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1 2 Organizadoras Maria da Piedade Romeiro de Araujo Melo Sílvia Ancona-Lopez Autores: Adriana Cabello; Ana Gabriela Pinheiro S. Annicchino; Andréa Lucas Alves Calvi; Anna Elisa Villemor-Amaral; Carolina Leonidas; Cicera Andréa Oliveira Brito Patutti; Eliane de Albuquerque Drullis; Élide Dezoti Valdanha; Érika Arantes de Oliveira- Cardoso; Evandro Gomes de Matos; Fabio Scorsolini-Comin; Fernanda Kimie Tavares Mishima-Gomes; Gisele M. Sampaio; Iraní Tomiatto Oliveira; Jaíne Meireles Rocha; José Vicente Angelo da Rocha; Larissa de Aguirre Silva; Leliane Maria Aparecida Gliosce Moreira; Leonardo Lopes da Silva; Ligia Corrêa Pinho Lopes; Lilian L. Ceregatti; Lilian Regina de Souza Costa; Lionela Ravera Sardelli; Lucas Gobato; Maria Cristiane Nali; Manoel Antônio dos Santos; Maria da Piedade Romeiro de Araujo Melo; Marilda Gonçalves Dias Facci; Marilia Ancona Lopez; Marina Vieira Madeira; Marizete Gouveia Alves Dos Santos; Marizilda Fleury Donatelli ; Mônica Cintrão França Ribeiro; Nádia Giuliese; Raul de Freitas Dias; Regina Célia Calil Ciriano; Rosa Maria Rodrigues de Oliveira; Wolgrand Alves Vilela; Yurín Garcêz de Souza Santos. DEMANDAS ATUAIS EM PSICOLOGIA Formação e Atuação Profissional São Paulo / SP – Universidade Paulista 2015 3 Ficha Catalográfica 159.9 Demandas atuais em psicologia [livro eletrônico]: formação e D371 Atuação profissional / organizadoras: Maria da Piedade Romeiro de Araujo, Sílvia Ancona-Lopez. – São Paulo, SP: Universidade Paulista – UNIP, 2015; 346 p. 1 livro digital Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-68793-00-8 1. Psicologia. 2. Psicodiagnóstico. 3. Psicoterapias. 4. Formação. 5. Práticas profissionais. 6. Serviços-Escola I. Melo, Maria da Piedade Romeiro de Araujo. II. Ancona-Lopez, Sílvia. III. Título. Demandas Atuais em Psicologia IV. Título: formação e atuação profissional. CDU 159.9 4 "Não queremos trancar o que dissemos... Olharemos para a frente; nossas últimas páginas não serão recapitulação do que fizemos, mas interrogações sobre o tema que, percorrendo surdamente nosso trabalho, abre um campo no qual prosseguir..." Renato Mezan 5 SUMÁRIO Apresentação..........................................................................................................................09 Parte I A ADOÇÃO NO CENÁRIO DOS NOVOS ARRANJOS FAMILIARES: A FAMÍLIA HOMOSSEXUAL EM PAUTA Manoel Antônio dos Santos....................................................................................................10 A FAMÍLIA NA CONTEMPORANEIDADE: DUAS VISÕES, MÚLTIPLAS POSSIBILIDADES NO CENÁRIO DA DIVERSIDADE SEXUAL Yurín Garcêz de Souza Santos; Fabio Scorsolini-Comin; Manoel Antônio dos Santos.....................................................................................................................................15 LUDOTERAPIA PSICANALÍTICA NO CONTEXTO DE UM ESTÁGIO CURRICULAR EM ADOÇÃO Marina Vieira Madeira; Fernanda Kimie Tavares Mishima-Gomes; Manoel Antônio dos Santos.....................................................................................................................................29 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A DEPRESSÃO PÓS-PARTO E SUAS IMPLICAÇÕES NAS QUESTÕES VINCULARES MÃE-FILHA: RELATO DE UM ATENDIMENTO EM PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO Eliane Albuquerque Drullis Cifali; Regina Célia Ciriano; José Vicente Angelo Rocha; Lionela Ravera Sardelli.......................................................................................................................42 DANIEL, QUE ACREDITA QUE UM DIA PODERÁ SER O QUE SEMPRE FOI, OU SEJA, UMA MULHER: TRANS-FORMAÇÕES NO PROCESSO TERAPÊUTICO DE UMA TRANSEXUAL Yurín Garcêz de Souza Santos; Manoel Antônio dos Santos................................................74 6 Parte II POR UMA CLÍNICA-ESCOLA AMPLIADA: EXPERIÊNCIA DE INSERÇÃO DA PSICOLOGIA NO ATENDIMENTO MULTIDISCIPLINAR EM BULIMIA E ANOREXIA JUNTO AO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE Érika Arantes de Oliveira-Cardoso; Manoel Antônio dos Santos ..........................................88 DIRETRIZES PSICOTERAPÊUTICAS PARA INTERVENÇÃO COM PACIENTES COM TRANSTORNOS ALIMENTARES Manoel Antônio dos Santos, Érika Arantes de Oliveira-Cardoso, Carolina Leonidas, Élide Dezoti Valdanha, Lilian Regina de Souza Costa ..................................................................97 POR UMA PSICOLOGIA SOCIALMENTE ÚTIL: DIÁLOGOS ENTRE PSICOLOGIA ESCOLAR E PSICOLOGIA CLÍNICA Leliane Maria Aparecida Gliosce Moreira; Mônica Cintrão França Ribeiro; Nádia Giuliese .....................................................................................................................103 REFLEXÕES ACERCA DA RELEVÂNCIA SOCIAL-COMUNITÁRIA DAS RESIDÊNCIAS MULTIPROFISSIONAIS EM SAÚDE Leonardo Lopes da Silva......................................................................................................113 A MULTIPROFISSIONALIDADE NA FORMAÇÃO E NA PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA: CONTRIBUIÇÕES PARA O DEBATE Leonardo Lopes da Silva .....................................................................................................117 ESTÁGIO EM PSICOLOGIA ESCOLAR: COMPROMISSO ÉTICO-POLÍTICO Marilda Gonçalves Dias Facci .............................................................................................130 ESTÁGIOS EM PSICOLOGIA E SERVIÇOS-ESCOLA Iraní Tomiatto Oliveira.........................................................................................................146 7 OS SINTOMAS DE NOSSO TEMPO E A APOSTA DO E NO SERVIÇO ESCOLA Maria Cristiane Nali ............................................................................................................153 IMPLANTAÇÃO DO SERVIÇO DE ORIENTAÇÃO AOS PAIS NO CENTRO DE PSICOLOGIA APLICADA: UM PROTOCOLO COMPORTAMENTAL Ana Gabriela Pinheiro S. Annicchino; Jaíne Meireles Rocha; Larissa de Aguirre Silva......................................................................................................................................158 PSICODIAGNÓSTICO INTERVENTIVO: PRÁTICA CLÍNICA E PROCESSO ENSINO- APRENDIZAGEM Marizilda Fleury Donatelli; Ligia Corrêa Pinho Lopes...........................................................171 OS CUIDADOS DA SAÚDE MENTAL DO PSICÓLOGO: RELATOS DE PROFISSIONAIS DA SAÚDE PÚBLICA Andréa Lucas Alves Calvi; Jaíne Meireles Rocha; Marizete Goveia Alves Dos Santos; Raul De Freitas Dias; Maria da Piedade R. de Araujo Melo.........................................................187 Parte III PSICOLOGIA E ESPIRITUALIDADE Marilia Ancona-Lopez...........................................................................................................221 CIÊNCIA E RELIGIÃO: O ESTUDANTE DE PSICOLOGIA DIANTE DO FENÔMENO RELIGIOSO Elianede Albuquerque Drullis; José Vicente Angelo da Rocha; Rosa Maria Rodrigues de Oliveira; Maria da Piedade R. de Araujo Melo......................................................................232 8 Parte IV O MODO DE SER PARANÓIDE NO PRIMITIVO E NO PSICÓTICO: UMA ABORDAGEM FENOMENOLÓGICA Wolgrand Alves Vilela...........................................................................................................260 ESQUIZOFRENIA NA VOZ DE QUEM A VIVENCIA Adriana Cabello; Lucas Gobato; Lilian L. Ceregatti; Gisele M. Sampaio; Maria da Piedade Romeiro de Araujo Melo.......................................................................................................275 GRUPO PSICOTERAPÊUTICO PARA PACIENTES DIAGNOSTICADOS COM TRANSTORNO ALIMENTAR: O PAPEL DO PSICÓLOGO Élide Dezoti Valdanha; Manoel Antônio dos Santos ...........................................................311 TRANSTORNO DE PÂNICO E IDEAÇÃO SUICIDA: CARACTERÍSTICAS DE PERSONALIDADE ATRAVÉS DO TESTE DE PFISTER Cicera Andréa Oliveira Brito Patutti; Evandro Gomes de Matos; Anna Elisa Villemor- Amaral..................................................................................................................................319 GRUPO DE APOIO MULTIFAMILIAR EM HOSPITAL-ESCOLA: TRABALHANDO A DINÂMICA FAMILIAR NO TRATAMENTO DA ANOREXIA E BULIMIA Carolina Leonidas; Lilian Regina de Souza Costa; Manoel Antônio dos Santos.................338 9 Apresentação A ideia da publicação desse livro digital surgiu a partir do 21º Encontro de Serviços – Escola de Psicologia do Estado de São Paulo e 4º Encontro Nacional de Supervisores de Estágio em Psicologia ocorridos em 2013 na UNIP – Campinas. O objetivo foi reunir um conjunto de artigos sobre temas diversos e atuais em Psicologia que trouxessem reflexões sobre questões contemporâneas, a formação do psicólogo e o exercício profissional. Neste e-book os autores, oriundos de várias universidades brasileiras, apresentam artigos de diferentes campos de pesquisa em Psicologia. Não houve, nesta publicação, a preocupação com a homogeneidade, já que o escopo foi discutir a diversidade e a riqueza do fazer psicológico com contribuições que reflitam o seu desenvolvimento e abram possibilidades de novos fazeres. Esperamos provocar questionamentos que resultem num processo contínuo de