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Universidade Federal do Rio de Janeiro Da Violência Pulsional Ao Ato de Criação Artística Pedro Cattapan 2004 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. ii A criatividade e a arte da psicanálise no mundo contemporâneo Pedro Cattapan Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica. Orientadora: Marta Rezende Cardoso Rio de Janeiro Janeiro/2009 iii Da Violência Pulsional Ao Ato de Criação Artística Pedro Cattapan Orientadora: Marta Rezende Cardoso Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica. Aprovado por: __________________________________________________ Presidente, Profa. Dra. Marta Rezende Cardoso Prof. Dr. Joel Birman Dra. Ivanise Fontes Rio de Janeiro Janeiro/2009 iv Cattapan, Pedro. Da violência pulsional ao ato de criação artística/ Pedro Cattapan. Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2004. x, 111 f.; 29,7 cm Orientadora: Marta Rezende Cardoso Dissertação (Mestrado) – UFRJ/IP/Programa de Pós- graduação em Teoria Psicanalítica, 2004. Referências Bibliográficas: f. 111-116. 1. Criação artística 2. Violência 3. Alteridade. I. Cardoso, Marta Rezende. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica. III. Título v Ao meu irmão Felipe vi AGRADECIMENTOS Ao CNPQ, pela bolsa de estudos a mim concedida. À minha orientadora Profa. Dra. Marta Rezende Cardoso, pela atenção e dedicação. Aos meus pais e meu irmão Bernardo, pela força e pelo apoio. À minha namorada Tatiana, pelo carinho e pelo incentivo. Ao meu amigo Pedro e a outros inspiradores artistas amigos. Aos professores doutores Joel Birman e Teresa Pinheiro, pelas esclarecedoras aulas. A Pedro Henrique Rondon, pela cuidadosa revisão. E aos professores do Departamento de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica. vii RESUMO Da Violência Pulsional Ao Ato De Criação Artística Pedro Cattapan Orientadora: Marta Rezende Cardoso Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica. Essa dissertação é dedicada ao estudo do processo de criação artística, tendo em vista a sua articulação com a questão da violência pulsional. Esta está referida à ação da pulsão de morte e seus efeitos de desestruturação da instância egóica. O ego pode fazer uso de certos mecanismos visando dar conta daquilo que lhe é radicalmente estrangeiro, “marcas” que tendem a resistir de forma particularmente intensa à ação das pulsões de vida. Buscou-se diferenciar o processo de criação artística da sublimação que visa, prioritariamente, a restauração da unidade, a serviço do ego e de Eros. No ato de criação artística opera-se a assimilação de uma alteridade interna, sem que se obture, no entanto, a abertura a essa estraneidade, via singular de integração do material “intraduzível” na unidade egóica. Contemplamos nesta pesquisa a dimensão criadora da subjetividade humana, própria à tensão entre pulsão de morte e as pulsões de vida, já que nessa abertura ao traumático que o ato de criação artística promove, processa-se, ao mesmo tempo, uma elaboração psíquica e a atualização do encontro com a alteridade. Palavras-chave: Criação Artística, Violência, Alteridade, Dissertação (Mestrado), Psicanálise. Rio de Janeiro Janeiro/2004 viii ABSTRACT From Drive Violence To The Act Of Artistic Ability Pedro Cattapan Tutor: Marta Rezende Cardoso Abstract of the Dissertation presented to the Post-graduation Programme of Psychoanalytic Theory, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, as a part of the requisites for obtaining the Master’s Degree in Psychoanalytic Theory. This dissertation is intended to studying the process of artistic creation, from the perspective of its articulation to the issue of drive violence. This violence is referred to the action of the death drive and its effects that shatter the ego’s structure. The ego can utilize certain mechanisms aiming at dealing with what is radically stranger to itself - the “traces” that tend to resist in a specially intense way to the action of the life drives. We tried to distinguish the process of artistic creation from sublimation, which aims as a priority at the restoration of the unity, at the service of the ego and of Eros. In the act of artistic creation the assimilation of the inner otherness is effected, without closing, however, the path to this strangeness, unique way to the integration of the “untranslatable” material into the ego unit. In this research we regard the creative dimension of human subjectiveness, characteristic to the tension between death drive and life drives. In this staying open to what is traumatic – promoted by the act of artistic creation – a psychic working through and the updating of the encounter with otherness are processed simultaneously. Key-words: Artistic creation, Violence, Otherness, Dissertation (Master’s Grade), Psychoanalysis. Rio de Janeiro Janeiro/2004 ix SUMÁRIO INTRODUÇÃO…………………………………………………...…....página 1 I SOBRE A SUBLIMAÇÃO......................................................................página 7 I.1 Primeiras teorizações sobre a sublimação..................................................página 9 I.1.1 Sublimação e arte......................................................................................página 11 I.2 Duas sublimações.....................................................................................página 13 I.2.I O artista Leonardo da Vinci.....................................................................página 13 I.2.2 Artista versus cientista.............................................................................página 15 I.3 O ego e a sublimação...............................................................................página 20 I.3.1 O ego, a ciência e a arte...........................................................................página 23 I.4 A sublimação na origem..........................................................................página 27 II O ATO ARTÍSTICO..............................................................................página 30 II.1 As relações entre o pulsional “disruptivo” e oego.................................página 31 II.1.1 O trauma..................................................................................................página 32 II.1.2 A teoria da sedução generalizada............................................................página 35 II.1.3 As marcas do trauma...............................................................................página 37 II.1.4 As marcas e a atividade artística.............................................................página 41 II.2 Freud e o ato............................................................................................página 44 II.2.1 O ato e a ligação......................................................................................página 45 II.2.2 O ato fora do “eixo da representação” ....................................................página 49 II.3 O ato artístico em sua especificidade......................................................página 50 II.3.1 O ato artístico como resposta à violência pulsional............................... página 52 II.3.2 O “tratamento” da violência psíquica......................................................página 57 II.3.3 O endereçamento.....................................................................................página 63 III SOBRE A INSPIRAÇÃO ARTÍSTICA...............................................página 68 III.1 A inspiração.............................................................................................página 69 III.1.1 Da sublimação à inspiração....................................................................página 73 III.1.2 A inspiração e a experiência-limite.........................................................página 77 III.2 A criatividade..........................................................................................página 82 III.2.1 Impasses e aproximações entre a criatividade e a inspiração.................página 82 III.2.2 Os elementos feminino e masculino.......................................................página 86 x III.2.3 O olhar do outro e a criatividade.............................................................página 89 III.3 O fascínio................................................................................................página 91 III.3.1 A gênese de uma postura estética...........................................................página 93 III.3.2 A postura estética do artista....................................................................página 97 CONCLUSÃO....................................................................................página 104 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................página 111 INTRODUÇÃO A criação artística apresenta-se como um fenômeno misterioso, instigante, para o público em geral, de modo que os artistas, desde muito tempo, têm ocupado lugar de destaque em nossa civilização. Parece-nos que a arte e os artistas trazem esta “aura de mistério” em parte por conta da afetação que as obras de arte provocam no público, em parte por conta do fascínio que desenvolvemos pelas personalidades criadoras que pagam alto preço para realizar seus trabalhos. É freqüente encontrarmos na história e nos depoimentos de vários