do crime, na medida em que não pode, em hipótese alguma, ser apreendida, nem pela prática de ato infracional, tampouco por ordem de autoridade judiciária, condutas legais ao que sugere, a contrario sensu, o tipo. Veja-se o art. 105, que a sujeita apenas às medidas protetivas do art. 101, incumbindo ao conselho tutelar o seu atendimento, nos termos do art. 136, I. Assim, parece-nos que a privação de liberdade de criança configurará crime comum, previsto no art. 148, § 1º, IV, do diploma repressivo e não o delito em exame. Por outro lado, inexistindo privação de liberdade, como no caso em que a criança seja
retirada de sala de aula e repreendida em público, pode restar caracterizado o delito do art. 232 do Estatuto.
 A doutrina costuma classificá-lo como crime comum21, embora seja forçoso concluir que a presença das condicionantes típicas da figura ora em comento, reunindo, portanto, os elementos de convicção necessários para conferir justa causa à ação penal só se dará caso o agente realize a “apreensão” ilegal do adolescente, o que só nos parece possível por parte daquele que possa, a contrario sensu, realizar sua apreensão legal, a saber, quem detenha a qualidade de agente da autoridade pública22. Do contrário, insistimos em que, assim como acontece com a privação de liberdade de criança, neste caso qualquer que seja a situação, a apreensão de adolescente, quando inexistente o flagrante de ato infracional ou a ordem escrita da autoridade competente, por quem não detenha a qualidade exigida pelo tipo, configurará o crime de sequestro ou cárcere privado.
 No conflito aparente entre a norma do art. 230 e as infrações penais previstas na Lei n. 4.898/65, que trata dos crimes de abuso de autoridade, em especial a alínea a dos arts. 3º e 4º, parece claro que, aplicado o princípio da especialidade, prevalece a norma estatutária23, que contém todos os elementos da norma geral, mais alguns, denominados especializantes, sendo, portanto, hierarquicamente superior a esta. Não se trata de revogação, como sustentam alguns autores24, na medida em que a norma geral continua em vigor para regular todas as demais condutas delituosas não previstas na norma especial. A questão circunscreve-se à interpretação e aplicação da lei penal, quando várias leis apresentam-se aparentemente aplicáveis (normas deslocadas), porém só uma (norma primária) tem real incidência no caso concreto. Os princípios norteadores do concurso aparente de tipos servem então para indicar qual norma penal esgota o total conteúdo de injusto da conduta. Seu fundamento reside no princípio ne bis in idem, que veda punição dupla de um mesmo fato.
 A primeira conduta típica está aqui representada pelo verbo privar, que consiste em tolher a liberdade do adolescente por meio de atividade comissiva. A consumação se dará com a apreensão por tempo relevante e persiste enquanto o menor não recupere sua liberdade, sendo por isso considerado crime permanente. Já o parágrafo único do art. 230 enuncia modalidade típica omissiva, consistente em apreender o adolescente sem observar as formalidades legais enunciadas nos arts. 106, parágrafo único, 171, 172, 173, 174, 175, 176 e 178, cujo desatendimento implicará a realização da conduta criminalizada. Ambas são figuras dolosas, não havendo previsão culposa para o delito em exame. A tentativa é admissível apenas na modalidade comissiva, pelos motivos antes expostos nos comentários ao art. 22825. O rito a ser observado é também aqui o do Juizado Especial Criminal.
 3.4. Omissão da comunicação de apreensão de criança ou adolescente
 Art. 231. Deixar a autoridade policial responsável pela apreensão de criança ou adolescente de fazer imediata comunicação à autoridade judiciária competente e à família do apreendido ou à pessoa por ele indicada:
 Pena - detenção de seis meses a dois anos.
 Aqui, ao contrário do dispositivo anterior, a condição de autoridade é expressa na estrutura típica, tratando-se inequivocamente de crime próprio, imputável apenas a quem tenha sido responsável pela apreensão do adolescente. Relativamente à criança, valem aqui as observações feitas ao art. 230, posto que incumbe ao conselho tutelar seu atendimento nos casos em que pratique fato análogo a crime, não podendo ser objeto de apreensão.
 A comunicação à autoridade judiciária e à família26 ou pessoa indicada pelo menor devem ser imediatas, seja de forma pessoal, por meio escrito, telefônico ou qualquer outro equivalente, tanto na hipótese de apreensão por força de ordem judicial27 ou no caso de flagrante de ato infracional, como se conclui pela leitura dos arts. 106 e 107 da lei. O dispositivo tem arrimo ainda nos arts. 15 e 16 do Estatuto e no inciso LXII do art. 5º da CF, que prescreve a obrigação de comunicação imediata da prisão de qualquer pessoa, o que inclui, com muito mais razão, a do adolescente apreendido.
 A aparente incidência do art. 4º, c, da Lei n. 4.898/65 fica aqui afastada pela aplicação do princípio da especialidade, enunciado nos comentários ao artigo precedente, prevalecendo o tipo penal do Estatuto quando a omissão de comunicação verse sobre a apreensão de adolescente.
 Sendo conduta meramente omissiva não comporta tentativa. Também não se previu modalidade culposa para o delito. O delito está, como os antecedentes, igualmente submetido ao rito especial dos Juizados Especiais Criminais.
 3.5. Submissão de criança ou adolescente a vexame ou constrangimento
 Art. 232. Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento:
 Pena - detenção de seis meses a dois anos.
 Trata-se uma vez mais de crime próprio, imputável a quem tenha a criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância, podendo ser os pais, tutores, curadores, guardiões, ou aqueles incumbidos da vigilância e cuidado provisório do menor, a exemplo das babás, educadores e agentes de segurança.
 Interessante discussão diz respeito à possibilidade de concurso de agentes em crime próprio. A princípio, nada impede que concorram para a infração penal terceiras pessoas, não dotadas das qualidades exigidas pelo tipo penal, desde que conhecedoras desta especial circunstância, sob pena de responsabilização a título meramente objetivo. Admite-se, assim, a coautoria, entendida pela contribuição a um projeto delituoso comum, por parte de terceiro que, tendo igual domínio final do fato, pratique parcela da conduta incriminada, sujeitando a vítima a vexame ou constrangimento28. Idêntico raciocínio se emprega para admitir a participação em crime próprio, seja por instigação ou cumplicidade, ao fundamento de que tais circunstâncias pessoais, conquanto sejam em regra incomunicáveis, aqui alcançam o coautor ou partícipe, para sujeitá-lo ao mesmo delito de seu comparsa, porque se constituem em elementares para tais crimes (art. 30 do CP). Relativamente à autoria mediata, igualmente possível será a sua caracterização naqueles casos em que o autor mediato detenha as qualidades demandadas pelo tipo penal, na medida em que os pressupostos para a punibilidade do fato devem encontrar-se no “homem de trás” e não no executor, que aqui atua na condição de mero instrumento do crime, subordinado ao mandante por força de erro, de coação irresistível, de sua qualidade de inimputável ou ainda quando tenha sua conduta amparada por excludente de ilicitude29.
 O verbo nuclear do tipo, “submeter”, traduz-se na sujeição ou subordinação da vítima a vexame ou constrangimento, com afetação de sua honra objetiva, objeto de especial tutela pelos arts. 4º, 15, 17 e 18 do Estatuto30. Ditos elementos normativos “vexame” e “constrangimento”, inseridos no tipo penal, revelam-se, respectivamente, na humilhação ou coação de qualquer ordem a que se sujeite o infantoadolescente. Sendo tipo de ação livre, pode ser praticado com emprego de violência, grave ameaça ou por qualquer outra forma que conduza aos resultados materiais exigidos pelo tipo. Cite-se, como exemplo, a identificação datiloscópica de adolescente infrator que possua documento civil, vedada pelo art. 109 da lei, ou sua condução em compartimento fechado de veículo policial, com violação do art. 178, ou ainda o despropositado castigo e admoestação verbal feitos pelo professor contra um de seus alunos.