reflexão e produção de novos saberes, atendendo a um aspecto importante da universidade que é o de constituir-se em um centro de geração e difusão do conhecimento, articulando as atividades de ensino, pesquisa e extensão, em consonância com as demandas atuais da sociedade. Maria da Piedade R. de Araujo Melo Sílvia Ancona-Lopez Organizadoras 10 ARTIGOS Parte I A ADOÇÃO NO CENÁRIO DOS NOVOS ARRANJOS FAMILIARES: A FAMÍLIA HOMOSSEXUAL EM PAUTA Manoel Antônio dos Santos Resumo No cenário contemporâneo têm emergido novos arranjos familiares. Dentre as novas possibilidades de configuração familiar tem chamado atenção a família constituída por meio da adoção de crianças por casais homoafetivos masculinos e femininos. Considerando-se que este tema é bastante sensível e que comumente desperta opiniões apaixonadas, tanto favoráveis quanto contrárias à prática da adoção sob essas condições, é necessário aproximar-se de tais contextos familiares a fim de investigar suas potencialidades a partir de uma abordagem psicológica. Nesta conferência pretende-se abordar os significados que casais homoafetivos masculinos atribuem à família e à adoção. São elaboradas reflexões a partir dos relatos obtidos com casais que viviam em união estável havia mais de uma década quando adotaram. As entrevistas permitiram elucidar a trajetória do casal, desde o encontro e decisão de constituírem uma vida em comum, até o surgimento do desejo de constituírem família pela via da adoção. Também são enfocadas questões como a transição para a parentalidade e as mudanças instauradas no cotidiano familiar com a chegada das crianças. Os casais têm nítida consciência de seu protagonismo social e da posição que ocupam como pioneiros na prática da adoção formalizada com os nomes dos dois pais (e não apenas no nome de um dos parceiros). Apesar de não haver ainda uma legislação específica que dê respaldo aos casais homossexuais que desejam adotar, nota-se uma disposição em buscar as “brechas” do estatuto legal e contribuir para criar jurisprudência nessa área. Os núcleos familiares constituídos são ancorados em tradições e valores tradicionais, 11 reproduzindo em vários aspectos o modelo hegemônico da família nuclear burguesa. Os casais parentais trazem um claro anseio de serem reconhecidos socialmente como “uma família normal”. Os pais fazem questão de mostrarem que são “iguais, embora diferentes” em relação às outras famílias, demonstrando a diversidade que caracteriza qualquer configuração familiar. Conclui-se que a família constituída por casais homoafetivos e seus filhos adotivos evidencia continuidades e transformações que vêm ocorrendo nas relações de parentesco, conjugalidade e filiação. Palavras-chave: Adoção; Homossexualidade; Família. As configurações familiares discrepantes do padrão tradicional de família questionam aspectos fundamentais associados às formas de união e relações de parentesco. As transformações que vêm ocorrendo nas últimas décadas questionam as fundações culturais e sociais segundo as quais a responsabilidade pela educação e cuidados dos filhos é tida como tipicamente feminina (Ramires, 1997). O fato é que cada vez mais se reconhecem e valorizam os vínculos socioafetivos que sedimentam as relações familiares, em detrimento da vinculação estritamente biológica dos laços consanguíneos. Isso tem contribuído para uma progressiva desnaturalização da família, que evidencia o quanto ela é uma criação humana mutável e contingente, que está reinventando-se e alterando-se a cada época. A construção de arranjos divergentes dos padrões normativos da sociedade ocidental tem atraído a atenção de psicólogos, antropólogos, cientistas sociais e profissionais de Direito. A construção da conjugalidade homossexual, base para a formação da família homoafetiva, enfrenta diversos desafios e obstáculos (Mello, 2005; Moscheta, 2004). No plano jurídico, a entidade familiar ainda é reconhecida pelo Código Civil Brasileiro como a união estável ou em matrimônio entre um homem e uma mulher, ou pela comunidade formada por qualquer um dos pais e seus descendentes. Não há imposição do casamento, mas permanece ainda a restrição quanto à existência de 12 dois sexos diferentes para o reconhecimento de um casal, ainda que alguns juristas apontem a contradição legal existente, que priva os indivíduos homossexuais de seus direitos. Nesse sentido, são buscadas algumas brechas na lei para que se possa considerar o par do mesmo sexo como entidade conjugal e base para uma unidade familiar. Apesar de corresponder a uma prática milenar, a adoção ainda hoje é atravessada por inúmeros mitos, tabus, preconceitos e estereótipos que se encontram enraizados no imaginário coletivo (Schetini, 1998). A prática da adoção de crianças por casais homoafetivos suscita diversos temores, questionamentos e estranhamento por parte das pessoas. Os dispositivos legais que regulam a adoção no Brasil (Estatutoda Criança e do Adolescente – Lei 8.069, de 1990, complementado pela Nova Lei da Adoção, Lei 12.010, de 2009), são omissos e silenciam em relação à família homossexual. Por outro lado, não há nos documentos legais qualquer restrição à orientação sexual do requerente solteiro no processo de adoção. Solteiros podem adotar, assim como casais, se estiverem em união civil ou união estável. Mas o casal, aos olhos da lei, é entendido como formado pela união entre um homem e uma mulher, e não entre dois homens ou duas mulheres. Estudos no Brasil mostram que são inúmeros os casos de homossexuais que têm filhos: casais que recorrem às técnicas de reprodução assistida (inseminação artificial, barriga de aluguel), filhos de relações heterossexuais anteriores, adoção por um dos parceiros ou adoções à brasileira, adoções por homossexuais solteiros (Grossi, 2003; Uziel, 2008). Atualmente, já são diversos casais homoafetivos que tiveram a adoção deferida pelo Judiciário. Por isso é imprescindível compreender os significados que casais homoafetivos masculinos atribuem à família e à adoção. As reflexões aqui elaboradas advêm dos relatos de pesquisa obtidos com casais que viviam em união estável havia mais de uma década quando adotaram. As entrevistas permitiram elucidar a trajetória do casal, desde o encontro e decisão de constituírem uma vida em comum, até o surgimento do desejo de constituírem família pela via da adoção. 13 Os casais têm nítida consciência de seu protagonismo social e da posição que ocupam como pioneiros na prática da adoção formalizada com os nomes dos dois pais (e não apenas no nome de um dos parceiros). Apesar de não haver ainda uma legislação específica que dê respaldo aos casais homossexuais que desejam adotar, nota-se uma disposição em buscar as “brechas” do estatuto legal e contribuir para criar jurisprudência nessa área. Os núcleos familiares homoafetivos constituídos são ancorados em tradições e valores tradicionais, reproduzindo em vários aspectos o modelo hegemônico da família nuclear burguesa. Os casais parentais trazem um claro anseio de serem reconhecidos socialmente como “uma família normal”. Os pais fazem questão de mostrarem que são “iguais, embora diferentes” em relação às outras famílias, demonstrando a diversidade que caracteriza qualquer configuração familiar. Conclui-se que a família constituída por casais homoafetivos e seus filhos adotivos evidencia continuidades e transformações profundas que vêm ocorrendo nas últimas décadas nas relações de parentesco, conjugalidade e filiação. Considerações Finais Vimos que no cenário contemporâneo têm emergido novos arranjos familiares. Dentre as novas possibilidades de configuração familiar tem chamado atenção a família constituída por meio da adoção de crianças por casais homoafetivos masculinos e femininos. Considerando-se que este tema é bastante sensível e que comumente desperta opiniões apaixonadas, tanto favoráveis quanto contrárias à prática da adoção sob essas condições, é necessário aproximar-se de tais contextos familiares a fim de investigar suas potencialidades a partir de uma abordagem psicológica. Percebeu-se que os significados que os casais homoafetivos masculinos atribuem à família e à adoção são pautados em valores convencionais, e que esses 14 protagonistas do cenário da adoção desejam “naturalizar” essa prática, buscando legitimidade junto à população, assim como o reconhecimento de seus direitos. Referências Mello, L. (2005). Novas famílias: Conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Garamond. Moscheta, M. S. (2004). Construindo a diferença: A intimidade conjugal em casais de homens homossexuais. Dissertação de mestrado não-publicada, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP. Ramires, V. R. (1997). O exercício da paternidade hoje. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. Schettini, L. F. (1998). Compreendendo os pais adotivos. Recife: Bagaço. Uziel, A. P. (2008). Homossexualidade e adoção. Rio de Janeiro: Garamond. Sobre o autor Manoel Antônio dos Santos: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Professor Associado 3 do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Líder do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS- USP-CNPq). