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A taverna de Cronos
Gilmar Kruchinski Junior
Agradecimentos
Em homenagem ao meu filho Júlio César Kruchinski. Filho, muitas obras podem ser grandes, mas dentre elas, a maior é o homem. De todas minhas grandes obras, sempre tu serás a maior delas, meu querido primogênito!
Ao meu amigo e grande escritor ÍgorO e sua companheira Camila, pela dedicação e incentivo, troca de idéias e aventuras, sempre entre uma garrafa e outra.
A toda a minha família, motivo de grande inspiração para escrever.
Aos meus mestres. 
“Desta forma andei por muito tempo sem notar a passagem deste, já que em minha caminhada o instante era eterno e a eternidade, estática. Lá nada me preocupou, sentia-me livre e, assim, eu somente andei. Andei sob a intensa luz solar que resplandecia num oceano de flores festivas, vibrantes e multicoloridas. Cruzava a planície florida, estendia até o horizonte, uma serpenteante e estreita trilha de paralelepípedos recortados por ervas rasteiras que exalavam perfumes agudos e adocicados. Acima, o mais azul, límpido e cristalino céu matinal, onde pássaros velozes brincavam e trinavam distantes na imensidão. Tudo tocado pela mesma magnífica e onipresente luminosidade. Isto era o bem.”
Ígoro. Viagem sem Destino.
“Seu destino foi atingido, pois chegou ao que costuma chamar de ‘O pomar de uma só árvore’.”
Ígoro. Hora da Morte.
A taverna de Cronos
Durante um bom tempo, estive preso nas masmorras do duque Saint German. Tendo apenas como companheiro de cela um monástico chamado São Muthlein de Cocobongolia , passei por um bom tempo tendo aulas com o mesmo. Era uma forma de me distrair, assim como ele de lecionar.
Dê uma aula para mim. Sabe, é sempre bom um filósofo saber mais.
Uma aula de filosofia na minha taverna? Essa eu quero ver, pelas barbas de Zeus!
Verás, meu caro anfitrião Cronos, verás...
Bom, meu caro, se insiste...mas terá de ser valendo uma rodada de Cronosbier.
Fechado, anfitrião dos tempos!
Bom, para começar, não quero que ninguém venha me atrapalhar com perguntas, pois neste esboço, procurarei demonstrar o problema do dualismo corpo e alma, fundido na forma de um Deus único.
Assim como braços e pernas não são o corpo todo, mas fazem parte do corpo todo, assim eu especulo o que seria Deus. Deus tem consciência, perfazendo-se em ato puro. Seu corpo é pura potência.
É isso aí! Potência!
Cale-se, poeta! Beba sua Cronosbier em silêncio.
Tá bom, tá bom...
Como eu ia dizendo, se dissolvêssemos o corpo de Deus, que é pura potência, a situação torna-se contingente, e a consciência e personalidade de Deus como ato puro se mantém.
Mais Cronosbier?
Não! 
Desculpe.
Esperando não ser mais interrompido, seguirei com minha exposição. Bom, como em Deus todas as formas são puras, a pura potência precisa se atualizar, passar a ato puro. Esta é a causa da dissolução do corpo de Deus, que precisa se atualizar. 
Se me permite, meu caro expositor, o que é o corpo de Deus?
Meu modesto anfitrião Cronos, já devia saber, tu que és o deus dos tempos!
Eu conheço bem a minha cerveja; Cronosbier, a bebida dos deuses!
Tudo bem, Cronos, sei que está de sacanagem comigo. Bom, vamos a exposição, a fim de dirimir quaisquer dúvidas sobre a resolução da tua pergunta:
O corpo de Deus é o universo e tudo o que está no tempo e no espaço, tendo como pressuposto uma causa primeira que o mantém. Esse pressuposto é a consciência, personalidade ou essência de Deus, o ato puro.
Assim, Deus é tudo, mas sua consciência pura é a causa que mantém o seu corpo, que nada mais é do que o universo. Daí, vai se atualizando até o ato puro, retornando a si mesmo.
Bravo, expositor, bravo!!!
Lembre-se, Deus é perfeito, pois tem as formas em si, mas que em si mesma, precisa atualizar-se, exatamente como no caso do universo, que a princípio traduzia-se em potência pura. Agora, o mesmo caminha para o ato puro, retornando o corpo de Deus à perfeição de sua consciência.
Eu não entendi nada, expositor!
Não era para menos, poeta! Tu só sabes ficar aí, declamando e mostrando teu livro de poesias para os outros. Preste mais atenção à exposição!
Calma, meu caro! Cronos te dará o tempo que quiseres, afinal de contas, relativizar o tempo é encontrar o eterno. 
Bravo, poeta!
Tudo, bem. Mas vamos com a exposição, resumidamente:
Deus é ato e potência. O corpo de Deus atualiza-se em corpo divino. Em um primeiro momento, ele se faz em potência pura a si mesmo. Após e continuamente, vai direcionando-se para o caminho da autoperfeição máxima, doravante denominado de ato puro da consciência de Deus. Também pode ser chamado de universo, onde a própria consciência divina se mantém, sendo a si de si mesma. 
Tá, e os planetas, onde ficam nessa exposição, caro Mago?
 Nos planetas estão inseridos os homens e outras criaturas, que dentre outras atividades, filosofa sobre si mesmo, caro filósofo.
Pois eu também quero fazer uma exposição, seu mago maluco!
Não te aconselho, filósofo. Já bebeste além da conta.
Deixe-o discursar, monge! Aqui na taverna de Cronos, tudo é festa!
Por quê estamos aqui, exatamente, anfitrião Cronos?
Desde que chegaste à minha taverna, percebo essa desconfiança em ti, monge.
Posso ir embora, então?
É cedo ainda, monge. Cronos não tem pressa. Vamos ver a exposição do filósofo.
É isso aí, Cronos. Deixe-me fazer a exposição acerca de como fazer filosofia prática, além da prática da filosofia!
Essa eu quero ver!
Verás, mochileiro viajante, verás!
Bom, que comece a magnífica exposição então, caro filósofo. A nova rodada de Cronosbier é por minha conta!
Até agora, tudo foi por sua conta.
Monge, não interfira!
Certo, mochileiro viajante. Vamos escutá-lo, então!
Bom, começarei minha exposição com uma pergunta bem simples:
 Para que serve a filosofia?
Bom, respondendo a pergunta por mim mesmo formulada, a filosofia é uma ferramenta intelectual. Esta ferramenta é um método mental, que consiste em aprimorar o pensamento humano, treinando nosso cérebro, capacitando-o o analisar e encontrar respostas, questionando e requestionando sobre qualquer assunto em qualquer questão abordada.
O objetivo é o de chegar ao limite de nossa compreensão sobre o tema proposto, recapacitando constantemente o nosso cérebro para tal empreendimento, exercitando-o, reciclando-o, aprimorando-o, adquirindo informações e coletando dados.
Para que serve tal exercício, na vida prática?
Assim como meu amigo mago, eu também não gosto de interrupções, caro mochileiro viajante.
Eu sei, filósofo. Mas a pergunta é pertinente.
Bom, nesse caso, vou expor a resposta:
Na vida prática, tal exercício serve para desmistificar mitos cotidianos, aprimorando a visão da realidade. Com essa ferramenta, as possibilidades práticas se expandem.
Mas a filosofia modifica o quê, na prática?
Até tu, monge?
A pergunta do mochileiro viajante é procedente, quero dar ênfase a esse aspecto.
Bravo! Bravo! Estou adorando ser o anfitrião de vocês!
Obrigado, caro Cronos, mas vou responder a audácia desse monge. Além de aprimorar a visão do real, as possibilidades práticas podem ser as de, por exemplo, modificação de uma situação social, com a criação e implantação de projetos de melhorias públicas. O portador pode adquirir fortuna, analisando sobre o ponto de vista social, pois está apto a modificar sua realidade particular e coletiva. Pode-se derrubar governantes, através da filosofia. Pode-se mudar efetivamente o sistema social vigente.
Mas as coisas estão sempre mudando, esta é a lei do universo.
Monge, qual é a tua?
Deixe-o falar, filósofo. Ele apenas colocou mais um argumento na tua exposição.
Tudo bem ,anfitrião Cronos, tudo bem. Realmente, as coisas estão sempre mudando. Sinal de que a filosofia anda por aí.
Tá, mas e o método prático, qual é?
Poeta, até tu? Vejo que estão gostando da exposição participativa, não é mesmo? Bom, pode-se retirar alguns dados do dia a dia, dado um objetivo que queres alcançar, seja a formação de uma empresa, como permanecer no mercado, etc...
O que é uma empresa?
É, o que seria tal coisa?Meus amigos monge e poeta, vocês não sabem o que são empresas, leis de mercado, essas coisas?
Não, não sabemos!
Continue com a exposição, filósofo. Monge, os mercados são as moedas, a empresa nada mais é do que a casa do imperador. Poeta, os mercados são as feiras livres, a empresa nada mais é do que uma bodega, assim como essa taverna.
Certo, Cronos! Bom, as possibilidades da filosofia são muitas, desde que se vá a fundo na questão ou problema enfrentado. A partir da própria prática filosófica, procura-se resolver a questão ou objetivo proposto. A partir daí, coloca-se a solução encontrada em prática, pois o problema é teórico. Forma-se a teoria, retirando os dados da prática, especula-se a solução coerente com a prática proposta, chegando-se a uma solução final, que está sendo colocada em prática.
Assim, modifica-se o processo do compreender e modificar a realidade estrutural social, econômica, científica. Mas sobretudo, a modificação da realidade humana está pressuposta. Sem o humano, a máquina é sucata.
O que é máquina e sucata?
Monge, sucata é o equivalente de lixo.
O que é lixo?
É sujeira.
E máquina, o que é?
É um tipo de criatura mágica, que faz o trabalho de mil homens antes do sol se pôr.
Chega de exposição, filósofo. Tem coisas que não devemos contar. Sabe, lição de prudência.
Claro, Cronos, claro! Mas me diga uma coisa, anfitrião; devemos ter prudência de quem?
Filósofo; só o tempo irá dizer.
 Vou só terminar de expor o método de filosofar, em resumo. Tudo bem?
Claro, filósofo! Na taverna de Cronos, todos são bem-vindos!
Bom, como eu ia dizendo, vou expor resumidamente o método de filosofar.
 Fala logo, seu enrolador!