 Além dos tipos penais dos arts. 146 do Código Penal e 4º, b, da Lei n. 4.898/65, aqui afastados pela incidência do princípio da especialidade, mesmo que praticado este último por quem ostente a
qualidade de autoridade, nos termos do art. 5º daquele diploma, poder-se-ia pensar na incidência da figura do art. 136 do Código Penal nos casos em que o menor sofresse vexame ou constrangimento por força da privação de alimentos ou cuidados, ou por ser submetido a trabalho excessivo ou inadequado, ou ainda por sofrer abuso nos meios de correção e disciplina. Além de versar sobre objeto jurídico diverso, a saber, a periclitação da vida e saúde, o delito previsto no diploma repressivo exige que o agente atue com o especial fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, ao contrário do crime estatutário, que tem sua tipicidade subjetiva composta unicamente pelo dolo de causar à vítima vexame ou constrangimento31. Assim, parece-nos que aquele que submeta criança ou adolescente a vexame ou constrangimento, ausente o especial fim de agir exigido pelo crime do Código Penal, incorrerá no tipo penal do ECA, podendo-se-lhe imputar, em concurso formal32, as lesões graves ou morte que cause à vítima, posto que não há neste dispositivo previsão de figura qualificada para quando ocorram tais resultados.
 Trata-se de crime material e instantâneo, consumado quando se verifique a ocorrência de vexame ou constrangimento33. Sendo plurissubsistente, admite o fracionamento de seu processo executório e, portanto, a possibilidade de tentativa.
 Os limites de pena estabelecidos submetem o delito ao rito especial dos Juizados Especiais Criminais.
 3.6. Tortura
 Art. 233. (Revogado pela Lei n. 9.455, de 7-4-1997.)
 A Lei n. 9.455/97 dispõe:
 Art. 1º Constitui crime de tortura:
 I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
 a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
 b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
 c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
 II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
 Pena - reclusão, de dois a oito anos.
 § 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita à medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.
 § 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.
 § 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.
 § 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:
 I - se o crime é cometido por agente público;
 II - se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos; (Redação dada pela Lei n. 10.741/2003)
 III - se o crime é cometido mediante sequestro.
 § 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.
 § 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.
 § 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.
 O dispositivo previsto no Estatuto foi inteiramente revogado pelo art. 4º da Lei n. 9.455/97, ficando a cargo do art. 1º daquela lei especial regular todas as manifestações de tortura, como forma de afetação da integridade física e psíquica da vítima. Vê-se, desde logo, que, relativamente à criança e ao adolescente, as condutas delituosas contra elas praticadas, previstas nos incisos I e II do art. 1º da lei, sofrerão aumento de pena, que variará de 1/6 a 1/3, em razão desta especial condição da vítima, nos termos do inciso II do § 4º do mesmo dispositivo, que prevê, ainda, duas outras causas de aumento de pena para quando o crime seja praticado por aqueles que, nos termos do art. 327 do Código Penal, ostentem a qualidade de funcionário público (inciso I), para os quais se aplicam os efeitos da condenação previstos no § 5º, e, ainda, quando o crime seja cometido mediante sequestro (inciso III). A pena então, no que se trate de crime contra criança ou adolescente, variará, no tipo base, entre um mínimo de 2 anos e 4 meses e um máximo de 10 anos e 8 meses34.
 Note-se, ainda, que o § 3º do mesmo art. 1º enuncia as formas qualificadas do crime para quando decorra lesão grave, gravíssima ou morte da vítima, estabelecendo a pena de 4 a 10 anos para os casos em que derive para a vítima qualquer dos resultados dos §§ 1º e 2º do art. 129 do Código Penal e pena de 8 a 16 anos para quando lhe advenha a morte. Assim, estando o agente incurso na figura qualificada de tortura, partindo-se dos limites de pena estabelecidos para o tipo derivado, ainda assim incidirá, na terceira etapa da dosimetria, caso se vitimize criança ou adolescente, a causa de aumento prevista no aludido § 4º, II, também aqui aumentando de 1/6 a 1/3 a pena previamente cominada35. Neste contexto, a pena pelo crime de tortura qualificado pela lesão grave ou gravíssima da vítima criança ou adolescente variará entre 4 anos e 8 meses a 13 anos e 4 meses, ficando a figura qualificada pelo resultado morte entre 9 anos e 4 meses a 21 anos e 4 meses36.
 Quer parecer-nos que o dispositivo supra retrate modalidade preterdolosa do crime, quando tenha o agente obrado com dolo na conduta antecedente de tortura, dela derivando, por culpa, qualquer dos resultados de lesão grave, gravíssima ou morte. Em sendo tais resultados qualificados derivados de dolo, direto ou eventual, deve o agente responder por eles em concurso formal impróprio com as figuras dos incisos I ou II em que esteja incurso, nos termos do art. 70, 2ª parte, do Código Penal. Note-se que a pluralidade de desígnios que conduz aqui ao cúmulo material de penas em nada se confunde com a pluralidade de condutas das quais decorre o concurso material, hipótese diversa, embora o sistema de aplicação de penas seja o mesmo em ambos os casos de concurso de crimes37. Outra não pode ser a conclusão, sob pena de se conceber que o legislador, em grave ofensa ao princípio da proporcionalidade, tenha aqui incriminado aquele que quis a tortura e também o resultado morte com pena menor do que aquela cominada a quem, sem causar grave sofrimento físico ou moral à vítima, com afetação de sua dignidade humana, ceifou-lhe diretamente a vida.
 Questão tormentosa diz respeito à alegação de abolitio criminis relativamente ao tipo estatutário revogado. Isso porque a edição de lei nova que retire a ilicitude da conduta antes incriminada, ao se presumir mais justa, deve retroagir para eliminar todos os efeitos penais da condenação, nos termos do art. 5º, XL, da CF e arts. 2º, caput, e 107, III, do Código Penal, subsistindo, porém, os efeitos extrapenais, já que o Estado não pode abdicar de direito que não lhe pertence, como é o caso da reparação civil (art. 91, I, do CP). A hipótese aqui tratada não é, a toda evidência, essa. Lei nova, no escopo de assegurar cláusula pétrea insculpida no inciso III do art. 5º da CF, regulou inteiramente a matéria, dando à conduta incriminada, em atenção ao inciso XLIII do art. 5º da CF, tratamento equiparado ao autor de crime hediondo, nos termos do art. 2º, I e II, da Lei n. 8.072/90, reproduzido nos §§ 6º e 7º do art. 1º da Lei n. 9.455/97, que lhe vedam a concessão de fiança38, graça39 e anistia, bem como o cumprimento da pena em regime inicialmente fechado. Neste contexto, o que se verifica é mera sucessão de leis no tempo, passando a conduta revogada a outro dispositivo legal, num fenômeno de continuidade normativa típica40.
