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Volume 1 | Número 12 | janeiro a junho de 2014 Universidade Estadual da Paraíba Profº Antonio Guedes Rangel Junior Reitor Prof. Ethan Pereira Lucena Vice-Reitor Editora da Universidade Estadual da Paraíba Diretor Cidoval Morais de Sousa Diagramação Carlos Alberto de Araujo Nacre Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade do Departamento de Letras Direção Geral e Editorial Luciano Barbosa Justino Editor deste número Luciano Barbosa Justino Conselho Editorial Alain Vuillemin, UNIVERSITÉ D´ARTOIS Alfredo Adolfo Cordiviola, UFPE Antonio Carlos de Melo Magalhães, UEPB Arnaldo Saraiva, UNIVERSÍDADE DE PORTO Ermelinda Ferreira Araujo, UFPE Goiandira F. Ortiz Camargo, UFG Jean Fisette, UNIVERSITÉ DU QUÉBEC À MONTRÉAL ( UQAM) Max Dorsinville, MC GILL UNIVERSITY, MONTRÉAL Maximilien Laroche, UNIVERSITÉ LAVAL, QUÉBEC Regina Zilberman, PUC-RS Rita Olivieri Godet, UNIVERSITÉ DE RENNES II Roland Walter, UFPE Sandra Nitrini, USP Saulo Neiva, UNIVERSITÉ BLAISE PASCAL Sudha Swarnakar, UEPB Coordenadores do Mestrado em Literatura e Interculturalidade Antonio Carlos de Melo Magalhães e Luciano Barbosa Justino Revisores Eli Brandão da Silva, Luciano B. Justino, Sébastien Joachim, Antonio Magalhães LITERATURA BRASILEIRA DO NORDESTE Sociopoética Volume 1 | Número 12 | janeiro a junho de 2014 Campina Grande - PB SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 5 GRÃOS DE POESIA: SOBRE A LÍRICA DE LENILDE FREITAS 8 A DESTRUIÇÃO DOS LIVROS, O FIM DA ESCRITA E A SOCIEDADE HIPERESPETACULAR: O FUTURO DA OBRA DE JORGE AMADO 27 PEREIRA DA SILVA E A POÉTICA DO DESALENTO 48 SÍMBOLOS DE NORDESTE NO ROMANCE A MÁQUINA, DE ADRIANA FALCÃO 71 O ROMANCE “TERRA DE CARUARU”, DE JOSÉ CONDÉ: REMINISCÊNCIAS 102 ESSE É O HOMEM, DE W. J. SOLHA: UMA ODISSEIA PÓS-MODERNA NO ESPAÇO-TEMPO DA CULTURA 121 LITERATURA, O TEMA DO NACIONAL E DESENVOLVIMENTO REGIONAL, NA OBRA DE JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA 130 A AMAZÔNIA DE ABEL POSSE E WILLIAM OSPINA: UMA VIA DE ACESSO À AMÉRICA 158 APRESENTAÇÃO LITERATURA BRASILEIRA DO NORDESTE Luciano Barbosa Justino (PPGLI/UEPB) O dossiê da Revista Sociopoética que o leitor tem em mãos objetiva um olhar contemporâneo sobre o que no Programa de Pós-graduação em Literatura e Interculturaldiade estamos chamando de Literatura Brasileira do Nordeste. Um olhar contemporâneo que pressupõe dois modos de ler e duas buscas pelos objetos que têm o nordeste como locus: pelo viés da produção mais recente e pela escolha de abordar a tradição a partir de suas demandas no presente. Objetiva-se articular contribuições acadêmicas e resultados de pesquisa que reflitam sobre a pertinência de representações identitárias que têm como foco a regionalidade, bem como submeter tais representações a um diálogo teórico-crítico com as novas configurações dos localismos no estágio atual de um capitalismo que tanto ameaça pulverizar toda identidade quanto repropõe em outras bases as formas tradicionais de pertencimento, modo de vida e imagem de si, exigindo novas leituras de obras de outrora e aportes metodológicos capazes de lidar com as especificidades do narrar o presente. Em Grãos de poesia: sobre a lírica de Lenilde Freitas, José Hélder Pinheiro Alves (UFCG), compreende que a poesia de Lenilde Freitas é uma das produções mais significativas da lírica contemporânea brasileira. “Com nove livros publicados, a poetisa construiu um estilo peculiar marcado pela lucidez e pela concisão”. Neste artigo, além de apresentar rapidamente a poesia da autora paraibana, o autor se detém em alguns poemas de um de seus livros mais importantes, Grãos na eira (2001), com o objetivo de “apontar o valor desta poesia ainda bastante desconhecida do público e da crítica”. A destruição dos livros, o fim da escrita e a sociedade hiperespetacular: o futuro da obra de Jorge Amado, de Paula Sperb e João Claudio Arendt (UCS/UNIRITTER) tem como objeto a obra de Jorge Amado “considerando a problemática da queima de seus livros pelo Estado Novo, em 1937, e a relação disso com a destruição de livros ao longo da História”, à luz do conceito de sociedade do espetáculo de Guy Debord e de hiperespetáculo de Juremir Machado da Silva. Os autores se propõem “fazer uma reflexão sobre o futuro da obra de Jorge Amado e quem serão seus possíveis leitores, delegando à remediação um papel fundamental na perpetuação da obra amadiana”. Em Pereira da Silva e a poética do desalento, Geralda Medeiros Nóbrega (PPGLI/UEPB) traz a leitura da poesia pouco conhecida do poeta simbolista paraibano Pereira da Silva, mostrando seu estoicismo e sua emocionalidade contida, ocasião em discorre sobre seu modo de inserção no contexto da poesia brasileira dos finais do século XIX e inícios do século XX. No artigo A Amazônia de Abel Posse e William Ospina: uma via de acesso à américa, Marinete Souza compreende a cultura e a literatura amazônicas entendendo-as como uma multiplicidade fronteiriça, geográfica e cultural. “Trata-se de uma reflexão que aporta modos de pensar a literatura da e sobre a Amazônia a partir de uma relação entre as cartografias locais e as dos estado-nações ou pela sobreposição de cartografias históricas e míticas face as políticas”. Símbolos de nordeste no romance “A máquina”, de Adriana Falcão, de Mônica Grisi e Roberto Henrique Seidel (UNEB), trata, a partir da representação simbólica do nordeste feita pela escritora Adriana Falcão, “como ocorre a permanência e reiteração de uma ideia de região que cada vez mais é cristalizada por intermédio de discursos da cultura de massa contemporânea”. O romance “Terra de Caruaru”, de José Condé: reminiscências, de Edson Tavares Costa (UEPB) centra sua atenção na memória individual e coletiva a partir de “uma incursão no romance de José Condé, cujo tema é a narrativa de acontecimentos ficcionais, embora com fundo histórico, de um ano qualquer da década de vinte do século passado”, tomando como base teórico- metodológica Jaques Le Goff, Beatriz Sarlo e Peter Burke. Em “Esse é o homem”, de W. J. Solha: uma odisseia pós-moderna no espaço-tempo da cultura, Expedito Ferraz Jr. (UFPB) faz uma análise da obra “Esse é o Homem: Tractatus Poetico-philosoficus”, com o objetivo de articular as referências ao espaço físico e ao ambiente social nordestinos aos “questionamentos comuns à série histórico-filosófica da literatura de todos os tempos com o seu modo peculiar de lidar com a dicotomia local versus universal.” Em Literatura, o tema do nacional e desenvolvimento regional na obra de José Américo de Almeida, Nilvanda Dantas Brandão (UEPB), a partir do conceito reflexividade de Pierre Bourdieu, “parte da compreensão de que o pensamento de José Américo, ao se envolver nas discussões sobre o Brasil, põe em evidencia relevantes questões sobre a improvável relação de causa e efeito entre o desenvolvimento social e econômico e a miscigenação”. Acredito que os 7 artigos que compõem este número, na medida em que articular tradição e contemporaneidade, literatura e intermidialidade, hão de contribuir relevantemente para os estudos de literatura produzida no Nordeste e em relação com outras regiões do Brasil e de alhures. Boa leitura. SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 2014 9 << SUMÁRIO GRÃOS DE POESIA: SOBRE A LÍRICA DE LENILDE FREITAS José Hélder Pinheiro Alves - UFCG 1∗ RESUMO: No âmbito da lírica feminina produzida no Brasil desde o final do século XX até o presente, a poesia de LenildeFreitas é uma das produções mais significativas. Com nove livros publicados, a poetisa construiu um estilo peculiar marcado pela lucidez e concisão. Neste artigo, além de apresentar rapidamente a poesia da autora paraibana, nos deteremos em alguns poemas de um de seus livros mais importantes, Grãos na eira (2001). Nosso objetivo é apontar o valor desta poesia ainda bastante desconhecida do público e da crítica. Palavras-chave: Lenilde Freitas. Lírica feminina. Poesia contemporânea. ABSTRACT: Regarding the female lyric poetry produced in Brazil since the end of the twentieth century to the present, the poetry of Lenilde Freitas is one of the most significant productions. With nine books published, the poetess has built a unique style marked by clarity and conciseness. In this article, in addition to briefly presenting her poetry, we will focus on some poems of one of her most important books, Grains on the Threshing-floor. Our goal is to point out the value of this poetry which is still quite unknown to the public and critics. Keywords: Lenilde Freitas. Female lyrics. Contemporary poetry. 