Tenha paciência, viajante!
Eu, taverneiro Cronos, digo a todos vocês: - Não tenham pressa, há-há-há!
Bom, terminado a exposição, revisando:
O método do filosofar consiste em ir a fundo na questão-problema sobre uma questão prática do dia a dia. Especular soluções teóricas até chegar a uma solução prática, por em práxis a solução no cotidiano.
As pessoas não estão acostumadas a verem suas realidades modificando-se, ainda mais com uma ferramenta invisível, que um louco diz possuir. Como esta ferramenta não é visível, nem tocada, diferentemente de quando se toca uma chave de fendas, por exemplo, o senso comum, doravante denominadas àquelas pessoas que apenas desconhecem esta ferramenta invisível. Estes, dizem em linguagem comum que a filosofia é inútil.
Como essa ferramenta tem possibilidades ilimitadas, dadas suas riquezas e do portador que a carrega e possui, que ouse!
Quem for o portador desse tipo de saber, que o use em benefício de si próprio e dos outros, para ajudar a humanidade a sair das trevas, dos erros e da ignorância. Tal conhecimento não deve ser fechado, mas aberto a um número cada vez maior de pessoas, desalienando as pessoas acerca de seus próprios preconceitos em relação ao pensador, a si mesmos e aos demais.
 O filósofo se distancia do cotidiano apenas para ir a fundo nos problemas que o envolvem cotidianamente. Depois, o filósofo retorna, pois ele não é nenhum asceta, vive e atua na sociedade prática, diz a sua palavra, com as respostas e discernimento próprios da filosofia, em sua prática. Prática mesmo, trabalho humano, labuta, comprar, vender, lutar pela sobrevivência. As soluções, que partem de princípios teóricos, são validados efetivamente na prática do cotidiano.
Perdoe-me a intromissão. Eu sei que é uma exposição magnífica. Em minhas andanças, estive a pernoitar na casa de um monge. Escutei uma conversa parecida com a sua, quando tentava dormir. Era uma discussão infernal na casa do monástico. Devia haver uns oito monges, a contar pela distinção das diferentes vozes, e no meio da conversa, escutei:
Os empiristas é que estão certos!
Não, os racionalistas é que estão!
Então, poderia me dizer, caro filósofo, se essa minha colocação tem a ver com o assunto em questão?
Posso, mochileiro viajante. Os racionalistas vêm de uma vertente filosófica, onde a razão prevalece sobre a observação. Estão inclusos entre esses o Descartes, Kant, Hegel, além de inúmeros outros. Já os empiristas acreditam que a observação tem predomínio sobre a razão, o real é o que está sendo observado. Incluem-se nessa categoria Salvador Dali, hume, Darwin e o bicho papão. Para os racionalistas, a observação não garante nada. Daí a briga. Mas te direi que, tanto os empiristas quanto os racionalistas poderão confirmar, na prática do dia a dia, as soluções da filosofia, esta ferramenta de problemas e de soluções, que pode se fornecer a qualquer um , desde que se esteja no empenho de treinar o seu cérebro na resolução dos problemas, e de modo rápido, caindo menos no erro cotidiano.
Você pode fazer a citação de um filósofo famoso?
Claro, monge, claro! Citarei Feyerabend, um mestre do meu mestre, ele disse:
O processo é mais importante do que a estrutura!
E você, o que pensa da vida?
Mago, eu parto do pressuposto de que a vida é um problema. Se não é uma verdade universal, é uma verdade particular. Como cada um de nós vive uma vida particular, começo a resolver os meus problemas particulares. Também acredito que um problema não se resolve, esteja ele em qualquer nível, se não estiver arraigado na prática do dia a dia. A filosofia dá a resposta, desde que se tenha um problema. Saibam usar bem esta ferramenta.
Que divino!
Fenomenal!
Clássico!
Da hora!
Barbaridade, Tchê!
Obrigado! 
Tu, mago, que adentraste na exposição, só tem isso a dizer? Fazer colocações, é tudo o que tens para oferecer?
Não, filósofo, em absoluto! Se Cronos me permitir, gostaria de contar a todos os presentes nesta taverna, uma história que meu mestre expôs antes de eu partir, é a história do tolo e do sábio, uma lição de prudência.
Claro, meu caro monge! Fique à vontade. Cronos não tem pressa.
Essa eu quero ver!
Verás, mago. Todos vocês verão. Mas terão de colaborar com a história, que é bem mais curta do que a vasta erudição do filósofo, embora encerre em si bastante energia, como uma semente de arroz a ser plantada em solo fértil. Peço-vos um pouco de silêncio, contarei a historíola sem interrupções.
Concordamos! Traga mais Cronosbier, taverneiro!
É pra já! Cronos não perde tempo, há-há-há!
A narrativa que lhes farei é sobre o tolo e o sábio.
O tolo e o sábio se enquadram na mesma categoria. O sábio sabe que não sabe e o tolo não sabe que não sabe. Logo, os dois não sabem. A única diferença entre os dois consiste no fato de que o sábio, sabendo que nada sabe, aprende com os erros, se tornando prudente. Portanto, torna-se um sábio.
Já o tolo, não sabendo que não sabe, desde sempre acha que sabe. Não percebendo seu erro, o repete, com o demérito de não ter aprendido nada. Que o tolo sirva de exemplo, para quem pretende ser sábio.
A virtude do sábio é a prudência.Antagonicamente, a não virtude do tolo é a imprudência. No fim, o sábio se reconhecendo tolo, é sábio. E o tolo, se reconhecendo sábio, é tolo. E o tolo, quando se reconhece como tal, é um tolo sábio. O sábio, se reconhecendo enquanto tal, é um sábio tolo.
No fim, tolo ou sábio, o homem se enquadra na mesma categoria, que é a de ser o que é, em sua essência. O ser é aquilo que o homem é, independentemente de ser tolo ou sábio.
Fenomenal, Monge! Por causa dessa delirante exposição, irei te mostrar o futuro.
Mago, eu não tenho interesse em ver o futuro!
E por quê, monge?
Por que o tempo não existe!
Bravo, meu caro monge!
Cronos, concordas que o tempo não exista?
 O tempo e o espaço existem, mas nós só podemos conhecer os fenômenos. Para, mim, Cronos, como eu poderia negar o tempo? Eu sou o deus dos tempos, meu amigo!
Mago, nesse caso, quero ver o passado, a caminhada que fiz. Mais, quero ver também o que aconteceu e acontecerá com o templo de Schaolim. Mas, estamos em que época, afinal?
Está no tempo eterno, caro monge, assim como todos nós.
Tempo eterno? O que é isso?
Meu mochileiro viajante apressado, estamos em um vórtice do contínuo, uma espécie de quarta dimensão, que está além do passado,presente e futuro.
Que coisa mais poética, estamos na taverna do deus do tempo!
É isso mesmo, poeta!
Mas como será que isso foi acontecer?
Não sei, amigo filósofo. Talvez devêssemos perguntar ao nosso anfitrião.
Não é necessário. Cronos já sabe de todos os acontecimentos.
Realmente, mago!
Eu vou aceitar teu presente, mago. Assim, terei uma visão sobre o que virá. Vou entender que o que não fiz será considerado futuro. Se queres retribuir minha exposição com este mérito, eu o aceito.
É mais do que isso, monge. Verei se posso usar minha magia daqui da taverna. Se eu puder, teremos uma chance de escaparmos das garras de Cronos.
Sábio, realmente. Mas, como foi que viemos parar aqui mesmo?
Filósofo, boa pergunta. 
Realmente, não sabemos.
Minha teoria é de que Cronos apagou nossas lembranças recentes.
Mas por quê, filósofo?
Não sei. Meu Palpite é que esta situação possa ser uma espécie de jogo, mochileiro viajante. Acho que devemos todos utilizar a magia do mago, a fim de vermos nossos destinos futuros. Se o destino se revelar a nós, e tivermos uma história de vida, é sinal de que haveremos de sair daqui.
Acho que todos concordamos com isso. Eu, na qualidade de mago, fornecerei a visão do destino futuro à todos, mas para não quebrarmos o joguete de Cronos, certo é que continuemos as exposições, principalmente daqueles que ainda não se apresentaram.
Quem fará a próxima apresentação?
Não sei, filósofo. O poeta, quem sabe.
Eu aceito. Isto é tão bonito!Declamar versos e poesias na taverna de um deus...
Vá lá, enquanto eu me preparo. Vocês outros, disfarcem! Vou invocar a magia dos destinos de todos, enquanto o poeta declama. Disfarcem, Cronos vem vindo!
Ora, ora, ora! O que teremos ainda, além de suas patéticas apresentações?
Cronos, eu quero recitar uns versos, você me permite?
Claro! Um poeta, legítimo. Vais declamar o que?
Não é uma poesia, é quase um canto.
Cronos deseja a todos que se sintam em casa, se é que isso é possível, he-he-he!
É sobre as raízes e a liberdade.
Tudo bem, pode declamar, amigo poeta.Servirei mais uma rodada de Cronosbier, por conta da casa.
...sou um pássaro, que busca refúgio entre os galhos. Sobrevôo as paragens e vejo árvores mortas e galhos secos.
Grandes árvores estão maravilhosamente belas, mas são poucas. Elas se alimentam e se mantém assim somente porque secam e sugam as árvores menores, que ainda sobrevivem pelo sopro das grandes árvores.
Eu sou um pássaro a observar estas coisas e o mundo à minha volta. Eu só quero um galho, no qual eu possa me apoiar. Eu observo em volta, vou apoiar-me em um galho volumoso, de uma grande árvore. 
Vejo outros pássaros em volta, apoiando-se em galhos menores e secos. Observo também outros pássaros morrendo, de tanto voar e não ter galho que os sustentem, devido à fraqueza. Só encontram galhos quebradiços, sendo esta a sorte da maioria dos pássaros.
Eu só quero plantar uma árvore, para um dia ter o meu galho e poder construir o meu ninho, sendo então o meu sustento. Que suas raízes sejam o meu alicerce, embora eu esteja à mercê das grandes árvores. Mas elas também estarão a minha mercê, sem saberem.
Talvez, um dia, eu plante muitas árvores, para que eu possa ajudar meus amigos pássaros, sendo assim, mais solidário do que um galho de uma árvore seca e doente. Para isso, ao inferno irei para plantar a minha semente. Ela criará raízes lá.Estando sólida, crescerá, terá muitos galhos e os seus frutos serão apreciados no céu, onde voam e observam os melhores pássaros, que poderão lá se instalar...