grandes artistas uma descrição de seus trabalhos artísticos como algo que se impõe a eles, que os domina e a que sentem-se submetidos. Através desses depoimentos podemos reconhecer que a mente criadora destes sujeitos apresenta- se como enigmática não só para o público em geral, mas também para eles mesmos. Freud, também fascinado pelas artes e pelos artistas, interessou-se por estudá-los – de fato, a criação artística diz respeito a um modo de funcionamento psíquico particular, a uma singular forma de expressão do sujeito e isso não poderia deixar de interessar a Freud, ou a nós mesmos, como pesquisadores que se orientam pela investigação psicanalítica. Freud, de fato, voltou-se inúmeras vezes para uma investigação da mente e da obra dos grandes artistas, como podemos perceber em trabalhos como “Escritores criativos e devaneio” (1908e), “Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância” (1910c), “O Moisés de Michelangelo” (1914b), “O estranho” (1919h), “Dostoievski e o parricídio” (1928b) entre outros. Entretanto, sempre reconheceu o conhecimento psicanalítico que pôde adquirir do processo criativo 2 presente nos artistas como insuficiente, e assim mais freqüentemente tratou de analisar as obras e os artistas do que o processo criativo propriamente dito. Pois é justamente sobre o processo criativo que recai nosso interesse porque parece-nos que o “mistério” da arte diz respeito à própria criação – é como se emergisse a pergunta: Como é possível realizar a criação artística? O que permite ao artista criar? Deste modo, perguntamo-nos sobre a natureza da criação artística. É, em parte, por conta de também nos fascinarmos pela criação artística que desejamos investigá-la no intuito de compreender melhor o que é necessário para sua realização. Mas há também outro motivo para nossa investigação, motivo de grande importância porque resulta da observação e da oportunidade de ter experimentado na clínica psicanalítica o atendimento de alguns pacientes que eram artistas. Vale ressaltar aqui a importância da clínica analítica na construção de questões tanto práticas quanto teóricas. No atendimento clínico destes artistas o que se destacou como uma problemática particularmente pregnante a estes sujeitos foi a intensidade dos efeitos destrutivos da pulsão de morte, e a possibilidade elaborativa através da criação artística. Conseqüentemente, reconhecer uma resposta à pulsão de morte no cerne da criação artística parece-nos tarefa fundamental para realizar uma investigação mais aprofundada deste processo. De acordo com nossa observação, acreditamos que a psicanálise pode e deve voltar-se ao estudo dos processos psíquicos que proporcionam a criação da obra de arte porque este trabalho psíquico apresenta-se – e Freud sempre manteve esta posição – como uma resposta privilegiada à demanda pulsional, sendo capaz de direcionar a violência inerente à pulsão para uma elaboração psíquica. De fato, desejamos enfatizar uma estreita articulação entre a criação artística e a violência psíquica. Portanto, tornar- 3 se-á de grande importância para nossa dissertação que assinalemos a presença do disruptivo pulsional na atividade artística. Este posicionamento implica um estudo mais aprofundado da violência psíquica, o que nos remete a um exame do trauma psíquico. A questão da violência a que nos referimos compreende a ação da pulsão de morte, com seus possíveis efeitos desestruturadores da instância egóica. Esta instância pode fazer uso de vários mecanismos de defesa como forma de “sobreviver” ao que há de estranho a ela, ao que resiste à ação das pulsões de vida. A atividade artística, como tentativa de defesa, visaria dominar a invasão pulsional do id no ego. Estas relações de domínio merecem ser estudadas mais aprofundadamente pois remetem-nos a uma organização precária de um aparelho psíquico que tem de se haver com o encontro com o disruptivo pulsional, o que, em outros termos, nos reporta a uma invasão do outro radical interno no ego – a uma prevalência da pulsão de morte no jogo de forças pulsionais. Os violentos efeitos da pulsão de morte no psiquismo, e as tentativas deste para lidar com aquela, estão à espera de investigação, especialmente por conta da relevância que o tema ganha na contemporaneidade.Tanto na clínica psicanalítica contemporânea quanto nas abordagens psicanalíticas sobre a “cultura atual”, a violência psíquica aparece como problemática emergente que põe em questão tanto as suas causas quanto as possibilidades de “tratar” essa violência. É a segunda questão que encontra em nossa pesquisa uma possibilidade de ser mais bem elaborada. Um estudo aprofundado do processo de criação artística apresenta-se como importante via para conhecermos melhor alguns possíveis meios que o psiquismo humano pode desenvolver para lidar com as violentas forças pulsionais: os artistas, 4 sujeitos dominados pela violência pulsional – diferentemente dos sujeitos em situações patológicas graves, os quais são afetados pela violência interna de forma estagnante e destrutiva – conseguem, através da criação artística, tanto elaborar quanto conferir destinos menos destrutivos à pulsão avassaladora. Delineia-se deste modo um questionamento principal, ou seja, a situação-problema de nossa dissertação: qual a natureza das relações entre a violência psíquica e a criação artística? Esta questão leva- nos a também investigar através de quais mecanismos o artista consegue dar conta dos efeitos violentos da pulsão que se expressam em sua arte. Acreditamos que nossa tentativa de responder a estas questões poderá trazer luz sobre o tratamento da violência psíquica e deste modo, contribuir para a construção de um conhecimento psicanalítico acerca de um dos problemas cruciais do mundo contemporâneo – a violência avassaladora que verificamos como presente tanto em quadros psicopatológicos graves quanto em fenômenos sociais não menos graves. O processo de criação artística possibilitaria, simultaneamente, a assimilação de uma alteridade interna radical e a abertura a essa estraneidade, constituindo-se, assim, como via possível de expressão desse material “intraduzível” na unidade egóica. Pretendemos, assim, contemplar o aspecto criador próprio à tensão entre a pulsão de morte e as pulsões de vida pois nesta abertura ao traumático promovida pela criação artística efetua-se um processo de elaboração psíquica, de representação, cuja particularidade é a da manutenção desse encontro com a alteridade. Ao nosso ver, a noção de sublimação – que costumeiramente é empregada em psicanálise como referência nos estudos sobre a criação artística – mostrou-se obscura no plano teórico e também insatisfatória por não remeter-se a este violento embate pulsional que parece fazer-se presente no processo criativo dos artistas. Deste modo, 5 nosso percurso, no que se refere a esta pesquisa, iniciou-se ao buscarmos investigar criticamente as relações entre sublimação e criação artística. Nossa tentativa de aproximar a criação artística dos efeitos violentos da pulsão de morte busca diferenciar, deste modo, o processo de criação artística do processo de sublimação, pois o segundo visa prioritariamente a restauração da unidade a serviço do ego e de Eros, bloqueando a expressão da violência pulsional. Para que alcancemos nosso objetivo, pretendemos, portanto, iniciar nossa abordagem do tema da criação artística pela trilha que Freud construiu: a noção de sublimação. No entanto, a sublimação apresenta-se como apenas o início de uma abordagem do tema da criação artística. Após uma apreciação do tema da sublimação através de autores que se dedicaram ao estudo desta como processo de inserção na cultura, será preciso que a comparemos à criação artística com a intenção de especificar o que é próprio desta e, portanto, o que exige aprofundamento maior, pois escapa a um estudo geral das realizações culturais. Apenas tendo terminado esta primeira etapa de nosso trabalho, sempre a partir de Freud, é que poderemos voltar-nos para um estudo mais detido do próprio ato de criação artística. Será também ao estudar o ato artístico que deveremos ater-nos a um aprofundamento tanto dos efeitos disruptivos da pulsão – e portanto num estudo do traumático – quanto da resposta criativa a esses efeitos. Porém, este estudo escapará de seu objetivo se, após uma apreciação do ato artístico e de suas particularidades, numa terceira etapa não investigarmos que situação psíquica permitiria que este ato de criação artística se realize – afinal, nem todo sujeito consegue realizar este trabalho bem como o próprio artista não parece criar quando quer, e sim quando pode. Deste modo, as condições da criação artística – ou se 6 quisermos, a inspiração (Laplanche, 1999) – serão um ponto de grande importância para compreendermos o que viabiliza o “tratamento” dado à violência psíquica que se observa na atividade artística. O método de nossa investigação se balizará no estudo, aprofundamento e articulação de textos caros aos assuntos em questão. Empreenderemos uma pesquisa em psicanálise; deste modo, articularemos conceitos, termos, teorizações de Freud e de outros autores tanto em psicanálise quanto em outros saberes afins, que nos permitam elaborar uma linha de raciocínio que venha trazer luz sobre as questões que aqui levantamos. Nossa dissertação sobre a criação artística e sua relação com a violência psíquica se enriquecerá, portanto, se, além do olhar psicanalítico sobre a atividade artística, voltarmo-nos para outros pontos de vista sobre o assunto. Desse modo, o olhar dos próprios artistas sobre seu trabalho de criação será valorizado nesta dissertação, sendo que um enfoque especial será dado ao que Vincent Van Gogh escreveu a respeito do assunto – afinal, a vida e a obra deste pintor foram marcadas por uma tensão constante entre a violência psíquica e a arte. O ponto de vista dos pensadores da arte também será vislumbrado à medida que nos oferecem instrumentos outros para o estudo do processo de criação artística pois nos auxiliarão na compreensão do que caracteriza a estética e a obra de arte – pontos importantes para uma compreensão do que é particular ao processo de criação artística e que também trarão luz sobre o aspecto violento desta. Acreditamos que, após a passagem pelas três etapas acima anunciadas, nossas questões poderão ser clarificadas e, conseqüentemente, poderemos ter um maior conhecimento sobre quais mecanismos estão em jogo na criação artística, que permitem que a violência que afeta o artista seja dominada. 