1 ∗ José Hélder Pinheiro Alves tem doutorado em Literatura brasileira (USP). É professor de Literatura brasileira, literatura popular na UFCG, onde atua no Mestrado em Linguagem e ensino. Realiza e orienta pesquisas voltadas para o ensino de literatura e a poesia lírica de poetisas brasileiras. SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 201410 << SUMÁRIO Introdução Instante Um olhar a menos e não seria possível ver no amarelos dos cajus - trapezistas balançando na lembrança – o ouro esporádico da vida. (Lenilde Freitas, (Grãos na eira) O leitor que escolheu conhecer a poesia brasileira a partir de importantes antologias publicadas ao longo do século XX e início do século XXI poderá sair com a impressão de que a nossa língua, neste lado do Equador, não teve expressão significativa na voz feminina. Se a consulta foi realizada em obras como Antologia da poesia brasileira da fase colonial, organizada por Sérgio Buarque de Holanda (1979), Antologia dos poetas brasileiros – fase romântica e Antologia dos poetas brasileiros – fase parnasiana, ambas organizadas por Manuel Bandeira (1949 e 1967), esse leitor teria acesso apenas ao nome de Francisca Júlia, poetisa classificada como parnasiana. Na importante obra Panorama do movimento simbolista brasileiro, de Andrade Muricy (1973), dentre os 131 autores arrolados, duas poetisas são citadas: Gilka Machado e Cecília Meireles. À parte o problema de associar as duas poetisas ao simbolismo, há que se reconhecer o avanço de trazer Gilka acompanhada de uma pequena antologia. Já no que se refere à poesia moderna, destaquemos três grandes antologias: a primeira, Poesia moderna, organizada por Péricles Eugênio da Silva Ramos (1967), recobre o período que vai de 1922 até a Poesia Práxis. Nela comparecem apenas Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa. A Antologia da Moderna Poesia Brasileira, organizada por Fernando Ferreira de Loanda (1967), inicia com Manoel Bandeira e termina com Afonso Felix. Estão fora autores como Oswaldo de Andrade e todos os concretistas. A terceira antologia que SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 2014 11 << SUMÁRIO recobre toda nossa poesia moderna é o volume Poesia do Modernismo, organizado por Mário da Silva Brito (1968). A seleção de Brito traz um número maior de autores, mas também nela só encontramos Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa. Nas três ficam fora nomes como Gilka Machado, Lila Ripol, Stella Leonardos, para citarmos entre as que estrearam até a década de quarenta2. Pode-se argumentar que os referidos antologistas não conheceram as inúmeras revisões canônicas realizadas por pesquisadores e pesquisadoras, sobretudo voltadas para a produção feminina nas últimas décadas do século XX. No entanto, se consultarmos antologias mais recentes, como Cinco séculos de poesia, organizada por Frederico Barbosa (2000), nem sequer o nome de Francisca Júlia comparece. E se observarmos dezenas de antologias contemporâneas, embora a presença da voz lírica feminina compareça, ela vem sempre em número inferior à voz lírica masculina3. O reflexo desta espécie de apagamento se reflete nos Livros didáticos responsáveis pelo principal acesso à poesia pelo leitor em formação. Esta rápida contextualização do lugar (ou não lugar) da voz lírica feminina em nossas antologias é reveladora do quanto ainda a poesia produzida por mulheres tem pouca visibilidade. Insistimos neste fato uma vez que quem acompanha a produção poética das mulheres, sobretudo a partir da segunda metade do século XX e neste início do século XXI, vai encontrar obras de grande valor e quase totalmente desconhecidas. Foi a percepção desta discrepância que nos estimulou a pesquisar 2 Para uma visão panorâmica da poesia feminina da colonização à década de 1950, consulte-se Silva (1951). Veja-se também o estudo de Paixão (1991) que, além de elencar poetisas esquecidas pelo cânone, traz estudos inéditos sobre Narcisa Amálise, Júlia Cortines e Gilka Machado. 3 O leitor contemporâneo tem acesso a uma grande diversidade de antologias, que por autores, por estilos de época e por décadas. Exceto as organizadas apenas com poetisas, as demais trazem sempre um número muito reduzido de lírica feminina. Das contemporâneas, destaque para a coleção Roteiro da Poesia Brasileira, da Editora Global. Lenilde Freitas comparece no volume Roteiro da poesia brasileira anos 80, organizado por Ricardo Vieira Lima (2010) SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 201412 << SUMÁRIO outras vozes de nossa lírica feminina, sobretudo a partir do século XX, uma vez que nos inquietava a percepção deste apagamento, inclusive no âmbito da crítica literária. Uma de nossas importantes descobertas foi a obra de Lenilde Freitas4, poetisa paraibana, de Campina Grande, radicada em Recife. Apresentaremos neste artigo uma rápida visão da obra da poetisa, com destaque, ao final, para o livro Grãos na eira, publicado em 2001. Visão da obra Lenilde Freitas lançou em 1987 seus dois primeiros livros de poemas: Desvios e Esboço de Eva. A repercussão da crítica e de leitores parece ter sido mínima, embora a segunda obra trouxesse uma apresentação pela crítica Adélia Bezerra de Menezes e um posfácio assinado por Fábio Lucas. Desvios apresenta alguns traços que serão depurados ao logo de quase trinta anos de poesia, como o uso do verso livre e curto, a quase ausência de rimas, e, no plano temático, um caráter sempre reflexivo, atento ao tempo e seus (des)mandos. A poetisa recolhe, sem sentimentalismo, vivências amorosas às vezes doídas, situações, reflexões, observações sobre o cotidiano, tudo de modo sempre contido. Dois poemas podem servir de apetite para leitura da obra. O primeiro é “Outro mundo”, que dá conta de uma consciência lúcida, com uma abordagem de viés existencial. 4 A autora nasceu em Campina Grande, Paraíba. Mestra em Teoria da Literatura pela UFPE. Fez pós-graduação em Literatura Brasileira na FAFIRE, onde licenciou-se em Letras, em 1977. Na Escola de Sociologia e Política de São Paulo – USP, concluiu o curso de Biblioteconomia e Documentação. É poeta e tradutora. Fez traduções para o Jornal Folha de São Paulo; Revista Escrita; Revista Caliban, e outras. Foi agraciada com alguns prêmios, como “Prêmio Emílio Moura de Poesia” (MG), “Augusto dos Anjos” (PB), “Prêmio Pasárgada” (SP) e o “Nestlé de Poesia” (SP) SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 2014 13 << SUMÁRIO Outro mundo Dentro do mundo existe um mundo semelhante a uma teia suspensa na atmosfera do nada que nos rodeia. (p. 17) O segundo, “Canção quase elegíaca”, cujas imagensrelativas à separação trazem um fechamento que remete à dor, à fragmentação do eu, articula-se a toda uma tradição lírica de fundo melancólico. O eu lírico não nega a dor, no entanto, não cede ao descomedimento, ao sentimentalismo. Canção quase elegíaca Quando você foi embora por becos de nuvem e vento, os pés presos entre ramagens à tona do anoitecer por onde escoou o momento de iniciação dos seus passos; errante de outras margens, todo fechado em meu ser o sol se pôs em pedaços. (p. 34) A contenção lírica, anunciada nesta obra de estreia, terá momentos de grande realização ao longo de seu processo criador. Dois aspectos importantes se destacam, à primeira vista, em Esboço de Eva: o diálogo com a tradição literária judaico-cristã e a referência ao poema “Esboço de uma serpente” (“Ebouche d´un Serpent”) de Paul Valery. Por um lado o livro “põe em xeque a condição feminina marcada pela submissão imposta, apontando na construção de outra identidade para mulher” (ALVES, 2011, p. 22); por outro, revela-se como uma resposta ao poeta francês, afirmando outra perspectiva – não mais tão racionalista. Conforme afirmou Menezes (1987) na “Apresentação” do livro, o “poema desdobra aos olhos do leitor a experiência auroral da mulher como ser de SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 201414 << SUMÁRIO desejo”. A quarta estrofe do livro ostenta a consciência de sua condição, mas também de suas possibilidades: À semelhança fui feita e, como as estrelas, na unidade desfeita. Herdei a fragilidade daquele em quem sopraram vida – eu, parte dela dividida. Feita de barro que sou, habitam em mim seres famintos, pronta pra queda estou: Deslizo em seus labirintos. Dois anos após a estreia, a poetisa publica seu terceiro livro, Cercanias (1989). Permanece