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Angustia diante do outro

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Angustia diante do outro 
Rosa Maria Corrêa 
 
Será publicado no livro “Encontro E Diálogos Com/Dos Professores Sobre Os Dilemas No Cotidiano Escolar” 
 Desejo escrever sobre a angústia que sentimos diante daquilo que nos parece diferente do esperado, 
a aprendizagem do aluno, e que exige mudança na nossa prática de sala de aula para terminar as ideias 
desenvolvidas, nesta tese, sobre a escuta e os diálogos dos e com os professores sobre o cotidiano escolar. 
Devo isto aos professores que leram os rascunhos deste texto e ficaram muito angustiados porque reviveram 
as suas experiências e a outros que irão buscar “receitas” para a sua prática. E principalmente escrevo para 
mim que desejo encontrar caminhos para a minha prática em sala de aula, anunciado no início deste trabalho, 
como um dos objetivos ao buscar por fundamentos teóricos para uma escola menos excludente. 
Achei essencial escrever, especificamente, sobre a angústia que nós professores vivemos ao ensinar 
um conhecimento aos alunos diante de tantas outras coisas que a geram como: a amplitude dos problemas 
educacionais, o baixo desempenho dos alunos apontado nas avaliações sistêmicas, a desvalorização da 
formação e atuação profissional do professor, as parcas condições materiais das escolas, entre outras, 
porque se resolvermos todos estes problemas, que são importantes, ainda assim não teremos tocado na 
essência do problema. A relação professor e aluno, mediada pelo conhecimento, me parece ser o cerne das 
possibilidades de uma educação libertadora, como diria Paulo Freire, ou que promovesse cabeças-bem-feitas 
como diria Edgar Morin, porque, mesmo em condições muito desfavoráveis é possível ensinar, mas não é 
possível sem um professor que aposte na capacidade que todo aluno tem de aprender. 
Lembro-me de uma história, que Maria Helena, professora das antigas e muito amiga me contava. 
Quando trabalhava na Secretaria de Estado de Educação, foi visitar uma escola no norte de Minas Gerais. O 
lugar era muito distante e, a missão da professora era inspecionar a escola e levar uma geladeira, um fogão e 
um mimeógrafo a álcool, que foram colocados na carroceria da caminhonete que a transportava. Depois de 
muita poeira, ela chegou a uma vila onde se via uma pequena igreja no centro e algumas casas em torno. 
Procurou por uma escola e nada encontrou. Viu, apenas, uma frondosa mangueira, que abrigava um 
grupo de crianças e uma moça. Como não havia mais nada e ninguém ao redor, ela conta que se aproximou 
e viu aquelas crianças com carvão na mão, escrevendo histórias no jornal Diário Oficial. As crianças riam, 
conversavam e escreviam e a moça passava por cada uma delas e pedia que lessem o que estavam 
escrevendo. Então, Maria Helena descobriu que lá era a escola da cidade. Ela conta, com emoção, a cena 
que vivenciou naquela “escola” e o incômodo, que sentiu, quando olhou para a caminhonete com a sua carga 
e pensou do que adiantaria uma geladeira, se na cidade não havia luz elétrica; o que fariam com um fogão, 
se lá, não havia gás e, muito menos, poderiam utilizar o mimeografo já que não existia nem papel ofício. Ela 
voltou para capital com tudo aquilo, que era dispensável para aquela escola, porque lá havia o essencial: 
alunos que aprendiam com alegria e uma professora que ensinava o que fazia sentido para aquelas crianças. 
Refletir sobre este tema, também, me parece mais adequado do que tentar elaborar “conclusões” e 
repetir o que já foi desenvolvido ao longo do texto, pois procurei, no desenrolar da narrativa, trazer a fala dos 
professores, dos documentos das escolas, a minha escuta e as ideias dos autores que li, sobre as questões 
que nortearam esta pesquisa. Primeiro, por que não saberia como apresentar uma conclusão para uma 
questão, que pela complexidade da sua natureza, esteve e sempre estará aberta a outras considerações. 
Segundo, por que a leitura do que foi relatado possibilita novas interpretações e, mais ainda, provoca no leitor 
sentimentos e desejos, que jamais poderei alcançar e satisfazer com meu trabalho. Cabe, a cada um, dar um 
destino ao que leu e ao que foi provocado por este texto. 
Procurando uma maneira de escrever, acabei encontrando na “Fábula 220”, de Higino, lida em 
Zeferino Rocha (2000), possibilidades para compreender e pensar a preocupação e a angústia, vividas no 
cotidiano da escola, por todos. Caius Július Hyginus, foi o escravo pessoal do Imperador Caio Júlio Cesar 
Octávio, que o levou consigo para Roma, onde, depois de libertado e instruído na Biblioteca Palatina, tornou-
se um grande mestre e escreveu quase tudo sobre os vários campos do saber. A “Fábula 220”, que Higino 
escreveu, provavelmente de origem grega, foi elaborada nos termos da cultura romana e, ao longo dos 
séculos, Goethe, Heidegger, Leonardo Boff, Zeferino Rocha, e talvez, muitas outras pessoas, com objetivos 
diferentes, tentaram explicitar. A tradução brasileira dessa fábula é de Zeferino Rocha: 
Angústia, ao atravessar um rio, viu uma massa de argila e, mergulhada nos seus pensamentos, 
apanhou-a e começou a modelar uma figura. 
 