7 I SOBRE A SUBLIMAÇÃO Desde o início de sua história a psicanálise contém múltiplas referências ao nosso objeto de estudo – a criação artística. Freud interessou-se intensamente pelo assunto, abordando-o inúmeras vezes em seus textos, e para realizarmos um estudo devidamente rigoroso, é necessário que nos balizemos inicialmente naquilo que ele produziu sobre o tema. Afinal, as trilhas que daí se seguiram – a ampliação da teoria e os problemas que se levantaram acerca da criação artística – dizem respeito às primeiras abordagens dessa questão, ou seja, ao que Freud trabalhou e ao que deixou de trabalhar sobre a arte e suas particularidades. Como mencionamos acima, o interesse de Freud pelos artistas e pelo trabalho de criação foi objeto de alguns de seus textos, como "Escritores criativos e devaneio" (1908e [1907]), "Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância" (1910c), "O Moisés de Michelangelo" (1914b) e "Dostoievski e o parricídio" (1928b). Revela-se aí o grande fascínio de Freud pelas artes e fica patente o esforço que faz para contemplar em sua obra esta realização cultural. Um ponto que nos chama a atenção é a constante associação que Freud estabelece entre o trabalho do artista e a sublimação. É comum encontrarmos nos textos que ele dedica à sublimação uma ilustração do papel que esta teria no processode produção artística, por isso pensamos que é necessário aprofundarmos o estudo sobre a sublimação. Vale ressaltar, porém, que nossa intenção não é esgotar as leituras possíveis 9 que o texto freudiano abre acerca desse tema que constitui um ponto-chave na teoria psicanalítica. Na obra de Freud a sublimação seria uma das quatro vicissitudes da pulsão (Freud, 1915c), e para exemplificá-la ele sempre apelou ao trabalho da produção artística. Em toda sua obra ele faz menção ao termo sublimação, apesar de nunca ter apresentado de fato uma elaboração mais sistemática dessa noção, assim como fez, por exemplo, com os conceitos de pulsão e de recalque. Nesse quarto destino da pulsão, ... tanto o objeto quanto o objetivo são modificados. Assim, o que originariamente era um instinto [pulsão] sexual encontra satisfação em alguma realização que não é mais sexual, mas de uma valoração social ou ética superior (Freud, 1923a [1922], p. 272). Esta passagem, retirada do breve texto "Dois verbetes de enciclopédia", publicado em 1923, tem, como qualquer verbete de enciclopédia, apenas o objetivo de definir os conceitos apresentados. Apesar de aparentemente clara, essa explicação não nos parece, porém, plenamente satisfatória, pois não é capaz de dar conta das exigências metapsicológicas (análise dos pontos de vista econômico, tópico e dinâmico) aí envolvidas; ela é apenas descritiva. Outros autores igualmente constatam a insuficiência da abordagem da sublimação por Freud. No Vocabulário de psicanálise, Laplanche e Pontalis reafirmam a importância de buscar-se uma conceituação da sublimação na teoria freudiana, mas também sinalizam a fragilidade de sua teorização: Na literatura psicanalítica recorre-se freqüentemente ao conceito de sublimação; é efetivamente o índice de uma exigência da doutrina, e é difícil imaginar como poderia ser dispensado. A ausência de uma teoria coerente da sublimação permanece sendo uma das lacunas do pensamento psicanalítico (Laplanche & Pontalis, 1982, p. 497). 10 É nos escritos dos comentadores da obra freudiana que poderemos encontrar a busca pelo rigor que procuramos, embora, cabe dizer, estes ainda permaneçam, de certa forma, limitados às idéias avançadas por Freud. Será também a obra freudiana o ponto de partida de nossa investigação. Seguiremos, portanto, um percurso histórico-crítico do desenvolvimento da noção de sublimação em Freud, visando enfatizar as mudanças e incrementos promovidos na construção teórica dessa noção. I.1 Primeiras teorizações sobre a sublimação A primeira vez que o termo "sublimação" surge na obra freudiana é numa carta enviada a Fliess, datada de 2 de maio de 1897 (“Carta 61”). Nesta, Freud se refere à sublimação como um aprimoramento de lembranças através da fantasia (Freud, 1950a [1887-1902]). As fantasias teriam um caráter de sublimação, à medida que constituiriam uma forma de depurar o que foi ouvido pelo sujeito. Freud afirma que a sublimação diria respeito ao próprio trabalho de organização da fantasia a partir do que foi “ouvido”. Assim, da matéria bruta, sólida – o que ainda não foi capaz de produzir sentido – produz-se o gasoso; ou seja – acrescentaríamos nós – a fantasia, a organização do psíquico e a construção de sentido. No famoso “caso Dora”, Freud vai continuar explorando a articulação entre sublimação e trabalho clínico, pontuando que ela ocorre na relação transferencial não como "reimpressão" de alguma "experiência psíquica prévia", mas como “edição revista” destas experiências (Freud, 1905e [1901], p. 111). Reconhecemos nestas primeiras abordagens da sublimação a elaboração de uma concepção segundo a qual ela envolveria um trabalho psíquico de natureza distinta daquele operado na produção do sintoma. O que parece estar em jogo aí é algo da ordem de uma elaboração, no sentido 11 que este termo ganhará posteriormente em "Recordar, repetir e elaborar" (Freud, 1914g). Não se trata apenas de uma rememoração do material inconsciente, mas de um trabalho de apropriação desse material, e que resulta de uma modificação do funcionamento psíquico. Dessa forma, a linha de raciocínio iniciada na “Carta 61” encontra continuidade nesse olhar mais clínico sobre o papel da sublimação. Porém, já no “caso Dora”, Freud também se referira à sublimação partindo de um outro ponto de vista, apontando-a como um "redirecionamento" da "... disposição sexual indiferenciada da criança ..." (Freud, 1905a [1901], Op. cit., p. 56) para "objetivos assexuais mais elevados". Esta nova visão sobre a sublimação foi desenvolvida num outro estudo publicado também em 1905 e dedicado mais diretamente a essa noção: os "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", conforme podemos observar na seguinte passagem: Os historiadores da cultura parecem unânimes em supor que, mediante esse desvio das forças pulsionais sexuais das metas sexuais e por sua orientação para novas metas, num processo que merece o nome de sublimação, adquirem-se poderosos componentes para todas as realizações culturais (Freud, 1905d, p. 167). A sublimação aparece, assim, como a condição psíquica que permite as realizações culturais. A sublimação também é vista, aí, como desvio do que é sexual para o não-sexual. A respeito deste ponto, cabe assinalar o que Freud acrescenta na seqüência do trecho acima citado: as pulsões sexuais remetem-nos à natureza perversa da pulsão. Nos "Três ensaios", as pulsões perversas serão consideradas como sendo aquelas que não estariam integradas à função genital. Partindo das contribuições de Freud, Jean Laplanche vem enfatizar que o trabalho da sublimação implica um esforço para dar conta das pulsões perversas, lembrando-nos que “Freud constantemente afirma que o destino sublimatório é, em 12 primeiro lugar, aquele dos restos não-integrados das pulsões pré-genitais” (Laplanche, 1999, p. 313). Deste modo, podemos associar as pulsões perversas ao que este autor denomina "restos não-integrados das pulsões pré-genitais". A sublimação visaria incluir estes restos na organização genital. Compreende-se, então, que a sublimação retiraria sua energia das pulsões perverso-polimorfas, ou seja, daquelas pulsões que "ficaram de fora" da égide da genitalidade. Queremos com isso sublinhar que estas podem ser também reconhecidas como pulsões parciais, em oposição à idéia de uma unificação das pulsões em torno de um propósito – a função genital. Laplanche também propõe que compreendamos a dessexualização como a passagem da pulsão do plano do sexual para aquele da autoconservação (Id., 1989). Até o momento da escritura do “caso Dora” o estudo da noção de sublimação não continha nenhuma referência a uma possível relação entre esta e a criação artística. Será justamente nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (Freud, 1905d, Op. cit.) que Freud estabelecerá, pela primeira vez, um elo entre sublimação e arte. I.1.1 Sublimação e arte No final dos "Três ensaios", Freud reconhece, então, a arte como sublimação: ...