A questão aqui é que, fazendo incidir a regra do art. 4º do Código Penal, dúvida não há de que estará sujeito à lei nova aquele que tenha praticado a conduta incriminada já ao tempo de vigência da Lei n. 9.455/97. Questão mais complexa, porém, se revela para aqueles que praticaram o delito ainda sob a égide do art. 233 do ECA. Como regra, já dissemos, a lei deve aplicar-se aos fatos ocorridos durante a sua vigência, por obediência ao princípio tempus regit actum. A regra da irretroatividade da lei mais gravosa (lex gravior) é decorrência dos princípios da culpabilidade, eis que, se a punição funda-se na prática de fato reprovável, não é culpável aquele que pratica fato não proibido por lei, já que o desvalor recai não sobre o agente ou suas qualidades (direito penal do autor), mas em conduta reprovável por ele praticada, dolosa ou culposa (direito penal do fato), e também da reserva legal, este último insculpido no art. 1º do Código Penal e com assento constitucional no art. 5º, XXXIX e XL, sem o qual não haveria estabilidade nas relações sociais e segurança dos direitos individuais41. No campo do direito punitivo, de outro lado, a lei mais benéfica (lex mitior) pode ser aplicada a fato ocorrido antes de sua vigência (retroatividade) ou após a sua revogação (ultra-atividade), tendo o que se chama de extra-atividade, tudo justificado pela tentativa de aplicar ao fato a lei mais justa e adequada aos reclamos sociais.
 Concluindo, parece-nos que terão direito à aplicação da lei nova, especificamente, aqueles sujeitos que tenham praticado o delito do art. 233, § 3º, do ECA, já que a figura qualificada do crime de tortura com resultado morte passou, pela lei nova, a receber tratamento mais benéfico, com imposição de pena de nove anos e quatro meses a vinte e um anos e quatro meses, em se tratando de criança e adolescente, por força da incidência de causa de aumento de pena a que nos referimos acima. O dispositivo revogado, de seu turno, sujeitava o infrator à pena mais grave, de 15 a 30 anos de reclusão. Todas as demais figuras típicas eram tratadas de forma mais benéfica pelo dispositivo revogado, inclusive a tortura qualificada pela lesão gravíssima, posto que o limite de pena, que era de 4 a 12 anos, passou, no dispositivo em vigor, para 4 a 10 anos42. Não se pode esquecer, porém, que sobre tais limites de pena ainda incidirá a causa de aumento, o que deixará a pena não inferior a 4 anos e 8 meses, podendo chegar a 13 anos e 4 meses, mais gravosa, portanto, ao réu, que o modelo típico anterior, que, por isso, tem ele o direito de ver aplicado no caso concreto. A competência para aplicá-la será do juiz da causa, estando o processo em andamento, ou do juiz de execução penal nos processos findos, a teor do art. 66, I, da LEP e Súmula 611 do STF. Havendo, porém, necessidade de reexame de mérito, sua aplicação caberá ao Tribunal Competente para a revisão criminal43.
 Passando ao exame do tipo penal em vigor, temos que se trata de tipo misto, composto de dois verbos nucleares: constranger e submeter. Constranger significa coagir, forçar, enquanto submeter tem o sentido de sujeitar, dominar. Em ambas as modalidades típicas o crime é material, exigindo, para a sua consumação, que derive para a vítima intenso sofrimento físico ou mental44. A materialização de ambos os modelos típicos pode se dar por meio de violência ou grave ameaça, levando assim ao resultado de sofrimento.
 Relativamente à figura do inciso I, que é crime comum45, podendo ser praticado por qualquer pessoa, o constrangimento da vítima, seja por meio de violência ou grave ameaça, causando-lhe daí grave sofrimento físico ou mental, deve ser realizado visando ao atingimento de uma das especiais finalidades elencadas nas alíneas a ou b daquele inciso ou ainda motivado pela razão elencada na alínea c do mesmo dispositivo. Assim, a coação exercida sobre a vítima deve estar orientada ou pelo fim de obter dela informação, declaração ou confissão, ou, ainda, com o fim de provocá-la à prática de conduta criminosa, seja por ação ou omissão. Não visando o agente qualquer desses objetivos, deverá demonstrar-se que agiu em razão de discriminação racial ou religiosa46, sendo esta não a finalidade com que atua o agente, mas antes, o motivo que o impulsiona, tratando-se, portanto, de questão relativa à culpabilidade do agente, a revelar a maior reprovabilidade de seu atuar, e não de elemento subjetivo distinto do dolo47.
 A figura do inciso II do art. 1º exige que o agente tenha a vítima sob sua guarda, poder ou autoridade, tratando-se, por isso, de crime próprio, praticável apenas por quem tenha a vítima sob seu poder hierárquico por qualquer dos motivos acima, a exemplo do que ocorre com o delito do art. 232 do ECA. Exige-se aqui que o agente atue com o especial fim de aplicar à vítima castigo pessoal ou medida de caráter preventivo48. Esta deve ser a orientação de ânimo com que atua o sujeito para que se veja incurso no dispositivo em exame49. Trata-se, portanto, como no inciso I, de um tipo incongruente, posto que a parte subjetiva, que informa o atuar do agente, não se esgota na prática da conduta descrita no tipo, eis que a finalidade, embora narrada no tipo, não se concretiza em atos no mundo exterior50. Em sua oposição, temos os chamados tipos congruentes, quando a vontade se exaure na realização objetiva do tipo. São os tipos penais cuja tipicidade subjetiva se limita ao dolo. Nestes, os aspectos subjetivo e objetivo estão superpostos, já que o dolo coincide com a descrição objetiva do tipo, enquanto naqueles não há esta coincidência, em razão da presença de elementos subjetivos especiais, que estão presentes no psiquismo do agente, mas não se materializam51.
 Finalmente, impende ainda ressaltar a existência, no § 1º, de crime comissivo próprio, praticado por aquele que, tendo a vítima sob sua autoridade por força de prisão ou medida de segurança, a sujeita à realização de ato não previsto em lei, do qual lhe derive grave sofrimento físico ou mental, atentando assim contra o direito fundamental do inciso XLIX do art. 5º da CF, que tem todo preso ao respeito à sua integridade física e moral. Incidindo aqui o princípio da consunção, relativo ao conflito aparente de normas, parece não restar dúvida da absorção, por esta, das figuras previstas nos arts. 3º, i, e 4º, b, da Lei n. 4.898/65. Da mesma forma, sendo esta figura, bem como aquela outra do inciso II, construída com sujeito ativo próprio, pareceria bis in idem poder aqui incidir a causa de aumento de pena prevista no § 4º, I, já que somente o agente público pode figurar como autor de tais crimes.
 Trata-se, todos, de delitos dolosos, comissivos, materiais e plurissubsistentes, comportando por isso a modalidade tentada, quando, iniciada a execução de uma das condutas típicas, não logre o agente alcançar o resultado por ela exigido, a saber, a causação de intenso sofrimento físico ou mental à sua vítima.
 No § 2º encontra-se tipificada a conduta do suposto garantidor, que, tendo o dever de evitar ou apurar a conduta delituosa, omite-se, incorrendo assim na pena mais branda de detenção de um a quatro anos. Sua incriminação encontra respaldo na parte final do dispositivo constitucional do art. 5º, XLIII, que trata dos crimes hediondos e assemelhados, determinando a punição dos seus mandantes, executores e dos que, podendo evitá-lo, tenham se omitido. Ainda que se reconheça a relevância de cláusula pétrea no tratamento da questão, tal assertiva era de todo dispensável. A regra geral do art. 29 do Código Penal já determina que todo aquele que colabora para o crime seja por ele responsabilizado, na medida de sua culpabilidade. A tal previsão legal já se encontram subordinadas todas as formas de autoria (direta, mediata, colateral e coautoria) e de participação (por instigação ou cumplicidade), abarcando, portanto, a pretensa punição do que chamou o constituinte de mandantes e executores do crime.