a tendência do poema curto, do registro lírico-reflexivo de grande síntese iniciado no primeiro livro. Como afirma Elisa Guimarães em pequeno comentário na orelha do livro, “Lenilde Freitas constrói com raro equilíbrio estético uma poesia a um tempo extremamente simples e lucidamente profunda”. Esta lucidez pode ser observada no poema “Folha”: Basta o balanço de uma folha para me deixar pensativa a ouvir o vento que sempre chamou por mim. Revejo o velho farol podando a cidade com sua espada, depois o pensamento voa baixo e se espatifa na calçada.” (p. 27) A partir desta obra o verso livre passa a conviver, de modo bastante expressivo, com a presença de rimas (internas e externas), construindo ritmos e musicalidades singulares. O quarto livro de poemas de Lenilde Freitas, Espaço Neutro (1991), foi agraciado com um prêmio da 5ª. Bienal Nestlê de Literatura, o que resultou numa publicação por uma editora de circulação mais ampla. O livro dá continuidade ao caráter reflexivo e imagético de SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 2014 15 << SUMÁRIO sua poesia e incorpora procedimentos das vanguardas estéticas modernas no que se refere à distribuição gráfica dos versos e palavras na folha. O livro não é dividido em estrofes tradicionais. Cada página traz percepções, revelações e sugestões que vão sendo registradas, podendo, às vezes, ter uma continuidade na página seguinte. Trata-se de um poema construído em ritmos mais distendidos, marcado por diferentes tons. Sobre a obra afirmou o poeta Marcos Accioly: “O espaço neutro (entre dois tempos ou entre dois espaços) é o presente onde – nele – o poeta ora está no futuro, ora no passado. Porém, o que Lenilde Freitas quer é preencher, de passado e futuro, este presente, enchendo a naturalidade do hoje – seu vácuo ou seu vazio – de ontem e amanhã.” (Orelha do livro) Como se pode observar no poema abaixo, a pontuação é também bastante livre na obra: ... porque aberta toda porta é viagem Rio que se faz no ar Aragem porque aberta toda porta é lençol mapa de fogo desdobrado sobre o mar sol porque aberta toda porta é abrigo grão semeado no olhar trigo (p. 9) Tributos é o quinto livro de poemas da autora e veio a público em 1994, numa edição muito bem cuidada pelo selo Giordano. Trata-se de um livro revelador da sólida formação da poetisa. Mais de 40 poemas dialogam, como o título sugere, com importantes poetas, poetisas, escritores e obras literárias do ocidente. O livro se abre para as mais diversas abordagens, uma vez que cada poema toca, de modo sutil, algo marcante da obra/autor referida. Veja-se, a título de exemplo, a pequena quadra “A Santa Teresa de Ávila”: Quase imperceptível Uma folhinha no canto do muro. SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 201416 << SUMÁRIO Nela, os olhos de Deus E os meus se encontram. (p. 75) O sexto livro da poetisa é Grãos na eira (2001), a nosso ver o ponto alto de sua trajetória, conforme veremos mais detidamente a seguir. Ela publicou ainda A casa encantada (2009), cuja capa e ilustração enganosamente fazem pensar em poemas para crianças. De fato, os motivos são recolhidos do mundo infantil. Alguns temas também reforçam esta volta à infância, como “Rapunzel”, “João e Maria”, “Infância”, “Príncipe encantado” e “Cantiga de roda”, dentre outros. Um aspecto formal que se destaca e, pode-se dizer, predomina neste livro é a utilização da redondilha maior e de estrofes de quatro versos. Talvez seja este o livro da poetisa mais próximo da poesia popular. O primeiro poema do livro, “Cartilha”, de viés metalinguístico, é um convite à leitura – mas das “entrelinhas”: A palavra está gasta a forma demais usada escrevo então quase nada. Que a lembrança dos meus gestos ou a nitidez das letrinhas façam com que possas ler o que dizem as entrelinhas. (p. 9) Em 2010 veio a público uma importante antologia de sua obra denominada A corsa no campo. A seleta é dividida em nove temas com poemas de livros e épocas diferentes. O livro traz um dos melhores estudos sobre sua obra, assinado pelo professor Lourival Holanda. Para o crítico pernambucano, “Lenilde, como boa parte dos melhores poetas contemporâneos, investe na imagem e no ritmo. Ela sente aí seu terreno e sabe que o lírico dispensa o argumentativo, que o arrazoado lhe é estanho.” (HOLANDA, 2010, p. 16) A poetisa tem ainda inédito os seguintes livros: Além da fronteira, A parte que me toca, Dobrando a esquina, O SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 2014 17 << SUMÁRIO gemido das águas, Arquivo secreto, No vale das sombras / Pórticos antigos5. Grãos na eira é uma imagem de caráter rural - um espaço de terra usado para secar cereais e outras tarefas afins. Lido metaforicamente pode-se pensar como imagem da poesia que se espalha nos mais diversos espaços. A poesia, o grão que está pronto para o consumo ou em estado de depuração. O livro, portanto, seria essa poesia-grão que se apresenta para ser recolhido nos mais diversos espaços, situações, reflexões. A obra se inicia com um poema de caráter metalinguístico, denominado “As palavras”. A palavra essa rédia me governa. A palavra essa lâmina me reparte. Ai de mim que sou tantas e tão sem arte é a que em chão de silabas se prosterna. Ai de mim que sou tantas a procurar-te palavra que não és e és eterna. (p. 9) Chama a atenção as metáforas utilizadas para definir a palavra (“rédea” e “lâmina”) sugerindo algo corpóreo. O poema se constitui numa poética uma vez que indica tanto os procedimentos de que a poetisa lança mão quanto as dificuldades na busca da expressão. Este viés de expressão metalinguística foi bastante explorado na poesia moderna e tem em poemas como “O lutador”, de Carlos Drummond de Andrade, uma das melhores 5 Soubemos da existência destas obras pela própria autora que está preparando uma edição de toda sua poesia e queterá como título Campo lavrado. A edição está prevista para 2015. SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 201418 << SUMÁRIO realizações. Construído em versos curtos, o poema de Lenilde Freitas parece figurar em sua construção visual a própria imagem de um instrumento cortante, penetrante. O sujeito lírico se define como “tantas/e tão sem arte” e esta diversidade se revela profícua na procura da palavra. O poema de caráter metalinguístico pode ser lido também como revelador da produção de quem o enuncia. Uma questão a ser colocada seria: de que modo estas inquietações postas no poema se revelam no contexto da obra da poetisa e, mais especificamente, no livro em questão? Um segundo poema que conserva a mesma perspectiva metalinguística de “A palavra” é “Momento”. Agora a poetisa nos coloca diante da possibilidade de percepção da poesia, muitas vezes tão próxima e tão imperceptível. Passemos ao poema: Momento A poesia se aproxima marca sua presença ou esteve sempre aqui como sinal de nascença? (p. 9) Está posto o lugar da poesia e sua percepção. A pergunta do segundo dístico nos inquieta uma vez que põe em xeque a visão de que a poesia é algo difícil, ou distante de nosso cotidiano. A perspectiva da poetisa pode ser também o da criação, mas antes da criação, há a percepção, a vivência, a educação dos sentidos, a luta com as palavras. Do ponto de vista da construção “momento” revela um caráter epigramático, aspecto já apontado por Lourival Holanda. Sobretudo em Grãos na eira somos colocados diante de poemas que captam a instantaneidade das vivências através de imagens. Um terceiro poema que de algum modo se liga aos anteriormente citados, embora seu eixo não seja a reflexão metalinguística, é SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 2014 19 << SUMÁRIO Alimento As margaridas estão em toda parte. Quarenta vezes por segundo bateram as asas do beija-flor. A tarde, ao meu dispor, urde as sombra no telhado. Desatento um homem passa e nada vê. Todas as portas gemerão se, desse sustento, meu coração for despojado. (p. 35) A primeira questão que poderá ser levantada é: de que natureza é esta alimentação? A primeira estrofe é basicamente visual. A imagem das margaridas e do beija- flor, cunhadas da natureza, foram acionadas de modo curioso. Primeiro a associação entre flor e pássaro, remete ao título. Um alimenta o outro, mas também é por ele alimentado, polemizado. Importante também observar a construção do terceiro e quarto verso. Trata-se de uma informação expressa de modo singular. A informação é: as asas do beija-flor batem quarenta vezes por segundo. Certamente não se