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: masantos@ffclrp.usp.br Endereço: Av. Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, 14040-901, Ribeirão Preto-SP. 15 A FAMÍLIA NA CONTEMPORANEIDADE: DUAS VISÕES, MÚLTIPLAS POSSIBILIDADES NO CENÁRIO DA DIVERSIDADE SEXUAL Yurín Garcêz de Souza Santos Fabio Scorsolini-Comin Manoel Antônio dos Santos Introdução Este estudo insere-se no quadro de transformações recentes que atravessam o campo social e jurídico (Dias, 2003) e impactam especialmente a família. Antes restrita ao arranjo conjugal clássico, base da família nuclear, hoje a família deixa de ter um único modelo proeminente para ser monoparental, recomposta, homossexual, entre outras configurações possíveis, abrigando padrões de parentalidade e conjugalidade alternativos. A família homoafetiva é uma modalidade de arranjo familiar que vem conquistando crescente visibilidade nos últimos tempos. As recentes transformações ocorridas na relação família-indivíduo-sociedade são ressignificadas nessa nova possibilidade de configuração familiar, que destoa do princípio fundamental que rege o conceito de família: a diferenciação sexual, isto é, a diferença anatômica entre os sexos (Passos, 2005; Perelson, 2006; Perroni & Costa, 2008). Em contrapartida, a família constitui a instituição mais antiga da sociedade, sendo, também, o primeiro espaço que promove a satisfação das necessidades básicas dos indivíduos e, ao mesmo tempo, o lugar que propicia o desenvolvimento da personalidade e da socialização (Salomé, Espósito & Moraes, 2007). Contudo, tratando-se da família homoparental, deve-se levar em consideração que tanto a noção de homossexualidade quanto de família são categorias socialmente construídas e, por conseguinte, produtos históricos resultantes de embates políticos, sociais e culturais que definem e redefinem seus contornos a cada época. Ainda que a família nuclear, modelo inspirador da sociedade ocidental, esteja tornando-se, cada vez mais, uma experiência minoritária (Uziel et al., 2006), com o surgimento e disseminação de arranjos familiares distintos, a ideia tradicional de família formada exclusivamente a partir de uma relação heterossexual, monogâmica e procriadora do casal parental acaba por fixar, no imaginário social, uma norma que 16 serve de fundamento para a classificação de qualquer outra forma de constituição familiar. Nesse sentido, a família nuclear tende a ser vista como natural, imutável e inequívoca, descaracterizando o conceito de família como entidade socialmente construída, assim como ocorre, mutatis mutandis, com a homossexualidade (Santos & Moscheta, 2006). As famílias constituídas a partir de uniões homossexuais e, especificamente, por homens homossexuais, contestam a heteronormatividade e representam um desafio para as disciplinas que tratam da parentalidade, como a Antropologia, o Direito e a Psicanálise, tornando necessário rever conceitos e concepções consagradas desses campos de saber. No que concerne à parentalidade,Zorning (2010) afirma que este é um termo de uso relativamente recente, que foi empregado inicialmente na literatura científica francesa a partir da década de 1960 com o intuito de marcar a dimensão do processo de construção do exercício da relação dos pais com os filhos. Quando se leva em consideração a homoparentalidade masculina – neologismo criado pela Associação de Pais e Futuros Pais Gays e Lésbicas em Paris, em 1997 (Perroni & Costa, 2008) – deve-se atentar para o fato de que a homossexualidade refere-se unicamente ao exercício da sexualidade por determinado indivíduo e que a prática das funções parentais não exige, em absoluto, esse exercício. Ou seja, para os referidos autores, não existe relação entre orientação afetivo-sexual ou práticas sexuais de um indivíduo e sua capacidade para exercer a parentalidade. Contudo, o desejo de inserir-se em um modelo de família que esteja baseado nos moldes da família nuclear, por meio da conjugalidade homoafetiva, acaba por gerar resistências em alguns segmentos sociais, que são ratificadas pela inexistência de leis que legitimem a parceria civil e a conjugalidade entre indivíduos do mesmo sexo. A questão torna-se ainda mais complexa quando existem filhos envolvidos nesse processo, isto é, quando a questão extrapola os limites da conjugalidade e adentra o campo da parentalidade (Perroni & Costa, 2008). Na sociedade contemporânea, como mostra Manzi-Oliveira (2009), a função de pai está estritamente relacionada à figura de provedor das condições materiais de subsistência, sendo aquele membro que oferece suporte material e proteção à família e que não geralmente não tem envolvimento direto no cuidado com os filhos. 17 Assim, os homens mais afastados das tarefas domésticas desempenhariam um papel importante para a constituição do caráter da criança, funcionando como modelo de poder e autoridade a ser internalizado. Seguindo essa linha de raciocínio, Perroni & Costa (2008) afirmam ser recorrente, no imaginário social, a curiosidade sobre as distinções de papéis parentais em arranjos formados por pares homoafetivos. Afinal, quem seria o “pai” e quem seria a “mãe” em uma família homoparental? Entretanto, ainda segundo esses autores, esse seria um falso dilema, uma vez que esse questionamento desconsidera o fato de que um homem gay não se transforma em uma mulher devido à sua inclinação afetivo-sexual ser orientada para alguém do mesmo sexo biológico que o seu, da mesma maneira que uma mulher lésbica não se converte em um homem pelo mesmo motivo. Em se tratando da função parental, a função “paterna” ou “materna” pode ser desempenhada por qualquer um dos parceiros, mesmo que seja, por vezes, exercida de forma mais evidente por um ou outro dos membros da parelha que compartilha um projeto de vida afetiva, sem que isso os transforme em alguém do sexo oposto ao seu (Perroni & Costa, 2008). Complementando essas ideias, Saffioti (1987) mostra que a paternidade deve – ou ao menos deveria ir – além da função tradicional de provedor, que é um legado da sociedade patriarcal e sexista. E mais: o homem deveria refletir sobre essa dimensão da vida e da paternidade que é o cuidado parental, que não se resume apenas ao trabalho de alimentar, banhar ou trocar as fraldas de um bebê, por exemplo, mas inclui também o compartilhamento de atividades prazerosas a partir da convivência com os filhos. O cuidado parental implica, ainda, em observar e contribuir para com o processo de desenvolvimento do ser em desenvolvimento, apreender a perspectiva peculiar da criança, seus medos, ansiedades, angústias e preocupações, assim como sua espontaneidade, sua maneira direta de expressar emoções e demonstrar suas necessidades. Isso mostra-se importante, segundo a referida autora, uma vez que possibilita ao homem pai uma oportunidade para repensar sua própria vida e reavaliar os valores que a pautam, o que o auxilia a desnaturalizar o modelo de paternidade enraizado no imaginário da sociedade heteronormativa e homofóbica. 18 Desse modo, o convívio entre pais e filhos não seria benéfico apenas para as crianças, mas traria elementos valiosos e ricos, sobretudo, para o homem empenhado no exercício da função paterna, sendo essa atitude não apenas um dever, mas antes um direito do homem (Saffioti, 1987). Entretanto, em que pesem as mudanças e transições operadas na noção de família, ainda prevalece a visão tradicional. Sendo moldada por elementos culturais, econômicos, sociais, de gênero e de etnia, a maneira pela qual um homem relaciona-se com seus filhos estabelece e atesta o que é ser homem, além de definir qual é a sua função e seu papel dentro de um determinado contexto interacional. No marco definido pelos elementos aqui arrolados, a paternidade já foi descrita como função masculina, “coisa de homem”, que delineia a identidade no sentido de que, se esse homem é pai, ele é, de fato, homem. A paternidade, dessa maneira, afirma e confirma a posse da masculinidade, na medida em que oferece um dos caminhos mais desejados para levar um homem a aceder ao universo masculino adulto, enquanto na mulher a condição feminina é reafirmada pela maternidade. Por ser contestado com certa facilidade no caso do homem, esse caminho de mostrar ao mundo que se é homem via paternidade é um tanto quanto mais complexo, ainda mais quando o homem em questão tem uma orientação homossexual (Moris, 2008). Objetivos O presente estudo teve como objetivo apresentar novas possibilidades de ser família – colocando em cena a família homoafetiva, a partir da perspectiva de seus próprios protagonistas. Como fundamentação teórica também se tece uma discussão do contexto de construção histórica dos conceitos de paternidade, parentalidade e homossexualidade, mais especificamente na conjunção desses três elementos, que aqui aparece representada no construto da homoparentalidade masculina. Ademais, se objetivou compreender de que modo a homoparentalidade é construída e vivida em uma sociedade heteronormativa. A hipótese a ser investigada é se esse tipo de parentalidade pode ser visto como uma busca pela desnaturalização do modelo tradicional de família – a família nuclear – que é apresentado como norma, enraizada no imaginário social como única possibilidade correta e possível de constituição familiar. 