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The National Geographic Society THE GOSPEL OF JUDAS The National Geographic Society REPORTAGEM Perdido durante quase 1.700 anos, um manuscrito em papiro já se desfazendo apresenta a história do homem mais odiado da história sob nova luz. AUTOR: Andrew Cockburn Com um ligeiro tremor nas mãos, causado pela doença de Parkinson, o professor Rodolphe Kasser pegou o texto antigo e começou a ler com voz firme e clara: "Pe-di-ah-kawn-aus ente plah-nay". Essas palavras estranhas eram em copta, a língua fa-lada no Egito no alvorecer do cristianismo. Não eram ouvidas desde que a Igreja nascente declarara o documento proibido aos cristãos. Esta cópia, não se sabe como, sobreviveu. Escondida por uma eternidade no deserto egípcio, finalmente foi descoberta no fim do século 20, para depois novamente desaparecer no submundo dos negociantes de antigui-dades. Quando chegou às mãos de Kasser, o papiro - um tipo de papel feito de plantas aquáticas desidratadas - estava se desfazendo, com sua mensagem prestes a ser perdida para sempre. O erudito professor de 78 anos, um dos maiores especialistas mundiais em copta, terminou de ler e cuidadosamente pôs a página de volta na mesa. "Bela língua, não? Egípcio escrito em caracteres gregos." Sorriu. "Esta é uma passagem em que Jesus explica aos discípulos que eles estão no caminho errado." Maravilhara-se com o texto, e não era para menos. Na primeira linha da página inicial está escrito: "O relato secreto da revelação feita por Jesus em conversa com Judas Iscariotes [.]". Após quase 2 mil anos, o homem mais odiado da história está de volta. Todos se lembram do grande amigo de Jesus Cristo, um dos Doze Apóstolos, que o vendeu por 30 moedas de prata, identificando-o com um beijo. Depois, enlouquecido de remorso, Judas se enforcou. Ainda hoje, ele é o símbolo supremo da traição. Nos abatedouros, o bode que conduz os outros animais ao abate é chamado de Judas. Na Alemanha, autoridades podem proibir os pais de dar o nome Judas a um recém-nascido. Na Igreja Suspensa, um templo cóptico na Cidade Velha do Cairo, os guias apontam uma coluna negra na colunata branca da igreja - Judas, é claro. O cristianismo não seria o mesmo sem o seu traidor. Um contexto sinistro permeia as descrições tradicionais de Judas. À medida que o cristianismo desvinculou-se de suas origens como uma seita judaica, os pensadores cristãos foram julgando cada vez mais conveniente culpar os judeus, como povo, pela prisão e execução de Cristo, e assim pintar Judas como o judeu arquetípico. Os quatro evangelhos, por exemplo, tratam com brandura o governador romano Pôncio Pilatos, mas condenam Judas e os altos sacerdotes judeus. O manuscrito secreto mostra-nos um Judas muito diferente. Ele é um herói. Ao contrário dos outros discípulos, realmente compreende a mensagem de Cristo. Quando entrega Jesus às autoridades, está fazendo o que seu mestre pediu, sabendo o destino que irá acarretar para si mesmo. Jesus o avisa: "Serás amaldiçoado". A mensagem é chocante o suficiente para despertar suspeitas de fraude, coisa comum em se tratando de artefatos que se dizem bíblicos. Foi o caso de uma caixa vazia de calcário que supostamente continha os ossos de Tiago, irmão de Jesus. Ela atraiu multidões quando foi exibida em 2002, mas logo se revelou uma engenhosa falsificação. Um Evangelho de Judas é obviamente mais atraente do que uma caixa vazia, mas até o momento todos os testes confirmam sua antiguidade. A National Geographic Society, que está contribuindo para financiar a restauração e a tradução do manuscrito, encomendou a um renomado laboratório especializado da Universidade do Arizona a datação por carbono do livro de papiro, ou códice, que contém o evangelho. Testes com cinco amostras separadas do papiro e da sua encadernação de couro datam o códice entre 220 e 340 d.C. A tinta parece ser uma mistura feita com noz-de-galha, vitríolo, goma e fuligem. Especialistas em copta afirmam que modos de expressão reveladores encontrados no evangelho indicam que ele foi traduzido do grego, língua na qual a maioria dos textos cristãos foi escrita nos dois primeiros séculos desta era. "Nós todos nos sentimos à vontade situando a origem desse texto no século 4", declarou um especialista. Uma confirmação adicional vem do passado. Por volta de 180 d.C., Irineu, bispo de Lyon na Gália Romana, escreveu um volumoso tratado intitulado Contra as Heresias. O livro era uma censura feroz a todas as concepções sobre Jesus que diferiam das apresentadas pela Igreja tradicional. Entre os que ele criticou estava um grupo que reverenciava Judas, "o traidor", e que criara uma "história fictícia" à qual "chamam Evangelho de Judas". Pelo visto, décadas antes de o manuscrito hoje nas mãos de Rodolphe Kasser ser escrito, o irado bispo sabia sobre o texto original em grego. Irineu estava às voltas com uma profusão de heresias. Nos primeiros séculos do cristianismo, o que chamamos de Igreja, operando por meio de uma hierarquia de padres e bispos, era apenas um de muitos grupos inspirados por Jesus. O estudioso da Bíblia Marvin Meyer, da Universidade Chapman, que ajudou na tradução do evangelho, resume a situação com uma frase: "O cristianismo em busca de seu estilo". Um grupo chamado ebionitas, por exemplo, pregava que os cristãos deviam obedecer a todas as leis religiosas judaicas, enquanto outro, os marcionitas, rejeitava qualquer relação entre o Deus do Novo Testamento e o Deus judaico. Alguns afirmavam que Jesus fora inteiramente divino, contradizendo outros, para quem ele fora completamente humano. Dizem que uma outra seita, os carpocracianos, praticava a troca de casais ritualizada. Muitos desses grupos eram gnósticos, seguidores da mesma linha do cristianismo nascente refletida no Evangelho de Judas. "Gnose, em grego, significa conhecimento", explica Meyer. "Os gnósticos acreditavam que existe uma fonte suprema de bondade, que chamavam de mente divina, fora do universo físico. Os humanos trazem uma centelha desse poder divino, mas não a podem acessar, impedidos pelo mundo material que os cerca." Esse mundo imperfeito, na concepção dos gnósticos, era obra de um criador inferior e não do Deus supremo. Enquanto cristãos como Irineu salientavam que apenas Jesus, o filho de Deus, era ao mesmo tempo humano e divino, os gnósticos afirmavam que pessoas comuns podiam ligar-se a Deus. A salvação requeria despertar aquela centelha divina no espírito humano e reconectá-la à mente divina. Para isso era preciso a orientação de um mestre, e esse, segundo os gnósticos, era o papel de Cristo. Os que compreendessem sua mensagem se tornariam tão divinos quanto Cristo. Eis a razão da hostilidade de Irineu. "Aqueles homens eram místicos", diz Meyer. "E os místicos despertam a ira da religião institucionalizada. Ouvem a voz de Deus dentro de si e não precisam de um sacerdote para interceder por eles." Irineu começou seu livro após voltar de uma viagem e encontrar seu rebanho em Lyon sendo subvertido por um pregador gnóstico chamado Marcus, que estava incentivando seus iniciados a demonstrar o contato direto com o divino por meio de profecias. Quase tão escandaloso era o visível sucesso de Marcus entre as mulheres do rebanho. A "iludida vítima" do pregador, escreveu Irineu, irritado, "impudentemente profere algumas bobagens" e "então se considera profeta!" Décadas atrás, as doutrinas desse tipo eram vislumbradas sobretudo por meio de críticas feitas por antagonistas como Irineu, mas em 1945 camponeses egípcios encontraram um conjunto de textos gnósticos, perdidos havia muito tempo, enterrados em um jarro de cerâmica próximo à cidade de Nag Hammadi. Entre eleshavia mais de uma dúzia de versões totalmente novas de ensinamentos de Cristo, incluindo os evangelhos de Tomé e Felipe e um Evangelho da Verdade. Agora temos o Evangelho de Judas. No passado distante, algumas dessas versões alternativas podem ter sido mais divulgadas do que os evangelhos conhecidos, Marcos, Mateus, Lucas e João. Mas, hoje, a idéia de textos que contradizem os quatro evangelhos canônicos do Novo Testamento é profundamente perturbadora para algumas pessoas, como fui lembrado quando almoçava com Marvin Meyer em um restaurante em Washington, D.C. Transbordante de entusiasmo, o eufórico acadêmico limpou um prato de salada de frango enquanto discorria sem parar sobre as crenças contidas no Evangelho de Judas. "É sensacional", exclamou. "Explica por que Judas é apontado por Jesus como o melhor entre os discípulos. Os outros não entenderam." A multidão da hora do almoço se fora e estávamos sós no restaurante quando o maître, hesitante, veio entregar um bilhete a Meyer. Dizia simplesmente: "Deus ditou um livro". A mensagem enigmática fora passada por telefone, com instruções para que fosse entregue ao cliente que pedira salada de frango. Alguém que se sentara perto de nós pensou que Meyer estava lançando dúvida acerca da Bíblia como a palavra de Deus. Na verdade, não se sabe se os autores de quaisquer dos evangelhos de fato testemunharam os acontecimentos que descreveram. O estudioso evangélico da Bíblia Craig Evans diz que os evangelhos canônicos acabaram eclipsando os demais porque sua versão dos ensinamentos e da Paixão de Cristo era a mais verossímil. "Os primeiros grupos cristãos em geral eram pobres; não tinham recursos para mandar copiar mais do que alguns livros; por isso, seus membros diziam: 'Quero o evangelho do apóstolo João, ou do apóstolo tal' ", supõe Evans. "Ou seja, os evangelhos canônicos são os que eles próprios consideraram os mais autênticos." O Evangelho de Judas reflete com clareza a luta travada muito tempo atrás pelos gnósticos e pela Igreja hierárquica. Na primeira cena, Jesus ri dos discípulos por orarem para "seu deus", referindo-se ao desastroso deus que criou o mundo. Compara os discípulos a um sacerdote em um templo (uma referência à Igreja preponderante), a quem chama de "ministro do erro", plantando "árvores sem frutos, em meu nome, vergonhosamente". Desafia os discípulos a olhar para ele e compreender o que ele de fato é, mas eles não o olham. A passagem mais importante é aquela em que Jesus diz a Judas: "Sacrificarás o homem que me veste". Em outras palavras, Judas matará Jesus - e com isso lhe fará um favor. "Enfim ele se livrará de seu invólucro material, a carne de seu corpo, e libertará o verdadeiro Cristo, o ser divino que ela contém", diz Meyer. O fato de essa tarefa ter sido confiada a Judas é um indicador de sua posição especial. "Levanta os olhos, vê a nuvem e a luz dentro dela e as estrelas ao redor", Jesus lhe diz para encorajá-lo. "A estrela que mostra o caminho é a tua estrela." Finalmente, Judas tem uma revelação, na qual ele entra em uma "nuvem luminosa". As pessoas abaixo ouvem uma voz saída da nuvem, embora o que ela diz possa não vir jamais a ser conhecido, pois nesse trecho há um rasgo no papiro. O evangelho termina abruptamente com um comentário afirmando que Judas "recebeu dinheiro" e entregou Jesus aos que o vinham prender. Para Craig Evans, esse relato é uma ficção, escrita em apoio a um sistema de crença que não vingou. "Não há nada no Evangelho de Judas que nos diga alguma coisa que possamos considerar historicamente confiável", ele declara. Outros estudiosos, contudo, acham que o documento é uma nova e importante janela para a mente dos primeiros cristãos. "Ele muda a história dos primórdios do cristianismo", diz Elaine Pagels, professora de religião na Universidade Princeton. "Não procuramos dados históricos nos evangelhos, e sim os fundamentos da fé cristã." Bart Ehrman, da Universidade da Carolina do Norte, completa: "Isso vai incomodar muita gente". Opadre Ruwais Antony é um deles. Há 27 anos esse venerável monge de barbas brancas vive no Mosteiro de Santo Antônio, um posto avançado no deserto oriental egípcio. Em visita ao local, perguntei o que ele achava da idéia de que Judas estava apenas agindo a pedido de Jesus quando o entregou e que, portanto, era um homem bom. Ruwais ficou tão chocado que cambaleou e trombou com a porta que estava fechando. Depois, repugnado, murmurou: "Não recomendado". Sua indignação está em sintonia com a cólera do bispo Irineu - um lembrete de que nesse lugar, à sombra das inóspitas montanhas do Mar Vermelho, o mundo cristão dos primeiros tempos é algo palpável. Um pouco antes, o padre Ruwais me recebera no interior da Igreja dos Apóstolos. Sob nossos pés, recém-escavadas, estavam as celas, a cozinha e a padaria construídas por Santo Antônio em pessoa no século 4, quando fundou sua comunidade. Na época desse acontecimento, célebre na história da Igreja como o início do monasticismo no deserto, um escriba anônimo pegara uma pena de junco e uma folha de papiro e começara a copiar o "Relato secreto." Não deve ter feito isso muito longe dali; a área onde se afirma ter sido encontrado o códice fica 65 quilômetros a oeste do mosteiro. O escriba pode ter sido um monge, como aqueles que reverenciavam os textos gnósticos e os mantinham em suas bibliotecas. No fim do século 4, porém, possuir livros desse tipo era uma imprudência. Em 313, o imperador romano Constantino legalizara o cristianismo. Mas sua tolerância abrangia apenas a Igreja organizada, a quem ele prodigalizava riquezas e privilégios, sem falar das isenções de impostos. Os hereges, cristãos que discordavam das doutrinas oficiais, não tiveram apoio, foram punidos e por fim proibidos de reunir- se. Irineu indicara os quatro evangelhos canônicos como os únicos que os cristãos deveriam ler. Sua lista, por fim, tornou-se a política da Igreja. Em 367, Atanásio, o poderoso bispo de Alexandria e admirador de Irineu, emitiu uma ordem a todos os cristãos do Egito com uma lista de 27 textos, entre eles os evangelhos atuais, que deveriam ser considerados os únicos livros sagrados do Novo Testamento. Essa lista perdura até hoje. Não há como saber quantos livros foram perdidos à medida que a Bíblia tomou forma, mas sabemos com certeza que alguns foram escondidos. O achado de Nag Hammadi fora enterrado em um jarro de cerâmica de gargalo alongado, talvez por monges dos mosteiros de São Pacômio, nas proximidades. Um homem apenas teria bastado para esconder o Evangelho de Judas, que estava encadernado junto com três outros textos gnósticos. Os documentos sobreviveram intactos por séculos. Ninguém os leu até o começo de maio de 1983, quando Stephen Emmel, estudante de pós-graduação em Roma, recebeu um telefonema de um colega acadêmico pedindo-lhe que fosse à Suíça examinar alguns documentos coptas. Em Genebra, Emmel e dois colegas foram encaminhados a um quarto de hotel onde se encontraram com dois homens: um egípcio que não falava inglês e um grego que traduzia. "Tivemos cerca de meia hora para examinar três caixas de sapato. Dentro havia papiro embrulhado em jornal", conta Emmel. "Não nos foi permitido tirar fotos nem fazer anotações." O papiro já começava a esfarelar-se, por isso Emmel não ousou tocá-lo com as mãos. Ajoelhou-se ao lado da cama, ergueu algumas das folhas com uma pinça e vislumbrou o nome de Judas. Equivocadamente, supôs tratar- se de Judas Tomé, outro discípulo, mas acertou ao compreender que aquela era uma obra de enorme importância. Um dos colegas de Emmel enfiou-se no banheiro para negociar. Emmel estava autorizado a oferecer no máximo 50 mil dólares; os vendedores pediam 3 milhões,nem um centavo a menos. "Ninguém pagaria tudo aquilo", diz Emmel, hoje professor na Universidade de Münster, Alemanha, que recorda, com tristeza, que o papiro estava "bonito" e lamenta sua deterioração desde esse encontro. Enquanto os dois lados almoçavam, ele saiu de mansinho e anotou tudo o que conseguiu lembrar. Foi a última vez que um especialista viu esses documentos nos 17 anos seguintes. O egípcio naquele quarto de hotel em Genebra era um negociante de antiguidades do Cairo chamado Hanna. Ele comprara o manuscrito de um negociante de aldeia que ganhava a vida procurando material desse tipo. Não se sabe exatamente onde ou como a coleção foi parar nas mãos desse negociante. Ele está morto agora, e seus parentes, no distrito de Maghagha, 150 quilômetros ao sul do Cairo, mostram-se reticentes quando são instados a revelar o local da descoberta. Logo depois de Hanna adquirir o manuscrito, todo o seu estoque desapareceu em um roubo. Ele afirma que os produtos roubados foram contrabandeados para fora do país e acabaram nas mãos de outro negociante. Tempos depois, contudo, Hanna conseguiu recuperar parte de suas mercadorias, inclusive o evangelho. Houve um tempo em que pouca gente indagaria como é que uma antiguidade de valor inestimável saiu do país que a abrigava. Qualquer visitante podia coletar artefatos e mandá-los para o exterior. Foi assim que grandes museus, como o Louvre e o Museu Britânico, adquiriram muitos de seus tesouros. Hoje, países ricos em relíquias históricas tendem a ter uma atitude de dono, proibindo a propriedade privada e controlando as exportações do patrimônio que herdaram. Os compradores respeitáveis, como os museus, tentam assegurar-se da legitimidade da procedência dos artefatos, ou origem, verificando se eles não foram roubados ou exportados ilegalmente. No início da década de 1980, quando ocorreu o roubo, o Egito já proibira a posse de antiguidades não registradas e sua exportação sem licença. Não está claro como essa lei se aplica ao códice. Mas, devido às questões