consegue contar, a olho nu, estas batidas. O tempo verbal é responsável por esse “desvio” significativo. O caráter visual permanece na segunda estrofe, agora com mais um toque pessoal: “a tarde a meu dispor” – imagem curiosa, que sujeita a natureza à vontade do eu lírico. A terceira estrofe oferece uma ponte com o poema “Momento”, afinal, todo o encanto que o eu lírico recolhe, parece não chamar a atenção do homem que passa “desatento”. Lá o eu lírico afirmara que a poesia “esteve sempre aqui”. mais A última estrofe traz um fechamento que justifica o título: as margaridas, o beija-flor, a sombra no telhado, enfim, a natureza em suas nuances, em seu tempo peculiar parece ser o alimento do eu lírico. Sua ausência causará imensa dor: “Todas as portas gemerão” se o coração do eu lírico “for despojado” desse sustento. SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 201420 << SUMÁRIO O poema coloca o leitor diante de uma das funções da poesia: trata-se de uma arte que, lançando mão das palavras, coloca o ser humano diante de uma suspensão; nas palavras de Jakbson (1978), “A poesia é o que nos protege contra a automatização, contra a ferrugem que ameaça a nossa fórmula do amor e do ódio, da revolta e da reconciliação, da fé e da negação.” (p. 177) Vários poemas do livro se voltam para imagens cunhadas da natureza, como se pode observar a seguir: “Crepuscular”, em que retoma “as acácias/ cálidas/ onde a tarde bebe/ o vinho mais puro” (p. 15); “O jambeiro” em se refere aos “Raios de sol/ infiltram-se/ por entre as folhas do jambeiro” (p. 24); “Vínculos” em que a imagem da mangueira é retomada: “Olho a mangueira: definha sua raiz/ vínculos de vida ou morte com o chão” (p. 29) e, para não nos estendermos, o poema “Anônimo espetáculo” que traz a imagem dos cajus: “E, já maduros de sol,/ os cajus balançam/ ao ritmo da folha/ seu ouro vivo.” (p. 30) Estas e inúmeras outras imagens dão conta da ligação da poetisa com o nordeste, mas não se trata de uma opção a priori como se pode observar em muitos poetas. Aqui a natureza oferece um conjunto de imagens que são captadas ora como fonte de reflexão, ora pelo encantamento que provoca, ora pelas duas coisas. Acompanhemos agora um outro poema, de caráter mais narrativo. Um mote de discussão e leitura seria a condição feminina. A voz feminina se coloca aqui de modo especial, conforme poderemos observar: A mulher do pescador Escamava os peixes quando sentiu seu corpo ser privado da luz por um vulto opaco que se acercava. Deus cria a noite quando ele chega - pensa – certa do que a repugna: SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 2014 21 << SUMÁRIO os dias mofados as paredes salobras as guelras sangrentas os anzóis oxidados. E a voz, a voz salina, seca golpes de martelo. (p. 35) Trata-se de um poema em que o motivo externo é predominante. No entanto, a percepção do eu lírico recolhe o drama da mulher, sobretudo sua solidão. Na primeira estrofe, a mulher, em seu trabalho cotidiano, é revelada também em sua interioridade de insatisfação: privação “da luz”, “vulto opaco”, “a noite” que “repugna”. Na segunda, a enumeração de substantivos adjetivados. A adjetivação é por demais significativa. Dias, paredes, guelras, anzóis, voz – tudo acompanhado de epítetos com carga semântica negativa, que dão conta da condição feminina. A imagem final – “golpes de martelo” - parece caracterizar a condição da “mulher do pescador”. O próximo poema traz um destes milagres expressivos da poesia lírica. O fenômeno da identificação do eu lírico, do projetar-se de modo complexo no objeto exterior para melhor assimilá-lo se dá de modo esteticamente perfeito. Vejamos: Identidade Além da identidade do canto nas horas serenas, o que mais me assemelha a um pássaro é este renovar de penas. (p.60) A palavra “identidade” conota inúmeros sentidos possíveis. Tomemo-la pensando no contexto lírico em que foi colocada. Lembram-nos os teóricos que uma das marcas da poesia lírica está no fato de elidir sujeito x objeto (ROSENFELD, 1997). Há, de fato, na lírica, uma única realidade que foi consubstanciada pelo eu lírico. A identidade com o pássaro já está, a priori, e por um viés sublime – no canto. Pássaro e poetisa são seres cantantes. SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 201422 << SUMÁRIO Por si só esta já seria uma identidade de alto grau de conotação. Mas a semelhança vai mais além, alcança outra dimensão. “(...) este renovar de penas” assume um sabor mítico, de renovação. Mas as palavras escondem quase sempre sentidos, associações inesperadas. “Penas” também pode conotar dores, apontar para os sofrimentos que se renovam também. Por outro lado, uma vertente não exclui outros. Poderíamos juntá-las numa dialética perspectiva que agrega renovação e dor, dimensão fundamentais da condição humana. Inúmeros poemas deste e de outros livros poderiam ser retomados e comentados, embora a melhor experiência seja degustar cada verso, cavalgar cada ritmo, se projetar na novidade de cada imagem.E é o que esperamos ter proporcionado ao leitor. Considerações finais Se pensarmos no contexto mais amplo da poesia contemporânea, viés importante para uma abordagem da obra da poetisa, observaremos que ela dialoga com tendências estéticas diversas, buscando uma síntese pessoal. Segundo Fernandes e Silva (2008, p. 161/162), “Na poesia contemporânea não há espaço para críticas que se apoiam em falsas dicotomias, do tipo forma versus conteúdo, ou (...) entre técnica e expressividade, ou entre tradição e ruptura. Os opostos se combinam, renovando a tradição da modernidade ou dela se afastando”. Numa de suas inúmeras e agudas reflexões sobre a poesia, Octavio Paz (1982, p. 234) afirma: “O poema é uma obra sempre inacabada, sempre disposta a ser completada e vivida por um novo leitor.” A afirmação dialoga com vários postulados da Estética da recepção, sobretudo com o conceito de “vazio” formulado por Iser (1999). Embora o teórico alemão esteja refletindo sobre a recepção do texto ficcional, é possível deslocar, com certos cuidados, para a recepção da poesia, algumas de SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 2014 23 << SUMÁRIO suas formulações. Diante da obra de um poeta ou poetisa, ou mesmo diante de alguns poucos poemas, o leitor vai construindo sua leitura, vai aguçando suas percepções e formulando, paulatinamente, um olhar particular sobre os textos lidos. Este percurso de todo leitor, também o percurso do crítico que tem como diferencial a necessidade profissional de formular suas percepções e apresentá-las aos leitores. E por que o faz? De nossa perspectiva o gesto crítico tem como função precípua instigar o leitor para o encontro com o texto literário. Não necessariamente para formular uma teoria – afinal pouquíssimas pessoas são capazes de fazê-lo -, menos ainda, aplicar teorias aos textos lidos, de modo chapado – ação que pode reduzir o poema a uma perspectiva e, portanto, limitando sua multissignificação. Nossa rápida apresentação da poesia de Lenilde Freitas almeja apenas isto: dar a conhecer a obra de uma poetisa que consegue, no dizer de Octavio Paz (1982, p. 233), consagrar “sempre uma experiência histórica, que pode ser pessoal, social ou ambas as coisas ao mesmo tempo.” E ao experimentarmos esta leitura somos levados “a repetir, a recriar seu poema, a nomear aquilo que ele nomeia; e ao fazê-lo, revela-nos o que somos.” (PAZ, 1982, p. 233) Encerramos nosso diálogo com o leitor (re) conduzindo-o ao poema, fonte maior de nosso interesse. E esperando que o leitor do texto crítico abandone o artigo o mais rapidamente possível e se entregue ao gesto fundamental de leitura do poema. Simbolicamente, vamos saindo do texto e entrado na poesia, partilhando um silêncio por demais expressivo: Expressando o silêncio A nitidez da vida Me atravessa. Tão dolorosa clareza SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 201424 << SUMÁRIO Transpõe o lado Onde o tempo inexiste. Espreito pelas frestas possíveis: Galos cocoricam, pisoteiam os sonhos. Raios mordiscam as paredes porosas das manhãs, Arbustos encardem. Resultância de bruma e lucidez Os olhos ardem. (Grãos na eira, p. 63) SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 2014 25 << SUMÁRIO REFERÊNCIAS ALVES, J. H. Pinheiro. A condição feminina em Esboço de Eva, de Lenilde Freitas. Letras em Revista, Teresina, UEPI, v. 02, nº 02, jul/dez. 2011. BANDEIRA, Manuel (org). Antologia dos poetas brasileiros: fase romântica. Janeiro, Ministério da Educação e Saúde, 1940. 