Tocante, meu poeta!
Obrigado, taverneiro Cronos! Se não for pedir muito...
O que quiseres, o que quiseres...
Gostaria de um momento de privacidade com meus amigos.
Tudo bem, vou buscar mais bebida! A propósito, haverá mais apresentações?
Claro, taverneiro Cronos! Mas eu e meus amigos precisamos de um pouco de tempo, para apresentarmos apenas o melhor, em tua homenagem!
Claro, tempo é comigo mesmo. Vou dar-lhes um tempo. Mas já aviso que vou demorar em trazer a bebida.
Tudo bem, nós concordamos!
Até mais, então!
Ufa, que alívio!
Que coisa mais brega!
Mochileiro viajante, não é hora de críticas! Estou abrindo a visão do destino para todos, olhem nesse espelho que carrego, e verão a si mesmos no futuro, alguns verão também o futuro distante. Só tem um detalhe:
Todos nós veremos o futuro alheio. Vocês têm certeza de que querem compartilhar com os companheiros da mesa, a visão de seus próprios destinos?
Concordamos!
Conforme o prometido, veremos então o destino do monge. O destino se apresentará quando abrirmos o livro da vida, que eu carrego comigo. Quando eu colocar o espelho em cima das páginas, a história do monge surgirá.
Mas esse livro está em branco!
Caro filósofo, não é o momento de questionar, tem de crer para ver! O livro em branco é apenas um artifício, assim como o espelho. Mas se acreditarem, verão para crer!
Eu quero que todos, em especial o monge, se aproximem. Olhem atentamente para o espelho em cima do livro de páginas em branco. Olhem fixamente para o espelho e os livros, até que as imagens apareçam. É importante que, ao verem o destino do monge, não digam absolutamente nada, qualquer palavra além daquelas que eu vier a proferir, dissolverá a magia. Concordam?
Concordamos.
Então, vamos começar...
Estamos vendo...
  O monge Schaolin dirigiu-se ao Mestre Tong Long e disse:
 "Eu devo partir, Mestre Tong Long. Preciso encontrar meu caminho!"
 Mestre Tong Long observa-o. Ambos estão sentados um de frente para o outro no Mosteiro de Schaolin, Norte da China, ano de 430a.C.
 "Lembro-me de quando chegou ao mosteiro. Estava cansado, desmaiou ao chegar na porta do templo. Estava cheio de feridas de mordidas de cães e golpes de espada", disse Mestre Tong Long.
 Já faz sete anos desde o ocorrido, e Fei Long, nome dado pelos monges, não sabia quem era. Após o desmaio, sofreu de amnésia, e desde então, não conhecia seu passado.
 "Nunca ninguém veio procurá-lo, disse o Mestre Tong Long. Você é um monge Schaolin. – Por que procurar pelo que você era, se você já é?" 
 "Porque eu sou Mestre, mas não sei o que fui. Se fui alguém mau, devo reparar o erro. Se fui alguém bom, devo reparar alguma injustiça, afinal, fui perseguido".
 O Mestre sorriu.
 O Templo de Schaolin é famoso na China pelo seu Kung-Fu. Os monges passam treinando boa parte do dia. Aliás, o treinamento do Kung-Fu é composto de duas partes: formal, onde os monges adestram o corpo e informal, onde tarefas simples, como pegar água no riacho, plantar e conviver são feitas de forma a melhorar o Kung-Fu. Os monges têm uma dura rotina. Levantam às 04hs da manhã para orar. Às 06hs da manhã, começa a meditação, prolongando-se até às10hs. Até o meio dia, divisão entre horta, água e cozinha, das 13hs às 18hs, Kung-Fu. Das 18hs às 20hs, orações. Das 20hs às 21hs, comem pão e vinho e contam histórias. Após esse período, vão dormir.
 Monges Schaolin não comem carne. Para eles, todos os animais são sagrados e não devem ser mortos. Nem no arado. Se uma minhoca for morta, todos os monges recebem duros castigos. Todos pagam por um. Ficam jejuando por cinco dias sem alterar a rotina.
 Tong Long passava a vida inteira no Templo. Foi abandonado pela mãe, uma camponesa que perdera o marido, aos oito anos, nas guerras provinciais. Sem conseguir se manter, abandonou o filho na Porta do Templo, enforcando-se pouco tempo depois.
 Mestre Tong Long foi adotado pelos monges e se tornou especialista na arte de curar, sabendo de cor e salteado as propriedades de, no mínimo, cinco mil ervas tradicionais. Tong Long cuidou e salvou Fei Long de uma morte certa. Fei Long sabe disso.
 Todos os anos, os monges abrem suas portas, à população, por três dias apenas. São quando os voluntários se apresentam para se alistar como monges Schaolin. Se passarem pelo teste da serpente, farão votos de obediência e de castidadeabsoluta.
 Fei Long não fez o teste da serpente, ele já foi testado pela maldade de uma serpente maior, a serpente humana que quase o matou.
 Uma naja pode, com uma picada, matar 10 homens. Cada convidado tem de tocar sua cabeça. Àqueles que não passam no teste são medicados e têm de ir embora. Todo ano há voluntários a entrar no templo. E alguns conseguem. Suas cabeças são raspadas, simbolizando o corte com o mundo exterior, sendo queimadas de forma a deixar impresso seis furos, símbolo da iluminação. Os monges não têm direito a cobertas, só duas roupas para o corpo e uma sandália. 
 Fei Long aprendeu bastante. Tornou-se hábil no Kung-Fu e também um bom cozinheiro. Mas não estava feliz. Ele tinha de saber quem fora no passado e descobrir o que o destino estava lhe reservando.
 Sentia-se, às vezes, amargurado e entristecido, mas ele não sabia o porquê. Tinha sonhos de vez em quando e era sempre o mesmo, isto é, vinha-lhe à mente, a repetição de seqüências desconexas de uma mulher, entregando-lhe um pacote, uma mulher velha e feia, toda rugosa e de idade indecifrável.
 Tudo desaparecia. Um grito. E Fei Long acordava na madrugada, todo suado e tremendo.
 " Quem será esta anciã "?
 "Preciso procurar a resposta!"
 "E foi assim, Mestre Tong Long, que resolvi partir. Preciso saber quem sou eu e quem é a anciã do meu destino".
 Mestre Tong Long ficou preocupado, dizendo-lhe:
 "Fei Long, os demônios e anjos têm várias faces, é natural que se apresentem de várias formas. Você procura por seu destino, que é o destino de todos nós, ou seja, a felicidade. Os anjos podem facilitar o caminho, e os demônios, o inverso. Às vezes, você não saberá quem cruzou seu caminho, pois o universo transforma o mal em bem, e, às vezes, um bem será um mal. Se conseguir observar com agudeza de espírito, perceberá o anjo que cruzar seu caminho, e o seu inverso também. Lute pelo bem, pois será você a iluminar e dissipar suas próprias trevas e a dos outros à sua volta. Quem acende uma vela é o primeiro a iluminar-se".
 Fei Long sentia-se maravilhado com as iluminações e clareza espiritual do Mestre Tong Long.
 "Realmente um sábio", pensou ele. E se eu não conseguir saber se quem cruzar meu caminho será bom ou mal? E se eu seguir o caminho errado?"
 " Você carregará com você uma parte de mim", disse Tong Long.
 "Serei seu guia interior”, lembre-se apenas disso. Caso não saiba se quem cruzar seu caminho será anjo ou demônio, use apenas essa máxima: "Seja sincero com você mesmo e com o outro. Se for um anjo, se alegrará; se for demônio, o deixará em paz e irá embora".
 "O demônio gosta de propor acordos e se esconde atrás da fragilidade, da doçura e da inocência. Guarde bem estes aspectos. Se forem verdadeiros no outro, ficarão; senão, elas cairão. Pois vale mais ser condenado pela verdade do que pela mentira. A mentira não dura, apenas a verdade fica. O guerreiro da verdade sempre tem espírito nobre, porque busca a felicidade no seu destino".
 E Fei Long meditou, profundamente, sobre essas verdades. Isto faz parte do treinamento de um Monge Schaolin - O treinamento espiritual, onde o guerreiro é forjado no fogo da verdade, para vencer seus demônios internos e externos e manter um diálogo com o mestre interior, e os anjos que encontra pelo caminho, para percebê-los, porque embora visíveis, nem todos os enxergam. 
 "Estão muito ocupados em arar a terra e com o comércio", pensou Fei Long. “Mas a divindade nos cerca, forçando-nos a ver mais além”, disse o monge ao Mestre. E o Mestre encerrou o diálogo dizendo: 
 "Por fim, todos verão o que está, aparentemente oculto, tal qual a criança que brinca de se esconder com seu amigo invisível, que se revela anjo. Invisível para os cegos, para os que embotaram a sua pureza original do coração com as mágoas e desilusões. Continue treinando, Schaolin, e terá seu mestre interior como amigo e conselheiro e siga sempre a sinceridade do coração, e seu guia iluminará sua vida. Os anjos o tentarão, mas isso faz parte do caminho do guerreiro na busca do seu destino, de sua felicidade!".
 Fei Long dormiu tranqüilamente. Iria partir pela manhã.
  Uma estranha névoa no quarto de Fei Long estava aumentando em conjunto com a chuva fina do lado de fora de seu quarto.
 " O que está acontecendo aqui?" 
 Tem ele um sobressalto. Neste instante, o nevoeiro começa a ganhar forma, a forma de uma velha, e está carregando um pacote.
 " Aceite este pacote"; disse a velha, enquanto Fei Long a observava, sem conseguir se mover ou gritar. Neste instante, uma outra figura parece emergir da névoa. Tal o espanto quando ele vê claramente a figura: 
 " Mas este sou eu, pensa; enquanto anseia um grito que não sai de sua garganta. Era sim um Fei Long saindo da névoa, com um sinistro ar de morte, um ser cadavérico, que segurava em uma mão a cabeça de uma pessoa, firme pelos cabelos, enquanto a velha se aproximava, quase a ponto dele ver o que havia no pacote, quando de repente... um grito ecoou de seu quarto!
 Acordado banhado em suor, ele sentiu um alívio. A chuva ainda caía com força no meio da madrugada, ele reparou que sua janela estava aberta.