sobre sua procedência, sua situação vem sendo nebulosa desde então. Hanna, porém, estava decidido a ganhar o máximo de dinheiro possível com ele. Como os acadêmicos de Genebra, com sua animação, confirmaram que o documento era valioso, Hanna partiu para Nova York à procura de um comprador com dinheiro de verdade. A incursão foi infrutífera, e Hanna, desanimado, regressou ao Cairo. Em 1984, antes de partir de Nova York, alugou um cofre em uma agência do Citibank em Hicksville, Long Island, onde guardou o códice e outros papiros antigos. Ali eles permaneceram, mofando, enquanto Hanna fazia tentativas intermitentes de despertar o interesse de compradores. Seu preço, se diz, foi sempre alto demais. Finalmente, em abril de 2000 ele fez a venda. A compradora foi Frieda Nussberger-Tchacos, grega natural do Egito que ascendera ao topo do implacável ramo de antiguidades depois de estudar egiptologia em Paris. Ela não quer divulgar quanto pagou - apenas admite que a quantia estimada nos boatos, 300 mil dólares, está "errada, mas próxima". Ocorreu-lhe que talvez a Beinecke Rare Books and Manuscript Library, um centro de textos raros na Universidade de Yale, poderia querer o texto, e assim ela confiou sua mercadoria a um dos especialistas em manuscritos da biblioteca, o professor Robert Babcock. Dias depois, quando ela ia pegar um avião de volta a Zurique, o professor telefonou. A notícia que ele lhe deu era explosiva, mas é da empolgação do homem, audível até em um celular no trânsito de Manhattan na hora do rush, que Frieda mais se lembra. "Ele dizia: 'Isto é inacreditável! Acho que é o Evangelho de Judas Iscariotes'. Mas eu, na verdade, só registrei a emoção que vibrava em sua voz." Só mais tarde, sobrevoando o Atlântico, Frieda começou a se dar conta de que era a dona do lendário Evangelho de Judas. Os gregos falam em moira - destino -, e nos meses seguintes Frieda começou a sentir que sua moira enredara-se terrivelmente com a de Judas, "como uma maldição". A biblioteca Beinecke ficou com o documento por cinco meses, mas no fim se recusou a comprá-lo - apesar da empolgação de Babcock -, em parte devido às dúvidas sobre sua procedência. Assim, Frieda desistiu dos círculos acadêmicos de elite e foi procurar Bruce Ferrini, cantor de ópera que virara negociante de manuscritos antigos em Akron, Ohio. A rejeição de Yale fora desalentadora, e a viagem a Akron, um pesadelo. "Meu vôo do aeroporto Kennedy foi cancelado, e precisei decolar de La Guardia em um avião pequeno. Eu estava levando o material acondicionado em caixas pretas, mas não me deixaram entrar com elas na cabine." Judas voou para Ohio no compartimento de bagagem. Em troca de Judas e outros manuscritos, Ferrini deu a Frieda um contrato de venda com uma empresa chamada Nemo e dois cheques pré-datados de 1,25 milhão de dólares cada um. Ferrini não deu retorno a numerosos telefonemas nos quais foi pedida a sua versão da história. Mas pessoas que viram o manuscrito sobre Judas nessa época afirmam que ele embaralhou as páginas. "Queria fazê-lo parecer mais completo", supõe o especialista em copta Gregor Wurst, que está ajudando a restaurar o documento. Mais fragmentos estavam se desprendendo. Frieda começara a preocupar-se com a transação dias depois de voltar para casa. Suas dúvidas aumentaram quando um amigo, Mario Roberty, comentou que nemo, em latim, significa "ninguém". Roberty, um advogado suíço muito perspicaz e simpático, conhece o mundo desses negociantes e dirige uma fundação dedicada à arte antiga. Ficou "fascinado" com a história de Frieda, declarou, e se prontificou a ajudá-la a reaver Judas. Os vultosos cheques de Ferrini estavam datados para o início de 2001. Para ajudar a fazer pressão sobre o negociante de Akron, Roberty recrutou a arma de destruição em massa do ramo das antiguidades: o ex-negociante Michel van Rijn. Em Londres, Van Rijn gerencia um site no qual flagela sem piedade seus inimigos no meio. Informado por Roberty, Van Rijn divulgou a notícia do evangelho, acrescentando que o manuscrito estava "nas garras de um 'multitalentoso' negociante, Bruce P. Ferrini", que se encontrava "em tremendos apuros financeiros". E, em letras garrafais, alertou potenciais compradores: "Você compra? Você põe a mão? Será processado!" Como Roberty relembra alegremente, mobilizar Van Rijn "funcionou, foi decisivo". Mas, tempos depois, Van Rijn deu uma guinada e começou a fazer críticas ferozes a Roberty e Frieda em seu site. "Acho que acabou a munição dele", explica Roberty. Em fevereiro de 2001, Frieda recuperou o código de Judas e o levou para a Suíça, onde, cinco meses depois, encontrou Kasser. Naquele momento, ela conta, Judas transformou-se de maldição em bênção. Enquanto Kasser ia capturando o significado do código nos fragmentos, Roberty atinou com uma solução criativa para o problema da procedência: vender os direitos de tradução e de divulgação pela mídia, prometendo, ao mesmo tempo, devolver o material original ao Egito. A fundação de Roberty, que hoje está em posse do manuscrito, assinou um acordo com a National Geographic Society. Livre agora das preocupações comerciais, a própria Frieda começa a parecer um tanto mística. "Tudo é predestinado", murmura. "Eu mesma fui predestinada por Judas para reabilitá-lo." Às margens do lago Genebra, no andar de cima de um prédio anônimo, um especialista manipula um pedaço de papiro, coloca-o em seu lugar, e parte de uma sentença antiga é restaurada. Judas, renascido, está prestes a nos encarar. � MANUSCRITO Retirado das areias do Egito no final do século 20, esta cópia do Evangelho Gnóstico de Judas, com data entre o início emeados do século 4, foi escrita em cóptico egípcio, mas com caracteres gregos. (O original foi composto em grego e traduzido em cóptico egípcio.) Escrito a tinta no que é hoje – depois de dois mil anos – um papiro perigosamente frágil, este documento de preço incalculável é um tesouro por si só. Mas seu verdadeiro valor está no que o texto revela: Judas Iscariotes, que se transformou no homem mais odiado da cristandade, foi o discípulo mais devoto e o amigo mais fiel do Salvador. Ele sacrificou o próprio nome para honrar o pedido de Jesus para que o traísse. ESPECIALISTAS EM CÓDICE: Códice página 33: “O relato secreto…” “O relato secreto da revelação que Jesus fez em conversa com Judas Iscariotes…” Lendo da esquerda para a direita, esta passagem encontra-se entre as primeiras linhas. “Judas” é a última palavra no final da segunda linha, basta seguir o pequeno rasgo vertical que começa na parte superior direita da página. Na maior parte de texto fragmentado que se segue, lê-se “Iscariotes”. O Evangelho de Judas contém texto com perspectiva bem diferente da exposta nos escritos do cristianismo ortodoxo seguidos hoje. Essas idéias pouco convencionais, permeadas de mitologia dos judeus gnósticos, refletem-se nos ensinamentos que Jesus compartilhou com Judas nos dias anteriores ao pessach: No início, existiu uma deidade infinita tão elevada que nem a palavra “Deus” era capaz de fazer-lhe justiça. Por meio de uma seqüência complexa de eventos, os céus produziram luz divina, radiante. Nebro, deus criador mau, responsável pelos problemas do mundo, reina sobre o mundo inferior dos seres humanos. Alguns humanos carregam dentro de si o espírito do divino. Códice página 34: “… [ele] riu.” Estas palavras encontram-se logo abaixo da última palavra da primeira linha. Partes faltantes do papiro forçaram os tradutores a inferir certas palavras como “ele”, com base em seus conhecimentos e a interpretação do restante do texto. Evangelhos do Novo testamento retratam Jesus como um homem reservado, que raramente demonstrava bom humor. Mas, no Evangelho de Judas, Jesus ri bastante, especialmente frente aos absurdos que ditam as regras da vida humana. Mas ele também ri da maneira séria – e sem questionamento – de como os discípulos aceitam coisas como preces, oferecendo-a não apenas por terem vontade, mas por acreditar que seu Deus realmente quer ser louvado desta maneira. É como se Jesus observasse de longe, sacudisse a cabeça e pensasse: “O que posso dizer?”. Por que o filho de Deus riria de algo assim? O Evangelho de Judas é considerado um evangelho gnóstico, uma forma primitiva de espiritualidade que se foca na gnose, palavra grega que significa “sabedoria”. Os gnósticos acreditam em um conhecimento místico, um conhecimento de Deus que os permite comungar com ele e comunicar-se com ele sem intermediários. Tais crenças entravam em conflito direto com integrantes da Igreja Ortodoxa, que estava surgindo. “No Evangelho de Judas”, diz Marvin Meyer, estudioso da Bíblia a Universidade Chapman da Califórnia (EUA), “esses outros cristãos atendem à vontade de um deus criador que controla o mundo com severidade. Este deus é o oposto radical da deidade transcendente proclamada no Evangelho de Judas.” Códice página 37: Fragmento de Nova York “… outras forças (…) por [meio das quais] você governa. Quando os discípulos [dele] ouviram isto, cada um ficou com o espírito inquieto. Não podiam dizer palavra. Outro dia, Jesus veio a [eles]. Disseram a [ele]: ‘Mestre, vimos o senhor em uma [visão], porque tivemos [sonhos] notáveis [à] noite (...)’