[o] processo de "sublimação" [seria aquele] no qual as excitações hiperintensas provenientes das diversas fontes da sexualidade encontram escoamento e emprego em outros campos, de modo que de uma disposição em si perigosa resulta um aumento nada insignificante da eficiência psíquica. Aí encontramos uma das fontes da atividade artística, e, conforme tal sublimação seja mais ou menos completa, a análise caracterológica de pessoas altamente dotadas, sobretudo as de disposição artística, revela uma mescla, em diferentes proporções, de eficiência, perversão e neurose (Freud, 1905d, p. 225. O grifo é nosso). Grifamos nesta citação certos pontosque têm especial interesse para nós. Agora o termo sublimação é empregado pela analogia entre aquilo que se passa no terreno 13 psicológico e o fenômeno físico original: opera-se um trabalho de transformar o sólido e “inferior” da "disposição em si perigosa", no gasoso e “superior” aumento da "eficiência psíquica". Examinando a noção de sublimação na obra freudiana podemos identificar a herança dos sentidos que ela comporta nas outras disciplinas: por um lado, a idéia de mudança do estado sólido para o gasoso da física, ou a de purificação advinda da alquimia, à medida que aquilo que poderia ser “perigoso” é desviado para a atividade sublimatória; por outro lado, encontramos, aí, o sentido da "ação de exaltar, engrandecer" própria da estética, através, como diz Freud, dessa idéia de aumento “nada insignificante” da eficiência psíquica, assim como através desse deslumbramento que as pessoas possuidoras de disposição artística são capazes de provocar, o que se deduz da afirmação de Freud de que seriam “altamente dotadas”. Neste rico trecho que escolhermos destacar, Freud nos oferece significativas contribuições, tais como a idéia da existência de uma "disposição artística", resultado de uma mescla de eficiência, perversão e neurose. Ele parece reconhecer nos artistas a presença de alguma organização psíquica que não se limitaria nem à categoria de neurose, nem à de perversão, nem poderia, tampouco, ser encarada como mera "eficiência psíquica". O artista é parcialmente eficiente em dar conta da "disposição perigosa"; ele não está a salvo da neurose nem da perversão. Um problema começa a se revelar, antes mesmo da tentativa de relacionar a sublimação com o processo de criação artística: Freud havia apresentado a sublimação como uma faculdade psíquica situada na base de "todas as realizações culturais", porém, ao tratar da atividade artística, fala-nos de sujeitos com disposição artística. Podemos concluir, então, que a sublimação é mais abrangente do que a atividade artística, já que a arte seria apenas uma das modalidades de realização cultural. Ela 14 constituiria, na verdade, um tipo específico de sublimação à qual somente alguns teriam acesso. I.2 Duas sublimações Em “Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância” (Freud, 1910c, Op. cit.), encontramos uma apreciação bem mais detalhada e aprofundada sobre a sublimação. Neste texto são mencionados aspectos desse processo cuja importância parece-nos fundamental. Neste artigo, a arte é tratada como um tipo de sublimação distinto de uma outra de suas modalidades, a qual também se fará presente na trajetória de Leonardo da Vinci. É necessário aprofundarmos nosso estudo destes diferentes tipos de sublimação. Em primeiro lugar, voltemos nosso olhar para a atividade artística de Leonardo, tal como Freud a analisa. I.2.1 O artista Leonardo da Vinci Nesse artigo sobre o artista Leonardo da Vinci, Freud se dedica à pesquisa sobre ele não somente em função da enorme admiração e curiosidade que nutre pelo trabalho do mestre florentino, mas aos seus olhos ele representaria o exemplo extremo do artista, como indicado na seguinte passagem: A mesma luta penosa frente a um trabalho, a fuga final e a indiferença quanto ao seu destino futuro, tudo isso pode acontecer a muitos artistas, mas não há dúvida de que esse comportamento ocorre em Leonardo em grau mais elevado (Id., ibid., p. 76. O grifo é nosso). Quanto à nossa investigação sobre a disposição artística, identificamos neste trecho algumas pistas sobre a relação que Leonardo trava com suas paixões, o que vem indicar uma possível via para melhor compreendermos a questão: 15 Leonardo não era insensível à paixão; não carecia da centelha sagrada que é direta ou indiretamente a força motora – il primo motore – de qualquer atividade humana. Apenas convertera sua paixão em sede de conhecimento; entregava-se, então, à investigação com a persistência, constância e penetração que derivam da paixão... (Id., ibid., p. 83). Sobre o termo paixão, tendemos a associá-lo às intensidades psíquicas a que podemos opor as representações; deste modo, podemos aproximar as paixões daquilo que consideramos como pulsões. Neste trecho Freud nos fala, de fato, da paixão como il primo motore, como força motora cuja característica básica seria a persistência, a constância e a penetração – análise muito semelhante àquela que fará das pulsões no célebre artigo metapsicológico a elas dedicado (Id, 1915c, Op. cit.). Visto sob este ângulo, o trabalho do artista envolveria um movimento de desvio da pulsão sexual para a atividade de investigação, aspecto que se articula com o que Freud, no texto dos "Três ensaios", considerara como pulsão de saber. No artigo de 1905, ele havia explicado que a pulsão de saber tem sua origem, em parte, na pulsão escopofílica perversa, sendo também uma forma sublimada de dominação (Id., 1905c, Op. cit.). Queremos aqui ressaltar uma das particularidades do trabalho do artista: ele resultaria do desvio do sexual para a pulsão de saber, a pulsão de investigação. O que aqui vemos esboçar-se é a idéia de que no trabalho do artista entrariam simultaneamente em jogo uma sublimação e a ação disruptiva das pulsões parciais perversas, como deixa entrever essa concepção acerca da pulsão de saber. Esta compreensão do trabalho artístico está em total acordo com a idéia de "obra inacabada", que exige trabalho – pois se a sublimação é falha, o aparelho psíquico permanecerá trabalhando por uma sublimação mais "consistente", ou seja, uma sublimação suscetível de desviar as pulsões parciais para o registro da autoconservação, 16 do “dessexualizado”. A atividade de investigação do artista, por si só, vem evidenciar este trabalho insuficiente, já que mantém o disruptivo em cena. Afinal, como lemos no texto de Freud sobre Leonardo, esta atividade compulsiva traz cada vez mais questões para o artista, que não consegue dar por terminada sua obra. Joel Birman propõe que este texto sobre Leonardo possa nos fazer apreender um dos aspectos mais importantes envolvidos no processo de sublimação: ... a sublimação poderia ser concebida como (...) uma transformação direta da pulsão perverso-polimorfa numa produção de espírito (...). Vale dizer (...) a sublimação não implicaria mais numa dessexualização da perversidade polimorfa originária. Portanto, aquela não seria a resultante de uma operação anterior do recalque... (Birman, 2002, p. 104). Concordando com o autor, pensamos que esta sublimação em Leonardo da Vinci não corresponde ao modelo de sublimação apresentado nos “Três ensaios”. No artigo de 1905 a sublimação implicava uma dessexualização, enquanto a atividade artística de Leonardo, segundo Birman, aponta, ao contrário, para uma “transformação direta”. No entanto, o modelo da dessexualização não será abandonado por Freud. Dois processos bem diferentes começam a poder se distinguidos. Através de uma análise da sublimação implicada na atividade científica de Leonardo, poderemos melhor explorar os dois processos em questão. I.2.2 Artista versus cientista Até aqui temos privilegiado apenas uma das atividades de Leonardo – a arte. Sabemos, porém, que o mestre foi também um expoente no que se refere às primeiras pesquisas científicas, cujo esboço foi iniciado no período do Renascimento. Em Leonardo, as duas atividades revelam-se, entretanto, conflitantes. 