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Título: “Resenha Crítica: A herança intelectual da sociologia” Autor: Alexandre Roberto Neme Kulpel (RA 21059614) Disciplina: Introdução às Humanidades e Ciências Sociais Florestan Fernandes inicia sua obra fazendo uma revisão do principal, apesar de não ser o único, objeto de estudo da sociologia: “[as] condições de existência social dos seres humanos”1. Este tema inspira pensadores muitos do surgimento da sociologia per se, na forma cientifica atual, mas perpassou a história da humanidade através dos mitos religiosos e das discussões filosóficas. Justamente por isso, nas palavras de Florestan, “seria vão e improfícuo separar a Sociologia das condições histórico-sociais de existência, nas quais ela se tornou possível e necessária”¹. Retornando às origens da sociologia, vê-se que a mesma nasceu como uma “[...] forma cultural de concepção do mundo[...]”¹, como que em resposta a complexificação das sociedades industriais e de classe, para depois desembocar em sua forma cientifica. Para Florestan, advém daí a posição que a sociologia ocupa na formação intelectual do mundo moderno. Os pensadores pioneiros da sociologia estavam muito mais voltados para a participação nas correntes de pensamento de sua época, do que para o desenvolvimento de um saber puramente intelectual. Tanto do ponto de vista da reflexão/propagação de ideias, quanto no terreno da ação seus autores, independentemente de seu posicionamento político-ideológico, “aspiravam fazer do conhecimento sociológico um instrumento de ação”¹. Exemplos não faltam: Saint-Simon, Comte, Proudhon e Le Play, ou Howard, Malthus e Owen, ou ainda von Stein, Marx e Riehl; independentemente de serem conservadores, reformistas ou revolucionários, aspiravam modificar a própria sociedade em que viviam. Duas ordens de fatores impulsionaram o desenvolvimento da sociologia: um de natureza positivo-racional e outro resultado das necessidades práticas que precisam ser satisfeitas através da descoberta e uso de conhecimentos científicos. A vinculação da sociologia com as situações de existência social, pode ser vista tanto como positiva, quanto negativa. Para Florestan, resulta o fato positivo de que “a ela [sociologia] se associa uma nova compreensão do objeto e das funções da ciência aplicada”¹; mas também uma identificação com a “Filosofia da “Questão Social”, que acaba por reduzi-la a uma Filosofia Política e a um empobrecimento de seu campo de investigação, “especialmente quando a supervalorização da chamada “Sociologia Histórica” se processava em combinação com “intuitos práticos” mal definidos”¹; estes dois últimos pontos constituindo raízes dos principais obstáculos ao desenvolvimento da sociologia. A desagregação dos sistemas feudais o desenvolvimento e expansão do capitalismo teriam, segundo Florestan, fornecido o “estado de espírito que permita entender a vida em sociedade com estando submetida a uma ordem [...]”¹, fator essencial para permitir a elaboração de explicações sociológicas. Outro ponto de tangência entre o desenvolvimento do pensamento sociológico e as transformações sociais ocorridas neste período é a mudança na própria forma de conceber e explicar o mundo, extrapolando os limites metafísicos impostos pela religião, i.e., o processo de “secularização dos modos de conceber e de explicar o mundo”¹. Desaparecem então os limites impostos pelo caráter “absoluto”, “intangível” e “sagrado” dos valores e normas antes amplamente reconhecidos social e culturalmente. Esta mudança, foi influenciada pelas transformações no amago das sociedades e sistemas da época: “[...] o que se poderia designar como consciência realista das condições de existência emerge e progride através de exigências de novas situações de vida, mais complexas e instáveis”¹, tipicamente fruto do sistema capitalista em sua primeira infância. A análise do contexto em que os primeiros passos da sociologia foram dados, revelam claramente que a mesma se tornou “possível e necessária”, como Florestan disse, por seu caráter pratico de suportar uma sociedade em acelerado e intenso processo de transformação, que carecia de novas ferramentas conceituais para entender as formas e natureza da ordem social, cada vez mais variadas e complexas. As repercussões da racionalização do pensamento na sociologia, “levaram a convicção, muito anterior à confirmação [...], de que as regularidades de coexistência e sucessão, que permitem entender e explicar a ordem dos fenômenos nas manifestações da vida social, não possuem uma natureza rígida e mecânica”¹. Esta concepção exclui tanto os “influxos da providência”¹, quanto o arbítrio de indivíduos (ou grupos de indivíduos), o que não inibiu a exploração intelectual dos mecanismos por trás dos fenômenos sociais. Florestan resume os dois principais fins da sociologia à época: “1º) o de descrever a ordem social como um sistema dotado de organização estrutural e funcional própria, cuja alteração interna se processaria através da operação de mecanismos inerentes à organização do sistema; 2º) o de descobrir as condições dentro das quais a atividade humana poderia tirar determinados proveitos da plasticidade relativa da ordem social, mediante o aproveitamento dos conhecimentos fornecidos pela análise dos referidos mecanismos de mudança do sistema social.”