 Relativamente
aos que podiam evitar o crime e não o fizeram, sua responsabilidade, a título comissivo por omissão, já está expressa em outro dispositivo do Código Penal, a saber, o do art. 13, § 2º. Estes delitos, que são delitos de resultado, como o de tortura ora examinado, são atribuíveis apenas ao omitente que possua o dever jurídico de evitá-los. Não possuem uma tipologia própria, inserindo-se na tipificação comum dos delitos de resultado, o que implica a admissão da tentativa quando o agente devia, mas não agiu para impedir o resultado, que acaba não ocorrendo por fatores alheios à sua vontade. Assim, por trás de todo tipo ativo existiria um tipo omissivo impróprio não escrito, não sendo possível apenas naqueles tipos cuja ação típica exija, necessariamente, um comportamento ativo, como na bigamia, sendo o fechamento deste tipo aberto operado pelo juiz, ao fazer incidir a norma que disciplina a posição de garante. São delitos, portanto, em que a obrigação do agente é mais do que agir, como os delitos de dever, mas agir para impedir o resultado, sendo assim normas de dever de segundo grau. Enquanto a norma proibitiva, que configura os delitos de ação, é dirigida a qualquer pessoa que possa ser sujeito ativo do crime, estas normas de mandado de segundo grau são dirigidas apenas a quem tenha uma especial relação de proteção com o bem jurídico tutelado, devendo impedir que quaisquer processos causais lhe ocasionem dano. Sua essência não está, portanto, na violação de uma proibição, como nos crimes comissivos, mas de um comando, situado paralelamente a esta norma proibitiva nos tipos de ação. A conduta comissiva prevista no tipo é praticada na forma omissiva pelo agente. Decorrem, portanto, de um dever especial de proteção.
 Queremos assim dizer que poderia o legislador infraconstitucional ter omitido o § 2º caso pretendesse, seguindo a regra, punir o garantidor com a mesma pena do executor material do crime, a saber, aquele que realize qualquer das condutas típicas dos incisos I, II ou § 1º do art. 1º da Lei n. 9.455/97. Da forma como foi redigido, o dispositivo versa sobre mero crime omissivo próprio52, na sua forma dolosa, que, sendo como deve ser, de mera conduta, possui sanção menor do que aquela imposta a quem, por ação (crime comissivo) ou omissão imprópria (crime comissivo por omissão), dá causa ou não evita o resultado material. Assim sendo, não obstante seja crime próprio, atribuível a quem tenha por lei obrigação de evitar ou apurar a conduta delituosa, seus reduzidos limites de pena podem levar à eventual aplicação dos benefícios de suspensão condicional da pena (art. 77 do CP) ou de suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei n. 9.099/95), ante o silêncio do preceito constitucional, e a expressa ressalva a esta modalidade delituosa, feita pelo § 7º da lei, no que tange ao cumprimento da pena em regime inicialmente fechado53. A questão da progressão de regime para condenados por crimes hediondos e assemelhados, inicialmente vedada, veio a ser alterada pela edição da Lei n. 11.464/2007, que modificou a redação do art. 2º para suprimir a vedação à liberdade provisória, antes contida no inciso II, incluindo nos §§ 1º e 2º a possibilidade expressa de progressão de regime, que, no caso dos crimes hediondos e assemelhados dar-se-á após o cumprimento de 2/5 da pena no caso de réu primário e 3/5 para os reincidentes.
 A condenação pelo crime de tortura gerará ainda, como efeito secundário e automático, ao contrário do que ocorre com as hipóteses do art. 92 do Código Penal, que dependem de declarada motivação na sentença, a perda do cargo, função ou emprego público54, assim como a interdição para o seu exercício pelo dobro do prazo de pena aplicada. Assim, embora seus destinatários preferenciais sejam os condenados que tenham cometido o crime ostentando a qualidade de funcionário público, serão também alcançados pelo dispositivo todos os demais condenados pelo crime, que ficarão proibidos de acessar o serviço público pelo dobro do tempo de pena cominada55.
 Pelo art. 2º ficam instituídas duas causas de extraterritorialidade incondicionada da lei brasileira, em adição às hipóteses do art. 7º, I, do Código Penal. Assim, sendo a vítima de tortura o cidadão brasileiro, pelo princípio da defesa, real ou da proteção, aplicar-se-á a lei nacional, independente do concurso de quaisquer condições. Da mesma forma, por força do princípio da competência universal ou justiça cosmopolita, incidirá a lei brasileira caso o autor de crime de tortura ingresse em nosso território, qualquer que tenha sido o local do crime ou a nacionalidade dos envolvidos56.
 3.7. Omissão na liberação de criança ou adolescente ilegalmente apreendido
 Art. 234. Deixar a autoridade competente, sem justa causa, de ordenar a imediata liberação de criança ou adolescente, tão logo tenha conhecimento da ilegalidade da apreensão:
 Pena - detenção de seis meses a dois anos.
 Prossegue o ECA tratando dos crimes que violam a liberdade física da criança ou adolescente, cuja proteção constitucional do art. 5º, caput, LXI e LXV, se estende aos dispositivos do ECA, como se vê dos arts. 15 e 16, que tratam de alguns de seus direitos fundamentais. Voltamos ao ponto do que nos pareceu uma falha legislativa na redação dos arts. 230 e 231, com a inclusão da criança como sujeito passivo daqueles crimes, na medida em que, não respondendo pela prática de ato infracional, nos termos do art. 105 da lei, não poderia, em hipótese alguma, ser apreendida. Embora se pudesse pensar ter o legislador incorrido aqui em idêntico vício, parece-nos que há explicação para o tipo penal em exame. É que se supõe plausível imaginar que, estando o adolescente apreendido ilegalmente por força de uma das condutas insculpidas no art. 230, deverá a autoridade competente ordenar sua imediata liberação. Da mesma maneira, ante a absoluta ilegalidade na apreensão de criança, seja naquela hipótese do art. 230 ou em qualquer outra, deverá a autoridade, ao tomar conhecimento do fato, também ordenar sua soltura. Em ambos os casos, assim não agindo, ficará sujeita às penas previstas para a modalidade típica do art. 234.
 Trata-se de crime próprio, praticável apenas por quem detenha a autoridade para ordenar a soltura da vítima. Poder-se-ia pensar em excluir o membro do Ministério Público do rol de possíveis autores do crime, pela ausência, no rol das atribuições que lhe foram outorgadas pelo art. 201 da lei, de previsão para a prática de ato desta natureza. Figurariam, portanto, como autores do crime, em primeiro lugar, por força do art. 146, a autoridade judiciária, quando recebesse comunicação de apreensão ilegal (art. 107), assim como a autoridade policial, no caso de adolescente apreendido ilegalmente (art. 172).
 Parece, porém, um contrassenso imaginar que o membro do Ministério Público decida pelo arquivamento dos autos ou concessão da remissão e tenha que aguardar por uma deliberação judicial para que o adolescente reconquiste sua liberdade. Faltando justa causa para o oferecimento de representação, o que mais estaria a justificar a privação de liberdade do adolescente57? Nessa linha de raciocínio, imperioso atribuir ao membro do Ministério Público não a possibilidade, mas o dever de ordenar a liberação do adolescente em tais casos. Assim não agindo, realiza a conduta típica em exame, incluindo-se, portanto, no rol dos sujeitos ativos do crime58.
 De toda sorte, sendo o crime doloso, necessária se faz a prova de que a autoridade conhecia a ilegalidade da prisão, tendo assim o agente plena representação dos elementos configuradores do tipo de injusto. Do contrário, incorrerá em erro de tipo, excludente do dolo. Ainda que se trate de erro vencível (art. 20, caput, do CP), forçosa será a decretação de atipicidade do fato, ante a ausência de previsão para a modalidade culposa do fato.
 Ademais, o tipo penal encerra ainda um elemento normativo, representado pela
expressão “sem justa causa”, demandando a demonstração de que, mesmo ciente da ilegalidade, o agente não procedeu à liberação quando podia fazê-lo. Trata-se de elemento normativo referido à noção de ilicitude, que, porém, aqui inserido, conduz à atipicidade do fato naqueles casos em que, a despeito da ilegalidade da apreensão, a falta de liberação tenha amparo em causa justa59.