19 Método Este estudo de caso é um recorte de uma investigação mais ampla, que visa investigar a homoparentalidade masculina. Tendo em vista as novas configurações familiares que, a cada dia, têm ganhado visibilidade no contexto brasileiro e global, entende-se ser o estudo de caso uma opção metodológica pertinente, uma vez que permite conhecer em profundidade determinada realidade pouco explorada. O caso aqui relatado diz respeito às histórias de Paulo e Vinícius (nomes fictícios), dois homossexuais solteiros e pais. O contato com os participantes deu-se por meio da rede de contatos profissionais dos pesquisadores. Ambos são integrantes de um grupo de reflexão comunitário, voltado para a discussão da temática da diversidade sexual. No caso de Paulo, a experiência da paternidade deu-se por meio de uma relação heterossexual anterior, da qual resultou um filho biológico, Gustavo, hoje com 16 anos. A entrevista foi realizada na sala da residência do participante, onde também vive a mãe do entrevistado e, eventualmente, seu filho. Já no caso de Vinícius, o processo de filiação deu-se por meio da adoção. O participante adotou a filha de uma prima, que na época em que engravidou tinha 17 anos e não apresentava condições nem desejo de cuidar da criança. A entrevistafoi realizada na sala da casa do participante, que mora sozinho e, eventualmente, recebe sua filha, Marina, de cinco anos, que vive com uma tia-avó, irmã da mãe de Vinícius. Tabela 1. 20 Características sociodemográficas dos participantes e dos filhos Participantes Idade (anos) Profissão Filho(a), idade (anos) Paulo 40 Auxiliar de Enfermagem Gustavo, 16 Vinícius 39 Fotógrafo Marina, 5 As entrevistas se basearam no método de História de Vida. Foi solicitado aos participantes que contassem, de forma livre e como melhor lhes parecesse, suas histórias de vida, sem que houvesse a necessidade de obedecer uma sequência cronológica dos fatos para construir esse relato. Esse recurso metodológico tem o propósito de permitir alcançar uma visão ampliada da vida dos entrevistados, no intuito de que se permita conhecer aspectos gerais de suas histórias que possam ser relevantes para a análise do material do estudo. Ao final, foi pedido que os participantes respondessem a algumas questões adicionais elaboradas pelos pesquisadores com base na literatura da área, com o propósito de complementar os dados fornecidos. Assim, caso não tivessem emergido espontaneamente no discurso dos participantes, eram formuladas questões relativas a pontos específicos de suas trajetórias de vida, principalmente no que se refere à assunção da homossexualidade, aspectos da vida familiar, suas noções de paternidade e o que eles entendem por família. Esse segundo momento da entrevista teve a função de aprofundar os aspectos já relatados pelos participantes na primeira parte, além de complementar informações relacionadas diretamente aos objetivos do estudo. As entrevistas foram audiogravadas e tiveram duração de 1h40 e 40 minutos, respectivamente. Posteriormente, os registros foram transcritos na íntegra e literalmente, constituindo, assim, o corpus de análise. Em seguida, o material foi submetido à análise de conteúdo na modalidade temática, que permitiu elencar os núcleos de significado que emergiram nos relatos. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, a fim de que um acordo de confidencialidade fosse firmado entre pesquisadores e participantes, garantindo, assim, o sigilo em relação às informações fornecidas e o 21 princípio de que os dados obtidos no estudo serão utilizados apenas para fins acadêmicos. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição à qual os pesquisadores são vinculados. Resultados e discussão A partir do corpus de análise, constituído pelas transcrições literais das entrevistas realizadas, foi possível identificar três eixos temáticos: (1) a construção da sexualidade; (2) as relações familiares constituídas ao longo da vida de cada um; e (3) a forma como cada participante se constituiu como pai. A história de Paulo: identificar-se para diferenciar-se No que se refere à construção de sua sexualidade (categoria temática 1), Paulo afirma que, na tentativa de ser um homem diferente daquele modelo que estava colocado em sua realidade familiar, começou a se relacionar com homens, afetiva e sexualmente, buscando com isso “aprender a ser homem”. Assim, por meio da imitação, Paulo buscava identificar-se com os homens com os quais se relacionava afetiva e sexualmente, conseguindo, assim, se distanciar do jeito de ser de seu “pai de criação”. Paulo queria aprender, com os homens, a como se relacionar com as mulheres, ainda que afirme sentir-se atraído por pessoas do mesmo sexo desde os seis anos de idade. Desse modo, Paulo acabou por se envolver afetivamente com outros homens e “apaixonando-se” pelo masculino, até que decidiu assumir sua orientação homoafetiva. Outro fator relevante na história de vida de Paulo e que é passível de análise diz respeito às relações familiares estabelecidas pelo entrevistado (categoria temática 2). Paulo foi criado por sua mãe biológica e seu marido, mesmo sendo filho biológico do primogênito dos patrões de sua mãe. O entrevistado afirma que não conseguia identificar-se com seu pai de criação e, concomitantemente, não era reconhecido como filho de seu pai biológico, tendo, assim, dois pais e nenhum, pois não se reconhecia em nenhum deles. 22 Em contrapartida, Paulo afirma que a figura de sua mãe foi o elemento vital que lhe inspirou “força e caráter”, além de ser a pessoa que o auxilia, hoje em dia, na relação com seu filho, Gustavo. De acordo com o relato do participante, esses aspectos de sua relação com seus pais foram de extrema importância para a construção de sua sexualidade, sendo possível, então, encontrar um paralelo entre os dois primeiros eixos temáticos selecionados para a presente análise. Em outras palavras, a relação de Paulo com seus pais tem, de acordo com o entrevistado, consonância com a sua constituição como pai. Dessa forma, o participante afirma tentar transmitir para Gustavo os valores que aprendera em casa, principalmente com sua mãe. Assim, pode-se identificar, em seu relato, a transmissão intergeracional que marcou sua trajetória, dando continuidade à história herdada de sua família de origem. Por outro lado, o fato de ele não dividir o mesmo teto com o filho, que apenas visita-o em alguns momentos, parece reeditar sua história de desamparo pelas figuras paternas (o pai biológico e de criação). Em relação à forma como se constituiu como pai (categoria temática 3), pode- se afirmar que, para Paulo, ser pai transcende o modelo que está impresso no imaginário social sobre o conceito de paternidade, sendo esta uma experiência única para cada indivíduo. Seguindo o fio dessa argumentação, o participante reconhece, na paternidade, um elo, uma conexão profunda entre pai e filho, que se aproxima, de acordo com sua percepção algo idealizada acerca dessa relação, à “magia”, ao encantamento. Biologicamente, afirma o participante, todos os homens apresentam a capacidade de serem pais, contudo, considera que qualquer tentativa de explicação do sentido de paternidade é muito pobre para significar o que consiste essa experiência de fato. Ademais, para o entrevistado só se aprende a ser pai quando se está imerso em uma relação de afinidade com o filho, evidenciando, em sua fala, o caráter de construção compartilhada do significado de parentalidade, sendo este unicamente estabelecido na relação pai-filho. Para Paulo, em seus aspectos básicos, não existem diferenças significativas entre a parentalidade exercida por um homem gay e a parentalidade exercida por um homem heterossexual, embora este último seja o modelo reconhecido e legitimado como verdadeiro, único e respeitável em uma sociedade heteronormativa. 