¹. Novamente, tanto um fim teórico, quanto um prático. Em relação a natureza da motivação intelectual para querer explicar a vida em sociedade em termos objetivos, Florestan afirma que ela era antes filosófica que cientifica. A sociologia bebia, à época, na fonte da Filosofia da Ação Humana, que “era coroada por uma Filosofia da Política, em cuja base estavam uma Filosofia da História e uma Filosofia Social”¹. Apesar das correções e ampliações que a influência do pensamento cientifico legavam, não havia “uma Sociologia 1 Fernandes, Florestan. Ensaios de sociologia geral e aplicada (cap. 8: “A herança intelectual da Sociologia”), Livraria Pioneira Editora, São Paulo, 1960, pp. 273-89. propriamente cientifica, mas uma Filosofia da Ação Humana”¹ durante a primeira metade do século XIX. Isto, por outro lado, não implica em uma diminuição da importância da herança legada pela Filosofia da Ação Humana para a sociologia, sem a qual não se teria concebido a sociologia como disciplina cientifica. Dois pontos herdados da Filosofia da Ação Humana nos dão evidencias incontestáveis: “a transição do “ponto de vista normativo” para o “ponto de vista positivo”, na interpretação dos fenômenos sociais”, que transparece na transformação da antiga Metafísica (com suas raízes religiosas) em Filosofia da Ação Humana; e da ideia que “a natureza humana só poderia ser conhecida e interpretada sociologicamente como parte de um sistema de relações com sentido, pois o comportamento dos seres humanos, individual ou coletivamente, é regulado por normas, valores e instituições sociais”¹, conceito que hoje é simples de apreender, mas que foi de fundamental importância para a inauguração de um campo de pensamento como a Sociologia. Sobre os resultados a que chegara a Sociologia “Filosófica”, Florestan pontua duas considerações “[...] a) formalmente, ela continua a ter grande atualidade; b) materialmente, ela se tornou obsoleta”¹. Ou seja, ao mesmo tempo que a base conceitual e a lógica herdadas da Sociologia “Filosófica”, bem como seus questionamentos, continuam válidos; houveram alterações em relação “a caracterização material do objeto da Sociologia”¹. Em relação a elaboração dos recursos de natureza cientifica, Florestan novamente destaca que as contribuições foram mais da órbita filosófica, que cientifica: “A convicção de que o princípio da “uniformidade do mundo exterior” se aplica aos fenômenos sociais humanos e de que estes estão submetidos, portanto, a uma ordem social, deu margema rápido progresso na assimilação dos caracteres formais e gerais do conhecimento cientifico pela Sociologia”¹. Apesar da enorme importância prática destas contribuições, ela per se não foi a responsável por assegurar as condições para o desenvolvimento rápido da pesquisa empírica sistemática. Em relação ao plano da teoria, a convicção crescente no século XIX é “de que a Sociologia lida com sistemas descontínuos, sendo a validade das “leis sociológicas” relativa ao modo de considerar os tipos sociais investigados”¹, que resulta numa certa relativização do saber sociológico. Florestan comenta sobre o círculo vicioso que se estabeleceu nas relações mutuas da teoria com a pesquisa, que, por um lado “afastavam a reflexão teórica da pesquisa empírica sistemática”¹ ou, por outro, “confinava a pesquisa empírica sistemática a alvos teóricos em que não se evidenciava, com toda precisão e clareza, o caráter nomotético da explicação sociológica”¹. Por último, surge a riqueza inconfundível da Sociologia “Filosófica” na esfera das reflexões práticas, pois até hoje os progressos da Sociologia parecem dever-se “muito mais aos influxos construtivos o pensamento filosófico e da consciência racional dos objetivos dos movimentos sociais, que aos resultados diretos da investigação sociológica dos problemas sociais”¹. Mas, apesar desta esfera onde a Sociologia “Filosófica” se mostra rica a fecunda, a mesma “não dispôs de recursos metodológicos e teóricos que facilitassem a superação das dificuldades essenciais, com que se defrontou”¹. Concluindo, concordamos plenamente que a herança intelectual recebida pela Sociologia é “comparável a uma faca de dois gumes”¹, de um lado bastante rica e plástica, por permitir a solução de muitas questões fundamentais e um criar uma força de pensamento que não se descola da realidade e do senso prático. Por outro lado, pobre e obstrutiva, por tê-la afastado “dos objetivos que dão sentido especifico à investigação cientifica [...]”¹ obrigando a evolução posterior da sociologia a processar-se “[...] em grande parte, contra a herança intelectual por ela recebida”¹. No entanto, acreditamos que mesmo essa característica que pode parecer “pobre e obstrutiva” talvez apenas o seja por que enfrentamos atualmente a prevalência de um método cientifico que tende ao dogmatismo e ao mecanicismo, concordamos com Nisbet, quando diz “[...] qualquer coisa que limite o campo da experiência e da imaginação, que de qualquer modo diminua as fontes de inspiração, que rotinize os trabalhos da mente inteligente, deve ser olhado com suspeita”2. 2 Nisbet, R. “A sociologia como uma forma de arte”. Revista do curso de Pós-Graduação e Sociologia, USP. No. 7, 1º. Sem., pp. 111-130.
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