 Pelo princípio da especialidade, o crime do ECA prevalece sobre aquele outro do art. 4º, d, da Lei n. 4.898/65, como já tivemos oportunidade de frisar nos comentários ao art. 230.
 Sendo o tipo penal construído com verbo omissivo, valem aqui as mesmas observações já feitas ao art. 228, quanto à inadmissibilidade de tentativa. Voltamos também ao rito especial do Juizado Especial Criminal por força dos limites de pena fixados para o crime.
 3.8. Descumprimento injustificado de prazo legal
 Art. 235. Descumprir, injustificadamente, prazo fixado nesta Lei em benefício de adolescente privado de liberdade:
 Pena - detenção de seis meses a dois anos.
 Os prazos de que trata o ECA são: 1) internação provisória por 45 dias (arts. 108 e 183); 2) reavaliação da internação a cada 6 meses (art. 121, § 2º); 3) período máximo de internação de 3 anos (art. 121, § 3º); 4) liberação compulsória aos 21 anos (art. 121, § 5º); 5) internação pelo prazo máximo de 3 meses por descumprimento de outra das medidas do art. 112 (art. 122, § 1º); 6) apresentação do adolescente apreendido ao membro do Ministério Público no prazo de 24 horas (art. 175, §§ 1º e 2º); 7) transferência de adolescente provisoriamente internado em repartição policial para entidade de atendimento no prazo máximo de 5 dias (art. 185, § 2º)60.
 Considerando assim a natureza dos prazos estipulados em benefício do adolescente privado de sua liberdade por força de medida de internação, nos moldes dos arts. 121 e seguintes do ECA, parece-nos, uma vez mais, que, sendo crime próprio, só poderão figurar como sujeitos ativos aquelas autoridades incumbidas de zelar pelo cumprimento de tais prazos61, o que não parece incluir o membro do Ministério Público62, que, verificando a violação a qualquer dos dispositivos acima, deveria provocar a autoridade competente a tomar as medidas cabíveis para sanar o vício, bem como, entendendo reunidos indícios mínimos da prática da conduta em exame por uma das autoridades obrigadas, encaminhar peças ao órgão de execução com atribuição para a investigação penal, para os fins referidos nos comentários ao art. 227. Note-se, entretanto, que o promotor de justiça da Infância e Juventude está sujeito a um prazo específico, que é aquele do art. 178, quando deva proceder à oitiva informal do adolescente apreendido no mesmo dia em que este lhe for apresentado. Assim, apenas no descumprimento injustificado deste prazo, parece-nos que o membro do Ministério Público poderá figurar como autor do delito.
 Oportuno aqui lembrar que, assim como acontece com a autoridade judiciária, também o membro do Ministério Público goza de foro por prerrogativa de função, nos termos do art. 96, III, da CF, só podendo ser processados perante o Tribunal de Justiça, o que torna o Procurador-Geral de Justiça o promotor natural para o oferecimento de denúncia contra tais agentes. Neste contexto, denúncias por este crime ou aquele do artigo antecedente só poderão ser oferecidas em primeira instância quando o sujeito ativo for delegado de polícia.
 O verbo típico “descumprir” se expressa pela conduta do sujeito que não obedece ao prazo fixado em lei. Mas não basta o descumprimento de qualquer prazo. É necessário, em obediência ao princípio da legalidade, que o agente descumpra prazo fixado em benefício do adolescente. Ademais, novamente inserido no tipo o elemento normativo representado pela expressão injustamente, impõe-se reconhecer que a conduta só encontrará plena tipicidade quando o descumprimento do prazo não encontrar motivação plausível.
 Trata-se de crime doloso, omissivo63 e, portanto, de mera conduta, além de unissubsistente, o que afasta a possibilidade de tentativa. Sujeita-se ao rito dos Juizados Especiais Criminais.
 3.9. Impedimento ou embaraço à ação de autoridades
 Art. 236. Impedir ou embaraçar a ação de autoridade judiciária, membro do Conselho Tutelar ou representante do Ministério Público no exercício de função prevista nesta Lei:
 Pena - detenção de seis meses a dois anos.
 Trata-se de crime contra a administração da justiça, na medida em que, realizada a conduta típica, pode restar obstaculizado o regular desenvolvimento das atividades da Justiça de Infância e da Juventude, voltadas à efetivação daqueles direitos insculpidos no art. 4º da lei. Trata-se de tipo penal misto alternativo, caso em que as condutas descritas apresentam-se fungíveis entre si, não afetando a unidade de delito a realização de mais de um verbo nuclear, aqui representados pelas ações de “impedir” e “embaraçar”, que têm o sentido de inviabilizar ou atrapalhar a ação da autoridade judiciária, representante do Ministério Público ou membro do conselho tutelar, que figuram como os sujeitos passivos materiais do crime, representantes do Estado que são64. No primeiro caso, o crime é material, posto que exige, para a sua consumação, que a ação reste obstaculizada pela conduta do sujeito ativo. Na segunda modalidade típica o crime é formal, pois basta para sua consumação que o agente crie qualquer dificuldade à ação das autoridades ou membro do conselho tutelar, ainda que ao final se logre realizar o ato pretendido. De toda sorte, a caracterização do crime depende de que estejam tais pessoas no exercício de função prevista no ECA, a saber, cumprindo qualquer das atribuições ou competências que lhes foram outorgadas pelos arts. 136, 148, 149 e 201 da lei.
 Parece-nos cabível o conatus, eis que, embora a tentativa de impedimento já configure a conduta alternativa de embaraço, é possível pensar no caso em que o agente tente atrapalhar a ação pretendida, mas não logre êxito em criar verdadeiro entrave. Estaria caracterizada, assim, a tentativa na segunda modalidade típica, salvo quando esta se dê por conduta omissiva, como no caso em que a inércia do agente cria embaraço ou empecilho à atuação dos sujeitos passivos, quando não se admitirá tentativa pela natureza da infração65.
 Sem previsão expressa de modalidade culposa, segue a regra do parágrafo único do art. 18 do CP, de punição apenas a título doloso. Como nos demais delitos sujeitos ao rito especial da Lei n. 9.099/95, o termo circunstanciado, contendo os dados qualificativos das partes, com indicação de testemunhas e a narrativa do fato será encaminhado ao Juizado Especial Criminal, onde será observado o rito dos arts. 72 e seguintes da Lei. Nestes casos, indo o autor do fato à presença da autoridade e assumindo o compromisso de comparecer aos demais atos do processo, não se imporá prisão em flagrante nem se exigirá fiança, nos termos do parágrafo único do art. 69 do mesmo diploma.
 3.10. Subtração de criança ou adolescente
 Art. 237. Subtrair criança ou adolescente ao poder de quem o tem sob sua guarda em virtude de lei ou ordem judicial, com o fim de colocação em lar substituto:
 Pena - reclusão de dois a seis anos e multa.
 Versando sobre a regular organização da família, natural ou substituta66, e a preservação dos direitos inerentes ao poder familiar, tutela, curatela e guarda, trata-se de crime comum, que pode ser praticado por qualquer pessoa. A realização da conduta delituosa por parte dos pais, tutores, curadores ou guardiões depende de uma condição negativa, qual seja estarem os primeiros destituídos do poder familiar e os segundos privados da tutela, curatela ou guarda, na medida em que a criança ou adolescente deve ser retirada do poder de quem tenha a sua guarda, por lei, como é o caso dos pais, ou
por ordem judicial, como é o caso dos pais adotivos, tutores, curadores e guardiões, sendo estes os sujeitos passivos do crime, além dos próprios menores. Assim, forçoso é concluir pela inexistência do crime quando a vítima seja subtraída ao poder de quem detenha sua guarda de fato, pela ausência de tal hipótese do rol de situações típicas67.