Quando deliberava sobre o que fizera, Júpiter apareceu. Angústia pediu que ele desse uma 
alma à figura que modelara, e, facilmente conseguiu o que pediu. 
 
Como Angústia quisesse dar seu próprio nome à figura que modelara, Júpiter proibiu e 
prescreveu que lhe fosse dado o seu. Enquanto Angústia e Júpiter discutiam, Terra apareceu e 
quis que fosse o seu nome daquela a quem fornecera o corpo. 
 
Saturno foi escolhido como árbitro. E este, equitativamente, assim julgou a questão: 
 
“Tu, Júpiter, porque lhe deste a alma, tu a terás depois da morte. E tu, Terra, porque lhe deste o 
corpo, tu a receberás quando ela morrer. Todavia, porque foi Angústia que primeiramente a 
modelou, que ela a tenha, enquanto a figura viver. 
 
Mas, uma vez que existe entre vós uma controvérsia sobre o nome, que ela seja chamada 
‘homem’, porque feita de húmus” (ROCHA, 2000, p. 160). 
Essa fábula nos põe a pensar a angústia que o professor tem, e que o acompanha desde a 
experiência de desamparo vivenciada no nascimento. Essa angústia que é com e é por, tem uma face 
positiva e libertadora, quando o homem assume o desamparo, porque se liberta das ilusões que o alienam e 
escravizam. É com a força criativa da sua inteligência e da sua imaginação que o homem escapa da servidão 
e pode construir sua história, mesmo que não transcenda a sua condição humana de desamparo. Essa 
mesma angústia tem seu lado negativo. Quando não simbolizada, transforma-se em doenças 
psicossomáticas ou defesa contra o que nos ameaça. 
O professor, tendo a angústia como sombra, vê-se ameaçado por tantas coisas, como as que 
mencionei, no início desta tese, mas é na sala de aula, com a tarefa de ensinar ao aluno, um outro ser 
humano, que vive as mesmas condições que ele, mas que lhe parece ser um estranho, o diferente, que 
focalizamos essa angústia. 
Neste ponto, quero retomar as ideias de Moreira (2002), que apresenta o outro, como o diferente, o 
resto, e que se assemelham ao conceito de inconsciente e, que, simultaneamente, me atrai e me atemoriza. 
Com este outro – estranho e diferente – há três modos de nos relacionarmos. A modalidade mais 
comum, da relação com o outro, é a do conflito, quando o eu se aproxima para escravizá-lo, para reduzi-lo ao 
mesmo, ao espelho aniquilando-o na sua inferioridade. A outra modalidade é a da tradução, que equipara o 
eu e o outro, que o decifra, que o familiariza no e com o diálogo. Na terceira modalidade, o outro guarda a 
qualidade do enigma ou do mistério. Assim, quando o professor angustia-se diante do aluno – o outro –, 
apresentam-se-lhe possibilidades diferentes de ensinar. Se considerado inferior, o papel do professor é 
domesticá-lo, doutriná-lo, escravizá-lo; se corresponder ao ideal de aluno, o papel do professor é cobrar do 
aluno algo que se assemelheao esperado, para que então possam dialogar; se o aluno é um mistério, o 
professor, sempre buscará – e deverá – aceitar o desafio de ensinar, de forma diferente. 