. [Ele disse:] ‘Por que foram se esconder?’” Esta passagem ocupa todo este fragmento, uma porção da página 37 encontrada em Nova York depois de a descoberta ter sido noticiada pela imprensa. Os pesquisadores, que esperam encontrar outros fragmentos, foram capazes de traduzi-lo e incorporá-lo à tradução do texto maior. Com base na especulação a respeito do significado possível deste texto fragmentário, pesquisadores acreditam que a passagem possa descrever os discípulos relatando sua premonição a respeito da prisão de Jesus no jardim do Gethsêmani. Por sua vez, ficam atordoados e em silêncio quando Jesus prevê ainda que vão fugir aterrorizados quando ele for preso, cena descrita nos evangelos de são Mateus e são Marcos no Novo Testamento. Códice página 39: “... árvores sem frutos...” “E plantaram árvores sem frutos, em meu nome, de maneira vergonhosa.” Conte 14 linhas para cima a partir da parte de baixo da página. Esta passagem começa logo antes da grande interrupção em forma de curva no centro, à direita, e continua por mais duas linhas até um sinal de pontuação grego que se parece com dois pontos. Jesus parece estar criticando aqueles que pregam em seu nome, mas com proclamações sem substância ou conteúdo frutífero. Isto fazia parte da polêmica da época entre os gnósticos e a nova Igreja Ortodoxa, com um grupo questionando abertamente as opiniões do outro. Códice página 40: “… ministro de erros.” A cinco linhas inteiras a partir da parte de baixo da página, esta passagem começa logo à direita da interrupção vertical e continua na linha seguinte no símbolo que parece dois pontos, à esquerda do rasgo. O conflito entre os gnósticos e a Igreja Ortodoxa se reflete na maneira como Jesus enxerga a igreja e sua doutrina questionável. Os discípulos têm uma visão do templo, que Jesus explica em termos alegóricos. Ele compara o que eles vêem no templo com a mensagem errônea que vem da Igreja dominante em surgimento. Os discípulos, ele explica são assemelhados a um sacerdote de templo, ou um “ministro de erros”: aquele que expõe ensinamentos imprecisos. Códice página 56: “... você vai se destacar sobre todos eles...” “… você vai se destacar sobre todos eles. Porque vai sacrificar o homem que me veste.” Olhe para o segmento mais extenso de texto na parte de baixo desta página altamente fragmentada. À direita do pedaço de papiro no topo e de um caractere grego que parece um “Y”, está a palavra “você”. A linha seguinte diz: “... vai se destacar sobre todos eles”. O restante desta passagem continua nas duas linhas seguintes e no início da terceira, logo depois do primeiro rasgo em ângulo reto. As palavras de Jesus a Judas descrevem como ele vai se destacar entre os outros discípulos depois de sua morte. De acordo com o Evangelho de Judas, o Salvador é o ser espiritual dentro de Jesus, que vive na dimensão espiritual. O ser físico de Jesus não passa de uma cobertura, assemelhada a uma roupa, que o Salvador espiritual usa neste mundo. Jesus, em essência, diz a Judas que, ao traí-lo – conscientemente e a seu pedido –, está demonstrando verdadeira amizade e permitindo ao homem Jesus morrer para que o Salvador possa se libertar para retornar a sua morada no céu. Segundo a tradição gnóstica, Jesus não enxerga sua morte como tragédia nem como ato necessário para salvar o mundo do pecado. Códice página 57: “Erga seus olhos...” “Erga seus olhos e olhe para a nuvem e a luz dentro dela e as estrelas que a rodeiam. A estrela que indica o caminho é a nossa estrela. Judas ergue os olhos e viu a nuvem luminosa, e entrou nela.” Esta passagem começa oito linhas ara baixo do fragmento maior e continua mais sete linhas até o fim dos dois caracteres gregos que parecem “OC” à direita da página. Ao confiar a Judas a difícil tarefa de cumprir a ordem e entregá-lo às autoridades, Jesus confirma a posição de destaque de Judas entre os discípulos. Este exemplo de pensamento gnóstico tem a mesma base da premissa de Platão de que o criador da humanidade designou uma alma e uma estrela para cada pessoa,e que seguimos esta estrela como guia por toda a vida. Judas é glorificado quando entra na “nuvem luminosa”, que se acredita ser uma manifestação de Deus semelhante à transfiguração de Jesus. Códice página 34: “… [ele] riu.” Estas palavras encontram-se logo abaixo da última palavra da primeira linha. Partes faltantes do papiro forçaram os tradutores a inferir certas palavras como “ele”, com base em seus conhecimentos e a interpretação do restante do texto. Evangelhos do Novo testamento retratam Jesus como um homem reservado, que raramente demonstrava bom humor. Mas, no Evangelho de Judas, Jesus ri bastante, especialmente frente aos absurdos que ditam as regras da vida humana. Mas ele também ri da maneira séria – e sem questionamento – de como os discípulos aceitam coisas como preces, oferecendo-a não apenas por terem vontade, mas por acreditar que seu Deus realmente quer ser louvado desta maneira. É como se Jesus observasse de longe, sacudisse a cabeça e pensasse: “O que posso dizer?”. Por que o filho de Deus riria de algo assim? O Evangelho de Judas é considerado um evangelho gnóstico, uma forma primitiva de espiritualidade que se foca na gnose, palavra grega que significa “sabedoria”. Os gnósticos acreditam em um conhecimento místico, um conhecimento de Deus que os permite comungar com ele e comunicar-se com ele sem intermediários. Tais crenças entravam em conflito direto com integrantes da Igreja Ortodoxa, que estava surgindo. “No Evangelho de Judas”, diz Marvin Meyer, estudioso da Bíblia a Universidade Chapman da Califórnia (EUA), “esses outros cristãos atendem à vontade de um deus criador que controla o mundo com severidade. Este deus é o oposto radical da deidade transcendente proclamada no Evangelho de Judas.” VOCÊ SABIA? Os primeiros cristãos, conhecidos como gnósticos, cujas crenças se refletem no evangelho de Judas, não eram um grupo homogêneo - estudiosos até debatem se as diversas ramificações dos gnósticos devem mesmo ser agrupadas sob um só título. A idéia gnóstica de que os indivíduos carregam dentro de si uma fagulha divina pode muito bem ter existido antes do cristianismo. Mas, depois da época de Cristo, vários gnósticos adotaram Jesus como seu salvador - como o homem que contou a verdade sobre Deus para a humanidade - e portanto passaram a se considerar cristãos. No entanto, eles enxergavam o papel e os ensinamentos dele de modo bem distinto dos cristãos ortodoxos. Então, onde Jesus se encaixava na cosmologia gnóstica? Muitos gnósticos acreditavam que Jesus foi enviado à Terra para falar à humanidade sobre um Deus gentil, amoroso e condescendente, muito diferente do Deus severo, vingativo e criador do Antigo Testamento. Como os gnósticos não conseguiam harmonizar os dois aspectos opostos do divino em um único Deus, acreditavam que devia existir outro deus além do criador. Chegaram a enxergar este segundo Deus maior como a mente divina que, no início dos tempos, teve idéias que ganharam vida própria e se transformaram em entidades divinas conhecidas como Aeons. Os Aeons viviam no Pleroma, ou amplidão de Deus, que era um tipo de éter celestial ou reino de luz. Uma dessas idéias transformadas em substância era a Sabedoria, chamada "Sophia". Ela começou a pensar e a ter idéias próprias, então criou um novo ser sem consultar a mente divina, e sem sua aprovação. Este ser ficou conhecido como Yaldobaoth, e foi chamada de demiurgo, ou criador. Os gnósticos acreditavam que Yaldobaoth era o responsável por criar Adão e Eva a partir do barro de dar-lhes o sopro da vida. O espírito do criador, uma aberração no mundo puro da mente divina, introduziu a maldade no mundo. Mas também carregava a essência de Sophia, e exalou um pouco dessa divindade em Adão e Eva quando os trouxe à vida. Toda a humanidade herdou esta fagulha divina. O papel de Jesus na Terra, de acordo com os cristãos gnósticos, era explicar à humanidade sua descendência do divino. Com esta informação, e olhando para dentro de si para descobrir a fagulha divina, um gnóstico é capaz de ser reunir com o divino e viver na amplitude de Deus. Elizabeth Snodgrass ANOTAÇÕES DE CAMPO DO FOTÓGRAFO KENNETH GARRETT O MELHOR: Eu nunca me interessei muito por história bíblica, mas esta reportagem me deu uma oportunidade incrível de examinar as origens tumultuadas do cristianismo nos primeiros 400 anos depois da morte de Cristo. Achei fascinante o fato de as histórias sobre Jesus serem transmitidas oralmente e de ninguém ter começado escrevê-las até cerca de 30 anos depois de sua morte. Depois, os teólogos da época demoraram séculos para destrinchar as histórias durante o processo de edição da Bíblia. Vai ser interessante ver o tipo de debate que nossas descobertas a respeito de Judas vão suscitar, porque enxergá-lo como o discípulo em que Jesus mais confiava com certeza modifica a história. Eu sei que algumas pessoas vão rejeitar a idéia de cara, porque os primeiros estudiosos declararam o evangelho uma heresia. Mas quem tem curiosidade intelectual vai pensar: "Isto aqui é bacana demais". O PIOR: O trabalho nesta reportagem começou em dezembro de 2004, e todos os envolvidos tiveram que assinar um termo de sigilo para que a informação não vazasse. Além dos integrantes deste pequeno grupo, eu não pude conversar sobre o assunto com ninguém - nem com meus familiares. Eu só dizia às pessoas que estava trabalhando em uma reportagem sobre as origens do cristianismo. Para quem queria saber mais, eu tinha que me ater ao bordão: "Se eu contar, vou ter que te matar". O MAIS BIZARRO: Quando recebemos a primeira tradução do evangelho de Judas, ficamos arrepiados ao ler sobre a revelação que Judas teve ao entrar em uma nuvem. Dizia assim: "Quem estava no chão ouviu uma voz vinda de uma nuvem, dizendo...". Então, quando achamos que iríamos descobrir o que a voz disse, lemos "... Lacuna". As palavras estavam faltando devido a um fragmento desaparecido do papiro... Fonte: http://nationalgeographic.abril.com.br/ngbonline/evangelho/index.shtml � THE GOSPEL OF JUDAS [Versão completa em inglês] Translated by Rodolphe Kasser, Marvin Meyer, and Gregor Wurst, in collaboration with François Gaudard From The Gospel of Judas Edited by Rodolphe Kasser, Marvin Meyer, and Gregor Wurst with commentary by The National Geographic Society. INTRODUCTION: INCIPIT The secret account of the revelation that Jesus spoke in conversation with Judas Iscariot during a week three days before he celebrated Passover. THE EARTHLY MINISTRY OF JESUS When Jesus appeared on earth, he performed miracles and great wonders for the salvation of humanity. And since some [walked] in the way of righteousness while others walked in their transgressions, the twelve disciples were called. He began to speak with them about the mysteries beyond the world and what would take place at the end. Often he did not appear to his disciples as himself, but he was found among them as a child. SCENE 1: Jesus dialogues with his disciples: The prayer of thanksgiving or the eucharist One day he was with his disciples in Judea, and he found them gathered together and seated in pious observance. When he [approached] his disciples, [34] gathered together and seated and offering a prayer of thanksgiving over the bread, [he] laughed. The disciples said to [him], “Master, why are you laughing at [our] prayer of thanksgiving? We have done what is right.” He answered and said to them, “I am not laughing at you. <You> are not doing this because of your own will but because it is through this that your god [willbe] praised.” They said, “Master, you are […] the son of our god.” Jesus said to them, “How do you know me? Truly [I] say to you, no generation of the people that are among you will know me.” THE DISCIPLES BECOME ANGRY When his disciples heard this, they started getting angry and infuriated and began blaspheming against him in their hearts. When Jesus observed their lack of [understanding, he said] to them, “Why has this agitation led you to anger? Your god who is within you and […] [35] have provoked you to anger [within] your souls. [Let] any one of you who is [strong enough] among human beings bring out the perfect human and stand before my face.” They all said, “We have the strength.” But their spirits did not dare to stand before [him], except for Judas Iscariot. He was able to stand before him, but he could not look him in the eyes, and he turned his face away. Judas [said] to him, “I know who you are and where you have come from. You are from the immortal realm of Barbelo. And I am not worthy to utter the name of the one who has sent you.” JESUS SPEAKS TO JUDAS PRIVATELY Knowing that Judas was reflecting upon something that was exalted, Jesus said to him, “Step away from the others and I shall tell you the mysteries of the kingdom. It is possible for you to reach it, but you will grieve a great deal. [36] For someone else will replace you, in order that the twelve [disciples] may again come to completion with their god.” Judas said to him, “When will you tell me these things, and [when] will the great day of light dawn for the generation?” But when he said this, Jesus left him. SCENE 2: Jesus appears to the disciples again The next morning, after this happened, Jesus [appeared] to his disciples again. They said to him, “Master, where did you go and what did you do when you left us?” Jesus said to them, “I went to another great and holy generation.” His disciples said to him, “Lord, what is the great generation that is superior to us and holier than us, that is not now in these realms?” When Jesus heard this, he laughed and said to them, “Why are you thinking in your hearts about the strong and holy generation? [37] Truly [I] say to you, no one born [of] this aeon will see that [generation], and no host of angels of the stars will rule over that generation, and no person of mortal birth can associate with it, because that generation does not come from […] which has become […]. The generation of people among [you] is from the generation of humanity […] power, which [… the] other powers […] by [which] you rule.” When [his] disciples heard this, they each were troubled in spirit. They could not say a word. Another day Jesus came up to [them]. They said to [him], “Master, we have seen you in a [vision], for we have had great [dreams …] night […].” [He said], “Why have [you … when] <you> have gone into hiding?” [38] THE DISCIPLES SEE THE TEMPLE AND DISCUSS IT They [said, “We have seen] a great [house with a large] altar [in it, and] twelve men—they are the priests, we would say—and a name; and a crowd of people is waiting at that altar, [until] the priests [… and receive] the offerings. [But] we kept waiting.” [Jesus said], “What are [the priests] like?” They [said, “Some …] two weeks; [some] sacrifice their own children, others their wives, in praise [and] humility with each other; some sleep with men; some are involved in [slaughter]; some commit a multitude of sins and deeds of lawlessness. And the men who stand [before] the altar invoke your [name], [39] and in all the deeds of their deficiency, the sacrifices are brought to completion […].” After they said this, they were quiet, for they were troubled. JESUS OFFERS AN ALLEGORICAL INTERPRETATION OF THE VISION OF THE TEMPLE Jesus said to them, “Why are you troubled? Truly I say to you, all the priests who stand before that altar invoke my name. Again I say to you, my name has been written on this […] of the generations of the stars through the human generations. [And they] have planted trees without fruit, in my name, in a shameful manner.” Jesus said to them, “Those you have seen receiving the offerings at the altar—that is who you are. That is the god you serve, and you are those twelve men you have seen. The cattle you have seen brought for sacrifice are the many people you lead astray [40] before that altar. […] will stand and make use of my name in this way, and generations of the pious will remain loyal to him. After hi another man will stand there from [the fornicators], and another [will] stand there from the slayers of children, and another from those who sleep with men, and those who abstain, and the rest of the people of pollution and lawlessness and error, and those who say, ‘We are like angels’; they are the stars that bring everything to its conclusion. For to the human generations it has been said, ‘Look, God has received your sacrifice from the hands of a priest’—that is, a minister of error. But it is the Lord, the Lord of the universe, who commands, ‘On the last day they will be put to shame.’” [41] Jesus said [to them], “Stop sac[rificing …] which you have […] over the altar, since they are over your stars and your angels and have already come to their conclusion there. So let them be [ensnared] before you, and let them go [—about 15 lines missing—] generations […]. A baker cannot feed all creation [42] under [heaven]. And […] to them […] and […] to us and […]. Jesus said to them, “Stop struggling with me. Each of you has his own star, and every[body—about 17 lines missing—] [43] in […] who has come [… spring] for the tree […] of this aeon […] for a time […] but he has come to water God’s paradise, and the [generation] that will last, because [he] will not defile the [walk of life of] that generation, but […] for all eternity.” JUDAS ASKS JESUS ABOUT THAT GENERATION AND HUMAN GENERATIONS Judas said to [him, “Rabb]i, what kind of fruit does this generation produce?” Jesus said, “The souls of every human generation will die. When these people, however, have completed the time of the kingdom and the spirit leaves them, their bodies will die but their souls will be alive, and they will be taken up.” Judas said, “And what will the rest of the human generations do?” Jesus said, “It is impossible [44] to sow seed on [rock] and harvest its fruit. [This] is also the way […] the [defiled] generation […] and corruptible Sophia […] the hand that has created mortal people, so that their souls go up to the eternal realms above. [Truly] I say to you, […] angel […] power will be able to see that […] these to whom […] holy generations […].” After Jesus said this, he departed. SCENE 3: Judas recounts a vision and Jesus responds Judas said, “Master, as you have listened to all of them, now also listen to me. For I have seen a great vision.” When Jesus heard this, he laughed and said to him, “You thirteenth spirit, why do you try so hard? But speak up, and I shall bear with you.” Judas said to him, “In the vision I saw myself as the twelve disciples were stoning me and [45] persecuting [me severely]. And I also came to the place where […] after you. I saw [a house …], and my eyes could not [comprehend] its size. Great people were surrounding it, and that house <had> a roof of greenery, and in the middle of the house was [a crowd—two lines missing—], saying, ‘Master, take me in along with these people.’” [Jesus] answered and said, “Judas, your star has led you astray.” He continued, “No person of mortal birth is worthy to enter the house you have seen, for that place is reserved for the holy. Neither the sun nor the moon will rule there, nor the day, but the holy will abide there always, in the eternal realm with the holyangels. Look, I have explained to you the mysteries of the kingdom [46] and I have taught you about the error of the stars; and […] send it […] on the twelve aeons.” JUDAS ASKS ABOUT HIS OWN FATE Judas said, “Master, could it be that my seed is under the control of the rulers?” Jesus answered and said to him, “Come, that I [—two lines missing—], but that you will grieve much when you see the kingdom and all its generation.” When he heard this, Judas said to him, “What good is it that I have received it? For you have set me apart for that generation.” Jesus answered and said, “You will become the thirteenth, and you will be cursed by the other generations—and you will come to rule over them. In the last days they will curse your ascent [47] to the holy [generation].” JESUS TEACHES JUDAS ABOUT COSMOLOGY: THE SPIRIT AND THE SELF-GENERATED Jesus said, “[Come], that I may teach you about [secrets] no person [has] ever seen. For there exists a great and boundless realm, whose extent no generation of angels has seen, [in which] there is [a] great invisible [Spirit], which no eye of an angel has ever seen, no thought of the heart has ever comprehended, and it was never called by any name. “And a luminous cloud appeared there. He said, ‘Let an angel come into being as my attendant.’ “A great angel, the enlightened divine Self-Generated, emerged from the cloud. Because of him, four other angels came into being from another cloud, and they became attendants for the angelic Self- Generated. The Self-Generated said, [48] ‘Let […] come into being […],’ and it came into being […]. And he [created] the first luminary to reign over him. He said, ‘Let angels come into being to serve [him],’ and myriads without number came into being. He said, ‘[Let] an enlightened aeon come into being,’ and he came into being. He created the second luminary [to] reign over him, together with myriads of angels without number, to offer service. That is how he created the rest of the enlightened aeons. He made them reign over them, and he created for them myriads of angels without number, to assist them. ADAMAS AND THE LUMINARIES “Adamas was in the first luminous cloud that no angel has ever seen among all those called ‘God.’ He [49] […] that […] the image […] and after the likeness of [this] angel. He made the incorruptible [generation] of Seth appear […] the twelve […] the twentyfour […]. He made seventy-two luminaries appear in the incorruptible generation, in accordance with the will of the Spirit. The seventy-two luminaries themselves made three hundred sixty luminaries appear in the incorruptible generation, in accordance with the will of the Spirit, that their number should be five for each. “The twelve aeons of the twelve luminaries constitute their father, with six heavens for each aeon, so that there are seventy-two heavens for the seventy-two luminaries, and for each [50] [of them five] firmaments, [for a total of] three hundred sixty [firmaments …]. They were given authority and a [great] host of angels [without number], for glory and adoration, [and after that also] virgin spirits, for glory and [adoration] of all the aeons and the heavens and their firmaments. THE COSMOS, CHAOS, AND THE UNDERWORLD “The multitude of those immortals is called the cosmos— that is, perdition—by the Father and the seventy-two luminaries who are with the Self-Generated and his seventytwo aeons. In him the first human appeared with his incorruptible powers. And the aeon that appeared with his generation, the aeon in whom are the cloud of knowledge and the angel, is called [51] El. […] aeon […] after that […] said, ‘Let twelve angels come into being [to] rule over chaos and the [underworld].’ And look, from the cloud there appeared an [angel] whose face flashed with fire and whose appearance was defiled with blood. His name was Nebro, which means ‘rebel’; others call him Yaldabaoth. Another angel, Saklas, also came from the cloud. So Nebro created six angels—as well as Saklas—to be assistants, and these produced twelve angels in the heavens, with each one receiving a portion in the heavens. THE RULERS AND ANGELS “The twelve rulers spoke with the twelve angels: ‘Let each of you [52] […] and let them […] generation [—one line lost—] angels’: The first is [S]eth, who is called Christ. The [second] is Harmathoth, who is […]. The [third] is Galila. The fourth is Yobel. The fifth [is] Adonaios. These are the five who ruled over the underworld, and first of all over chaos. THE CREATION OF HUMANITY “Then Saklas said to his angels, ‘Let us create a human being after the likeness and after the image.’ They fashioned Adam and his wife Eve, who is called, in the cloud, Zoe. For by this name all the generations seek the man, and each of them calls the woman by these names. Now, Sakla did not [53] com[mand …] except […] the gene[rations …] this […]. And the [ruler] said to Adam, ‘You shall live long, with your children.’” JUDAS ASKS ABOUT THE DESTINY OF ADAM AND HUMANITY Judas said to Jesus, “[What] is the long duration of time that the human being will live?” Jesus said, “Why are you wondering about this, that Adam, with his generation, has lived his span of life in the place where he has received his kingdom, with longevity with his ruler?” Judas said to Jesus, “Does the human spirit die?” Jesus said, “This is why God ordered Michael to give the spirits of people to them as a loan, so that they might offer service, but the Great One ordered Gabriel to grant spirits to the great generation with no ruler over it—that is, the spirit and the soul. Therefore, the [rest] of the souls [54] [—one line missing—]. JESUS DISCUSSES THE DESTRUCTION OF THE WICKED WITH JUDAS AND OTHERS “[…] light [—nearly two lines missing—] around […] let […] spirit [that is] within you dwell in this [flesh] among the generations of angels. But God caused knowledge to be [given] to Adam and those with him, so that the kings of chaos and the underworld might not lord it over them.” Judas said to Jesus, “So what will those generations do?” Jesus said, “Truly I say to you, for all of them the stars bring matters to completion. When Saklas completes the span of time assigned for him, their first star will appear with the generations, and they will finish what they said they would do. Then