23 A história de Vinícius: o despertar de um desejo Os mesmos três eixos temáticos puderam ser identificados a partir da análise da entrevista realizada com Vinícius. Assim, no que diz respeito à construção de sua sexualidade (categoria temática 1), é possível depreender do relato do participante que esta deu-se como um despertar. Vinícius conta que, até seus 21 anos, não tinha se dado conta de seu desejo por homens, afirmando, ao mesmo tempo, que não entendia a reação de seus amigos heterossexuais ao se depararem com uma mulher. Mesmo tendo mantido alguns relacionamentos heterossexuais de longa duração, o entrevistado afirma que só foi entender, de fato, a força e o significado do desejo quando olhou para um homem com intenções que iam além de uma relação de amizade. O participante indaga-se sobre a origem desse desejo por homens, reconhecendo seus vários relacionamentosanteriores com mulheres como expressão de uma possível repressão de seu desejo homossexual. Para Vinícius, as dificuldades em relação à assunção de sua homossexualidade não estão diretamente relacionadas à orientação sexual, mas sim, ao fato de ser negro. O participante afirma que tinha dificuldade em entender a aproximação das pessoas, se estavam procurando sexo casual ou um relacionamento sério, e atribui essa confusão mais à cor de sua pele do que ao seu desejo por pessoas do mesmo sexo. Essa dúvida em relação às reais intenções do outro tem como pano de fundo a crença disseminada na cultura de que o homem negro é um prodígio de virilidade, encarnação da potência, graças ao seu vigor e compleição física. Séculos de relações promíscuas, muitas vezes abusivas, entre senhores e escravos na sociedade colonial, certamente contribuíram para reforçar esse estereótipo sexual que cerca o corpo negro no imaginário social. As relações familiares estabelecidas por Vinícius ao longo da vida (categoria temática 1) e a forma como ele entende família podem ser relacionadas diretamente ao modo como construiu o “ser pai” em sua experiência pessoal (categoria temática 3), o que permite estabelecer uma aproximação entre esses eixos temáticos selecionados para análise. O participante afirma, em seu relato, que o mais importante em uma família é o amor, derivando desse sentimento básico o respeito e o carinho, que seriam as bases para as trocas afetivas estabelecidas entre os membros da célula familiar. 24 Nesse sentido, Vinícius atribui o seu desejo de ser pai às suas relações familiares solidamente constituídas. Isso fica evidenciado quando Vinícius percebe-se, no decorrer de seu relato, como uma pessoa “egoísta”. Afirma que tem muito medo da solidão e atribui esse fato à forma pela qual os relacionamentos em sua família são estabelecidos, sempre pautados em estreita proximidade e contato afetivo, derivando daí o seu desejo pela paternidade. É interessante notar que, no caso de Vinícius, parece não existir, até o momento da entrevista, a preocupação por parte do participante quanto à assunção de sua homossexualidade. O entrevistado afirma que seu núcleo familiar mais próximo, formado pela mãe e irmã, é consciente de seu desejo e de suas relações com outros homens, entretanto, o resto da família não tem conhecimento sobre esse aspecto de sua vida, incluindo sua filha. Vinícius tampouco mostra preocupação com a eventual descoberta de sua condição homossexual por parte da filha, afirmando que, para ele, a revelação acontecerá naturalmente com o passar dos anos. Assim, um aspecto relevante que emerge na entrevista com Vinícius é a forma particular que o assumir-se gay (“sair do armário”) pode adquirir em sua trajetória de vida. Esse participante revela sua condição homossexual apenas para algumas pessoas seletas de sua rede social, de modo que o modo como ele exerce os cuidados parentais está atravessado por esse “segredo” guardado a sete chaves e que é mantido na relação com a filha. Considerações finais A partir da análise empreendida, pôde-se constatar que o contexto da família homoparental exibe diferenças em sua forma de organização e funcionamento, isto é, dentro de uma das várias possibilidades de arranjos familiares existem variadas formas de composição da família. Nesse sentido, como afirma Zambrano (2006), existem três maneiras de se exercer a homoparentalidade. A primeira mostra-se quando existem filhos concebidos em relações heterossexuais anteriores, como no caso de Paulo, que teve seu filho, Gustavo, a partir de uma relação heterossexual anteriormente estabelecida. A segunda possibilidade de estruturação da família homoparental diz respeito à adoção legal que, contudo, frequentemente é feita em nome de apenas um dos parceiros devido às barreiras decorrentes da inexistência 25 de uma legislação brasileira que proteja os direitos da família homoafetiva, em face dos preconceitos que circundam a homossexualidade. Essa segunda forma de configuração familiar pode ser exemplificada com o caso de Vinícius que, por meio da adoção, hoje é pai de Mariana. A terceira maneira de formação da família homoparental vem acompanhada por inovações tecnológicas, como a inseminação artificial no caso de casais de mulheres que têm como doador de sêmen geralmente um amigo gay ou um desconhecido (Zambrano, 2006). Existe ainda, de acordo com Grossi (2003), uma quarta maneira de exercício da homoparentalidade: a chamada coparentalidade entre gays e lésbicas, que pode se dar entre dois casais, entre um casal de lésbicas e um gay ou entre um casal de gays e uma lésbica. Em relação a essa quarta possibilidade de ser família, pode-se considerar o exemplo de Paulo. A mãe de seu filho biológico, após a separação do casal, acabou por se envolver afetivamente com mulheres e, atualmente, vive em união estável com outra mulher, o que faz com que Gustavo tenha a guarda compartilhada entre seu pai e sua mãe e ainda receba os cuidados parentais por parte da companheira da mãe. Se analisados os significados que os entrevistados atribuem à experiência da paternidade, pode-se notar que, mesmo com diferenças apreciáveis, tanto Paulo quanto Vinícius apresentam uma visão um tanto quanto ampliada do conceito de parentalidade, quando comparados a outros pais. Nesse sentido, em estudo realizado por Freitas et al. (2009), foram analisados os significados que homens homossexuais atribuíam à experiência da paternidade. Por meio da análise do discurso dos entrevistados pôde-se entender que os participantes concebiam a paternidade como um novo encargo social, vinculando-a mais à provisão material da família do que ao espaço de envolvimento afetivo com os filhos. Já em outro estudo, realizado por Moris (2008), com pais homossexuais que já haviam vivenciado anteriormente um relacionamento heterossexual estável nos quais desempenharam o papel de pai, a concepção de paternidade para os 15 homens entrevistados estava intimamente inserida no contexto desses antigos relacionamentos heterossexuais. Ou seja, a concepção de paternidade desses homens era tradicional, própria do modelo nuclear de família que fora constituído com a complementaridade de um pai e de uma mãe. Assim, depois de aceitarem 26 sua homoafetividade e de separarem-se dos respectivos parceiros heterossexuais anteriores, esses pais viam-se (e agiam) no pleno exercício de sua paternidade como homens pais divorciados. Pode-se depreender, então, comparando os dois estudos, que ao se reconhecerem seja como heterossexuais ou homossexuais, os homens que são pais acabam por considerar sua função do mesmo modo, isto é, percebem-se como responsáveis pelo sustento da família. Portanto, ainda se mostram muito apoiados no modelo tradicional de família vigente em nossa sociedade. Entretanto, ainda que os achados das referidas pesquisas tenham sido corroborados de um modo geral pelos participantes do presente estudo, tanto Paulo quanto Vinícius apresentaram, ao mesmo tempo, uma visão ampliada do conceito de paternidade, uma vez que, para eles, a paternidade extrapola o simples desempenho do papel de provedor e mantenedor das condições materiais que medeiam a relação pai-filho. Mais do que isso, a paternidade está baseada nas relações afetivas estabelecidas nessa díade. Assim, levando-se em consideração os relatos apresentados pelos entrevistados e a multiplicidade atual de configurações familiares – família conjugal clássica, monoparental, recomposta, homossexual – fica evidente que a paternidade na contemporaneidade deixou de ser estritamentebiológica para se tornar socioafetiva. A partir das análises das entrevistas e das discussões com a literatura, aponta- se a necessidade de maior emprenho das disciplinas que versam sobre a parentalidade, como a Psicanálise, o Direito e a Antropologia, no sentido de que os discursos dos que vivem em contextos de configurações familiares distintas daqueles modelos estabelecidos como norma na sociedade possam também ser legitimados como válidos e possíveis. Dar visibilidade a essas novas possibilidades de ser família faz com que elas alcancem notoriedade e, assim, possam contribuir para desconstruir conceitos enraizados no imaginário social. O caráter socialmente construído da noção de família, da parentalidade e da própria homossexualidade pode ser evidenciado nos relatos produzidos pelos protagonistas incluídos no presente estudo, refletindo a construção de um novo conceito, a homoparentalidade, que por sua vez está ancorado na percepção dos próprios indivíduos que a 27 exercem. Ademais, os relatos obtidos nesta investigação dão testemunho da necessidade de desnaturalização dos discursos hegemônicos. É importante salientar que afirmar a existência de novas formas de ser família não significa o mesmo que dizer que o modelo tradicional de família – a família nuclear – esteja deixando de existir, mas apenas que novas possibilidades estão surgindo no cenário contemporâneo (Passos, 2005) e que estas demandam o olhar das disciplinas que se propõem a discuti-las. Ou seja, a teoria deve estar pautada na prática individual, na singularidade que compõe cada caso, para que a legitimação da diferença prospere, facilitando, assim, o florescimento de padrões menos estereotipados de pensamento. O importante é que se atente para o fato de que os novos arranjos familiares devem ser examinados, assim como o padrão tradicional de família, como possibilidade legítima para aqueles que o vivenciam, deixando de lado os discursos patologizantes e preconceituosos sobre essas formas de ser família. Referências Dias, M. B. (2003). Paternidade homoparental. In: Direito de Família e psicanálise: rumo a uma nova epistemologia. Rio de Janeiro: Imago. Freitas, W. M. F., Silva, A. T. M. C., Coelho, E. A. C., Guedes, R. N., Lucena, K. D. T., & Costa, A. P. T. (2009). Paternidade: responsabilidade social do homem no papel de provedor. Revista de Saúde Pública, 43(1), 85-90. Grossi, M. P. (2003). Gênero e parentesco: famílias gays e lésbicas no Brasil. Cadernos Pagu, 21, 261-280. Manzi-Oliveira, A. B. (2009). Adoção por casais homoafetivos: relato de seus protagonistas. Monografia de conclusão do Programa de Optativo de Bacharelado em Psicologia – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto. Moris, V. L. (2008). Preciso te contar? Paternidade homoafetiva e a revelação para os filhos. Tese de Doutorado não-publicada – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. Passos, M. C. (2005). Homoparentalidade: uma entre outras formas de ser família. Psicologia Clínica, 17(2), 31-40. 