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São Paulo: Estação Liberdade: Fundação Nestlé de Cultura, 1991. ________. Grãos na eira. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. ________. A casa encantada. São Paulo: Scortecci Editora, 2009. ________. A corsa no campo: coletânea de poemas. Recife: Editora da Autora, 2010. SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 201428 << SUMÁRIO A DESTRUIÇÃO DOS LIVROS, O FIM DA ESCRITA E A SOCIEDADE HIPERESPETACULAR: O FUTURO DA OBRA DE JORGE AMADO Paula Sperb1* João Claudio Arendt2** Neste mesmo momento, quando você lê estas linhas, pelo menos um livro está desaparecendo para sempre. (Fernando Báez) Onde queimam livros, acabam queimando homens. (Heinrich Heine) RESUMO: No presente ensaio, objetivamos refletir sobre a obra do escritor brasileiro Jorge Amado considerando a problemática da queima de seus livros pelo Estado Novo, em 1937, e a relação disso com a destruição de livros ao longo da História (BÁEZ, 2006). Também procuramos entender como as mudanças modernas entendidas como sociedade do espetáculo (DEBORD, 1998) e do hiperespetáculo (SILVA, 2012) podem interferir na função e usos do livro e sua respectiva influência na cultura escrita, entendida como técnica. Considerandouma possível diminuição do público leitor, propomo-nos a fazer uma reflexão sobre o futuro da obra de Jorge Amado e quem serão seus possíveis leitores, delegando à remediação um papel fundamental na perpetuação da obra amadiana. PALAVRAS-CHAVE: Jorge Amado. Leitura. Literatura. Livro. ABSTRACT: This paper aims to reflect about the work of the brazilian writer Jorge Amado considering the problem of burning his books by the “Estado Novo” policy in 1937. We also want to discuss the relationship between the bondfire of books and the destruction of books throughout history (Baez, 2006). Another goal is to understand how modern changes, seen as spectacle society (Debord, 1998) and “hiperespetáculo” (Silva, 2012) may interfere in the uses of book and their respective influence in the written culture . Considering a possible reading decrease, we propose to make a reflection about Jorge Amado’s future works. We seek to understand who will be his potential reader in the future. KEYWORDS: Jorge Amado. Reading. Literature. Book. 1 * Mestre em Letras, Cultura e Regionalidade pela Universidade de Caxias do Sul; aluna no Programa de Doutorado em Letras, Associação Ampla UCS/ Uniritter. 2 ** Coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras, Cultura e Regionalidade e do Programa de Doutorado em Leitura e Linguagens, Associação Ampla UCS/UniRitter. Diretor da revista eletrônica Antares: Letras e Humanidades. Ex-bolsista CAPES para Estágio Pós-doutoral na Freie Universität Berlin, sob a supervisão da Profa. Dra. Ligia Chiappini. SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 2014 29 << SUMÁRIO 1. A fogueira do Estado Novo incendeia os livros de Jorge Amado A fumaça subia alcançando o olfato até de quem passava pela parte alta da cidade de Salvador. Vinda de uma pequena praça na Avenida Contorno, em frente à antiga Escola de Aprendizes de Marinheiro, o odor de papel queimado e a cor cinza da fumaça indicavam que livros estavam sendo incinerados por ordem do Estado Novo, instituído apenas nove dias antes. No calendário, a data era 19 de novembro de 1937, mas a notícia em forma de ata oficial foi apenas divulgada, no jornal O Estado da Bahia, em 17 de dezembro de 19373. Foram queimados 1.694 livros de Jorge Amado, todos de edições novas usurpadas de três livrarias: Editora Baiana, Catilina e Souza. Ao fogo, foram atirados 808 exemplares de Capitães da Areia (lançado no ano anterior quando Jorge Amado se encontrava na prisão acusado, mesmo antes do Estado Novo, de ligação com a intentona comunista), 267 de Jubiabá, 223 de Mar Morto, 214 de País do Carnaval, 93 de Suor, e 89 de Cacau. Além dos livros de Jorge Amado, alimentaram a fogueira 72 livros do escritor José Lins do Rego: 26 exemplares de Pureza, 15 de Doidinho, 14 de Menino de Engenho, 13 de Bangüê, e 4 de Moleque Ricardo, conforme ata publicada no jornal. O motivo para esses livros terem sido escolhidos pela repressão, segundo a manchete do periódico, era serem “considerados propagandistas do credo vermelho”. Mas, se a principal razão da escolha dos títulos era a ligação com o comunismo – embora José Lins do Rego não fosse comunista –, por que também não queimaram livros de outros comunistas, como Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz? Duarte, que faz esta interrogação, busca uma possível resposta: Voltando à ata da fogueira, vê-se que ela revela uma 3 Ver Anexo I. SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 201430 << SUMÁRIO verdade estatística e impõe a pergunta: por que Jorge Amado? Por que não os também comunistas Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz? A resposta está na simples constatação dos números: para 4 volumes de Moleque Ricardo foram queimados 267 exemplares de Jubiabá, publicado no mesmo ano; ou ainda, para 26 de Pureza, incineraram-se 808 de Capitães da Areia ou 223 de Mar Morto. A propósito deste último, cabe a indagação: o que pode haver de subversivo ou de comunista na história de Guma e Lívia? A ata deixa visível o reconhecimento do poder de sedução e da força comunicadora da narrativa amadiana, da mesma forma que atesta o volume de sua receptividade junto ao público (DUARTE, 2002). Podemos nos aproximar de uma possível resposta para a escolha dos livros de Jorge Amado para a fogueira. Certamente, o escritor não foi alvo apenas por estar vinculado ao comunismo – ele foi eleito Deputado Federal pelo PCB e participou da Constituinte de 1946 –, mas também pela sua alta circulação, como demonstram os números de exemplares nas livrarias, e pela recepção entre a massa de leitores. Todavia, a popularidade não daria conta, sozinha, de justificar a escolha, ou teríamos diversos outros livros de autores distintos queimados. Entra em jogo aqui, provavelmente, a temática das obras: os livros queimados tratam da camada mais explorada da sociedade, inclusive as narrativas do não-comunista José Lins do Rego. No caso desse autor, não seria o “credo vermelho” explícito que o teria levado à fogueira, mas a realidade social abordada nos enredos. Quanto a Jorge Amado, a temática “subversiva” dobra as justificativas para a destruição das obras. Vejamos: Capitães de Areia fala sobre menores abandonados, infratores e moradores de rua em Salvador; Jubiabá narra a história de um herói negro e capoeirista que se transforma em líder sindical; Mar Morto conta – e canta – o amor de Guma e Lívia, mostrando a realidade dos trabalhadores do mar; País do Carnaval, assim como em alguns romances de José Lins do Rego, o personagem principal é um desiludido filho de fazendeiro; Suor revela a miséria da população urbana de Salvador e a utopia de um líder sindical; e Cacau mostra a perversidade do SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 2014 31 << SUMÁRIO sistema de exploração dos trabalhadores. Todos os livros queimados de Jorge Amado, alguns mais e outros menos, têm a marca da denúncia social e o objetivo utópico de igualdade entre os humanos. Seria, então, a mensagem do livro que ameaçava as forças do Estado Novo? Por esse entendimento, somado- se a significativa circulação dos escritos, as mensagens idealistas colocariam em risco a ditadura de Getúlio Vargas. Este parece um ponto crucial para compreendermos a queima de livros. Talvez mais do que a própria camada de leitores, quem mais delegava poder subversivo às obras era o próprio regime repressor. Provavelmente o leitor que entrasse em uma das três livrarias atacadas pelo aparelho ditatorial não escolhesse um livro de Jorge Amado porque ele era comunista. Aliás, provavelmente se afastasse da obra, dados o perigo iminente causado pelos “vermelhos” e o – persistente – preconceito contra a literatura engajada. Arriscamos a dizer que o que levava os leitores às obras de Jorge Amado eram tanto a sua profunda ligação com o povo e a identificação com a sociedade “tal qual ela é”, quanto o prazer de ler uma história bem contada. Portanto, quem mais enxergava perigo nos livros era o Estado. Vejamos o lado positivo – se é que ele existe – de o governo atacar e queimar livros: os responsáveis pelas táticas de repressão identificavam na leitura o potencial emancipador do indivíduo e libertador da consciência. Nesse aspecto, nós (os libertários das Letras) e os censores concordamos: o hábito da leitura é subversivo. Mas, claramente, discordamos sobre o destino que deve ser dado ao livro. De um lado, os biblioclastas; de outro, os defensores da escrita e da leitura como ferramentas para o desenvolvimento humano. Julgamos que a tática da queima de livros, com a expectativa de que os leitores não mais tivessem acesso ao seu conteúdo, era um tanto ingênua – talvez fruto de mentes que pouco ou nada liam, porque não se tratavam de livros raros, mas de SocioPoética- Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 201432 << SUMÁRIO livros comercializados e já reeditados. Se antes o leitor buscava um romance qualquer, agora buscaria o proibido – um marketing espontâneo oferecido pelo Estado Novo para os escritores perseguidos. Ou seja, no final das contas, o resultado desejado pela Comissão de Busca e Apreensão de Livros (nomeada pela Comissão Executora do Estado de Guerra) seria exatamente o oposto do planejado. Outro aspecto que chama atenção é Capitães da areia ter sido a obra com mais exemplares queimados. O que motivaria essa diferença em relação aos outros livros queimados de Jorge Amado? Para Duarte (2002), a razão seria a denúncia social sobre os garotos moradores de rua de Salvador. Mas nós acrescentaríamos que o fato de o livro ser um lançamento impulsionaria o número de exemplares distribuídos pela editora e, consequentemente, à disposição para venda nas livrarias. Recordando, foram 808 exemplares queimados somente desta obra. O livro de José Lins do Rego com mais exemplares jogados na fogueira foi Pureza (26 exemplares), igualmente um lançamento – o que reforça nosso argumento. De qualquer maneira, a circulação está vinculada à recepção. Significa que quanto mais lido, mais perigoso e, portanto, alvo prioritário da Comissão de Busca e Apreensão de Livros. A fogueira constitui uma forma violenta e simbólica de destruir um livro, porém a censura tomava diversas formas institucionalmente aceitas. Nesse mesmo período, os livros de Jorge Amado foram proibidos em bibliotecas e escolas, sem contar a censura prévia exigida e sempre negada pelo autor, apoiado na causa pelo amigo Erico Verissimo, também opositor da leitura prévia dos órgãos oficiais com fins de censura. É o que se lê no depoimento a seguir: E, mesmo depois da fogueira, o romance dos pivetes de Salvador continuou no índex dos textos malditos para o Estado Novo. Alceu Amoroso Lima dá conta de que, no ano seguinte ao da incineração dos 808 exemplares, SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 2014 33 << SUMÁRIO a censura a Jorge Amado persistia. Ouçamo-lo: “Em 1938, quando meu saudoso amigo Henrique de Toledo Dodsworth me convidou para Reitor da Universidade do Distrito Federal, deu-me expressamente carta branca. Assim que tive oportunidade, como Reitor, de dar uma lista de livros para nossa biblioteca, incluí entre eles Ca- pitães da Areia, de Jorge Amado. Dodsworth me comu- nicou então que o Secretário de Educação, o nosso caro Paulo Assis Ribeiro, não admitia que comprássemos ‘li- vros comunistas’” (declaração de Alceu Amoroso Lima ao Jornal do Brasil de 15 de abril de 1977. DUARTE, 2002). 2. A destruição dos livros ao longo da História Desde o surgimento do livro e sua evolução, temos conhecimento da simultânea destruição de registros escritos. Livros são destruídos de maneiras díspares e por razões variáveis. Podem ser danificados intencionalmente ou por acaso. Podem ser abandonados ou perdidos. E podem simplesmente ser deteriorados pelo tempo de modo irrecuperável. Até hoje, o ser humano não desenvolveu um livro à prova de destruição. Mesmo trancado em um cofre com nenhum acesso humano, o livro como o conhecemos, se autodestruiria com a passagem dos séculos e em contato com o oxigênio e micro- organismos. Cremos que o problema da deterioração natural de um livro sequer seja o que nos preocupa. Isso porque, mesmo que a desintegração natural de um livro seja prejudicial ao patrimônio humano, o que nos instiga a fazer a reflexão sobre o assunto é a destruição intencional de um pelo biblioclasta. São 55 séculos de destruição de livros, ao longo dos quais surgiram “centenas de narrações históricas so- bre a origem do livro e das bibliotecas, mas não existe uma única história sobre sua destruição. Não é uma au- sência suspeita”? (BÁEZ, 2006:21). Responderíamos ao pesquisador venezuelano que sim, que é uma ausência suspeita. Mas, na maioria das vezes, o silêncio é um dis- curso mais significativo do que o enunciado, já que, se- gundo a sabedoria popular, “quem cala consente”. Con- forme Báez (2006), aproximadamente 60% dos casos de destruições de livros são causados pelo homem. As demais situações seriam por catástrofes naturais, desa- parecimento, deterioração natural. Em 2010, Fernando Báez faria a abertura do Seminário Internacional de Lite- ratura e Leitura em Caxias do Sul - RS. Sua participação, no entanto, foi cancelada na última hora por problemas SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 201434 << SUMÁRIO de agenda. O evento era promovido pela Biblioteca Mu- nicipal de Caxias do Sul, e o convidado de honra sequer poderia imaginar que a mesma Biblioteca que o convi- dou para palestrar destrói livros. Esse fato certamente causaria horror ao estudioso que teve como motivação inicial para seu objeto de pesquisa uma experiência pes- soal. Báez assistiu durante sua infância a Biblioteca Pú- blica de São Félix, na Venezuela, ser destruída. O local era especial para o garoto, porque ali passava as tardes enquanto sua mãe trabalhava: Essa felicidade foi interrompida bruscamente, porque o rio Caroni, um dos afluentes do Orinoco, cresceu sem aviso prévio e inundou a cidade, levando consigo os pa- péis que constituíam o motivo de minha curiosidade. Acabou com todos os volumes. Dessa forma fiquei sem refúgio e perdi parte da minha infância na pequena bi- blioteca, completamente arrasada pelas águas escuras (BÁEZ, 2006: 20). Traumatizado pela inundação, o autor ainda presenciou seus colegas de escola queimarem os livros didáticos num final de ano letivo. Uma sequência de diferentes outros fatos levaram-no a ficar obcecado pelo tema, o que resultou em uma investigação de fôlego sobre a história da destruição dos livros, a qual não contempla, é claro, os livros descartados da Biblioteca Municipal de Caxias do Sul, mas que fazem parte do contexto de desapego aos livros. Em maio de 2011, foram solicitados livros antigos – porém não raros – à Biblioteca de Caxias para a produção de uma fotografia para um jornal. Gentis, as funcionárias do local cederam diversos livros velhos e não exigiram devolução: eles seriam destruídos em breve porque não tinham mais utilidade. Os títulos não eram literários, mas técnicos. Porém, a atitude é representativa de uma mentalidade que não consegue preservar seu passado, sempre disposta a apagá-lo para dar lugar ao novo. Quantos livros já foram destruídos no local desde então? E nas demais bibliotecas da cidade, do estado, do país? Esse é um exemplo de destruição por negligência, muito mais perigoso do que a destruição por causa natural, mas menos perigoso do que a que se faz de livros pela mensagem que carregam. Báez (2006:24) defende a posição de que o livro não é destruído como objeto físico, mas como “vínculo SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 2014 35 << SUMÁRIO de memória”. Para o autor, o vínculo estreito entre livro e memória faz com que os livros tenham papel essencial na construção do patrimônio cultural de uma sociedade. Como apagar a memória de uma comunidade, então? Aliás, por que apagar uma memória coletiva? Esses questionamentos nos levam a pensar sobre o uso e o senso utilitarista de quem ordena a destruição de bibliotecas. Concordamos com Báez a respeito da destruição do livro pelo que ele representa, não pelo que é. Um livro é queimado não por ser um objeto retangular, um conjunto de páginas de papel presas em uma lombada, adornado por uma capa de identificação. Um livro é queimado pela mensagem que carrega e pelo potencial que a mensagem desencadeia quando chega até seu receptor, o leitor. Não é à toa que governos, de diferentes partidos e em diferentes esferas (municipal, estaduale federal), têm uma verdadeira obsessão pelo controle da imprensa, dos livros de não-ficção – ou os de ficção com denúncia social, das biografias e – agora com muito mais dificuldade – da opinião individual escrita em perfis