 Não saberia ele dizer se foi a tempestade que abriu a janela, ou se tinha esquecido de fechá-la. Isso não importava. Ele estava ainda devidamente assustado para pensar em alguma possibilidade mais sinistra, que poderia fugir de sua compreensão e agudeza racional.
 De qualquer maneira, Fei Long fechou a janela. Seu quarto estava molhado pela tempestade.
 Ao olhar para o chão, percebeu algo estranho. Várias pegadas reluzidas pelos raios em contraste com a umidade.
 " Será que eu sonhei ou estas pegadas são minhas?" pensou Fei Long. Ao observar as pegadas, percebeu algumas maiores, e outras menores que as suas.
 " Deve ter sido eu, pensou. Já que a umidade não mantém o padrão do solado, deformando as pegadas, afinal, eu acordei sobressaltado, devo ter caminhado a esmo pelo quarto, enquanto me recuperava do susto"!
 Fei Long, durante a manhã, resolve partir. Os monges se reuniram em fileiras na Porta de saída do Templo com incensos em mãos e cantando sutras. Com isso, asseguraram ao monge a boa sorte em sua jornada.
 O monástico arrumou suas duas mudas de roupa, seu par de sandálias, sua flauta e o mais importante: Seu destino!
 "Após começar a busca pelo seu mistério pessoal, o caminho será apenas de ida, mesmo que retorne ao templo, o que eu, como monge não poderia desejar, pois o desejo traz o sofrimento, mas se você retornar, meu coração se alegrará, se for esse seu destino, e também se for outro o caminho. Estarei sempre com você, serei seu guia interior”, estas foram as últimas palavras do Mestre Tong Long antes das portas do Templo se fecharem para o monge do lado de fora.
 Fei Long não se despediu, pois ele e seu Mestre já haviam conversado tempo demais.
 O monge avista o horizonte.
 "Encontrei a bússola do meu destino", pensou. E seguiu caminhando durante todo o dia para chegar ao vilarejo mais próximo e, quando estava avistando-o ao longe, teve de parar. Algo o deteve.
 Vindo de algum ponto desértico, pois naquela estrada (melhor dizer caminho) não havia postos militares nem água, apenas um deserto seco que cruza desde o Templo até o vilarejo mais próximo; um homem lhe acenava, pedindo-lhe para parar. Fei Long ficou curioso, e como era monge Shaolin, poderia ter, então, a chance de praticar alguma boa ação.
 Então resolve esperar.
 Vindo ao longe, o sol causticante, somado ao vapor que saía do solo, fazia a estranha figura parecer uma miragem, um ser lúdico. Ao se aproximar, via-semelhor suas feições. Era magro, roupas velhas, "Um mendigo talvez"; pensou Fei Long, mas ele reparou em mais um detalhe: O estranho moço (devia ter uns 28 anos), à medida em que se aproximava, carregava nas mãos dois pacotes.
 Fei Long, rapidamente, lembrou-se de seus sonhos terríveis com a velha que segurava um pacote, mas que ele nunca vira seu conteúdo.
 Daí percebeu que, talvez, não devesse esperar. Mas era tarde, o jovem rapaz já se aproximara demais. 
 "Por gentileza, caro monge, o senhor poderia me ajudar?" disse o estranho rapaz.
 "Em que posso servi-lo?" – disse Fei Long.
 Disse o rapaz: "Estou meio perdido, preciso fazer uma escolha. Tenho estes dois pacotes, os dois são valiosos, mas para seguir meu caminho, eu preciso trocar um destes pacotes, e você me parece ser a pessoa ideal!"
 Disse Fei Long:
 "O que tem nos pacotes?" 
 "Tem algo valioso nestes dois, mas você só poderá ver o que é após trocar", disse o estranho jovem.
 Fei Long redargüiu:
 "Você aparece não sei de onde com dois pacotes, me oferece uma troca por algo que eu não sei o que estou levando, e não sei ainda o que você quer em troca, pois sou um monge e não porto bens".
 Disse o jovem estranho: “Se você escolher um dos pacotes, terei cumprido meu caminho, e o que eu quero em troca é apenas a sua escolha".
 Fei Long olhou fundo nos olhos do jovem estranho. Eram olhos vivos, de quem estava desesperado. Aí percebeu o que o jovem queria: Trocar um dos pacotes pela sua escolha pessoal. O monge percebeu que o poder da escolha é uma das coisas mais importantes que ele tinha, o tesouro mais importante que carregava, tesouro que é, mas envolve outras pessoas, que se gosta, que sempre se tem, ou seja, a escolha é um dos bens fundamentais e inesgotáveis onde se pressupõe o livre-arbítrio, a liberdade, dádiva geradora na riqueza da escolha. E era isso que o jovem queria: Que Fei Long lançasse parte da sua riqueza interna, escolhendo um dos pacotes.
 Então ele teve uma idéia.
 "E se eu não escolher?" – disse Fei Long. 
 "Então já terá escolhido", disse o jovem estranho.
 Ele estava confuso.
 "Não custa nada escolher", disse-lhe o jovem estranho. 
 "Mas a escolha implica uma conseqüência", disse o monge. E essa conseqüência pode ser boa ou má, salientou.
 "Que mal fará escolher um pacote?" disse o estranho.
 "Tudo bem, escolherei um pacote com apenas uma condição", disse Fei Long.
 "E qual é?" perguntou o estranho.
 "Que eu possa devolver o pacote a você, caso eu queira fazê-lo", disse ele por fim.
 O jovem estranho ficou um pouco nervoso, pois isto implicaria em ter de aceitar de volta o que já foi escolhido, mas resolveu arriscar.
 "Tudo bem", disse o jovem estranho. 
 "Agora escolha um pacote! ".
 Os pacotes estavam fechados, cuidadosamente, lacrados com o famoso nó chinês, que só os mesmos podiam desatá-los. O jovem estranho colocou os dois pacotes no chão e deu um passo para trás.
 "Escolha!", disse o jovem.
 Fei Long percebeu que o jovem sorria, e seus dentes eram todos pontiagudos. "- O demônio", pensou. Sempre fazendo acordos.
 Mas agora era tarde. Ele percebeu que o jovem, à sua frente, era um mensageiro do mal, que com isso atrasara, consideravelmente, sua chegada ao vilarejo, visto que, logo, a noite cairia.
 Mas tinha uma escolha a fazer. Os dois pacotes brancos eram idênticos, deveria fazer diferença o seu conteúdo.
 Resolveu abrir o pacote da esquerda. Desatou o nó chinês e encontrou um pergaminho. Nele estava escrito: "- Aquele que portar este pergaminho encontrará a luz e terá permissão para abrir o outro pacote".
 "Então posso abrir o outro pacote?", disse Fei Long. 
 "Pode", disse o jovem demônio.
 Ao abrir o próximo pacote, Fei Long encontrou outro pergaminho. Nele estava escrito: “ - Com este pergaminho pode-se enviar qualquer demônio de volta às trevas".
 Fei Long olhou para o jovem demônio, à sua frente, e disse: "Irei escolher?" 
 O jovem demônio nada disse e ficou aguardando o desenlace de sua história.
 "Posso enviá-lo de volta para as trevas com um pergaminho, alçar a luz com o outro e trocar a bebida oculta por algumas moedas", pensou o monge.
 Neste momento, seu Mestre interior lhe disse: "Esta alma veio das trevas e não conhece seu caminho. Você também não sabe de onde veio, tenha compaixão com quem pede a sua ajuda". 
 Então Fei Long disse ao jovem demônio: "Pegue este primeiro pergaminho, ele te levará à luz, este é o nosso caminho".
 Neste momento, o jovem demônio disse: "Consegui fugir do mal e roubei estes dois pacotes. Só uma alma generosa como a sua poderia me salvar. Então, a alma atormentada do jovem rapaz foi envolta em uma luz, e ele desapareceu”.
 Fei Long olhou o outro papel, abriu a aguardente oculta, despejou-a toda em cima do pergaminho, pegou duas pedras, atritou-as, e a faísca fez o resto. Um monge iluminado não precisa de defesas contra as trevas, e a noite que caía foi iluminada pelo fogo.
 Pela manhã, o monge encontrava-se no mesmo local deserto, onde tinha feito as suas escolhas, e uma delas foi a de ter pernoitado por ali. Nem sinal de fogo, nem de garrafa, nem de pegadas.
 "Terá eu desmaiado pelo calor do deserto? Teria sido um sonho? Ou fui pego em uma tempestade, desmaiei e só recobrei a consciência agora? Quem sabe, foi tudo real, e o deserto carregou os vestígios do fogo?"
 Enquanto ele meditava e colocava em dúvida sua sanidade, seu Mestre interior falou: "Foi real para você? Então, foi real, pois conta como experiência válida".
 Fei Long estava com fome. Foi até a alguns arbustos que resistem, naquela região árida, e começou a cavar com as mãos. As raízes daqueles arbustos contém água e nutrientes armazenados, e logo o monge estava saciado, sem fome e sem sede, e pronto para seguir seu caminho, se não fosse por um inesperado acontecimento. À sua esquerda, uma cobra naja que saíra de trás dos arbustos, estava preparada para dar o bote, estava toda enrolada e com a cabeça eriçada. Seu guizo chacoalhava com força. Isso fez o monge recordar que não havia feito o teste da serpente para entrar no Templo, mas vira os aspirantes à vida monástica fazerem os rituais de entrada no monastério. Então, ele se concentrou. Tentou ser a própria serpente, e ele deu o bote, milésimos de segundo antes da naja despejar seu veneno fatal.
 "O golpe da cobra", pensou Fei Long. "Que bom que, ao observar os movimentos da serpente e treinar por sete anos, eu tenha ficado com igual habilidade", pensava ele, enquanto suas mãos firmes seguravam a cabeça da naja. Com grande respeito por ela, tirou-lhe o veneno, pressionando os tentáculos do animal contra uma grande rocha. O veneno escorria em direção ao solo seco do deserto. Após este incidente, ele a deixou ir, e com muito respeito e admiração, o monge ficou observando como ela fugia.
 Então Fei Long continuou sua trajetória em direção ao vilarejo.
 "Em meio dia de caminhada, eu conseguirei chegar", pensou enquanto se lembrava das palavras de um sábio chinês. “Uma caminhada de mil quilômetros começa com um simples passo".
 Então, após meditar sobre essas palavras, o monge caminhou com mais firmeza.