28 Perelson, S. (2006). A parentalidade homossexual: uma exposição do debate psicanalítico no cenário francês atual. Revista Estudos Feministas, 14(3), 709- 730. Perroni, S. & Costa, M. I. M. (2008). Psicologia clínica e homoparentalidade: desafios contemporâneos. Fazendo Gênero 8: Corpo, violência e poder. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina. Saffioti, H. I. B. (1987). O poder do macho. São Paulo: Moderna. Salomé, G. M., Esposito, V. H. C., & Moraes, A. L. H. O significado de família para casais homossexuais. Revista Brasileira de Enfermagem, 60(5), 559-563. Santos, M. A. & Mosheta, M. S. (2006). Metáforas da vida a dois: sentidos do relacionamento conjugal produzidos por um casal homoafetivo. Revista Brasileira de Sexualidade Humana, 17(2), 217-232. Uziel, A. P., Andrade, R., Antonio, C. A. O., Ferreira, I. T. O., Machado, R. S., Medeiros L. S. M., Moraes, M. B., & Tavares, M. (2006). Parentalidade e conjugalidade: aparições no movimento homossexual. 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Pesquisador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-USP-CNPq) e do grupo A Análise do Discurso e suas Interfaces (AD-USP-CNPq). E-mail: scorsolini_usp@yahoo.com.br Manoel Antônio dos Santos: Professor Associado 3 do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Líder do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS- USP-CNPq). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: masantos@ffclrp.usp.br 29 LUDOTERAPIA PSICANALÍTICA NO CONTEXTO DE UM ESTÁGIO CURRICULAR EM ADOÇÃO Marina Vieira Madeira Fernanda Kimie Tavares Mishima-Gomes Manoel Antônio dos Santos Introdução A adoção, de um modo geral, é uma prática realizada desde os primórdios da humanidade. Seus objetivos e motivações foram estabelecidos e remodelados de acordo com os costumes e crenças de cada época. O contexto histórico da adoção passa, portanto, por momentos em que foi supervalorizada, como no Antigo Egito, assim como por momentos em que foi praticada de forma descontrolada e desrespeitosa, como por meio do tráfico de crianças que perderam os pais no pós- Segunda Guerra Mundial (Pereira, 2011). Recentemente, em 2009, foi promulgada a Nova Lei de Adoção (Lei n. 12.010/2009), que tem como foco o bem-estar e o desenvolvimento da criança, sendo também um meio legal de proteção à família que vai se formar a partir da adoção (Costa et al., 2011). Essa lei vai ao encontro do conceito de “adoção moderna” (Pilotti), que denota a busca por uma família para a criança, ao invés de uma criança para a família, como na adoção clássica. Contudo, Paiva (2004) ressalta que, apesar dessa atual mudança de concepção geral, a realidade é que aspectos histórico-culturais muitas vezes ainda interferem prejudicialmente no olhar para os interesses da criança, nem sempre garantindo a proteção da mesma ao colocá-la em uma família substituta. Nesse sentido, é importante pensar que a Nova Lei de Adoção é um ponto de partida fundamental para uma mudança significativa das percepções acerca desta prática, mas é necessário cuidado e atenção constantes na hora de transformar os preceitos legais em ação. França (2001) define adoção como um encontro de necessidades, ou seja, é o “encontro da necessidade da criança de estabelecer um campo psíquico (entre a imediatez biológica e a perenidade) e da necessidade do adulto de transcender sua 30 condição mortal através da filiação psíquica” (p. 79). Além disso, aoviver o caos desintegrador do pós-nascimento, a criança precisa de um ambiente acolhedor, sendo o adulto, no caso os pais adotivos, o responsável por oferecer esse ambiente ao recém-nascido e, de alguma forma, dar sentido à experiência vivida (Maggi, 2009). Hamad (2001) segue a mesma direção, colocando a vida da criança como fruto de desejos, tanto daqueles que a aceitaram como ela é, quanto dela mesma que aceitou viver, mesmo com as condições complicadas, considerando fundamental valorizar a escolha da própria criança para que a adoção não se torne algo difícil e imprevisível. A família adotiva é permeada por fantasias inconscientes, assim como todas as famílias, mas, na primeira, a quantidade de emoções envolvidas é ainda maior (Rosa, 2008). Como exemplo de fantasias inconscientes presentes na criança adotada, a referida autora menciona a existência de uma crença de que foi por não merecer o amor da mãe que ela foi colocada para adoção, de que a culpa por ter sido abandonada é dela e não das dificuldades ou impossibilidades dos pais, o que provoca na criança o sentimento de que não merece ser amada. Outro exemplo é a fantasia inconsciente referente ao medo da perda, sendo comum a utilização de estratégias para se proteger contra novas perdas, contra um novo abandono, por meio da evitação de emoções fortes e do engajamento em relacionamentos mais profundos. Isso pode ser sentido pela mãe adotiva como uma rejeição. Se não houver o devido preparo para lidar com essa situação, pode acarretar uma permissividade diante do filho, em uma falta de apropriação, que pode ser por ele sentida como uma nova rejeição. Essa permissividade, ou até mesmo a ideia incorporada de que se devem evitar novas separações e sofrimentos à criança adotada, vai ao encontro do que Hamad (2001) assinalou sobre não permitir dar à criança seu estatuto de criança como qualquer outra. Em contrapartida, segundo Gomes (2006), para Winnicott a questão das fantasias inconscientes ou desejos dos pais não é tão relevante para o desfecho da adoção, sendo, porém, realmente fundamental que exista uma capacidade da família de cuidar da criança, estando dispostos a adaptarem-se às necessidades da mesma ao longo de seu processo de amadurecimento. Winnicott (1997) acredita que uma história de adoção pode ser uma adoção humana comum, desde que o 31 processo de adotar transcorra bem, ou seja, depende fundamentalmente da história inicial do bebê. Com a vivência de muitas falhas básicas iniciais, envolvendo necessariamente um fracasso em relação ao que Winnicott denominou preocupação materna primária e holding por parte da mãe biológica, a criança que foi abandonada busca, ao longo de sua vida, recursos para a reparação de tais falhas. O encontro com a mãe adotiva pode ser muito bem-sucedido, haja vista que, segundo Briani (2007), a mãe adotiva pode suprir necessidades básicas da criança, à medida que estabelece com ela uma relação íntima, calorosa, regular e constante. Além disso, pode desenvolver também uma capacidade de holding, ajudando seu filho a sentir- se compreendido e contido em suas angústias e agonias primitivas. A angústia de separação é muito presente na prática clínica com pessoas adotadas, sendo que os mecanismos de defesa mais frequentemente percebidos nessas pessoas são: repressão, deslocamento e negação dos afetos (Briani, 2007). Em consequência do exposto, e mais ainda como parte do próprio desenvolvimento tanto de crianças adotadas como não adotadas, a criança pode apresentar uma agressividade aparentemente sem motivos, ou de difícil compreensão. Contudo, o olhar winnicottiano traz a ideia de que é pela destruição dos objetos que o bebê descobre o mundo como estando lá desde sempre, sendo que ocorre a transição do mundo dos objetos subjetivos para os objetos objetivamente percebidos (Tomassi, 1997). A partir dessa percepção é possível pensar na agressividade de uma forma mais positiva, voltada para uma questão de motilidade, de busca por compreensão e adaptação ao ambiente. Descrição do paciente Lúcio (nome fictício) é um menino de 10 anos, filho de Cláudia, que o adotou quando ele ainda era recém-nascido. Lúcio tem um irmão mais velho, também adotivo (Vinícius), que apesar de mais velho foi adotado depois de Lúcio, quando este tinha 5 anos. Segundo a mãe, a segunda adoção foi um pedido do próprio filho, que dizia querer um irmão. Cláudia conta que é mãe solteira e que Lúcio costumava ser um menino tranquilo