na internet. Para Báez, Um livro é destruído com a intenção de aniquilar a me- mória que encerra, isto é, o patrimônio de ideias de uma cultura inteira. Faz-se a destruição contra tudo o que se considera ameaça, direta ou indireta a um valor consi- derado superior. O livro não é destruído por ser odiado como objeto. A parte material só pode ser associada ao livro numa dimensão circunstancial: a princípio foi uma tableta entre os sumérios, um osso entre os chineses, uma pedra, um pedaço de couro, uma prancha de bronze ou de ferro, um papiro, um códice, um papel e, agora, um CD ou um complicado dispositivo eletrônico (BÁEZ, 2006: 25). A ideia central de que o livro em papel constitui apenas um suporte é essencial para a reflexão que estamos propondo. Desde que os livros eram placas de barro com escrita cuneiforme, eles já eram destruídos. Mas não eram incendiados, é claro. As tabuletas eram quebradas, impossibilitando a leitura; e até molhadas, “apagando” o conteúdo escrito. As demais formas conhecidas, já com papel ou material semelhante, desenvolveram-se assim SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 201436 << SUMÁRIO como as fogueiras que as destruíam. Não nos parece uma coincidência que o local do surgimento do livro, a Suméria, tenha sido o palco para a maior destruição recente de obras raras e patrimônio histórico tombado: a região do atual Iraque. Em 2003, os bombardeios americanos e os saques de milícias locais levaram à ruína o acervo das bibliotecas de Bagdá. Não foi o ódio aos papiros históricos que desembocou na sua destruição, mas a intenção de “aniquilamento de memória” de que nos fala Báez (2006). Os 1.694 livros de Jorge Amado4 não foram queimados porque eram feios, velhos, mofados, com traças ou porque perderam sua utilidade. Tampouco foram queimados por estudantes ao final do ano letivo, ou pela própria editora desfazendo-se dos seus worst sellers, ou por uma biblioteca com finalidade de ganhar mais espaço nas suas estantes. Os livros de Jorge Amado não foram destruídos por serem objetos, mas porque transmitiam uma mensagem oposta ao do regime getulista. Como diz Báez (2006), destrói-se o que se considera uma ameaça a algo que não deve ser atingido. Por essa lógica, fazem sentido também a tortura e mortes causadas pela ditadura no Brasil. Não só a mensagem era destruída, mas igualmente os seus mensageiros. Em 1937, os livros de Jorge Amado eram de papel e foram queimados. Algumas décadas depois, em 1997, os livros poderiam ser em formato de CD, e ser quebrados ou riscados. Mais recentemente, os livros poderiam ser digitais, os e-books, acessados por computador, notebook, 4 Báez (2006) enumera diversos escritores que foram perseguidos ao longo da história, como James Hanley, Mario Vargas Llosa, Taslima Nasrim e cita, entre eles, Jorge Amado. O pesquisador arredonda o número de livros queimados e comete um equívoco ao afirmar que todos exemplares queimados foram de uma obra apenas. A lista com os livros queimados consta no início deste trabalho. “O terceiro autor é o marxista Jorge Amado, autor de Dona Flor e seus dois maridos. Mil e setecentos exemplares de um romance seu foram queimados por ordem direta do ditador Getúlio Vargas” (BÁEZ, 2006: 264). SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 2014 37 << SUMÁRIO smartphones e tablets. Nessa situação hipotética, como a Comissão de Busca e Apreensão de Livros de Getúlio Vargas faria para destruir os livros de Jorge Amado, lembrando que o alvo era o conteúdo e o alcance? Báez (2006) acredita que, mesmo no formato digital, livros podem ser destruídos por hackers. Mas o pesquisador ignora, nessa situação, algumas peculiaridades técnicas que impediriam o sumiço dos livros no meio digital. Mesmo um ataque hacker, se o alvo fosse uma biblioteca digital ou uma livraria virtual, não poderia eliminar todos os “exemplares”. Isso porque milhares de usuários espalhados teriam o arquivo em seus dispositivos, tornando impossível a tarefa de eliminação completa. Esse raciocínio nos faz chegar a um ponto crucial deste ensaio. Os livros sofreram 55 séculos de destruição, boa parte causada intencionalmente para aniquilar o conteúdo que carregavam. Estaríamos agora, com os livros digitais, perto do fim da ditadura dos biblioclastas? Diferentemente do Estado Novo, que tinha o poder para invadir livrarias, roubar e queimar os livros antes que chegassem às mãos dos leitores, os poderes institucionalizados não têm hoje condições de mapear todos os arquivos considerados indesejáveis e apagá-los. Como destruir uma sequência de zeros e uns (a programação da linguagem virtual) por trás de tudo que vemos, ouvimos e lemos em um computador? Um arquivo, depois de compartilhado, pode ser copiado e repassado milhares de vezes, impossibilitando a “caça às bruxas”. Não estamos sequer avaliando o potencial de democratização do patrimônio cultural da humanidade, como propõe o Projeto Gutenberg5, que possui a biblioteca digital mais antiga do mundo, fundada em 1971, a partir do trabalho voluntário de pessoas espalhadas ao redor do globo que digitalizam obras de domínio público e as disponibilizam para download. Em 2001, foi publicado o 5 Disponível em: <http://www.gutenberg.org/>. Acesso em: 20 de fevereiro de 2014. SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 201438 << SUMÁRIO primeiro livro brasileiro pelo projeto. O eleito foi Lendas do Sul, de João Simões Lopes Neto. Retornando ao nosso tópico central, perguntamos: a destruição dos livros estaria perto do fim? 3. O hiperespetáculo, o fim da escrita e do livro Com as tecnologias digitais, a história da destruição dos livros poderia chegar aos seus últimos capítulos. Entretanto, alguns diagnósticos são mais pessimistas em relação ao futuro do livro. Não porque os livros digitais não têm cheiro de papel, páginas com anotações e marcações pessoais, rubrica do proprietário na folha de rosto etc., mas porque as tecnologias – que não são neutras como afirmava Heidegger (apud SILVA, 2012) – conduziriam ao fim da escrita. Ora, sem escrita não há leitura; sem ambas não há livro, independentemente do suporte. A decadência da sociedade letrada ou, melhor dizendo, o declínio da importância do livro passa a ser tratado como um sintoma das relações de consumo de cultura em 1967, através dos postulados do filósofo francês Guy Debord (1998). Marxista, Debord enxergava a cultura como mais uma mercadoria, uma forma de dominação nas relações econômicas que regiam o consumo. Debord é o autor da máxima “o que aparece é bom, o que é bom aparece”6. Na sua teoria, que antecipou uma série de fenômenos modernos das décadas seguintes, o espetáculo é entendido como as relações pessoais e institucionais dadas através da mediação. Na balança, pesa muito mais a mediação do que as relações propriamente ditas. O que importa e tem relevância é o que aparece, o 6 O espetáculo se apresenta como uma enorme positividade, indiscutível e inacessível. Não diz nada além de “o que aparece é bom, o que é bom aparece”. A atitude que por princípio ele exige é a da aceitação passiva que, de fato, ela já obteve por seu modo de aparecer sem réplica, por seu monopólio da aparência (DEBORD, 1998:16,17). SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 2014 39 << SUMÁRIO que é mediado. O espetáculo ocorre quando a imagem prevalece sobre conteúdo, valores, história. Trata-se da embalagem, não do que está dentro dela. Na sociedade do espetáculo,como preconizou Debord (1998), parecer é muito mais importante do que ser. O que está em jogo é a imagem, como as coisas/ pessoas/produtos parecem ser. Sem mediação, há apenas um vazio existencial. Se (a)parece, existe; se (a)parece, é bom. Uma lógica que só tem sucesso por causa da passividade, pois, como afirma o filósofo, se algo aparece, já está subentendido que é bom; e, se é bom, vai aparecer. O raciocínio cíclico só tem sucesso porque é passivamente aceito. Não se questiona o que está aparecendo – ou sendo mediado –, porque está pressuposto que já passou pelas instâncias legitimadoras. Se aparece, já tem o selo de qualidade e a garantia. Na sociedade do espetáculo, a maior força legitimadora é a imagem (DEBORD, 1998). Por isso, afirmamos que é nesse momento que inicia de modo mais sistemático o declínio do livro. Afinal, qual é o espaço do conhecimento – apreendido e repassado pela forma escrita do livro – em uma sociedade que não precisa da educação formal como legitimação? Por que dedicar a mais-valia já