 As rochas e a areia seca estalaram sob seus passos, onde o sol escaldante castigara-lhe o corpo. Seus pensamentos vagaram. Pensava no Mestre, no mosteiro que deixava para trás, no demônio, na cobra e no seu destino, que em parte ele já vira e em parte seguia na busca pelo dever, pela verdade de seu passado. Enquantomeditava, seu espírito se elevava ao mundo das idéias, e o castigo que a intempérie do tempo seco e quente em seu corpo, já não mais o afetava. E, assim, Fei Long estava quase cumprindo parte de sua busca.
 A cidade que o monge avistava agora se tornara mais nítida: Um riacho delimitava a cidade, e a entrada para a mesma era uma ponte, esta ligando a cidade com a sua entrada, que era a divisão entre a parte de fora do riacho e a parte de dentro da cidade.
 Fei Long não perdeu tempo: começou a travessia pela ponte logo após beber a água do límpido riacho.
 Saindo da cidade pelo mesmo caminho em que o monge entrava, estava um homem de porte atlético, aparentemente bêbado, com um ar displicente e fanfarrão.
 "Saia daqui!" Gritou o homem. "Quem de nós vai ceder? A ponte só tem lugar para um homem. Se nenhum de nós ceder, teremos de lutar e forçar passagem, fazendo com que um de nós ceda”. 
 " Vamos apostar?", diz o homem fanfarrão, embora mal-educado, estava aparentemente bem-humorado. Na China antiga, é comum o teste das habilidades marciais de um estrangeiro que chega nos vilarejos. Se o estilo de Kung-Fu do forasteiro for inferior, ele não representa ameaça. Mas se for superior, ele não será bem-visto, a não ser que o forasteiro ensine o vilarejo a aprimorar sua arte, pois agindo, assim, demonstrará que não é do exército imperial ou de alguma Horda de bárbaros, o que poria em risco o lugar, vista a técnica de Kung-Fu, sendo superior e não ensinada ao vilarejo, demonstra que é um risco acolher tal forasteiro, que poderia estar na região, espionando a serviço do imperador, para ver o andamento do comércio, para depois retirar gordos impostos, ou algum espião bárbaro pronto a delatar a cidade a um chefe saqueador de províncias.
 Daí a importância do bom-humor chinês em testar o forasteiro. Se sua técnica for superior, deve-se tomar cuidado; senão, não representa perigo.
 Por isso, os Grandes Mestres do Kung-Fu não demonstram suas habilidades e nem se deixam provocar. Conhecem esta técnica de teste e sabem que poderiam ser confundidos com espiões pelos vilarejos. Como os Mestres pertencem a uma casta de monges que buscam a iluminação e procuram por várias vezes ir às cidades, os camponeses do vilarejo, não sabendo disso, podem pensar que são espiões disfarçados, e o mal-entendido só traria mais confusão. Então os mestres, geralmente, ao irem aos vilarejos, disfarçavam-se de mendigos, pois estes não eram visados e nunca eram testados.
 Assim, o Mestre evitava confusões e tinha, na forma de mendigo, um disfarce de si mesmo.
 Mas Fei Long não havia tomado essa precaução, embora já fosse Mestre; agora é claro, estava sendo testado.
 Precisava dar uma resposta e tomar uma atitude. Foi, então, que algo aconteceu.
 Em Kung-Fu, quando um avança, o outro recua num fluxo constante. Naturalmente, quando uma parte é dura, a outra parte cede.
 Então, era natural que, na ponte, uma das partes cedesse.
 E então uma das partes cedeu. E não fora Fei Long.
 A parte que cedeu foi a própria ponte. Como estava muito velha, e após sucessivas enchentes em que, geralmente, ela ficava embaixo d’água, a madeira apodrecera. Tal como no Kung-Fu, também a ponte não cedeu de todo, apenas as tábuas que sustentavam o homem fanfarrão.
 Fei Long pulou como um tigre e agarrou o homem pelo braço, enquanto procurava se manter firme, trancando os seus pés nos vãos da ponte entre as tábuas que ainda restavam. Concentrando sua energia, o monge puxou o homem para cima, onde este se agarrou nas cordas, enquanto ele o ajudava. 
 "Estas águas são pedregosas ao fundo. Eu não consigo nadar bêbado, provavelmente eu teria morrido. Obrigado meu amigo", disse o homem fanfarrão.
 Neste momento, Fei Long recuou da ponte, enquanto o homem saía da cidade. O monge ficou feliz, já que o episódio lhe trouxe uma lição: "O homem que testa o outro pode no exato momento estar sendo testado por circunstâncias maiores, que estão bem aos seus pés", pensou, enquanto atravessava a ponte, agora sem obstáculos visíveis nem invisíveis, e finalmente adentrava a cidade, onde ele entrara com uma pergunta sobre seu destino, e queria sair dali com a resposta que veio buscar, embora não soubesse qual era. Foi, então, que um camponês o observara ao longe. Ao cruzarem os olhares, o camponês parecia lhe ter reconhecido e fugiu assustado. Fei Long, com certeza, teria sua resposta naquele pequeno vilarejo, situado à 50km do Templo, onde o Mestre Tong Long rezava pela sua boa jornada. O monge ouvira um grito, algo estava acontecendo. 
 Era um assalto.
 A comerciante Win Chun estava completamente desesperada. Um homem com uma faca em sua garganta bem próxima à jugular gritava: "Eu vou matar a camponesa, não se aproximem!" 
 Win Chun não continha as lágrimas. Seu filho de dois anos estava em um cantinho da quitanda de frutas e chorava baixinho, dizendo: "Solta ela senhor, deixa mamã, deixa mamã", enquanto soluçava.
 "Eu vou matá-la!" dizia o homem; "e matarei a criança!"
 Fei Long não podia esperar muito; então gritou:
 "Minha vida pela dela". Em resposta, um leve corte já estava se formando no pescoço de Win Chun, que em estado de choque, começou a tremer.
 "Nada feito!" berrou o assaltante sangüinário. Fei Long estava a uns seis metros do assaltante de cabelos curtos despenteados e de sorriso estranho. 
 "Sim, eu conheço esse sorriso!" Pensou Fei Long. "É o mesmo sorriso que eu percebi no deserto; o sorriso dos dentes agudos do demônio.”
 " Mas ele me é familiar, e não é o mesmo demônio, já que o primeiro foi guiado pelo caminho da luz".
 Fei Long estava ficando sem alternativas, enquanto pensava essas coisas em frações de segundo, quando, de repente, o bandido diz: 
 "Eu o conheço, mas não pode ser, você foi morto pela população. Mas é você mesmo!"
 Rapidamente, ele solta a moça e corre na direção do monge, coloca a faca em seu pescoço e grita para os camponeses:
 "Vou levá-lo, se alguém se aproximar, ele morre!"
 Fei Long poderia ter facilmente rendido o ladrão, mas não se defendeu, quando ele se aproximou, porque um monge Schaolin, quando emprega a sua palavra, a mantém até o final, então ele não hesitou em dar sua vida pela camponesa comerciante Win Chun. A vida alheia é a coisa mais importante para um monge, mesmo que isso signifique sacrificar a sua. Os camponeses também se sacrificam, cultivando este hábito para que suas famílias sigam essa mesma filosofia: sacrificam-se com o trabalho árduo diário em função dos outros membros, mesmo que isso signifique para si mesmo se doar em abnegação, somado às poucas horas de sono e à ameaça de ladrões durante o dia ou noite, tal qual àquele que agora carrega Fei Long como refém.
 "Sairemos pelo outro lado da cidade, não se aproximem", disse o ladrão, e foram distanciando-se do vilarejo. 
 Agora os limites eram incertos, apenas as casas iam sumindo e de novo o deserto, em relação às costas da cidade.
 Win Chun, após o susto, e os primeiros socorros se recuperou, abraçando a criança que dizia:
 “Você tá bem mamã?" Ela dizia emocionada:
 "Mamãe está bem, nenê".
 No coração de Win Chun, algo mais além do que o desespero e a tristeza passaram por ali, embora os dois primeiros estivessem passando e saindo de seu coração, um sentimento maior estava se formando.
 "Um jovem monge, bonito, que nem me conhecia se ofereceu em sacrifício para me salvar". "Que alma nobre", pensou, enquanto seu coração suspirava apreensivo por notícias de Fei Long.
 Ela havia se mudado da província de Henan para àquele vilarejo após a morte de seu marido por bárbaros iguais àqueleladrão. Estes bárbaros vivem em grupos e andam, geralmente, a cavalo, vivem de saques e destruição de cidades, vilarejos, o que encontrar pelo caminho, matam sem piedade velhos, mulheres e crianças. Em uma dessas investidas, seu marido foi morto, ela e a criança fugiram. 
 Então, para sobreviver sem marido, ela juntou o que sobrou do vilarejo saqueado, pois não se consegue roubar tudo, por mais bárbaros que sejam, juntou algumas moedas e veio com o filho montar uma quitanda de frutas e verduras no novo vilarejo. Assim, Win Chun sentiria menos a morte do marido e esqueceria os abusos e estupros que sofrera desde criança por essas hordas bárbaras. Seu coração queria respostas sobre Fei Long.
 O monge se distanciou do vilarejo. O ladrão estava feliz, estranhamente feliz. Não era, simplesmente, a felicidade de se safar com vida daquele lugar, era a felicidade de carregar Fei Long como algo valioso.
 "Isso é estranho", pensou. Nem os bárbaros vendem monges no mercado de escravos, pois não há compradores. Não carrego ouro nem coisa alguma de valor.
 Ele ia pensando no motivo da estranha felicidade do homem e porque não o soltava, já que não era mais necessário um refém. Mais estranho ainda era o fato de que o assaltante já há um bom caminho tinha tirado a faca de seu pescoço, mas a mantinha na mão. 
 "Bom, posso fugir agora, mas procuro respostas, quem sabe não encontrarei algo", pensou Fei Long, enquanto ambos atravessavam uma pequena montanha no meio do deserto.
 Os dois seguiram caminhando em silêncio. Era estranho, pois o homem não parecia temer a fuga dele, e o monge queria respostas, por isso caminhava. Antes de fazer a volta na montanha, o homem lhe disse:
 "Belo plano meu senhor. Embora não esperasse vê-lo mais, sou grato com a minha vida por ter me salvado assim, disfarçado de monge para passar despercebido pela cidade. Você sempre foi bom nisso. O que eu comando em sua ausência, agora, é seu. Estamos escondidos atrás dessa montanha".