17 Em seu percurso, a atividade de investigação, que originalmente esteve atrelada à criação artística, desenvolve-se numa busca de conhecimento sobre o mundo, busca mais vinculada ao trabalho científico, mais afastada, portanto,da arte. Freud observa que, à medida que se dedica à pesquisa científica, Leonardo passa a empenhar-se menos no trabalho artístico. Ele parece encontrar na ciência a possibilidade de construção de um ideal de conhecimento sobre o mundo – o que fará, aliás, de maneira muito eficaz. Observemos atentamente mais um trecho desse artigo: Depois da pesquisa, quando tentou voltar ao seu ponto de partida, o exercício da arte, sentiu-se perturbado pelo novo rumo de seus interesses e pela mudança na natureza de sua atividade mental. O que o interessava num quadro era, acima de tudo, um problema; e após o primeiro via inúmeros outros problemas que surgiam (...). Não conseguia mais limitar suas exigências, ver a obra de arte isoladamente, separando-se da vasta estrutura da qual sabia que era parte integrante (Freud, 1910c, Op. cit., p. 85. O grifo é nosso.). O artista usara o pesquisador para servir à sua arte; agora o servo tornou-se mais forte que o senhor e o dominou (Id., ibid., p. 85). Levando-se em conta o que temos procurado realçar até agora sobre a sublimação, baseando-nos ainda nas contribuições do estudo de Jean Laplanche desse artigo de Freud sobre Leonardo (Laplanche, 1989, Op. cit.), podemos acrescentar que neste são introduzidas duas vertentes bem distintas da sublimação: a artística e a intelectual-científica. Na verdade, essas duas tendências são tratadas numa relação de oposição, e parece-nos inevitável questionarmo-nos se se trataria nas duas vertentes desse mesmo destino pulsional, ou seja, a sublimação. Em sua linha de argumentação, Laplanche vem justamente sugerir este questionamento. O principal problema nesse Leonardo de Freud, do ponto de vista da sublimação, consiste em que ora nos são apresentadas duas atividades (pintura e investigação intelectual) igualmente sublimadas e em luta uma contra a outra, ora, e mais freqüentemente, a sublimação só é evocada para a atividade intelectual e a luta entre as duas atividades é, em última instância, a incapacidade (...) de retornar, pelo menos parcialmente, ao pulsional. De modo que a atividade pictórica seria algo muito mais próximo do pulsional, daquilo 18 que Freud chama de desejo de viver, do que a atividade intelectual (Id., ibid., p. 79-80). Desta passagem, podemos aprender algo que nos parece de grande importância para nossa pesquisa: a atividade artística e a intelectual supõem modos diferentes de funcionamento psíquico, sendo que a artística é concebida como uma atividade mais próxima da pulsão, ou seja, se constitui como uma atividade situada entre o pulsional e a sublimação intelectual. Vale lembrar que esta visão a respeito dos artistas e cientistas, desenvolvida no artigo sobre Leonardo, objeto dos comentários de Laplanche, já se anunciava em "Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna": A relação entre a quantidade de sublimação possível e a quantidade de atividade sexual necessária varia muito, naturalmente, de indivíduo para indivíduo, e mesmo de profissão para profissão. É difícil conceber um artista abstinente, mas certamente não é nenhuma raridade um jovem savant abstinente. Este último consegue por sua autodisciplina liberar energias para seus estudos, enquanto naquele provavelmente as experiências sexuais estimulam as realizações artísticas (Freud, 1908d, p. 181). Logo, as experiências sexuais impõem-se como força motriz para a realização artística em cujo cerne estão as pulsões sexuais perversas, quer dizer, as pulsões não domesticadas. À sublimação científico-intelectual, a do savant, procuramos associar as já mencionadas "realizações culturais", ou seja, as realizações que inserem o homem na cultura. O trabalho psíquico de representação, de inscrição no inconsciente, de entrada numa cadeia de representações – pressupondo deslizamentos, associações e, portanto, a organização psíquica – parece estar vinculado com o trabalho científico-intelectual. Na pesquisa científica, o sujeito se distingue do objeto, processo que se torna possível em função da representação. O trabalho de representação é justamente um trabalho de separação, pois a representação – se acompanhamos os artigos "Os instintos e suas 19 vicissitudes" (Freud, 1915c) e "O inconsciente" (Id., 1915e) – é um representante psíquico da pulsão, não podendo ser confundido com a própria pulsão. Se retomamos o texto de Laplanche, podemos, assim, melhor compreender o que este autor busca dizer ao apontar para uma "incapacidade de retornar ao pulsional" como sendo característico da sublimação "intelectual": a representação que buscamos articular a esta modalidade de sublimação resulta justamente de uma ruptura com o que é pulsional. Assim como as outras vicissitudes da pulsão, a sublimação constitui uma resposta à pulsão. Aquilo que não é capaz de produzir sentido – as próprias moções pulsionais – passa a ser "domesticado" pelas cadeias representacionais. Logo, estas permitem que o sujeito possa partilhar significações na cultura. A ciência, como trabalho intelectual, articula-se mais facilmente com a idéia de um processo que pressupõe uma rede de representações. Consideramos que o processo de criação artística não pode ser explicado por esta mesma via. Há na arte algo de disruptivo, de impulsivo, hipótese a cuja elaboração nos dedicaremos com mais vagar em nosso segundo capítulo. Duas modalidades bem distintas de sublimação vêm à luz: uma que diz respeito à inclusão das pulsões perversas na organização psíquica, e que se opera através do trabalho de representação; outra – própria da criação artística – na qual parece ter lugar um estranho engendramento da força pulsional disruptiva e do trabalho de representação o qual, afinal de contas, tem que ser suposto como presente no resultado final que é a produção da obra de arte. Enquanto no processo de pesquisa intelectual-científica o sujeito busca dar conta do objeto através da representação, a dimensão de ato parece estar na base do processo da criação artística. A sublimação artística, por sua própria essência, se dá no e pelo ato artístico, o que sugere a presença de algo que escapa ao domínio da representação. O 20 artista parece ser, inicialmente, dominado pelo objeto para, num momento posterior, utilizar-se do trabalho artístico e assim tentar dominá-lo. Como já tivemos oportunidade de sublinhar, Leonardo era dominado pelo "problema" que o impelia a uma busca de resolução na criação da obra, “separando-se da vasta estrutura da qual sabia que era parte integrante” (Freud, 1910c, Op. cit., p. 85). Portanto, o trabalho de criação artística não parece perfeitamente "encaixar-se” no modelo da sublimação, como representação. Retornaremos à questão do domínio da pulsão nos capítulos posteriores. Visando continuar a explorar esses dois modos de sublimação dos quais nos fala Freud a partir de Leonardo da Vinci, voltemo-nos, ainda, para algumas contribuições suas a respeito dessa dupla face da sublimação. Freud vai novamente recorrer à idéia de “predisposição especial” para explicar a ocorrência da sublimação (Id., ibid., p. 88). Lembremo-nos que quando aborda a sublimação artística, Freud traz a predisposição como sendo uma condição necessária à sublimação; porém, quando tem em vista a sublimação intelectual-científica, a qual podemos relacionar com o processo representacional, seu posicionamento é outro: A observação da vida cotidiana das pessoas mostra-nos que a maioria conseguiu uma boa parte das forças resultantes do instinto [pulsão] sexual para sua atividade profissional. O instinto [pulsão] sexual presta-se bem a isso, já que é dotado de uma capacidade de sublimação: isto é, tem a capacidade de substituir seu objetivoimediato por outros desprovidos de caráter sexual e que possam ser mais altamente valorizados (Id., ibid., p. 86). Reencontramos, aqui, a idéia já levantada nos "Três ensaios" segundo a qual a sublimação seria um processo comum a todo ser humano, aquilo que torna a vida social possível. Essa idéia também perpassara o artigo "Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna" (Id., 1908d, Op. cit.). Observamos que ora se fala da sublimação como processo abrangente, ora da sublimação artística propriamente dita, a qual além de 21 possuir características específicas, não pode, em nosso entender, ser confundida com o processo da sublimação, no sentido de um processo geral de socialização. Em "Além do princípio do prazer" (1920g), Freud será ainda mais preciso quanto à hipótese de uma "predisposição especial" como condição do ato artístico. Este fenômeno diz respeito a uma situação econômica, mais capaz de favorecer a sublimação, do que a uma condição dinâmica – esta, diz Freud, está presente em todos os seres humanos (Id., ibid.). O artista possuiria alguma particularidade em relação às quantidades em jogo em seu aparelho psíquico, condição para a realização do trabalho de criação. Se a noção de predisposição artística parece-nos ainda nebulosa, pensamos, entretanto, ter podido clarificar o nosso entendimento sobre a sublimação em geral. Retomando o que tivemos ocasião de desenvolver sobre a "sublimação como processo geral de socialização", lembramos que esta modalidade de sublimação apoiada no trabalho de representação tem em sua base um processo de dessexualização, o que supõe uma passagem para o plano da autoconservação. Sabemos que o dualismo pulsão de autoconservação X pulsão sexual ganhará complexidade em Freud quando do reconhecimento da autoconservação como função do ego. Isto nos apresenta agora a tarefa de nos debruçarmos sobre as relações entre a instância do ego e a sublimação. I.3 O ego e a sublimação No texto dedicado ao conceito de narcisismo (Freud, 1914c) e principalmente em O ego e o id (1923b), no qual Freud enuncia a Segunda Tópica, o desenvolvimento do conceito de ego ganha destaque. Vale ressaltar que o processo de sublimação passa a ser visto, de certa forma, como agenciador da constituição da instância do ego. 22 Em O ego e o id, Freud sustenta que o próprio movimento da libido objetal, que se dá no abandono do objeto sexual e no conseqüente investimento no ego, implica uma "espécie" de sublimação. Freud levanta, assim, a hipótese segundo a qual toda