 O núcleo do tipo está representado pelo verbo subtrair, que significa retirar a criança ou adolescente da esfera de vigilância do sujeito passivo. Sendo crime de ação livre, a retirada pode se dar por violência, grave ameaça ou qualquer outro meio. A figura, dolosa, vem acompanhada de especial fim de agir, a saber, a intenção de colocação em lar substituto. Tratando-se de finalidade interna transcendente68, dispensa materialização, porque presente apenas no psiquismo do autor, servindo de mera orientação ao seu atuar. Com isso, podemos afirmar ser este crime instantâneo, posto que a consumação ocorre sem a necessidade de uma contínua reiteração de atos executórios por parte do agente, bem como formal69, consumando-se com a mera subtração da vítima, desde que provado o escopo do agente de colocá-la em lar substituto. Ausente tal orientação de ânimo, adotado o princípio da subsidiariedade do conflito aparente de normas, poderá o agente estar incurso nas penas do delito do art. 249 do Código Penal. Sendo plurissubsistente, nada impede o conatus.
 Relativamente à conduta de retenção indevida do menor, quando deixe de ser entregue a quem legitimamente o reclame, a exemplo do pai, que recebe o filho para a visitação, deixando de restituí-lo à mãe, pensamos que a moldura típica adequada a tal conduta seja a do art. 248, 3ª figura, do Código Penal, e não este dispositivo ou aquele do art. 249 do Código Penal, posto que em ambos o verbo nuclear é subtrair, exigindo, assim, o arrebatamento do menor, conduta diversa, portanto, da que ora se analisa.
 Questão interessante é saber, pela similitude que guarda este crime com aquele do art. 249 do Código Penal, se teria o agente, também aqui, direito ao benefício do § 2º, nos casos de restituição voluntária da vítima, sem que tenha ela sofrido maus-tratos ou privações. A aplicação do perdão judicial ao delito do Estatuto não parece em tese possível, ante a redação do inciso IX do art. 107 do Código Penal, que exige expressa previsão legal para sua concessão. A hipótese, porém, é, em muito, semelhante àquela do Código de Trânsito Brasileiro (Lei n. 9.503/97), que deixou de conter previsão expressa de concessão de perdão judicial aos crimes de trânsito, por força do veto presidencial ao seu art. 300. Além das razões do veto, que mencionava a dispensabilidade do dispositivo ante a sua previsão no § 5º do art. 121 e § 8º do art. 129, delitos análogos aos do CTB, opinou a doutrina, majoritariamente70, pelo cabimento do instituto aos crimes de trânsito, também por força da norma do art. 291, caput, do CTB, que prevê a aplicação subsidiária do Código Penal àquela lei, o que permitiria, então, o recurso ao art. 107, IX, do diploma repressivo. O mesmo sucede aqui, por força do disposto no art. 226, que igualmente autoriza a remissão à parte geral do Código Penal, admitindo-se, por interpretação sistemática, o perdão judicial. Em se tratando de norma não incriminadora, esta nos parece ser a melhor solução.
 3.11. Promessa ou entrega de filho ou pupilo
 Art. 238. Prometer ou efetivar a entrega de filho ou pupilo a terceiro, mediante paga ou recompensa:
 Pena - reclusão de um a quatro anos e multa.
 Parágrafo único. Incide nas mesmas penas quem oferece ou efetiva a paga ou recompensa.
 Objetiva-se resguardar aqui o interesse estatal na regular organização da família, natural ou substituta. Para fins de cometimento do crime, discute-se se, além dos pais naturais ou tutores, claros destinatários da norma incriminadora, poderão figurar como sujeitos ativos também os pais adotivos e guardiões. Quanto aos pais adotivos, dúvida não parece surgir, posto que, aquele a quem adotam é, inequivocamente, seu filho, nos termos da condição exigida pelo tipo para a vítima do delito. Relativamente ao guardião é que parece haver alguma margem para discussão. Como bem acentua Alberto Silva Franco, ainda que a denominação “pupilo” esteja tradicionalmente ligada ao menor posto sob tutela, não se pode afastar o guardião da condição de sujeito ativo do crime, posto que a ele são transferidos, ainda que precariamente, alguns dos atributos do poder familiar, figurando, por isso, aquele judicialmente nomeado também como executor do crime71.
 Relativamente ao nascituro, tendo em conta que o delito pode ser praticado por meio de mera promessa de entrega do filho, nada obsta que figure como sujeito passivo, já que o Código Civil, em seu art. 2º, embora decrete que a personalidade começa com o nascimento com vida, trata logo de ressalvar os direitos do nascituro desde a concepção, como fazem, também, os arts. 124 a 126 do Código Penal, criminalizando o aborto.
 No parágrafo único consta expressa menção à realização da conduta típica também por aquele que ofereça ou efetive, ao pai, tutor ou guardião, a paga ou recompensa, sendo aqui crime comum, praticável por qualquer pessoa. Note-se que este terceiro será autor da conduta típica do parágrafo único e não mero partícipe da conduta do caput.
 Cuida-se de tipo penal misto, composto dos verbos “prometer”, “oferecer” e “efetivar”. Nos dois primeiros casos o crime é formal, bastando a oferta de recompensa pelo terceiro ou o compromisso de entrega futura pelo pai, tutor ou guardião, desde que feitos a pessoa determinada, num ato bilateral. A promessa ou oferta genérica não caracterizam o crime72. Já na terceira modalidade é material, consumando-se apenas quando o filho ou pupilo seja entregue pelo pai, tutor ou guardião ou a paga seja efetivada pelo terceiro. Exige-se, ainda, que o sujeito ativo da figura do caput tenha agido mediante o recebimento prévio de vantagem econômica (paga), ou tenha acordado recebê-la após a entrega da vítima (promessa de recompensa). Importante notar que tais hipóteses não caracterizam elementos subjetivos especiais do tipo, ou, noutros termos, o especial fim de agir com que atua o agente, orientando sua conduta, como ocorre em tipos penais como o de tortura e aquele do artigo precedente, sendo questão relativa à culpabilidade, reveladora do maior desvalor da conduta, exigindo-se, portanto, sua materialização no atuar típico. A ausência, por isso, de qualquer destas situações, faz desaparecer o crime, podendo a conduta restar, neste caso, subsumida aos arts. 133, 134 ou 245 do Código Penal.
 Aliás, este mesmo art. 245 enuncia, no § 1º, uma figura qualificada, sujeita a mesma pena de 1 a 4 anos para os casos em que o agente atue com fim de lucro ou o menor seja enviado ao exterior. Discordamos, porém, de que tenha ocorrido revogação tácita da primeira das figuras qualificadas do dispositivo previsto na legislação penal comum, agora regulada neste crime do Estatuto73. Isso porque, ausente a paga ou recompensa, estará afastado o delito do ECA, como dissemos linhas acima. Assim, a mera promessa de entrega de filho menor pode afigurar-se em conduta atípica, posto que não prevista nem mesmo nos tipos penais acima enumerados, ao passo que a entrega do filho (excluído o pupilo) a terceiro pode caracterizar o crime do caput do art. 245 (quando a entrega se dê a pessoa inidônea) ou o seu § 1º, quando o agente atue com o especial fim de lucro, que é coisa diversa de agir por paga ou mediante promessa de recompensa, que exige bilateralidade, ajuste entre duas pessoas. A atuação com fim de lucro, ainda que não obtida pelo agente, revela-se, ela sim, numa tendência interna transcendente, dispensando a sua materialização na conduta típica, como vimos enfatizando neste trabalho, razão pela qual se apresenta como situação diversa daquela tratada no Estatuto, implicando
a plena vigência desta figura prevista na legislação comum.