 Fei Long estava tonto; lembrou-se do demônio no deserto, da cobra, de Win Chun, de seu Mestre, e percebera que estava a ponto de encontrar a resposta que tanto o angustiava e que agora ele não tem mais certeza se quer encontrar, mas agora é tarde demais para recuar, e sua resposta estaria esperando-o bem atrás da montanha.
 Quando, finalmente, dobraram a encosta, o monge encontra o flagelo da humanidade: a tropa dos bárbaros, a mais terrível e de reputação assassina, açougueiros de homens, mulheres e crianças.
 "Mas não pode ser", grita um cavaleiro. 
 "É ele", berra outro. 
 "Bem-vindo senhor", berra outro. 
 "Ele voltou dos mortos, é um Deus", berra outro, até que com um aceno do homem que acompanhava Fei Long, todos silenciaram enquanto ele disse:
 "Meu mestre e senhor incumbiu-me de liderar a tropa até voltar. Achávamos que após todos esses anos, ele estivesse morto. Agora, como o senhor nos ordenou, entrego-te a liderança novamente, meu senhor. E em um brado de honra, todos gritaram para Fei Long: “Bem-vindo, Ganges Kant!”.
  Fei Long não sabia o que pensar. Não acreditava no que estava acontecendo, mas a verdade estava diante dele, ao menos parte dela.
 "Vamos deixar o mestre descansar", disse um cavaleiro, que reitera: “já que sabemos como saquear a cidade, e Kant gosta de ficar em sua tenda".
 A hierarquia da tribo de saqueadores de Ganges Kant era tão rude quanto disciplinada. Logo montaram acampamento, e cada cavaleiro ofereceu mantos e comida para seu líder; o nosso Fei Long.
 O monge estava ganhando tempo, queria saber mais sobre sua origem, e resolveu aceitar, como um bom general sua posição no grupo.
 A noite caiu. Vinho e churrasco de cobras e lagartos animaram os cavaleiros. Fei Long lhes ordenava que contassem suas histórias sobre ele, e assim começou a perceber o quanto era um espírito tirano.
 "Você se lembra, Kant, quando o dono da província se recusou a entregar o filho?”.
 " Você cortou a cabeça dele bem no meio da praça, há -há- há, e se divertiu bem com ele antes de entregá-lo ao seu pai, não é?”.
 E outro: "Incrível foi a corrida que você fez para pegar aquela criança, ela corria como uma lebre, e quando você foi pegá-la, ela se atravessou na frente do seu cavalo", bem feito, sentiu os cascos do animal”.
 Um terceiro: "Tu te lembras bem no início, quando fostes vendido como escravo por outra tribo quando criança?” Falava o ancião do grupo que reiterou: “Foi assim que provou ser um líder, quando matou sem ajuda o grupo todo que o tinha escravizado após matar toda a sua família! Viva o líder Ganges Kant! - Viva Kant!”.
 "Agora vou me retirar. Um de vocês monte guarda, revezem", disse Fei Long, agora também chamado Ganges Kant, o terrível.
 Fei Long retirou-se para a tenda. Precisava pensar, estava muito confuso. 
 "E se estiverem me confundindo", pensou "Se for verdade, sou um monstro; minha família morreu nas mãos de outros bárbaros, fui vendido como escravo, fui salvo por estes saqueadores assassinos, onde agora sou líder; devo-lhes gratidão por me salvarem da escravidão?”.
 "Estou tão confuso!". 
 "Devo ter sido apanhado na cidade e espancado, eles devem ter me abandonado, então fui salvo pelos monges...”.
 À medida em que ia refletindo, as cenas de sua vida iam se descortinando em "flashes", lembrou-se da fuga na cidade, correu por todo o deserto para escapar do linchamento público e lembrou-se de suas atrocidades e tudo o mais.
 "Sou um monge", pensou. "O que fui no passado não importa!”.
 Mas importava.
 A personalidade do assassino havia morrido, mas a personalidade de Fei Long, com as lembranças do tempo em que era Ganges Kant, o terrível; o fizeram amargurar-se terrivelmente. 
 Chorou amargamente. A dor era tão grande que a única forma de cessá-la era com a morte. Como monge, com certeza, voltaria reencarnado para se redimir de seu último ato desumano: consumir com sua própria vida!
 Mas não teve tempo. Sentiu uma dor forte na cabeça e desmaiou.
 Fei Long está meio tonto; acorda devagar e repara que alguém está entrando em sua tenda, estava escuro, mas o semblante era-lhe familiar. O horror tomou conta de seu espírito:
 "É a velha com o pacote na mão!", pensa, mas como sempre não consegue gritar. A velha se aproxima, e desta vez ele toma coragem e a encara. Vê um semblante cadavérico, tal qual um zumbi.
 Ele treme, mas observa-a se aproximar. Os membros de Fei Long estão paralisados de terror, mas ela mostra-lhe o pacote, e finalmente consegue ver o que tem dentro: uma espada. A velha retirou a espada do pacote, e com reverência, disse:
 "Estou esperando". "Termine logo com isso". O monge estava horrorizado, petrificado; porque agora, após todos esses anos, descobriu quem era a velha.
 "É a morte!" Pensou Fei Long.
 Estranhamente, seus membros voltaram a reagir. Fei Long pega a espada. Ele observa a morte, e em um rápido golpe, desfecha o seu destino. 
 Era o fim da morte. O monge desfechou o golpe de modo certeiro na cabeça, decepando-a.
 A cabeça rola pelo chão até a saída da tenda. Seu corpo bizarramente saiu andando atrás da cabeça.
 Ele acorda gritando. Estava contente. Sabia que havia vencido a morte, e que a velha não mais o importunaria.
 "Tudo não passou de um pesadelo", pensou ele, aliviado. 
 Ao lado de onde dormia, pendia ao chão uma espada.
 O monge então se deu conta de que precisava resolver sua situação, e começou acabando com a morte.
 "É isso; devo acabar com a morte e com as matanças", pensou Fei Long. "Mas se eu os entregar, elesmorrerão; como posso eu evitar a morte matando?". 
 E assim ele foi meditando, enquanto os cavaleiros aguardavam uma ordem sua para atacar.
 "Vamos esperar mais dois dias para atacar a cidade", disse Fei Long, e os cavaleiros obedeceram. O monge acabara de barganhar com o destino algo fundamental: O tempo. Tinha dois dias para definir a forma de resolver a situação, decidindo o que melhor fazer, resolveu, então, escutar o seu mestre interior.
 Os monges de Schaolin podem ficar até trinta dias em profunda meditação, sem água e sem comida, controlando apenas com a força mental seus corpos, enquanto seus espíritos, em busca de iluminação vagueiam entre as diversas realidades.
 Mas ele não tem todo esse tempo. Ele tem de agir rápido. Então, procurou ouvir seu Mestre interior, de modo rápido e prático.
 "Use seu coração”, Fei Long! A busca pela verdade o manteve no caminho e o guiou, busque manter a verdade; mas saiba que o mal não pode perdurar!”.
 Após orar, fervorosamente, à Buda para alcançar a graça da iluminação referente a essa situação, o monge teve uma visão: " Uma águia sobrevoava o povoado". 
 Então, ele descobriu o que fazer.
  "Tenho de voltar à cidade", disse Fei Long aos bárbaros.
 "Então, iremos com você, mestre Kant", disse um dos cavaleiros.
 "Faz parte do plano", disse o monge; " tenho de voltar para lá e ganhar a confiança do povoado". " Eles devem estar reforçando a guarda pelo simples fato de vocês terem me levado, pensando que eu era um monge". "Se eu voltar e ficar algum tempo lá, verão que eu estou bem e, então, direi aos camponeses que vocês já foram embora naquele dia em que eu fui levado por vocês". "Assim, que eu sair do vilarejo, volto e atacaremos, já com a guarda da cidade mais relaxada".
 "Magnífico senhor Kant, dono da coragem, bravura e sabedoria, nosso líder; sua palavra é ordem!" Assim bradaram os cavaleiros, e todos obedeceram. E Fei Long começou a caminhada de volta para a pequena cidade, o vilarejo.
 " Ele não nos puniu!" Disse um cavaleiro. "Nós o abandonamos para ser linchado por aquele pessoal do vilarejo, e ele nem tocou no assunto!" Disse o outro. " Calem-se!" – disse o mais velho. "Ganges Kant é o líder, o mais leal de todos nós". " Vocês têm sorte de não terem as cabeças decepadas pelo Mestre", concluiu o velho cavaleiro.
 E prometeram, entre eles, não tocar mais nesse assunto.
 Fei Long estava conhecendo agora o outro lado do deserto que leva à cidade. Caminhando devagar, já que da última vez que passara por ali estava confuso e absorto em pensamentos, agora podia vislumbrar melhor a paisagem, já que tinha o plano que melhor resolveria o problema de toda àquela situação.
 O deserto, os rochedos e a vegetação rasteira que insistia em crescer em solo infértil colocaram o monge a meditar:
 " Estes arbustos são fortes". "Insistem em crescer em condições tão pouco propícias". " Por isso são fortes, porque virem em condições difíceis, com péssimo clima, e são elas que fazem a beleza do lugar". E os arbustos ensinaram a Fei Long que os homens em tais condições podem tal como o arbusto criar raízes fortes mesmo em lugares difíceis, em solo duro, e tal como os arbustos, estes fazem a diferença no meio do deserto.
 "Estou mais animado!" Pensou.
 "A natureza nos fala, só precisamos ouvi-la!" Meditou.
 E sentindo-se mais confiante pela lição que o deserto lhe ofereceu, seguiu em segurança, pois sabia que se sentisse fome ou sede, um arbusto de firmes raízes estaria sempre disposto a lhe ofertar água e uma parte de sua raiz para comida.
 "Mesmo em ambiente hostil o arbusto é generoso", pensou o monge, enquanto seguia pelo seu caminho de iluminação.
 Ele passou por algumas colinas e morros, e já via a cidade ao longe quando ao lado de um arbusto algo lhe chama a atenção.
 "Não pode ser", pensou Fei Long, "como você pode estar aqui, Mestre Tong Long?”.
 A figura do Mestre lhe sorria. A alegria do monge logo começara a se transformar em espanto: O mestre estava sumindo, como se evaporasse no ar.