sublimação seria mediada pelo ego. Esta concepção justifica uma sutil novidade introduzida na definição de sublimação: desde "Os instintos e suas vicissitudes" (1915c, Op. cit.) esta passa a ser definida não só como desvio dessexualizante da meta, mas também como desvio do objeto da pulsão. O ego, de acordo com O ego e o id, oferece- se ao id como objeto de investimento. A partir destes novos postulados, a função do ego passa a ser ancorada na luta pela manutenção da unidade narcísica e o ego, portanto, é tanto a instância recalcante quanto o ”agente da sublimação”. Para a realização dessa unificação narcísica, o trabalho do recalque revela-se fundamental. Ao reconhecermos que a libido objetal retorna para o próprio ego como sublimação, outra questão relevante apresenta-se para nós: seria a própria origem do ego o resultado de um processo de sublimação? Reconhecendo esta possibilidade, temos que supor que a sublimação consiste num trabalho voltado para a tentativa de "fechamento", de ligação, a serviço da unidade, da síntese: um trabalho de Eros (a tendência a unir e ligar), à medida que o ego é a própria instância onde se forja a construção dessa unidade e onde as ligações se efetuam. Promovendo uma dessexualização, a sublimação visa incluir no ego o que é de origem sexual. Assim, constatamos que o recalque visa excluir e a sublimação, incluir, em prol da unidade egóica. Ainda em O ego e o id (Freud, 1923b, Op. cit.), Freud confere à instância do ideal do ego uma importância bem maior do que aquela que havia postulado em "Sobre o narcisismo: uma introdução" (Id., 1914c, Op. cit.). Abordando a origem do ideal do 23 ego, Freud mostra que esta instância comporta uma modificação no ego, resultante do complexo de Édipo, ou seja, ela seria, de certa forma, herdeira do Édipo. Ainda sobre o ideal do ego: “O que pertencia à parte mais baixa da vida mental de cada um de nós é transformado, mediante a formação do ideal no que é mais elevado na mente humana pela nossa escala de valores” (Id., 1923b, Op. cit., p. 49). Neste ponto, encontramos uma via de aproximação do processo de formação dessa instância com o de sublimação, pois esta consiste justamente na possibilidade de transformar o que é mais "baixo" no que é mais "elevado". Isto nos permite deduzir que a própria instância do ideal do ego resultaria de um processo de sublimação. Desse modo, a constituição do ideal remete-nos à sublimação intelectual, à medida que nela se opera a produção de um sentido que visa conter aquilo que é disruptivo na pulsão, ligando essa força através da construção dos ideais e fechando, assim, o acesso direto ao que há de mais "baixo". O ideal do ego, como herdeiro do Édipo, evidencia a internalização da interdição e das regras e normas sociais de conduta, permitindo ao sujeito sua inserção na cultura – ele se torna apto para as relações e realizações culturais. Tendo em vista esta importante relação entre o ego e a sublimação vislumbramos aquela modalidade mais geral de sublimação à qual temos nos referido, sublimação que parece funcionar a partir dos mesmos mecanismos que aqueles implicados na sublimação de tipo "científico-intelectual". Isto reafirma a nossa idéia de que essas duas modalidades diriam respeito ao mesmo processo. Teremos, no entanto, que avançar ainda mais no estudo do papel do ego no processo de sublimação "científico-intelectual", para que possamos vir a desenvolver uma outra hipótese: a de que a criação artística é um processo de natureza diversa, com características singulares. 24 I.3.1 O ego, a ciência e a arte O material que pudemos encontrar em O ego e o id acerca da participação da instância egóica no processo de sublimação será aqui articulado às duas vertentes do trabalho de Leonardo da Vinci, conforme acima destacado – a científica e a artística. J. Birman (2002, Op. cit.) propõe que a sublimação científica e sua busca de dar um "fechamento" estaria referida ao falo, como objeto totalizador, e a artística não o teria como referência, mantendo-se no lugar da incompletude, aberta para os efeitos disruptivos da pulsão. Este autor também propõe que reconheçamos na referência ao falo a estética do belo, sendo que a estética do sublime seria aquela sem referência fálica (Id., 2000). Estas categorias apontam para algo que estaria além da dualidade sublimação artística x sublimação científica, apontando para o fato de que a criação artística "verdadeira", a que conduziria à produção da obra de arte, funciona num registro de incompletude. Considerando o ego como instância que busca esse "fechamento narcísico-fálico", devemos ainda explorar a questão de suas formas de funcionamento, seja no processo de sublimação, seja no de criação artística. Uma passagem de "O mal-estar na civilização" vem em nosso auxílio. Neste trecho, Freud enuncia três medidas paliativas a que os homens apelam para suportar os sofrimentos da vida: ...derivativos poderosos [poderosas distrações], que nos fazem extrair luz de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas (...). Voltaire tinha os derivativosem mente quando terminou Candide com o conselho para cultivarmos nosso próprio jardim, e a atividade científica constitui também um derivativo desta espécie. As satisfações substitutivas, tal como as oferecidas pela arte, são ilusões, em contraste com a realidade; nem por isso, contudo, se revelam menos eficazes psiquicamente, graças ao papel que a fantasia assumiu na vida mental (Freud, 1930a [1929], p. 83. O grifo é nosso.). 25 Nesta passagem, assim como no estudo sobre Leonardo, percebemos com clareza como as artes e a ciência devem ser tratadas como vertentes sublimatórias cujos mecanismos de base são distintos. O apelo aos denominados “derivativos poderosos” que Freud relacionara com a atividade científica reafirma o que ele desenvolvera em textos anteriores, onde a sublimação é definida como meio de “extrair luz de nossa desgraça”. Ou seja, onde a sublimação é definida como meio de desviar o disruptivo, próprio à sexualidade perverso-polimorfa, através da ligação egóica. Para que isto se dê, a libido objetal deve ser transformada em libido narcísica, o que implica um processo de dessexualização, suscetível de dar conta do caráter disruptivo das pulsões. Aí tem lugar um enriquecimento do ego a partir do incremento de libido em seu campo, libido antes investida no objeto. Porém, ao nos depararmos com a idéia de “satisfação substitutiva”, que teria lugar na criação artística, processo que encontra sua eficácia no nível das fantasias, vemo-nos diante de um novo terreno a ser investigado. Freud parece também estar buscando positivar a singularidade do processo de criação artística. Analisando ainda a passagem acima citada, perguntamo-nos se não seria possível traçarmos uma aproximação entre os mecanismos envolvidos nesse processo e o mecanismo de formação dos sintomas, já que sabemos que estes consistem em satisfações substitutivas, ou seja, satisfações ordenadas pelo registro da fantasia. Mas devemos estar atentos ao que Freud especifica: ele não utiliza, aí, a expressão "formação substitutiva", conforme o faz ao se referir à formação de sintomas, mas faz uso da expressão satisfações substitutivas, o que aponta para uma outra modalidade própria ao funcionamento psíquico na atividade artística. As satisfações substitutivas, relacionadas à arte, não seriam menos eficazes que as "poderosas distrações", o que marca uma diferença com relação à formação dos 26 sintomas, ponto que Freud abordará posteriormente nesse mesmo livro, e que se remete, por sua vez, à idéia de “eficácia questionável”. Na atividade artística encontramos um mecanismo psíquico diferente daquele que estaria na base do processo de sublimação, capaz de “inflar” o ego, como é o caso das "poderosas distrações". As "satisfações substitutivas", como diz Freud, apenas diminuem nossa desgraça, mas não têm o poder de contenção que têm as "poderosas distrações". O trabalho egóico que se opera no processo de criação artística, não sendo referido ao falo, como propõe Birman, não promove o fechamento característico nem da formação sintomática nem da sublimação científica, mantendo o sujeito em contato com sua própria desgraça – este seria o efeito do não-fechamento. Os mecanismos utilizados pelo ego para realizar este fechamento são o recalque e a sublimação. Segundo o que Freud desenvolve em seu artigo dedicado às pulsões (Freud, 1915c, op. cit.), a sublimação consiste num destino da pulsão, assim como o recalque. A sublimação e o recalque, os dois destinos da pulsão mais elaborados, estão intimamente relacionados com a representação, diferentemente dos outros destinos, a saber, "a transformação no oposto" e o "retorno sobre a própria pessoa". O processo representacional, intelectual, está na base do processo de sublimação, se entendemos este como processo psíquico de inserção no espaço cultural, como a própria atividade do pensamento e da linguagem. Na sublimação encontra-se um caminho para a descarga e, assim, possibilita-se uma produção de relações e associações entre representações, o que torna o psiquismo apto a responder à demanda pulsional. Estas observações nada irrelevantes encaixam-se bem naquilo que avançamos sobre a sublimação "científico-intelectual", considerando que ela está a serviço de