e carinhoso, mas que após a chegada do irmão passou a 32 apresentar comportamentos agressivos e distanciou-se da mãe. Ano passado (2012), por incentivo do irmão, Lúcio quis conhecer a mãe biológica. Cláudia atendeu seu pedido e em dezembro ele foi apresentado à família biológica (descobriu que tem três irmãos, sendo dois mais velhos e um mais novo). A mãe relata que esse contato foi tranquilo e, apesar de serem acontecimentos aparentemente marcantes, a mãe não entra muito em detalhes sobre o que se sucedeu. Outra questão que se apresenta nessa família é referente à cor da pele, visto que Cláudia e Vinícius são negros e Lúcio é branco. Na entrevista inicial Cláudia falou brevemente a respeito disso, mas Lúcio raramente traz essa questão na terapia. Trata-se, assim, de uma família adotiva que vive uma situação peculiar de adoção inter-racial. Atualmente, Lúcio está cursando o 5º ano em uma escola pública, sendo que até o ano passado ele e seu irmão estudavam em escola particular. Os dois estão na mesma sala, por questões estruturais da própria escola (há uma única classe no período da tarde). Lúcio tem trazido às sessões muitos assuntos referentes à escola, contando sobre as diferenças que vem percebendo entre a atual escola e a antiga, sobre seus amigos e algumas dificuldades que encontra (está de recuperação esse semestre). É importante destacar aqui que sua mãe encontra-se em atendimento psicológico por outra estagiária, no mesmo serviço clínico, e que buscou atendimento também para Vinícius, sendo que, possivelmente, este vai ser iniciado no segundo semestre desse ano. Durante o ano de 2012, Lúcio esteve em atendimento na clínica-escola por outro estagiário. Após as férias deu-se a mudança de estagiário-terapeuta. Assim, está sendo acompanhado pela atual terapeuta desde março de 2013, com frequência de duas vezes por semana. Os dias da semana em que ele vem ao atendimento foram mantidos, tendo mudado apenas o horário de um deles (ao invés das 8h00 passou para as 9h00), o que pode ter influenciado no que diz respeito à redução dos atrasos, que eram muito mais frequentes no ano anterior. No total foram realizadas 32 sessões ludoterápicas, tendo havido 10 atrasos (que variaram entre 5 e 35 minutos) e uma falta, justificada devido à morte da avó. 33 Resultados e discussão Para apresentar o processo percorrido no atendimento de Lúcio até o momento foram organizados quatro momentos principais, divididos de acordo com o que predominava nas diferentes fases vividas por Lúcio em terapia, sendo elas: Testes à Capacidade de Tolerância da Terapeuta e Formação do Vínculo; Exposição Clara de Conteúdos Internos; Introspecção; Relativa Estabilidade. 1º Momento: Testar a Capacidade de Tolerância da Terapeuta e Formação do Vínculo: Este foi um momento bastante desafiador, Lúcio parecia desconfiado e desanimado com o processo que se estava iniciando, e por diversos momentos tentava alguma forma de ataque à terapeuta. Iniciaram-se, então, extensas conversas a respeito de brinquedos falsos ou verdadeiros, pessoas pobres ou ricas, apresentando uma angústiareferente ao quanto tem dúvida não só em relação a sua própria existência (falsa ou não), mas também do quanto o que chega pra ele, o que é oferecido a ele é falso, é pobre, o que pode ser estendido para a área dos afetos recebidos por Lúcio, ou seja, uma dúvida do quanto o amor que chega até ele é de fato real, ou se é falso, temporário, ou passível de ser destruído. Analisando a entrevista inicial realizada com a mãe, foi possível identificar algumas falas que podem ser relacionadas com esses sentimentos da criança, principalmente quando a mãe conta como foi o encontro do filho com sua mãe biológica, ocorrido em dezembro do ano passado por pedido do próprio Lúcio, devido à influência e provocação do irmão, segundo Cláudia. No decorrer do relato, a mãe disse frases como: Cláudia: “Eu disse a ele que se ele quisesse podia chama-la de mamãe, ele disse que tudo bem, mas por fim acabou não chamando... Mas eu falei pelo menos, até porque é mãe dele também né?” Diante disso, o amor e a preocupação da mãe ficam em um nível de racionalidade extremo, o que faz com que pareçam muito frágeis e dispensáveis, podendo Lúcio acreditar que reencontrar a mãe biológica não gera nenhum receio em sua mãe adotiva, o que se relaciona diretamente com seus anseios a respeito da veracidade dos afetos que o rodeiam. Segundo Levinzon (2006), para os pais adotivos o medo de perder o filho aparece como um fantasma permanente, em graus diferentes em cada família, como se a falta de um elo consanguíneo não 34 garantisse a solidez do vínculo que liga os pais a criança. Lúcia pode, portanto, acreditar de alguma forma que os laços de sangue são fortes o suficiente para suprir qualquer laço que ela criou com Lúcio desde seu nascimento e, diante disso, viu-se sem recursos para lutar ou sentir merece mais o amor de seu filho do que a mãe biológica dele. Em sua primeira sessão, Lúcio mostrou-se muito inseguro, quis que sua mãe entrasse junto, e só quando eu o chamei para me apresentar e para ver o que tinha na sua caixa lúdica (mantida da terapia do ano passado) é que foi possível que sua mãe saísse da sala. Disse por diversas vezes que não gostava de nada que tinha ali, trazendo para a sessão uma sequência de “nãos”, para os brinquedos, para mim e para a terapia como um todo. Tentou de diferentes formas atacar os limites do setting terapêutico, jogando bolinhas de papel no ventilador e massinha molhada no teto, de forma bastante impulsiva, e, por fim, usou tanta força com sua caixa lúdica que esta quebrou. Tudo isso transparece a maneira como os impulsos agressivos de Lúcio estavam dominando seu mundo interno, de forma a ser difícil controlar e necessário haver um espaço para expressá-los. Na quinta sessão, Lúcio já estava criando um pouco mais de confiança e segurança naquele ambiente, e foi então que em meio a uma brincadeira de caça ao tesouro ele fez uma pergunta muito significativa. Ao esconder um soldado em um lugar muito difícil percebeu que a terapeuta não estava encontrando, e então começou a dificultar ainda mais colocando tempo limite, até disse sucessivas vezes: “Você vai desistir? Vai desistir é?”. Parecia que ele estava testando até onde a mesma daria conta de encontrar aquilo que ele tanto escondia, e então a mesma respondeu: “Eu não! Eu não vou desistir”. Os aspectos simbólicos envolvidos por detrás dessa brincadeira foram muito significativos tanto para a terapeuta quanto pra o paciente, representando confiança e segurança. Apesar dessa aproximação, Lúcio continuou seus testes ao ambiente terapêutico, fazendo misturas com cola, massinha e outros objetos, as quais dizia ser macumba, ou algo que não sabia o que era e nem porque fazia, e pedindo para guardar até a próxima sessão, repetiu isso por três sessões, e na quarta deixou apenas água no pote, e na sessão seguinte colocou sua mão na água e disse: “Olha, ainda está gelada”. Esse último acontecimento pode caracterizar um final dos 35 testes iniciais à terapeuta e uma formação de vínculo com a mesma, visto que além de ter deixado água ao invés de macumba para que a terapeuta guardasse, ainda reconheceu o quanto havia sido bem guardado e conservado do jeito que ele deixou até a próxima sessão, tendo o setting terapêutico transformado-se em um ambiente confiável. 2º Momento: Exposição clara de conteúdos internos: Nesse segundo momento, Lúcio começou a falar abertamente sobre suas angústias, raivas e sobre desejos bastante profundos, quase que em um movimento catártico. Na 7ª sessão Lúcio estava parecendo nervoso. Havia trazido um conjunto de Lego, mas não se interessou por ele, deixou em cima da mesa e sentou-se na poltrona, sendo que foi nesse momento que ouviu a voz de sua mãe na sala de espera, o que foi o estopim para que tudo começasse a ser dito e sua agressividade começasse a tomar forma. Após um breve silêncio Lúcio diz que sua mãe chegou na sala de espera, e que estava ouvindo sua voz (ela estava estacionando o carro), quando questionado sobre como ele se sentia em saber que a mãe dele o aguardava lá, ele responde: Lúcio: Me irrita! T: O que mais te irrita? Lúcio: O menino da minha escola que me bate e me chama de filho da puta. Mas eu pego ele, bato nele, estrangulo ele e jogo ele no lixo [...] [Nesse momento está sentado de costas para mim]. Às vezes eu tenho vontade de matar ela, tenho muita raiva, não gosto dela, ela é muito chata, não queria ter sido adotado por ela, queria ter sido adotado por alguém que quisesse ser mãe [...] É uma bosta ter parente, não queria ter, só gosto do meu tio [...]