 "Deve ser o calor, isto causou a miragem", pensou; e seguiu adiante.
 A noite estava caindo, ele teria de, inevitavelmente, dormir no deserto, fazendo companhia às estrelas, aos escorpiões e às cobras, sem falar, é claro, nos arbustos.
 O monge estava cansado de caminhar o dia todo ao sol no deserto, e não teve muitas dificuldades em adormecer. Quando um homem adormece, uma jornada termina, e outra começa em um mundo todo particular, o mundo dos sonhos. Este mundo pode ser mais revelador do que o mundo dos seres que estão acordados, e é, exatamente, nesta jornada ao obscuro mundo do subconsciente que o nosso monge Fei Long vai achar mais algumas respostas sobre seu passado, este tão oculto quanto um sonho.
 A noite inebriante e refrescante do deserto pode colocar o homem mais forte a nocaute. Caso este caminhe durante o dia quente e seco. Fei Long como monge Schaolin é bem treinado e tem um corpo resistente, caminhando duas vezes e meio, o que um homem forte comum caminharia. Ele, simplesmente, deitou e dormiu no primeiro lugar em que se sentou.
 Na noite, um deserto guarda tantos mistérios quanto um sonho, mas nenhum tão traiçoeiro quanto uma tempestade de areia em plena madrugada.
 A tempestade surge de repente, ele acorda. Encontra-se ao relento no meio do nada. A tempestade avança. O monge cobre o rosto com um pano extra que carrega no seu hábito. A tempestade é implacável. Rodamoinhos de areia e vento circundam à volta. Um deles se aproxima de Fei Long.
 "É o fim", ele pensa .
 "Ficarei soterrado por centenas de metros de areia". Nesse momento, o rodamoinho envolve-o. Ele procura resistir, mas é inútil. O monge perde a consciência.
  "Acorde, hoje é o dia do seu julgamento; seu bárbaro nojento, ainda bem que o pegamos. Seus amigos te abandonaram, não é? Com certeza, serás condenado à morte", disse o carcereiro.
 Fei Long estava preso, e só lembrava-se da tempestade. " Alguém deve ter me salvado", pensou.
 "Mas como vim parar nesta prisão? Condenado à morte?" “Mas eu sou um monge", disse; e começou a gritar: "Sou um monge, onde me acharam no deserto? E a tempestade?" gritou em desespero.
 O carcereiro disse:
 "Monge? Achar no deserto? Tempestade?"
 "Você não vai me enganar, Ganges Kant. Não te pegamos no deserto, te pegamos aqui no vilarejo, não bastou matar mulheres e crianças, agora vem mentir que é monge? O que você veste é por acaso roupas de monge?"
 Fei Long ainda estava meio atordoado, não havia reparado em seu próprio hábito, de tal sorte que o observou após os comentários do carcereiro. Eram roupas de um general bárbaro. Ele não estava entendendo o que estava acontecendo; e de repente lhe veio a lembrança.
 " A tempestade de areia!" "Não sei como, mas voltei ao passado". "Tenho de dar um jeito de fugir daqui e procurar meu mestre Tong Long". Só ele vai entender e me ajudar nessa situação! Santo Buda, meu mestre ainda nem me conhece neste tempo, pensava enquanto conhecia uma vertente de suas faces, a maligna, como Ganges Kant, e a benigna, como o monge.
 Fei Long meditou profundamente: " Sou Ganges Kant a sonhar que sou Fei Long, ou sou Fei Long a sonhar que sou Ganges Kant ?" Pensava, quando seus pensamentos foram quebrados pelos gritos que vinham da praça.
 "Preparem os cavalos", ordenou o juiz, que era o aldeão mais letrado do vilarejo. "Hoje vamos ter justiça".
 Uma das tradições dos chineses antigos era a forma de punição. Dois cavalos são preparados com cordas de couro, ficam de costas um para o outro, com um espaço entre eles para umhomem.
 O criminoso é amarrado com couro nos braços, onde um cavalo se fixa a uma ponta, e nas pernas, onde o outro cavalo se fixa a outra ponta. O indivíduo criminoso fica aguardando até o juiz dar o sinal. Os cavalos são espetados ao mesmo tempo em seus traseiros, e eles correm em sentidos opostos, arrancando braços ou pernas do criminoso pelo impulso, e onde este será arrastado por um dos cavalos, já que o outro animal estará só com suas pernas ou braços.
 Fei Long sabia disso, e precisava fugir.
 "Ouvi muito falar de você", disse uma voz vindo do fundo da sela.
 Agora Fei Long reparou que não estava só. Ao fundo da sela, estava um homem alto, barbudo e com ar de quem disfarça um claro nervosismo.
 "Quem é você?" pergunta Fei Long.
 "Sou Reltih Klan e venho do meio oeste". Fui pego por matar a filha do juiz, esse juiz aldeão deve morrer".
 "O que você sabe sobre mim ?" pergunta Fei Long.
 "Boatos, verdades, o de sempre. Mas sei que está aqui, porque seus amigos abandonaram-no". "Você caiu do cavalo, e te pegaram", disse Reltih Klan . "Sei também que seus pais foram mortos por bárbaros, e você foi vendido como escravo. Seus amigos libertaram-no da escravidão. Então, para assumir o posto, você matou o líder do grupo, tornando-se o novo chefe e partiu em vingança, acabando com todo o bando de bárbaros que matou sua família", continuou Reltih.
 "Como você sabe de tudo isso?" perguntou Fei Long.
 "Porque fui eu quem matou seus pais e te vendeu ao comércio de escravos", disse Reltih.
 Fei Long teve um choque. Aquele homem ao seu lado, fora o responsável indireto de toda aquela situação. O assassino de seus pais na sua frente, resolveu manter a frieza e perguntou:
 " Se eu matei todos, como você pode estar aí? Pergunta o monge." 
" Eu fui o único sobrevivente", disse Reltih. " Sou natural das tribos bárbaras do meio oeste, meus soldados deram-me cobertura para a fuga".
" Por que me conta isso agora ?" pergunta Fei Long, com um misto de espanto e ódio.
" Por que não terei outra chance de contar, e nem você de ouvir, pois ambos estamos postos para morrer", disse Reltih Klan .
Nesse momento, dois guardas armados de lanças e espadas adentram o recinto do cárcere e carregam Reltih Klan até o meio da praça, onde dois cavalos preparados aguardam-no.
"Queime no fogo do Deus da Morte, Ganges Kant ", foi o último desejo de Reltih Klan a Fei Long.
"Que Buda tenha piedade de sua alma maldita", disse Fei Long.
"Não tanto quanto a sua", disse o carcereiro a Fei Long, e continuou:
"O próximo é você, mas pode assistir à execução do seu amigo!".
"Me soltem, infelizes", começou a gritar Reltih Klan. Mas era em vão. Outros dois camponeses colocaram os arreios de couro bem firmes nos seus pés e mãos.
Os cavalos, opostos um ao outro com Klan ao meio, estavam prontos para correr, bastava um sinal do juiz, que era o aldeão chefe. O julgamento era rápido, com um pequeno discurso: 
"Este é um homem que roubou, saqueou nosso vilarejo e dos vizinhos. Ele matou camponeses trabalhadores, mulheres e crianças. O vilarejo concorda que ele deve ser morto?”, pergunta feita aos camponeses. “Então que se faça a lei ao meu sinal", gritou o aldeão juiz.
Dois homens estavam preparados para espetar os traseiros dos cavalos com agulhas, para que estes corressem.
"Já!" gritou o aldeão, e os homens espetaram os cavalos.
Ouviram-se dois relinchos simultâneos, seguidos de um grito seco de medo, pavor e dor do condenado. Suas pernas foram arrancadas, enquanto ele ainda gritava, sendo arrastado por um cavalo e vendo-se esvaindo em sangue, enquanto vê o outro animal carregando suas pernas aos arbustos e ele próprio, aos chacais do deserto, caso não morra esvaído em sangue ou por esfolamento decorrente de sua "carona" com o cavalo.
Fei Long observava tudo com tamanho horror, e um sentimento de paz e justiça tomou conta dele. "Finalmente minha família foi vingada", pensou ele. Mas esse pensamento se transformou em preocupação, pois seria julgado igualmente, e ele tem a consciência terrível de que é o próximo, tinha de sair dali de alguma maneira.
" No templo me darão abrigo", pensou Fei Long e sabia de antemão que escaparia dali apenas por milagre, pois sabia que estava vivendo em um tempo passado, mas no momento, o passado era o presente dele, e como em todo o presente, o futuro parece incerto.
Trouxeram até à praça mais dois cavalos, e começavam a preparar os arreios de couro e posicionar os animais.
"Justificam a matança com a matança", pensava Fei Long, negando a própria personalidade tirânica de Ganges Kant , esta, sim, executada e morta pela personalidade do monge.
Mas nem os aldeões, camponeses ou seus antigos parceiros bárbaros entenderiam. Apenas ele sabia. Mas não havia volta.
O carcereiro já estava abrindo a porta, para que os soldados levassem-no.
Fei Long seguiu caminhando pela rua do vilarejo até à praça principal, sempre escoltado por dois homens portando lanças e espadas.
" Posso reagir agora , desarmá-los e fugir", pensou Fei Long.
Mas o remorso e a dor de um dia ter sido Ganges Kant o deixava com uma escolha:
" Senti um grande sentimento de justiça, quando aquele homem, Reltih, foi executado, embora com grande pesar pela sua alma. Já tomei minha decisão, vou deixar que me executem, só assim a justiça será feita", decidiu ele por fim, enquanto chegava à praça do vilarejo.
 Um vento leve tal como uma brisa começou a soprar, enquanto Fei Long era amarrado com o firme couro nas pernas e braços. O vento começou a ficar mais intenso, o que adiou em alguns minutos o discurso do juiz aldeão.
O vendaval foi parando aos poucos, até ficar tal qual uma leve brisa, vindo do deserto escaldante. Então, o juiz se colocou novamente a discursar:
"Como vocês sabem, este é um famoso assassino. Ele deve ser executado?" "- Sim!", respondeu a população do vilarejo.” Então, se alguém tem algo contra a sentença anunciada, que se manifeste agora, caso contrário, que se faça a lei ao meu comando", disse o juiz com um ar debochado, já que é extremamente improvável, para não dizer impossível que alguém fosse contra a sentença. Alguns segundos de silêncio e, de repente, alguém grita no meio da multidão:
"Sou contra a execução deste homem", diz uma voz conhecida de Fei Long.