uma maior eficiência do aparelho psíquico. Podemos ir ainda além, pontuando que ela está a 27 serviço da unidade egóica, pois pressupõe uma assimilação daquilo que ficou de fora, em função do recalque. Deste modo, a "sublimação-representação" não se revela como processo especial cuja existência seria privilégio de alguns – este caráter de exceção parece servir apenas para o viés artístico da sublimação, e não para a "sublimação-representação referida à inserção cultural tratada por Freud como "avanço em intelectualidade" em "Moisés e o monoteísmo: três ensaios" (Freud, 1939 [1937-1938], Op. cit.). Jean Laplanche também defende este ponto de vista segundo o qual a sublimação diz respeito ao trabalho psíquico propriamente dito: A sublimação, tal qual nós fomos levados a conceber, nada tem de um processo à parte. Ela é, deveríamos dizer, o processo normal de aculturação pelo qual o ego tenta, sem findar, secar o Zuydersee do id, transpondo por partes as pulsões de morte em pulsões de vida (Laplanche, 1999, Op. cit., p. 321-322). E ainda: ...o início da sublimação nos reenvia ao início da pulsão sexual (Id., ibid., p. 328). No capítulo seguinte discorreremos sobre a questão do conflito entre pulsão de morte e pulsões de vida, e sua implicação em nossa reflexão. Por ora o que mais nos interessa destacar nesta passagem de Laplanche é que a sublimação, implicada no próprio trabalho da representação, aponta para algo de fundamental do funcionamento do psiquismo humano. Quando nos voltamos para sua obra Problemáticas III: a sublimação (Laplanche, 1989, Op. cit.), deparamo-nos com uma abordagem sobre a própria origem do aparelho psíquico, compreendido como um aparelho de tradução no qual recalque e sublimação são mecanismos de defesa necessários para a organização do ego. Estas respostas garantem o fechamento numa unidade que impede a “irrupção do fundo do inconsciente” (Id., ibid., p. 23) – o que temos aqui tratado como "o que fica de 28 fora do trabalho de representação". O processo de representação consiste no próprio processo de instauração do psíquico. A sublimação nos conduz, portanto, para a origem – para a origem do aparelho psíquico como aparelho de resposta à demanda pulsional. I.4 A sublimação na origem Jean Laplanche promove interessante articulação entre as idéias de sublimação e origem do aparelho psíquico em seu livro dedicado ao estudo da sublimação (Id., ibid.). Suas posições estão em sintonia com a idéia que temos buscado desenvolver a respeito da articulação entre o processo de sublimação e o de inscrição psíquica. Para este autor, a visão freudiana de sublimação apresenta vários problemas, inclusive o de sua definição metapsicológica que, para ele, jamais foi efetivamente sistematizada. Outra questão que Laplanche levanta é a obscuridade com a qual nos deparamos quando tentamos precisar em que consistiria esse sexual desviado de seu objetivo e objeto. Estes pontos nebulosos foram investigados pelo autor com a finalidade de desenvolver uma conceituação mais apurada da sublimação. Explorando o artigo de Freud sobre Leonardo, Laplanche destaca um trecho por ele reconhecido como o “mais lúcido” que Freud teria escrito sobre o tema. Versa sobre as três diferentes vicissitudes do "impulso de pesquisa" após uma “enérgica repressão [recalque]”: a inibição neurótica, a sexualização do pensamento e a sublimação.Referindo-se à sublimação, Freud escreve: ...o terceiro tipo, que é o mais raro e mais perfeito, escapa tanto à inibição do pensamento quanto ao pensamento neurótico compulsivo. É verdade que nele também existe a repressão [recalque] sexual, mas ela não consegue relegar ao inconsciente nenhum componente instintivo [pulsional] do desejo sexual. Em vez disso, a libido escapa ao destino da repressão [recalque] sendo sublimada desde o começo em curiosidade e ligando-se ao poderoso instinto [pulsão] de pesquisa como forma de se fortalecer. Também neste caso a pesquisa torna-se, 29 até certo ponto, compulsiva e funciona como substituto da atividade sexual (Freud, 1910c, Op. cit., p. 88. O grifo é nosso.). Partindo deste trecho, Laplanche desenvolve a idéia de “sublimação desde o começo", sublimação originária, o que significa, dentre outros aspectos, remeter a sublimação à origem do psíquico. É assim que vai enfatizar que “...apoio e sublimação, de uma certa forma, andariam (...) emparelhados” (Laplanche, 1989, Op. cit., p. 91). O autor não nega a existência de sublimações secundárias, mas atribui à originária significativa importância, marcando uma grande mudança na forma de se conceber a sublimação. Ele propõe que as verdadeiras sublimações seriam as originárias “...como Freud nos deu a entender, especialmente a propósito dessa sublimação (...) que é a intelectualidade de Leonardo” (Id., ibid.,, p. 91). Estando essa modalidade de sublimação situada na origem do psíquico, acaba sendo também destacada a compreensão da sublimação como inscrição de representações. No entanto, esta sublimação originária, que diz respeito à inscrição das representações, e que fala da sublimação como aspecto geral do processo de humanização, não dá conta da “predisposição artística” que pressupõe uma peculiaridade especial, a de estar situada além do processo de representação. Relembremos que Laplanche teoriza que “a atividade pictórica seria algo muito mais próximo do pulsional” (Id., ibid., p. 79) que a sublimação "intelectual-científica". Esta proposição, em consonância com nossa hipótese acerca da "predisposição artística", salienta o aspecto disruptivo presente na criação artística. Nosso estudo acerca da singularidade deste processo de criação artística pede uma análise desse caráter disruptivo que nos parece estar no centro da atividade artística. A própria condição de ato no processo de criação artística remete-nos para um 30 registro que estaria além da representação. Dedicaremos o próximo capítulo a essa vertente da questão. II O ATO ARTÍSTICO “Não quero suprimir de maneira alguma o sofrimento, pois freqüentemente é ele que faz os artistas se expressarem mais energicamente.” (Millet apud. Van Gogh, 1914 [1853-1890], p. 147) O ato artístico, o movimento criador, tem fascinado os homens na História de tal modo que a arte tem sido tratada e reverenciada através de um apelo quase místico, sagrado (Sousa, 2002), misterioso e enigmático. Acerca deste mistério que paira sobre a arte, Jean Guillaumin lembra-nos, partindo do ponto de vista tanto dos artistas quanto do público, que “...o segredo da arte é aquele mesmo do homem e ao se dominar um, domina-se o outro, o que é tornar-se, por deslocamento, senhor de seu próprio destino” (Guillaumin, 1998, p. 36. A tradução é nossa). Esta passagem já indica como a arte traz em si algo que se aproxima da origem da psique humana, algo que se busca dominar. Esta concepção de ato como tentativa de domínio é compartilhada por nós, e tentaremos apreendê-la melhor neste capítulo. A arte do século XX buscou voltar nosso olhar da obra acabada para o próprio ato artístico (Argan, 1992), e nesse sentido a action painting de Jackson Pollock apresenta-se como o ápice dessa busca. Mesmo que a arte dos séculos anteriores nem sempre tenha dirigido o olhar do público para o ato, esta dimensão tem sido há muito tempo reconhecida como o que vem caracterizar o próprio processo da criação. Que a criação artística seja dependente do ato criador, parece-nos uma proposição fundamental. Fazer a obra é condição necessária para que reconheçamos determinado 32 sujeito como artista, criador. Deste modo, considerando que a criação artística se dá no próprio ato, devemos investigar o que o possibilita, ou seja, temos que explorar os fundamentos, a origem desse ato. Através de nosso estudo, visamos compreender melhor a singularidade do ato de criação artística. Não pretendemos com isso esgotar o tema da arte e, portanto, “desvendar” o seu mistério. Nosso objetivo é compreender o que está na base do próprio impulso criador. A nossa meta não está voltada para o resultado final desse processo, ou seja, para a própria obra de arte, embora essa vertente do tema perpasse, em alguns momentos, o nosso percurso, tendo em vista que, como finalidade última do processo artístico, a questão da natureza da obra pode trazer elementos importantes acerca das particularidades desse ato que a realiza. Para analisarmos os fundamentos do impulso criador, é necessário examinarmos o que Freud avançou sobre a dimensão do pulsional disruptivo e impulsivo aí implicado, aspecto que, desde o capítulo anterior, vimos articulando com o processo de criação artística, tendo em vista, agora, o seu caráter de ato. II.1 As relações entre o pulsional “disruptivo” e o ego O conflito entre o ego e o que escapa a seu trabalho de unificação, emergindo como força disruptiva frente a esta unidade, constitui um tema central na obra freudiana. Isto nos conduz ao plano do conflito da “pulsão versus representação”, como indicamos no capítulo anterior. O que está subjacente à idéia de um ego mal sucedido, de forma mais radical, em sua tarefa de barrar uma irrupção excessiva da força pulsional em seu território, é a noção de trauma. Passamos, então, a uma análise da questão do 33 trauma e seus efeitos, tendo em conta que o ato de criação artística é impulsionado por uma força pulsional