. Faz um desenho na lousa de um rosto sem boca, como se a mesma estivesse tampada com um lenço, e diz: “Não conta pra ela se não ela me bate”. [Então eu reforço que ali é nosso espaço, que o que acontece ali só nós sabemos e que nada do que ele dizia ali eu contaria para a mãe dele]. As críticas que Lúcio fez à mãe são fortes e cheias de conteúdo para serem refletidos, e chamam atenção, principalmente por terem sido ditas por uma criança de 10 anos. Em relação a este trecho, é possível associar a ideia de Winnicott (1997) de que muitas crianças adotadas, à medida que vão crescendo começam a pensar que se tivessem podido escolher, não teriam escolhido os pais que lhe foram 36 destinados, porém, na adoção, assim como os pais adotivos se arriscam, também se arriscam as crianças adotadas. Na 9ª sessão fica claro como Lúcio usou do mundo externo para tentar dar sentido para tudo o que estava sentido, para tentar transformar isso em algo que possibilitasse seu desenvolvimento. Nesta sessão ele criou os personagens que passou a utilizar constantemente nas sessões, são eles: a Burra (boneca Barbie), o Burrinho (bebê da família lúdica) e o Zé Ninguém (homem da família lúdica). O manuseio que Lúcio fez baseou-se em encher a Burra de cola e colar o Burrinho no peito dela, e ao tentar me explicar disse: “O bebê cagou ela”, depois amarrou bem firme com um barbante e escreveu “SOCORRO” no peito do bebê. Sobre o Zé Ninguém disse que ele era filho das drogas, e fez um outro rosto para ele, para que ele ficasse mais feio ainda. Vale ressaltar que os nomes foram dados no final, após tudo já estar pronto, e que ele queria grudar no corredor da clínica para que todos vissem a Burra, mas como isso não era possível acabou grudando na tampa de sua caixa lúdica (apenas a Burra e o Burrinho). Essa pode ter sido a maneira que ele encontrou de tentar elaborar esses conteúdos ainda muito primitivos e sem forma dentro dele, e apesar de nessa sessão tudo ainda ter ficado muito confuso e intenso, é importante dizer que no decorrerdo atendimento ele foi desconstruindo um pouco do desespero passado por essa cena inicial, visto que em diferentes sessões foi desfazendo a colagem que realizou na caixa lúdica, e foi deixando tudo guardado na caixa, sendo que atualmente quase não usa mais, exceto o Zé Ninguém que ele frequentemente diverte-se jogando-o contra a parede, de forma bastante agressiva e violenta. 3º Momento: Introspecção: Após toda a agitação do segundo momento, Lúcio, em determinada sessão, organizou a sua caixa lúdica, como quem organiza seu mundo interno, limpando e criando espaço para o que ele realmente usava dali. E depois disso, entrou num momento mais introspectivo, mais silencioso e aparentemente calmo, no qual fez muitos desenhos e que evitou falar mais do que explicações sobre o que tinha desenhado. Apesar da tranquilidade que Lúcio passava, os conteúdos de seus desenhos eram bastante agressivos, trazendo sempre diabos, zumbis, morte, dragões, entre outros. O mais impactante foi um que cabeças mortas nasciam das árvores, o que pode em determinada instância ser 37 associado com a história de Lúcio, que passou por muitas tentativas de aborto, e também viveu na pele o abandono, permitindo refletir sobre o quanto ele não podia mesmo sentir que nasceu morto, que já nasceu num contexto de rejeição e o quanto ele não compreende isso, o quanto isso ainda é angustiante para ele. Parece que muito desse potencial destrutivo vivido logo no início de sua vida foi introjetado por Lúcio, de forma a deixá-lo perdido em meio a seus impulsos agressivos, sendo que a terapia passou a desenvolver o papel do espaço em que tudo isso pode aparecer para que seja transformado em algo que vá em direção a uma melhor convivência com todos esses conteúdos e com toda sua história. Isso perdurou por aproximadamente um mês, sendo que na 24ª sessão esse momento foi radicalmente finalizado. Lúcio chegou na sala de espera 20 minutos atrasado, dizendo que não queria entrar, que não gostava de nada ali, e sua mãe mostrou-se muito irritada com essa situação, forçando-o a entrar na sala, primeiro fisicamente e depois em forma de “chantagem”. Ele entrou, permaneceu os 20 minutos restantes, porém em silêncio, produzindo muito barulho com as mãos e com os pés continuamente até o fim da sessão. Apesar dessa sessão ter parecido ameaçadora à continuidade da terapia, na sessão seguinte Lúcio compareceu e o processo continuou sem que voltassem no que aconteceu na sessão anterior. 4º Momento: Relativa Estabilidade: Nesse momento, a influência de Cláudia como participante indireta do contexto terapêutico de Lúcio fica evidente, sendo que o aspecto estável desse momento foi justamente a experiência com Lúcio, que parecia estar mais confiante na terapia, mais à vontade e mais preparado para lidar com seus conteúdos internos. O que estava relativizando essa estabilidade era Cláudia, que passou a fazer sutis ataques à terapeuta e ao contexto geral da terapia de Lúcio. Com Lúcio esse momento está sendo de muita conversa, e de alguns “rituais”. Um deles é pegar o Zé Ninguém em algum momento da sessão (geralmente no início) e chutá-lo ou jogá-lo contra a parede, sem grandes explicações, e como algo que transmite uma sensação de alívio. Às vezes Lúcio me chama para participar desse ritual, e parece se divertir muito em ver o Zé Ninguém nessa situação em que ele o coloca. Acredito que isso possa se relacionar à percepção que Lúcio tem sobre o setting, como um espaço no qual ele pode expor 38 sua agressividade, e agora ele está conseguindo dosar melhor essa agressividade de modo a precisar expressá-la, porém conseguindo fazer isso de maneira menos explosiva. Outro ritual seria o de soltar puns na sessão, pois Lúcio por três vezes soltou pum na sessão, e fala disso de modo divertido e espontâneo. Isso pode ser muito significativo para o contexto terapêutico, visto que o pum pode ser interpretado de diferentes formas pela psicanálise, e uma delas é como uma expressão de agressividade, como uma falta de controle dos impulsos agressivos, o que pode ser visto como uma evolução vivida pelo paciente de modo a estar se dispondo a entrar em contato com essa agressividade, com esses impulsos, e também estar fazendo isso de uma forma menos confusa e desorganizada como era no início de todo esse processo. Simultaneamente a esse momento de Lúcio, aconteceram alguns ataques por parte de Cláudia à própria terapia do filho, ataques que em alguns momentos ficaram bem evidentes. Como exemplo, em uma sessão Cláudia deu o cartão de presença do terapeuta antigo de Lúcio para que o filho levasse para a atual terapeuta, o que de alguma forma estaria gerando uma instabilidade dentro do setting terapêutico ao fazer com que não só a terapeuta, mas também Lúcio lembrasse da experiência vivida no ano anterior, a qual levou muito tempo para ser elaborada e para que fosse possível dar um lugar à mesma e construir o atual vínculo. Em outro momento, no dia que Lúcio não quis entrar na sala de atendimento, a mãe trocou o nome da terapeuta do filho com o de sua própria terapeuta, o que pode ser visto como muito mais que um ataque, mas também um sinal do quanto os dois estão misturados dentro dela, e o quanto é difícil pra ela separar até mesmo o momento da terapia, sendo fundamental considerar como Lúcio sente tudo isso, como pode se perceber misturado e até mesmo desenvolvendo papéis para essa mãe que na realidade não são de sua responsabilidade. Por fim, em outra sessão Lúcio chegou um pouco manhoso, dizendo que não queria entrar na terapia porque estava com vontade de vomitar; a mãe, numa tentativa de descontração, comentou sobre o novo corte de cabelo dele, e disse “Nossa filho, você tá parecendo mais filho da tia do que da mamãe” (como tia ela estava se referindo à terapeuta). Isso causou bastante incômodo na terapeuta, pois, mais uma vez, tratou com certo descaso a 39 possibilidade de o filho ser mais filho de outra pessoa do que dela, ou outra pessoa merecer mais que ela ser mãe dele, enfim, pode ter reforçado dentro dele a diferença entre os dois, e ter contribuído para a angústia de Lúcio a respeito da veracidade do amor que ele recebe de sua mãe. Apesar de tudo, essas falas da mãe contribuem para que a terapeuta possa conhecer um pouco melhor as relações do filho com a mãe, possibilitando compreender as influências desses conteúdos para o que é trazido na terapia, e também compreender um pouco do que a terapia pode estar provocando nessa relação. Considerações finais Lúcio, ao longo de todo o processo terapêutico, apropriou-se muito bem do espaço que lhe era oferecido para expressar seus conteúdos mais íntimos e inquietantes. A partir do panorama traçado no presente trabalho é possível notar claras mudanças em Lúcio, e isso é confirmado pelo discurso da mãe em uma conversa de acompanhamento realizada no final do semestre, quando a mesma diz que este passou por um momento em que não tinha paciência com ela, demonstrando muita raiva, mas que naquele momento estava tudo mais tranquilo, que melhorou seu desempenho na escola, não tendo recebido mais reclamações e que Lúcio tem obedecido mais os horários que ela coloca para que ele e o irmão façam tarefas. Cláudia mostrou-se muito disposta e atenta ao filho, inclusive quando a conversa foi sobre momentos difíceis da terapia, como o dia em que Lúcio não quis entrar. Diante do exposto, no intuito de compreender a evolução do processo terapêutico, é possível supor que a psicoterapia está exercendo a função de holding, ao sustentar angústia veiculadas por meio
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