 Sendo as condutas de “prometer” a entrega do filho ou pupilo ou “oferecer” a recompensa realizadas verbalmente, não caberá tentativa, pela impossibilidade de fracionamento do processo executório. Do contrário, sendo a promessa ou oferta formulada por escrito, assim como no caso da entrega do filho ou pupilo, sendo condutas plurissubsistentes, nada impedirá o conatus, quando fator alheio à vontade do agente impedir o conhecimento da promessa ou oferta por terceiro ou a entrega do infante. Os limites de pena estabelecidos conduzem ao benefício da suspensão condicional do processo, previsto no art. 89 da Lei n. 9.099/95.
 3.12. Tráfico internacional de criança ou adolescente
 Art. 239. Promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro:
 Pena - reclusão de quatro a seis anos e multa.
 Parágrafo único. Se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude: (Incluído pela Lei n. 10.764, de 12.11.2003)
 Pena - reclusão, de 6 (seis) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.
 Pune-se, neste delito, a nefasta prática de tráfico internacional de criança ou adolescente74, sendo a adoção a medida legal cabível para a colocação de menor em família substituta estrangeira, nos termos do art. 31 do ECA. Trata-se de crime comum, podendo qualquer pessoa ser sujeito ativo, figurando a criança e adolescente no seu polo passivo. Os verbos são “promover” e “auxiliar”, revelando-se, no segundo, o desejo de incluir, como autor da conduta, aquele terceiro que tenha realizado atos acessórios, no escopo de facilitar o envio da vítima para o exterior. Trata-se, portanto, de participação alçada à conduta principal do tipo. Basta, portanto, que o agente realize qualquer ato tendente a viabilizar a remessa de criança ou adolescente para o exterior75. Tais condutas, de promoção ou auxílio, devem ser realizadas, ou com violação das formalidades dos arts. 39 e seguintes do ECA, ou ainda, numa segunda hipótese, quando se tenham cumprido as exigências legais, mas tenha o agente auxiliado a efetivação da adoção por estrangeiro visando lucro, a exemplo de cooptadores de casais estrangeiros que os traga ao Brasil, facilitando e agilizando a localização de criança para adoção e os procedimentos legais para o pedido, pleiteando depois pagamento de vantagem pecuniária76. Existindo tal figura típica nos moldes que aqui sustentamos, parece então clara a revogação77 do § 2º do art. 245 do Código Penal, que regula idêntico fato.
 Sendo crime de ação livre, podem a promoção ou auxílio se realizar por qualquer meio. Havendo, porém, o emprego de violência, grave ameaça ou fraude, incorre o agente na figura qualificada do crime, prevista no parágrafo único, sujeitando-se à pena que passa de 4 a 6 anos para 6 a 8 anos. O preceito secundário da figura qualificada é expresso em determinar que, no caso do emprego de violência física receba o agente também as penas a ela relativas, já que a violência moral está implícita na grave ameaça e que não leva ao cúmulo material de penas por ausência de previsão legal.
 Não se trata, como pode parecer, de concurso material de crimes, que exigiria a existência de duas condutas típicas diversas, das quais resultam duas infrações penais. O que se tem aqui é a violência usada como meio executório do crime, o que levaria, pelo princípio da consunção do conflito aparente de normas, à sua absorção pelo crime fim. Como o legislador excepcionou a regra de consunção, temos que, por uma só ação, o agente receberá a sanção penal correspondente a dois crimes, o que equivale ao concurso formal de infrações (art. 70 do CP). No concurso formal próprio (art. 70, 1ª parte, do CP), porém, o agente causa um segundo resultado a título de culpa, razão pela qual se impõe a ele apenas uma das penas, aumentada de um sexto à metade. Também não é o que ordena o legislador aqui. Resta-nos então o concurso formal impróprio (art. 70, 2ª parte, do CP), caso em que todos os resultados são queridos pelo agente, pois resultam de desígnios autônomos, o que justifica a aplicação cumulativa das penas. Também não é esta a hipótese aqui, já que a violência não era querida autonomamente pelo agente, que a utilizou como mero meio executório do crime. Concluímos, por isso, que a determinação contida no preceito sancionatório do parágrafo único do art. 239 traduz hipótese de crime único, no qual, por exceção, a violência, conquanto represente fase de execução do crime fim, almejado pelo agente, será autônoma e cumulativamente punida. A questão, portanto, é de aplicação de pena, que aqui se dará no sistema de cúmulo material, não se referindo à teoria do delito, já que não há que se falar em concurso de crimes, em nenhuma de suas espécies.
 O elemento subjetivo geral é o dolo, estando, na segunda modalidade típica, acompanhado do especial fim de lucro, que move a ação do agente, sem que se exija sua efetiva obtenção para fins de caracterização do delito.
 Trata-se de crime formal, bastando à consumação que o agente realize a promoção ou auxílio de ato que se destine ao envio da vítima ao exterior, ainda que isso não venha efetivamente a ocorrer78. Em qualquer caso, a competência será da Justiça Federal, nos termos do art. 109, V, da CF. Podendo ser fracionado o processo executório, parece cabível a tentativa em qualquer das modalidades típicas.
 3.13. Utilização de criança ou adolescente em cena pornográfica ou de sexo explícito
 Art. 240. Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente: (Redação dada pela Lei n. 11.829, de 2008)
 Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. (Redação dada pela Lei n. 11.829, de 2008)
 § 1º Incorre nas mesmas penas quem agencia, facilita, recruta, coage, ou de qualquer modo intermedeia a participação de criança ou adolescente nas cenas referidas no caput deste artigo, ou ainda quem com esses contracena. (Redação dada pela Lei n. 11.829, de 2008)
 § 2º Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se o agente comete o crime: (Redação dada pela Lei n. 11.829, de 2008)
 I - no exercício de cargo ou função pública ou a pretexto de exercê-la; (Redação dada pela Lei n. 11.829, de 2008)
 II - prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade; ou (Redação dada pela Lei n. 11.829, de 2008)
 III - prevalecendo-se de relações de parentesco consanguíneo ou afim até o terceiro grau, ou por adoção, de tutor, curador, preceptor, empregador da vítima ou de quem, a qualquer outro título, tenha autoridade sobre ela, ou com seu consentimento. (Incluído pela Lei n. 11.829, de 2008)
 Uma vez mais se ampliam os contornos desta figura típica por conta de novas alterações introduzidas pela Lei n. 11.829/2008, originada da Comissão Parlamentar de Inquéritos que cuidou da Pedofilia e que contou com a valorosa contribuição de membros do Ministério Público, Federal e Estadual (dentre eles Rio de Janeiro e Minas Gerais)79, Polícia Federal e outras entidades ligadas ao tema, a cujas sugestões e esforços se deve creditar, em grande parte, os méritos pela sistematização dada ao tema80.
 Relativamente aos interesses protegidos, prossegue-se em busca da tutela da dignidade, integridade física, psíquica e moral, assim como a honra objetiva e liberdade sexual da criança ou adolescente, todos os bens jurídicos afetados pela realização das condutas incriminadas81. Vê-se, portanto, que o direito fundamental à livre expressão da atividade intelectual e artística, insculpido no art. 5º, IX, da CF, não é absoluto, encontrando restrições quando viole outros interesses de igual estatura constitucional,
como ocorre com os da criança e adolescente, encampados pelo art. 227. Por isso, a participação de criança ou adolescente em espetáculos ou ensaios dependerá, em qualquer caso, de autorização judicial (art. 149, II, a, do ECA).