disruptiva. II.1.1 O trauma Em psicanálise a noção de trauma está associada aos efeitos disruptivos da pulsão no aparelho psíquico. É também a essa noção que Freud recorrerá ao explorar a questão da origem do aparelho psíquico, em função da demanda pulsional. Desde a última década do século XIX até o final de sua obra, Freud tratou da temática do trauma apelando a ela em sua reflexão sobre a origem do psíquico, sobre a natureza de determinadas patologias e também de certas problemáticas relativas à cultura. Já nos primeiros textos onde vemos constituir-se uma teoria do trauma (Breuer & Freud, 1893-1895), essa noção surge articulada com a idéia de um encontro no qual um outro sedutor promove um excesso de excitação (pulsional) de ordem sexual. Este encontro pode ser considerado impactante e violento, por colocar o indivíduo numa situação de passividade e impotência – de impossibilidade de defesa. A noção de trauma, apesar das importantes modificações sofridas ao longo do percurso freudiano, sempre comportou um aspecto de grande importância: a dimensão da alteridade. A questão do outro como aquele que "instaura" a pulsão sexual e, conseqüentemente, o trabalho psíquico, é um ponto fundamental em nossa visão sobre o trauma. Alguns anos após o abandono da hipótese de que um fato real de sedução poderia levar à patologia histérica, e da ênfase que passa, então, a ser dada à fantasia, (conforme a famosa “Carta 69” para Fliess, datada de 21 de setembro de 1897 [Freud, 1950a [1887-1902], p. 351), o caráter traumático da origem do psíquico – tendo em vista o encontro com a alteridade – reaparecerá, apesar de Freud não fazer uso,para este 34 propósito, do termo trauma. Isto pode ser observado particularmente no momento em que ele sublinha a importância da sedução materna – nos “Três ensaios” (Freud, 1905d, Op. cit.) – situação que estaria na origem da pulsão sexual, se consideramos a idéia freudiana de apoio. Merece igualmente menção o caso do “Homem dos Lobos” onde Freud busca incessantemente a cena primária que teria originado a neurose de seu paciente (Freud, 1918b). Vislumbramos, assim, a presença subjacente da idéia de um encontro traumático como sendo o elemento de instauração da psicossexualidade. Com as contribuições de “Além do princípio do prazer” (Freud, 1920g), o trauma ganha novo vigor na teoria freudiana, sendo recolocado no centro de sua estrutura. É esta concepção do traumático, de 1920, que nos servirá de guia em nosso percurso. Este texto põe em relevo a questão da incapacidade de defesa por parte do aparelho psíquico diante do excesso pulsional veiculado na situação traumática. O problema da ineficácia das ligações, da ausência de respostas ou defesas do aparelho, a questão da passividade e sua articulação com a noção de trauma são temas que, a partir desse momento, passam ao primeiro plano da teoria. Vale lembrar que o trabalho de ligação é função da instância egóica. O ego trabalha a serviço do Logos, da razão, do saber, do domínio, enquanto o traumático não é outra coisa senão um “rombo” neste Logos. É o Pathos (ou o excesso, a quantidade, o pulsional) que se faz presente de modo violento: o trauma causa “impressões corpóreas cujo efeito imediato traduz-se em violência” (Maciel Júnior, 2001, p. 107). Além disto, provoca e obriga o aparelho psíquico a trabalhar contra esse excesso pulsional invasivo, com dispêndio de grande quantidade de libido. Ao nos referirmos a essa movimentação de libido, deparamo-nos com a questão das intensidades, que desempenham papel especial nos caminhos tomados pelo conflito pulsional. Não é por acaso que a 35 importância do trauma é justamente reafirmada no momento da emergência do novo dualismo pulsional. O traumático pode ser compreendido como o excesso pulsional que vem romper, como numa “invasão”, o trabalho egóico de assimilação e ligação. Em uma de suas conceituações da pulsão, Freud define-a como exigência de trabalho ao aparelho psíquico (Freud, 1915e, Op. cit.), o que permite supor que o traumático esteja referido à pulsão por excelência. A pulsão, sendo energia livre, não inserida na organização narcísico-egóica, é a própria pulsão de morte ou pulsão de autodestruição, apresentando-se como o estranho, Unheimlich (Freud, 1919h), o “sem possibilidade de sentido” para a "célula narcísica". A. Maciel Júnior afirma que “...o transbordamento da pulsão de morte não é outra coisa senão o resultado de um sentimento intenso que coloca o ego em uma situação de impotência...” (Maciel Junior, 2001, p.105). Fundamentando-se na obra de G. Deleuze e F. Guattari, o autor mostra-nos que a transformação ocorrida no psiquismo por conta do trauma é acompanhada do que ele denomina sentimentos intensos. Ainda partindo de Gilles Deleuze, sublinha que o que provoca sentimentos intensos é sentido, mas não é da ordem da representação. A violência inerente ao trauma impossibilitaria o trabalho de representar. Thanatos impõe-se ao aparelho cujo estado de impotência, de passividade radical, é correlativo da impossibilidade de dar conta dessa “invasão”. A relação entre o ego e a “invasão” da pulsão de morte ganha relevo. Se consideramos a pulsão de morte como destrutiva, temos que observar que ela assim se apresenta a partir do ponto de vista do ego, pois constitui uma ameaça à unidade narcísica, apontando para a castração, em oposição à organização do ego, centrada no phallus e no narcisismo (Birman, 2000, Op. cit.). A pulsão de morte aponta, em última 36 instância, para uma alteridade radical – aquilo que se apresenta como totalmente estranho ao ego. Ela é a evidência de um além da representação, da violenta imposição de uma outra coisa ao "invólucro egóico". O quadro que se esboça com as defesas enfraquecidas ou com um aparelho incapaz de operá-las é o do trauma, se o concebemos como abertura à “experiência”, sendo o trauma aqui pensado como encontro com a alteridade, neste caso, uma alteridade radical, como sublinhamos acima. Jean Laplanche aprofundará essa visão sobre o traumático, desenvolvendo a partir dela sua “teoria da sedução generalizada” (Laplanche, 1970). Passamos, então, a uma breve apresentação de alguns pontos desta teoria, pontos de especial interesse em nossa pesquisa. II.1.2 A teoria da sedução generalizada Esta teoria repensa a relação primária entre a mãe e o bebê à luz da noção de sedução. Inspirando-se em alguns textos de Freud, dentre os quais podemos destacar o “Projeto” (Freud, 1950a [1887-1902]), os “Três ensaios” (Id., 1905d, Op. cit.) e, principalmente, a conferência sobre a feminilidade (Id., 1933a) – “... onde Freud escreve que a mãe é o primeiro sedutor”, como nos lembra Porret (1994, p. 118. A tradução é nossa.) – Laplanche pressupõe uma sedução originária por parte da mãe em relação ao bebê, objeto de investimento dela. A sedução aponta para a particularidade desta relação. A condição de sedutora por parte da mãe é apoiada na suposição de que ela vem implantar a sua sexualidade inconsciente no bebê que não tem a possibilidade de ligar essa força. Esta situação possui, assim, um caráter traumático, situação de passividade diante da pulsão sexual do 37 outro. É a “contaminação” da sexualidade da mãe que provoca um trabalho do bebê, na tentativa de dar conta do sexual, vivido por ele como enigma. A noção de mensagem enigmática é um elemento central na "teoria da sedução generalizada", e é particularmente importante em nosso estudo sobre o traumático e a criação artística. Nos termos do autor, a mãe transmite uma “mensagem enigmática” que é traumática, à medida que impõe o pulsional; mas ela simultaneamente possibilita o início do trabalho de resposta à pulsão: o trabalho de representação, que instaura o psíquico. É o "sopro de vida humana" advindo do outro. O estado de passividade, de ausência de defesas do bebê ante a violenta mensagem da mãe, coloca-nos diante da noção de desamparo, sobre a qual Freud voltará a debruçar-se ao final de sua obra (Freud, 1930a, Op. cit.) mas cuja origem situa-se no “Projeto” de 1895 (Id., 1950a [1887-1902], Op. cit.). A noção de desamparo originário é apresentada para pontuar a dependência, ao nível mesmo da necessidade que todo ser humano tem do outro em sua constituição. A respeito do desamparo e de sua relação com a constituição psíquica, escreve J. Birman: Sob o desamparo, o sujeito se encontra diante da pressão constante das forças pulsionais, que o perpassam em diferentes direções e o inundam. O sujeito é tomado pelo excesso, de cabo a rabo. Por isso mesmo, ele é obrigado, por um lado, a realizar um trabalho de ligação daquelas forças irruptivas, constituindo um campo de objetos capazes de oferecer um horizonte possível de satisfação e, por outro, deve se impor as exigências de nomeação daquelas forças (Birman, 2000, Op. cit., p. 44). Laplanche sustenta ainda que é o trabalho egóico de sublimação que permite a ligação da energia disruptiva e violenta do traumático, ou seja, da pulsão de morte que ele associa à natureza essencialmente “perversa” da pulsão. Cabe observar que essa visão sobre o processo de sublimação, tendo em vista a sua articulação com a pulsão de morte, só se torna viável em função de Laplanche considerar a pulsão de morte como pulsão-sexual-de-morte (Laplanche, 1970, Op. cit.).
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