Desse modo, se ao ensinar, o professor considerar o aluno inferior ou transformá-lo naquilo que 
idealiza, a angústia que o acompanha não potencializa a mudança do ensino. Professores, que agem dessa 
maneira, podem ficar doentes, somatizar no corpo o que não pode ser simbolizado ou, tornarem-se rígidos 
demais com eles próprios ou com seus alunos, já que o aluno, por sua vez, não cabe no que foi moldado para 
eles. Entretanto, o professor que entende que o aluno é, absolutamente, diferente de tudo que possa 
imaginar, poderá utilizar sua inteligência e criatividade para ensinar e será capaz de sair da sua subjetividade 
fechada, para uma experiência de subjetividade aberta, marcada pela alteridade e pelo reconhecimento da 
diferença do outro. 
A nossa esperança é que o aluno, por sua vez, escape do lugar que lhe é dado pelo professor, 
possibilitando que, novamente, a angústia venha à tona e possa ter outro destino. Quando o professor puder 
lidar com o aluno, como um enigma, o ensino ministrado não exigirá uma resposta pronta, como foi planejado, 
mas o aceita como uma nova pergunta e uma possibilidade de conhecimento a ser atualizada. A inclusão 
escolar é, pois uma maneira de aprender a lidar com a própria angústia, se se quer, realmente, incluir o 
diferente. 
Isso de começar a escrever não é fácil, não foi. Muito mais simples é acabar, também não é. Pinga-se 
um ponto final e pronto, não fiz; não escrevi um latinzinho: finis. E dos tantos caminhos a escolher, não tive 
dúvidas, escolhi o que escolhi, e para ele trouxe vários amigos e histórias e conversas. Lembro-me, nesse 
momento de um fragmento de uma das últimas conversas com a professora Maria Teresa Eglér Mantoan, 
que me contou uma história vivida com seu pai, que dizia: “A verdadeira caridade não aceita contrapartida”. 
Entendi, então, que para ensinar, também, é assim: não se pode esperar ou exigir que o aluno aprenda, 
exatamente, o que lhe foi ensinado, que nos devolva, como aprendizagem, exatamente, aquilo que lhe 
ensinamos. Ensinar é um ato despojado de disponibilização do saber, aprender é apropriar-se e transformar o 
saber em novos e insuspeitados sentidos. Aprender e ensinar são atos que se sustentam pela força motriz da 
angústia, provocada pelo compartilhamento do conhecimento. 
O propósito deste estudo, ao escutar e dialogar sobre o que está por trás das práticas no cotidiano 
escolar, levou-nos além, para além da busca das respostas acadêmicas do que neutraliza as mudanças 
educacionais requeridas pela inclusão. Acabou por nos fazer encontrar o que as ultrapassa: defrontarmo-nos 
com a angústia que nos assombra... 
 
MOREIRA, Jacqueline de Oliveira. Figuras de alteridade no pensamento freudiano. 2002. Tese (Doutorado 
em Psicologia Clínica) – Faculdade de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 
2002. 
 
ROCHA, Zerefino. Os destinos da angústia na psicanálise freudiana. São Paulo: Escuta, 2000.

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