O monge percebeu que a voz lhe era familiar, mas não conseguia ver o autor de tamanha façanha a seu favor.
Quando o estranho familiar sai do meio da multidão espantada, o aldeão juiz e Fei Long ficaram espantados: Primeiro pela ousadia do estranho, e segundo por ele ser familiar. O monge finalmente o reconhecera. Em sua viagem de ida pelo deserto em direção ao vilarejo que havia cruzado com ele: era o jovem demônio que ele enviou para o caminho da luz, e agora havia compreendido: o jovem demônio havia se tornado o jovem anjo e assim como Fei Long; havia deixado sua parte ruim para traz, e como os semelhantes se atraem, o jovem anjo veio retribuir, ajudando o monge Schaolin a escapar dessa enrascada.
" Este homem não tem dívidas com seu passado", disse o jovem anjo, e continuou: "Este não é Ganges Kant, Kant morreu com sua maldade, este é Fei Long".
" Besteira, disse o aldeão juiz". Como vou saber que diz a verdade, que Ganges Kant está morto? retrucava.
“ Fei Long o matou", disse o anjo.
" E quem é Fei Long?" perguntou o aldeão.
"É o jovem que está atrelado aos cavalos", respondeu o anjo.
" Desamarrem", ordenou o juiz aldeão. "Temos várias testemunhas que viram este homem cair do cavalo após saquear este vilarejo". "Tem alguma explicação para isto?"
"Claro", respondeu o anjo.
" O homem que caiu do cavalo era Fei Long, e ele não estava saqueando. Na tradição bárbara, quando se mata o líder perante um desafio, o vencedor se torna um novo líder. Para se livrar dessa liderança, ele forjou estar saqueando, embora os outros realmente o estivessem fazendo, então ele caiu do cavalo depropósito, já sabendo que a lealdade dos cavaleiros sucumbem perante uma lei severa como a deste vilarejo, e estava tudo conforme o plano; ao fugir, desta forma, dos bárbaros Fei Long estaria livre". "Mas vocês confundiram-no com o verdadeiro Ganges Kant e o prenderam, sem lhe dar a chance de dizer que era monge, e que as roupas de general que estava usando eram só um artifício para o entrosamento no grupo bárbaro, já que se ele recusasse o cargo de líder, onde as roupas e indumentárias fazem sua parte, ele seria morto pelo grupo". "É a tradição deles!".
"Sem lhe darem chance de falar, Fei Long correu o maior perigo iminente de morte aqui do que com àquele grupo de bárbaros. Ele caiu do cavalo exatamente pensando que a cidade era mais tolerante e ouviria sua história, e não foi o que aconteceu".
"Argumento impressionante vindo de um mendigo", disse o juiz aldeão, pois era assim que o anjo parecia, o que é normal, visto que os chineses desde há muito sabem que anjos geralmente aparecem na forma de mendigos para perceberem a generosidade e amor dos homens, e os demônios costumam se apresentar como pessoas bem-vestidas que trazem o acordo em uma das mãos, e a escravidão, na outra, sempre oferecendo uma coisa em troca da outra.
"Sou um monge, seguidor do Mestre Fei Long, que lutou contra o mal, matando Ganges Kant e fazendo um favor a si e aos outros, e ele o matou, defendendo a própria vida, tal como eu faço com as palavras em seu favor", disse o anjo.
"Está livre!", disse o juiz aldeão a Fei Long, sem dar muitas explicações. O monge saiu sem nada a dizer, caminhando ao lado do seu anjo.
O monge resolveu seguir em direção ao templo.
"Muito obrigado", disse ele ao anjo.
"Não me agradeça", disse o anjo, e continuou: "Você me guiou para a luz, senti ser meu dever contribuir. Mas eu apenas o livrei da morte, não do que está por vir". 
E, nesse momento, o anjo dobrou a esquina do vilarejo e sumiu.
Fei Long seguiu caminhando. Uma camponesa passa por ele, enquanto a multidão que ainda não tinha se dispersado o observava ao longe. De repente, a camponesa fixa o olhar nele e dá um grito de horror.
"Hããããã! É você! É ele, é Ganges Kant! -Socorro! Ele matou meu marido! Eu o reconheço!"
"Fomos enganados!", gritaram alguns camponeses da multidão.
"Vamos pegá-lo!", gritou um camponês, e aquela multidão saiu atrás dele.
Fei Long começou a correr. Estava a uma certa distância da multidão, o que lhe dava uma certa vantagem; afinal, aquela gente toda não o seguiria correndo por todo o deserto.
"Soltem os cães!", ordenou o aldeão juiz. E os cães, treinados para caçar e capturar, foram soltos. O monge corria desesperado. Os cães se aproximavam. Era uma corrida desigual. Só restava continuar correndo.
Os cães alcançaram-no. Mordidas nas pernas derrubaram-no. Os cães mordiam todo o seu corpo, rasgando-lhe a carne. A sua queda provocava os camponeses que se aproximavam em vantagem. Alguns pegavam pedras, outros carregavam paus e enxadas. Fei Long precisava reagir.
Em um gesto desesperado, ele pulou sobre um cachorro e o estrangulou com as próprias mãos, enquanto isso conseguiu chutar o segundo animal, matando-o. Conseguiu levantar. Já sentia as pedras e as enxadas, sendo elas atiradas contra seu corpo. Não tinha escolha. Seguiu correndo. Avistou a ponte que delineia a cidade. Atravessou-a rapidamente. Alguns aldeões ainda seguiam-no. Ele continuou correndo, embora estivesse perdendo muito sangue pelas mordidas dos cães e pelas pedras atiradas contra ele, e resolveu, então, correr até não ter mais forças, já que alguns camponeses estavam ainda em seu encalço.
E os camponeses seguiram o monge até o meio do deserto, e após isso desistiram, mas ele sabia que se continuasse correndo, logo chegaria ao templo e seguiu.
Fei Long se concentrou em sua respiração para manter o corpo, correndo e para não sentir dor. Correu por toda tarde e noite, e aos primeiros raios de sol, avistou o templo. 
Fez um último esforço. Chegou à porta do monastério e desmaiou.
Ele não conseguia se mexer. Estava soterrado pela areia do deserto. Sem tampouco abrir os olhos, estava segurando o ar que ainda possuía nos pulmões, pois se respirasse, encheria-os de areia.
Sim. Fei Long sabia. Estava novamente no deserto. Teria sido um delírio imaginário, advindo do temor de uma tempestade, e a ânsia de fugir da realidade somado ao desejo de encontrar sua verdade, ou o monge, realmente, fez uma viagem fantástica patrocinado por forças ocultas?
Sim. Fei Long sabia. Agora sim, sabia da sua verdade, e isso não era ficção, era o resultado de sua busca até àquele momento, e como há mais mistérios entre o céu e a terra do que permite alcançar nossa quase vã filosofia, teve o monge um segundo motivo para reafirmar sua fé, encontrando grande parte de sua verdade, pois o primeiro motivo de sua procura era mais óbvia. 
O monge estava literalmente enterrado vivo, e só um milagre o tiraria de seu túmulo natural.
A tempestade de areia ainda não havia acabado. "Tenho uma chance", pensou ele. "Se eu me mover tal como uma cobra, posso empurrar a areia para os lados e o meu corpo, para cima", pensou; quase desfalecendo pela falta de oxigênio no cérebro, e a agonia de não respirar.
E o monge, por alguns instantes, esqueceu que era humano. Procurou se imaginar como uma serpente do deserto de corpo e alma. Fei Long parou de imaginar. Seu corpo se retorcia de um lado para outro. Estava morrendo. Mas continuou se retorcendo. A areia foi cedendo dos lados, e sua cabeça se comprimia para cima, penetrando profundamente no mundo dos vivos, onde a tempestade se acalmava. "Aanff, Hãm..., ufa!", e gozou da coisa que lhe pareceu a mais prazerosa do mundo: "O ato de respirar".
"Estou meio tonto!" Pensou, mas aos poucos, o ar renovado do deserto o refez, tirando-lhe as feições cadavéricas e serpentinas, e o corpo rijo relaxou.
Fei Long observou as estrelas límpidas que lhe sorriam por sua bravura e coragem. Era a sua recompensa secreta por insistir na vida. Um cometa passa rapidamente, rasgando o céu em magnitude e beleza. 
"É um sinal de Buda!", refletiu; então o monge passou as últimas duas horas antes de amanhecer orando e agradecendo ao iluminado, pedindo luz às almas, que sucumbiram por suas mãos, e que Buda o livrasse das conseqüências do carma ruim que a destruição e a morte carregam em conseqüência dos atos desastrosos. Fei Long foi presenteado com um lindo amanhecer do sol.
"Nada se compara à beleza, deste momento, neste instante, mas o mesmo sol que me presenteou com seu lindo aparecer é o mesmo que vai me castigar durante o dia. Então, tudo o que é belo porta algo de feio seja nas ações do sol sobre o deserto, seja quando seus raios matam um animal ou castigam um humano. Mas o sol que tira vida provém outras vidas!" 
Assim, ia meditando Fei Long, enquanto caminhava em direção à cidade, lembrando-se dos ensinamentos taoístas, onde tudo o que é positivo porta uma parcela de negativo, e onde tudo o que é negativo porta algo de positivo.
"Nem tudo é bom ou mal absolutamente, todo bom tem sua parcela má e vice-versa", pensou o monge, imaginando a impossibilidade de existir um absoluto bom sem que suas partes sejam más de alguma forma. “Não existe um extremo sem um meio. Não existe a ponte sem suas bases opostas", pensou.
"Encontrei algo de bom, passando por todos os maus momentos, e foi a minha verdade. Então, como não pode ser absolutamente ruim eu voltar à cidade para impedir sua destruição pelo exército bárbaro, vou arriscar", seguiu Fei Long em seu monólogo.
Na cidade alguém o esperava.
O monge avistava mais nitidamente a cidade. Via os camponeses, os comerciantes, e algo que lhe causou pavor: "- A praça!"
A praça do vilarejo era um local de encontro. As pessoas se reuniam, trocavam histórias, mercadorias e, de vez em quando, divertiam-se com uma execução ou outra. No estábulo onde os animais - executores estavam, tudo estava na mais perfeita higiene, o que é belo. Nem os camponeses eram assim bem-tratados. Higiene é algo que só o imperador

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