they will fornicate in my name and slay their children [55] and they will […] and [—about six and a half lines missing—] my name, and he will […] your star over the [thir]teenth aeon.” After that Jesus [laughed]. [Judas said], “Master, [why are you laughing at us]?” [Jesus] answered [and said], “I am not laughing [at you] but at the error of the stars, because these six stars wander about with these five combatants, and they all will be destroyed along with their creatures.” JESUS SPEAKS OF THOSE WHO ARE BAPTIZED, AND JUDAS’S BETRAYAL Judas said to Jesus, “Look, what will those who have been baptized in your name do?” Jesus said, “Truly I say [to you], this baptism [56] […] my name [— about nine lines missing—] to me. Truly [I] say to you, Judas, [those who] offer sacrifices to Saklas […] God [—three lines missing—] everything that is evil. “But you will exceed all of them. For you will sacrifice the man that clothes me. Already your horn has been raised, your wrath has been kindled, your star has shown brightly, and your heart has […]. [57] “Truly […] your last […] become [—about two and a half lines missing—], grieve [—about two lines missing—] the ruler, since he will be destroyed. And then the image of the great generation of Adam will be exalted, for prior to heaven, earth, and the angels, that generation, which is from the eternal realms,exists. Look, you have been told everything. Lift up your eyes and look at the cloud and the light within it and the stars surrounding it. The star that leads the way is your star.” Judas lifted up his eyes and saw the luminous cloud, and he entered it. Those standing on the ground heard a voice coming from the cloud, saying, [58] […] great generation […] … image […] [—about five lines missing—]. CONCLUSION: JUDAS BETRAYS JESUS […] Their high priests murmured because [he] had gone into the guest room for his prayer. But some scribes were there watching carefully in order to arrest him during the prayer, for they were afraid of the people, since he was regarded by all as a prophet. They approached Judas and said to him, “What are you doing here? You are Jesus’ disciple.” Judas answered them as they wished. And he received some money and handed him over to them. THE END OF GOSPEL OF JUDAS ANEXO "nada há que seja novo debaixo do sol" (Eclesiastes 1:9) Resumo : Uma boa análise do "Evangelho de Judas", apócrifo do século II recém-traduzido para o inglês, com uma explicação razoável sobre o gnosticismo que o produziu, pode ajudar a fazer a diferença entre o cristianismo verdadeiro e uma empulhação gnóstica, empurrada pela inconseqüente e ignorante mídia mundial como "novidade" e "séria ameaça" à credibilidade da doutrina cristã. Para quem conhece tanto a cultura esotérica moderna quanto o conteúdo dos quatro evangelhos canônicos, o tal "evangelho" de Judas, texto produzido em meados do século II por gnósticos da seita dos Cainitas e conhecido como evangelho fraudulento por pais da Igreja como Irineu, classifica-se automática e inapelavelmente no primeiro caso – além de ser, para quem teve a pachorra de lê-lo (como eu), um texto chatíssimo, no limite do insuportável. Em vez da expressividade dos evangelhos, o Artefatos do "evangelho" de Judas em exibição. tom do relato apresenta-se vago, etéreo, cheio de detalhes numéricos, remetendo àquele tipo de linguagem pomposa que se quer passar por sábia com pouca ou nenhuma aplicabilidade. Está muito mais para literatura paulocoelhina que para texto bíblico. Os estudiosos dos primeiros séculos fizeram muitíssimo bem em deixá-lo de fora do cânon. Porém, como chegar a essas conclusões sem conhecer minimamente o gnosticismo? Por isso, uma boa análise de texto, com uma explicação razoável sobre essas teorias, pode ajudar a fazer a diferença entre o cristianismo verdadeiro e uma empulhação gnóstica, empurrada pela inconseqüente e ignorante mídia mundial como "novidade" e "séria ameaça" à credibilidade da doutrina cristã. Gnosticismo vem do grego gnosis , "conhecimento". Enquanto o cristianismo se baseia na revelação de Deus ao mundo – que atinge seu ápice na vinda de Cristo ("Quem vê a mim vê ao Pai", João 14:9; "Eu e o Pai somos um", João 10:30) – , o gnosticismo é um movimento muito antigo e de largo alcance até os dias de hoje, sempre de caráter esotérico ( eso significa "dentro" em grego, e esoterikos , "iniciados"), ou seja, que creditava a uns poucos a iluminação espiritual através de estudos ocultistas. Há uma semelhança impressionante entre as filosofias gnósticas anteriores ao Cristianismo – que floresceram em Babilônia, Egito, Síria e Grécia e procuraram se amalgamar posteriormente ao ensino de Cristo (o "evangelho" de Judas é uma das muitas provas disso) – e os ensinos de Allan Kardec e Madame Blavatsky, ambos nascidos no início do século XIX, que condensaram e impulsionaram o espiritismo e o esoterismo modernos, respectivamente. De fato, as doutrinas espíritas e esotéricas atuais são ramificações do velho tronco gnóstico. Um bom ponto de partida para diferenciar cristianismo e gnosticismo é uma das questões fundamentais de toda religião: a origem do mal. Para o gnosticismo, doutrina dualista por excelência, a polarização do mundo em bem e mal era existente desde o começo. Rezava o gnosticismo que Deus, pertencente ao mundo espiritual (portanto "bom"), cria sucessivos seres finitos chamados éons, e um deles (Sofia) dá à luz a Demiurgo, deus criador, que fez o mundo material (portanto "mau"). Se o mal está na matéria, a solução lógica para o mal é a libertação deste mundo, que se dá após sucessivas passagens da alma na Terra (reencarnação). É por isso que, nas doutrinas gnósticas modernas, o corpo é invariavelmente visto como prisão do espírito. Assim, a solução para o mal no mundo é dada pelo homem, a partir do progressivo desenvolvimento espiritual, quando, tendo atingido um grau máximo de purificação, não mais precisa "rebaixar- se" ao mundo material. Já no cristianismo, o mal não é criação de algum deus nem atribuído à matéria (criada e aprovada por Deus como "boa" em Gênesis), mas sim conseqüência da vontade de autonomia do homem, que crê poder decidir entre o bem e o mal sem a participação de Deus – de fato, isto é o que significa, segundo consenso dos teólogos, "comer da árvore do conhecimento do bem e do mal" (Gênesis 2:17) após a proibição divina. Desde então, o mal e sua conseqüência direta, a morte, entram no mundo, e uma das principais tragédias humanas é que, apesar de diferenciar bem e mal, o homem não consegue por si só decidir-se sempre a favor do bem – pois sua autonomia é uma condição artificial, assim como o mal no mundo, que é temporal e não absoluto. Os que reconhecem a necessidade de se arrepender desse desejo de autonomia (que é precisamente o pecado original) e recolocar Deus no centro de sua vontade para uma vida verdadeira são os salvos, que se valem do único meio de fazê-lo: o sacrifício de Jesus, que, sendo Deus encarnado – o único ser humano justo, ou seja, não atingido pelo pecado original – , pode levar embora todo o mal do mundo ao cumprir na cruz a morte que nos era destinada, reconciliando o mundo Representação de Demiurgo, o deus criador segundo os gnósticos. com Ele. A solução para o mal, portanto, está em Deus, não no homem. O imbroglio entre visões religiosas tão diferentes começou já nos primórdios da igreja cristã. Na tentativa de conciliação com os ensinamentos de Jesus, gnósticos como Marcião (160 d.C.) e Valentim ensinavam que Cristo é um desses seres finitos (éons) que desceu dos poderes das trevas para transmitir o conhecimento secreto ( gnosis ) e libertar os espíritos da luz, cativos no mundo material terreno, para conduzi-los ao mundo espiritual mais elevado. Nisso consistiria, para eles, a salvação. Temos, portanto, o encaixe da figura de Cristo, desdivinizada, no dualismo gnóstico, com reconhecíveis sinais de mitologia grega (quem deixa de ver Prometeu – aquele que rouba o fogo dos deuses para dá-los aos homens – na figura desse Cristo gnóstico?). Versões ligeiramente diferentes da mesma tentativa de conciliação ocorrem tanto na variação kardecista quanto na esotérica. Segundo Kardec, Jesus também não era Deus (afinal, Deus jamais se "rebaixaria" à matéria), mas sim o ser mais elevado que já passou por esse planeta, deixando-nos um exemplo de amor. E o esoterismo, embora não fale de éons, prega a existência de excelentes "mestres" espirituais ascensionados, que de tão elevados não encarnam mais, cada qual com um raio de atuação. Quem é considerado "o mestre do amor"? Cristo! Da mesma forma que no gnosticismo e no espiritismo, o esoterismo moderno o "encaixa" na fragmentação do governo do mundo, identificando-o