 O crime, antes praticável apenas por quem produzisse, dirigisse ou, nos termos do § 1º, contracenasse com criança ou adolescente, tem agora sujeito ativo comum, a saber, qualquer pessoa que produza, reproduza, dirija, fotografe, filme, registre ou ainda, nos termos do § 1º, agencie, facilite, recrute, coaja, intermedeie ou contracene com criança e adolescente. Neste amplo contexto legislativo, fica facilmente caracterizada até mesmo a punição da mãe que, por exemplo, facilite, coaja ou intermedeie a participação do infante em cena pornográfica, sujeitando-a, inclusive, à causa de aumento de pena prevista no § 2º, III, que veremos a seguir. A redação anterior do tipo penal exigia ainda que o menor fosse envolvido em representação de cunho teatral, televisivo, cinematográfico, fotográfico ou visual, exigência suprimida pela nova redação, bastando que a cena seja “por qualquer meio” realizada, encerrando assim cláusula de interpretação extensiva, permitindo ao aplicador a incriminação de quaisquer condutas que envolvam criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica.
 Por cena pornográfica entenda-se aquela que tenha cunho libidinoso, voltada à satisfação da lascívia, ainda que não diga respeito propriamente à conjunção carnal, anal ou oral, que caracterizam a cena de sexo explícito propriamente dita, como, aliás, esclarece o art. 241-E, comentado a seguir. A utilização do menor em cena vexatória, antes aqui tipificada, restou suprimida, subsistindo, para estes casos, o crime do art. 232 do ECA, a cujos comentários nos reportamos.
 Note-se que a conduta daquele que produza fotografias, cenas ou imagens de pornografia ou sexo explícito, que sejam divulgadas por meio da rede mundial de computadores, antes tipificada no subsequente art. 241, passou a este tipo penal, lá restando apenas o crime do comercializador deste material. O mesmo sucede com o diretor ou ator destas cenas, imagens ou fotos, quando divulgadas apenas pela Internet. Isso ocorre porque, tendo dirigido ou atuado em tais cenas, suas condutas já estarão abarcadas pela norma incriminadora deste art. 240, não nos parecendo que incorra em novo crime caso faça sua divulgação pela Internet, sendo hipótese de post factum impunível, absorvido pelo delito antecedente por força do princípio da consunção. Até mesmo as penas previstas para os crimes são as mesmas, o que aplaca eventual sentimento de impunidade que se possa daí gerar.
 No art. 2º estão previstas causas de aumento de pena, incidentes, como se sabe, na terceira fase da dosimetria (art. 68 do Código Penal), para quando o crime seja cometido: no exercício de cargo ou função pública82 ou a pretexto de exercê-la (inciso I), prevalecendo-se o agente de relações domésticas83, de coabitação ou hospitalidade (inciso II) ou prevalecendo-se de relações de parentesco natural, civil ou por afinidade, ou ainda sendo o agente tutor, curador, preceptor, empregador ou tenha sobre ela qualquer autoridade (inciso III). O crime, que no seu tipo fundamental até poderá ensejar a eventual aplicação de penas restritivas de direito, caso o réu seja condenado no limite mínimo do preceito secundário, tem aqui por força da incidência destas majorantes, encerrada qualquer discussão acerca do cabimento ou não da substituição, que resta matematicamente insusceptível.
 Na primeira hipótese majorada (inciso I) incidem agora apenas os ocupantes de cargo ou função pública ou os que falseiam exercê-la com o fim de praticar o delito, consoante expressa exigência do tipo penal, demandando-se, neste caso, que o crime tenha sido facilitado pelo cargo ou função ocupado ou alegado pelo agente, guardando com ele relação de causalidade. Na segunda hipótese (inciso II) temos aqueles que se aproveitam de relações de proximidade com a vítima, facilitando assim a prática delituosa. Por fim, estão também aqui mais gravosamente reprovados aqueles que, por força das relações jurídicas elencadas no inciso III, exerçam sobre as vítimas qualquer autoridade ou mesmo quando, ausente tal relacionamento prévio, se valham os autores de interposta pessoa que exerça tal autoridade para dissuadir ou coagir a vítima. Neste último caso, obviamente que, pelo crime e sua majorante, responderão o autor intelectual e o executor direto do agenciamento ou recrutamento da criança ou adolescente, a menos que, em situação de autoria mediata, seja o autor direto mero instrumento de execução do verbo típico e, portanto, impunível por força da ocorrência de qualquer das situações que caracterizam essa modalidade de autoria (erro, coação moral irresistível, obediência hierárquica etc.). Por tal razão, redundante a previsão de aumento de pena para quando o crime seja praticado com o consentimento destas pessoas. Isso porque, obviamente, se o sujeito realiza o crime prevalecendo-se de relações de parentesco, natural ou civil, tutela, curatela, instrução, emprego ou autoridade sobre a vítima, o faz aderindo e, portanto, consentindo com o crime, resguardada a situação de impunidade resultante de autoria mediata, acima comentada.
 Caso a vítima, menor de 14 anos, seja induzida apenas a presenciar o ato de libidinagem envolvendo maiores, o crime será o do atual art. 218-A do Código Penal, com redação dada pela Lei n. 12.015/2009 e não este. Na mesma hipótese, em se tratando de maior de quatorze anos, o fato só encontra tipicidade do art. 247, II, 1ª figura, do Código Penal, dependendo, neste caso, de que haja comparecimento reiterado ao espetáculo perversivo ou ofensivo ao pudor.
 De outro turno, embora o tipo penal em exame expressamente contemple a punição de quem contracena com a vítima, quer nos parecer que aquele que diretamente mantenha com a criança ou adolescente o contato sexual resultante da cena de sexo explícito ou pornográfico responderá pelos crimes contra a dignidade e liberdade sexual do Código Penal, cujo título recebeu ampla reforma por meio da Lei n. 12.015/2009, a que já nos referimos acima. Além de muitas outras alterações, a lei passa a tipificar, no art. 217-A, o chamado “estupro de vulnerável”, assim considerado qualquer ato libidinoso envolvendo menores de 14 anos ou que não possam, por qualquer motivo, oferecer resistência, com pena que varia de 8 a 15 anos de reclusão, acabando assim com a discussão sobre se a presunção do revogado art. 224 seria relativa ou absoluta. Aumenta ainda em 1/3 a pena do crime de assédio sexual contra menores de 18 anos e também estabelece que tanto homens quanto mulheres podem ser vítimas de estupro, deixando assim de existir o crime de atentado violento ao pudor. Tal conclusão deriva, acima de tudo, da necessidade de harmonizar a legislação penal prevista tanto no diploma repressivo ordinário quanto a incluída em leis especiais, como o ECA. Não sendo assim, chegaremos à temerária conclusão de que, enquanto o contato sexual com menores de 14 anos passou a ser punido genericamente com pena de 8 a 15 anos, aquele que seja de alguma forma perpetuado, por meio de produção, filmagem ou similar terá tratamento penal mais brando, punido com reclusão de 4 a 8 anos. A obediência aos princípios da proporcionalidade e igualdade afasta, por óbvio, tal assertiva.
 O tipo subjetivo é aqui exclusivamente doloso. Reformulamos nosso entendimento de que o crime fosse, na redação anterior, formal. Tanto antes como agora, a consumação está condicionada a ocorrência de evento naturalístico, no caso a participação da vítima em cena pornográfica ou de sexo explícito, ainda que não veiculada, o que, ocorrendo, poderá conduzir a um dos crimes subsequentes. Reputamos que todos os verbos típicos são plurissubsistentes, o que atrai a possibilidade de tentativa.
 3.14. Comércio de material

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