apenas como um dos seres mais elevados que atuam sobre nós. Assim, há uma clara convergência entre o esoterismo moderno, o espiritismo e o gnosticismo nas seguintes considerações centrais: o mal é absoluto e associado à matéria, ao corpo físico, à vida na terra; diante disso, enquanto estamos no mundo físico, a nós pertence a luta contra o male a "salvação" (o desenvolvimento do espírito), e para isso Cristo está aí para nos ajudar como um dos mestres (ou éons, ou espírito elevado), transmitindo-nos sabedoria para tal, como parte de uma grande hierarquia de espíritos prontos para guiar o homem – tão grande e tão especializada em diversos assuntos que, em meio a tudo isso, Deus se torna quase um espectador, uma espécie de "força motriz" quieta e silenciosa por trás de toda a agitação dos espíritos. A influência de Deus sobre o mundo é assim diluída no poder de uma miríade de seres angélicos. Em contato com essas doutrinas, o homem não é levado, como na Bíblia, a buscar a Deus ("Buscai o Senhor enquanto se pode achar", Isaías 55:6), mas a se deixar impressionar com o poder de outros seres. No entanto, como pode alguém ser considerado apenas mestre, éon ou espírito elevado se, em suas próprias palavras, afirma-se Deus? Diz Ele: "Eu e o Pai somos um" (João 10:30) e "Eu sou a ressurreição e a vida" (João 11:25), entre muitas outras afirmações do mesmo teor. Se seus ensinamentos estão corretos, Ele é o que diz ser, senão não passaria de uma pessoa perturbada, não um grande mestre. Essa contradição não é percebida pelos gnósticos modernos, que deveriam, para uma coerência maior, não usar a Bíblia para respaldar suas crenças. O "evangelho" de Judas traz exemplos flagrantes de muitas dessas doutrinas gnósticas. Logo no início, o leitor desse texto encontra uma afirmação bombástica: "Quando Jesus surgiu na terra, fez grandes milagres e maravilhas para a salvação da humanidade." A Bíblia nunca associa a salvação a milagres e maravilhas, que são considerados sinais de que Jesus era o Messias esperado pelos judeus, mas sim ao sacrifício de Cristo na cruz por nós. Mas o Segundo Allan Kardec, Jesus não era Deus, mas sim o ser mais elevado que já passou por este planeta. pensamento gnóstico dilui a salvação, atribuindo-a a uma série de atos isolados, todos partindo do homem, com uma ênfase no conhecimento adquirido pela alma. A maior parte desse evangelho gnóstico consiste assim em ensinamentos de "Jesus" a Judas, com uma longa explicação sobre hierarquias angélicas em uma nova versão para a criação. Diz ele que, primeiro, um grande e invisível espírito está sozinho, uma nuvem surge a seu lado e ele pensa: "Que surja um grande anjo para assistir diante de mim", e esse anjo, chamado "Autogerado", sai da nuvem. A perplexidade do leitor é automática: se esse anjo foi gerado por si mesmo, qual foi o papel do grande espírito ao dizer aquilo? O relato continua e esse Autogerado (ou gerado com uma ajudinha, vá lá) começa a gerar por si inúmeros outros anjos e éons. Segue-se uma incompreensível explanação sobre um personagem chamado Adamas: "Adamas estava na primeira nuvem luminosa que nenhum anjo já vira entre todos aqueles chamados 'Deus'." Esse Adamas é tão poderoso que cria anjos, luminares e éons – de onde a "geração incorruptível de Seth". A partir daí, os números se sucedem em um tedioso relato: doze, vinte e quatro, setenta e dois luminares que fazem trezentos e sessenta luminares por sua vez, com trezentos e sessenta firmamentos – tudo isso para doze éons privilegiados. Ufa! Além disso tudo, esses éons, no final, recebem autoridade, inúmeros anjos e espíritos virgens (?) "para a glória e adoração de todos os éons, céus e firmamentos". Hummm... anjos e espíritos adorando éons? Isso contraria a Bíblia de par a par. Porém, há mais: Seth, o primeiro da linhagem incorruptível de éons, é chamado de... Cristo! Com ele, outros quatro éons governam "o mundo dos mortos, e principalmente o caos". (Não há explicação de como alguém pode governar o caos .) Enfim, esse universo recheado de seres angélicos governando o mundo sem que Deus tenha um papel significativo em toda a história é a base do ensino gnóstico, sem tirar nem pôr. Se, na Bíblia, Jesus fala o tempo inteiro no Pai ("Toda planta que meu Pai celestial não plantou será arrancada", Mateus 15:13; "qualquer que, entre esta geração adúltera e pecadora, se envergonhar de mim e das minhas palavras, também dele se envergonhará o Filho do homem quando vier na glória de seu Pai", Marcos 8:38; "Todas as coisas me foram entregues por meu Pai", Lucas 10:22; "Por isso o Pai me ama, pois dou a minha vida para a retomar", João 10:17), esse Jesus do evangelho de Judas está muito mais preocupado com anjos, éons e luminares, e alguns desses ainda são adorados – algo considerado anátema (maldito, condenado) na cultura judaica e incorporado pelo cristianismo como um dos princípios básicos: adoração, só a Deus. É por isso que em Apocalipse, por exemplo, o apóstolo João fica extasiado com a luz do anjo que vem falar com ele e se prostra para adorá-lo, mas o anjo imediatamente o faz erguer-se: "Não faças isso! Sou conservo teu e dos teus irmãos que mantêm o testemunho de Jesus; adora a Deus" (Apocalipse 19:10). Além dessa diferença fundamental quanto ao poder de Deus no mundo e a adoração, temos também representado no "evangelho" de Judas o conhecido dualismo que absolutiza o bem e o mal. A idéia gnóstica consiste em que o mal é necessário para que o bem sobressaia – e é nisso que se baseia uma pretensa positivação do feito de Judas, tão alardeada pela mídia, para que Jesus pudesse ser crucificado. No entanto, se no gnosticismo o mal é tão absoluto quanto o bem, no cristianismo o mal é um parasita do bem, sujeito a Deus – cuja soberania age no sentido de fazer com que os feitos maus dos homens acabem cooperando para Seus desígnios. A distinção é clara: Deus faz o mal cooperar, mas os homens não são por isso inocentados de seus atos maus. As palavras de Jesus na Bíblia são inequívocas sobre isso, ao tratar do papel de Judas em sua crucifixão: "Pois o Filho do homem vai, conforme está escrito a seu respeito; mas ai daquele por quem o Filho do homem é traído! Bom seria para esse homem se não houvera nascido" (Marcos 14:21). Essa afirmação é tão importante que se repete, com nenhuma variação importante, em Mateus 26:24 e Lucas 22:22. Vê-se que o conceito de mal no cristianismo não coincide com o pensamento gnóstico, que, levado às últimas conseqüências, pode ser utilizado perversamente para justificar e desculpabilizar os maiores crimes, ao inocentar o criminoso com base no argumento de que "seu mal serviu para algo bom". Esse dualismo gnóstico se desdobra na divisão entre corpo (que é mau) e espírito (que é bom), dicotomia ausente no cristianismo. Na Bíblia, o termo "carne" é usado de maneira apenas metafórica para designar a nossa natureza pecadora que milita contra o Espírito de Deus recebido por nós na salvação para nos vivificar, regenerar e santificar. Isso é patente sobretudo no fato de que Jesus não ressurge como espírito, mas ressuscita , ou seja, tem seu corpo reconstituído por inteiro a ponto de comer com os discípulos (veja Lucas 41-43, por exemplo). Mas no evangelho gnóstico há uma afirmação atribuída a Jesus que demonstra o dualismo corpo versus espírito: "Você [Judas] irá sacrificar o homem que me aprisiona." Na Bíblia, Jesus jamais se referia ao próprio corpo dessa forma. Sua morte não era, para Ele, uma libertação pessoal da matéria, mas sim um ato de amor para a remissão de pecados daqueles que cressem Nele – ato que será relembrado agora, na Páscoa, para a alegria dos que foram feitos Filhos de Deus a partir de Seu sacrifício. Portanto, você pode até crer no "evangelho" de Judas e lançar fora tudo o que está escrito nos evangelhos canônicos. Mas seja coerente: não deixe de chamar de "gnosticismo", e não de cristianismo, o conjunto dos ensinamentos desse "evangelho". Quanto a mim, fico com o que o próprio Jesus disse, "Errais, por não compreender as Escrituras nem o poder de Deus" (Mateus 22:29), e com a advertência de um de seusapóstolos: "Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos pregue outro evangelho além do que já vos pregamos, seja anátema" (Gálatas 1:8). (Norma Braga - http://normabraga.blogspot.com/ - www.Chamada.com.br ) Norma Braga é escritora, doutoranda em literatura francesa pela UFRJ, tradutora e professora de francês. Edita o blog Flor de Obsessão , em que correlaciona cristianismo, filosofia e política, denunciando sobretudo as falácias do marxismo cultural. http://www.chamada.com.br/mensagens/evangelho_de_judas.html
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