usurpada para a leitura de um livro, se na prática o cidadão não precisa ser inteligente, mas parecer inteligente? Não é necessário ler, mas parecer que leu. Em uma sociedade de aparências, qual espaço tem o livro? Não afirmamos radicalmente que o livro não tem nenhum espaço na sociedade do espetáculo, mas que ele perde sua influência como legitimador e até hierarquizador. O livro, que possui sua própria cadeia produtiva, não escapa da máxima “o que é bom aparece, se aparece é bom”. O livro que simplesmente não aparecer será imediatamente compreendido pelo senso comum como um livro ruim. Se o lançamento literário não emplacou na primeira página do suplemento cultural dominical, é porque ele é ruim, e não porque há uma rede de relações SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 201440 << SUMÁRIO prévias (normalmente econômicas) que determinam o que aparecerá. Essa é a lógica do senso comum passivo que concorda que o que é bom aparece. As consequências desse sistema de aparências são prejudiciais à literatura, uma vez que o que determina o que aparece raramente é a qualidade da produção, mas o quanto ela pode parecer ser boa. Poderíamos refletir mais sobre este tópico, mas voltemos ao que tange à questão do livro. Como dissemos, na sociedade do espetáculo, o que importa são as aparências, a embalagem, a capa do livro – não o que está dentro dele. Esse funcionamento da cultura como mercadoria mediada se acentua à medida que os meios de comunicação de massa são potencializados com as tecnologias digitais. A internet muda o paradigma e bagunça o funcionamento dos meios tradicionais de massa (televisão e rádio, que não exigem leitura) tirando a concentração do emissor. Significa que qualquer um se transforma em emissor. Tudo pode ser dito a qualquer momento por qualquer um. Elevadas a níveis extremos, essas condições farão a migração da sociedade do espetáculo para a sociedade do hiperespetáculo (SILVA, 2012). Se na sociedade do espetáculo a força legitimadora provém da imagem, na sociedade do hiperespetáculo a legitimação surge da superexposição. Se na sociedade do espetáculo o importante era a embalagem e não o conteúdo, na sociedade do hiperespetáculo o que importa é o rótulo. O aforismo de Guy Debord continua vigente, mas potencializado. Nas relações da sociedade hiperespetacular, o livro perde qualquer legitimação que lhe restava. A leitura, a escrita e os livros são apenas para provocar fastio. A leitura dos clássicos já não se faz necessária em uma sociedade que se organiza hierarquicamente a partir das aparências. Assim, “a sociedade medíocre, no seu presente hiperespetacular, liquida os grandes do passado com dois epitáfios igualmente incontornáveis: chatos ou clássicos” (SILVA, SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 2014 41 << SUMÁRIO 2012:33). Aliás, chatos e clássicos são tidos praticamente como sinônimos e usados, quando muito, como distinção social por parte daqueles que não querem ser identificados como integrantes da sociedade do hiperespetáculo. Para Silva, A leitura desses clássicos chatos é feita, em geral, por três categorias: aqueles que buscam um efeito de erudi- ção (especialistas, intelectuais e afetados), aqueles que buscam um efeito de distinção (todos os que se sentem mais elevados fazendo a defesa de uma alta cultura de- sastrosamente perdida) e aqueles que precisam passar por um concurso ou num exame de admissão a algum doutorado. Raramente essa leitura é feita por prazer. Dificilmente é uma leitura desinteressada, uma fruição pela fruição. Boa parte dessa cultura louvada, mas pouco consumida, serve cada vez mais para efeitos de seleção. Como num reality show em que será eliminado aquele que não sou- ber com quem a celebridade do momento está casada ou não conseguir pular amarelinha sem pisar na risca, o conhecimento dos clássicos serve para separar, hierar- quizar, etiquetar, agrupar e atribuir valor social (SILVA, 2012:33). A comparação de Silva (2012) com um reality show não ocorre ao acaso. O programa televisivo é o ápice da superexposição. Não é preciso ser nada, fazer nada ou saber nada para obter notoriedade. Basta aparecer. Quem aparecer mais, ganhará. Não temos conhecimento de nenhum participante do deplorável Big Brother Brasil que ocupasse seu tempo ocioso lendo um livro – qualquer que fosse. E, se assim o fizesse, talvez fosse o primeiro a ser eliminado pelo público na votação. Nesse contexto, o livro enquanto objeto guardaria em si um vestígio de outra época, conforme Silva (2012). Mas, para o mesmo autor, o livro como suporte de arquivo de memórias já não é necessário na sociedade do hiperespetáculo. Tampouco a escrita teria importância perante o monopólio e a preferência pela imagem. Para Silva, A sociedade moderna consagrou-se com a (im)prensa. Foi, por excelência a época do livro – inclusive no cristia- nismo reformado, multiplicando o que era de uso espe- cializado nas religiões do passado –, a era do texto. A so- ciedade espetacular entronizou a imagem. A passagem ao hiperespetacular surge com o fim da necessidade do livro e do texto como meio de comunicação e dispositivo de memória. Mesmo se tudo já pode ser dito, transmiti- SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 201442 << SUMÁRIO do e memorizado em áudio e imagem, o livro escrito não acabou na época do áudio-livro e das memórias artifi- ciais. Continua como um vestígio, um rastro investigado por uma nova disciplina, a rastreabilidade ou ‘traçabili- dade’ literária, sucessora da genética. Quando a escri- ta chega ao seu fim como necessidade técnica, o texto e o livro entram na fase arqueológica, cacos de um passado revolucionário revoluto. A literatura impressa mergulha na ficção, uma autoficção científica ao gosto dos espíritos nostálgicos sem futuro (SILVA, 2012: 48,49, grifos nossos). As tecnologias permitem que toda mensagem, conhecimento e memória não precisem do código escrito para serem emitidas. O áudio e a imagem substituiriam a escrita em sua função meramente técnica, superando-a como todas as técnicas um dia são superadas. Um exemplo cotidiano é a mensagem escrita enviada por celular, conhecida como SMS. Através do aplicativo WhatsApp e do próprio Facebook, as mensagens são gravadas em voz, não mais escritas. A mãe da co-autora deste ensaio enviou uma mensagem para seu neto, não alfabetizado, através do celular. O neto recebeu a mensagem e a compreendeu porque o código era falado, graças à tecnologia. A avó tem 54 anos, o neto tem quase 3. Esse é apenas um exemplo, talvez ingênuo, de como a tecnologia inclusive incentiva que se desvie da escrita (“demorada, chata, formal”) para fins de comunicação.Isso não significa que os livros desaparecerão por completo, mas, como acredita Silva (2012), poderão se tornar um vestígio, assim como são hoje em dia os papiros: Um tempo começa a morrer quando seus pilares são tecnologicamente superados, o que o torna, obviamen- te, prescindíveis e mais onerosos. O jornal em papel, o livro impresso e, salto no abismo, até mesmo a escrita já não são mais necessários. Continuam, porém, a ser socialmente necessários em muitos lugares. Imprimir tornou-se expressão de desperdício. É antiecológico, demorado, embora cada vez mais rápi- do, e caro. Exige armazenamento e transporte físico. A informação chega inutilmente atrasada. O paradoxo da passagem ao hiperespetacular é soar como uma ironia: quanto mais atrasada e pobre for uma sociedade, maior será a sua dependência em relação a esses meios tec- nologicamente superados, o jornal de texto, o livro e a SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 2014 43 << SUMÁRIO escrita. A escrita, que já foi uma marca das civilizações avançadas, será, em breve, um sinal de atraso típico das culturas em déficit de tecnologias de som e imagem (SILVA, 2012:49,50, grifos nossos). Como bem explica Silva (2012), a sociedade hiperespetacular é paradoxal. Nesse contexto, a possibilidade de vida cultural sem escrita e sem papel é uma realidade. Para o autor, ainda, o excesso de tecnologia nos faz voltar às origens, ou seja, às culturas orais e não escritas: A associação entre escrita e papel representou, de fato o mais poderoso sistema de hierarquia social de todos os tempos. Mesmo em sociedades de papel barato, como as atuais, o custo de impressão permanece como um limite e um fator de exclusão. Esse é o poder que mor- reu. O intelectual era o sacerdote da escrita e do papel. O seu prestígio vinha também ou acima de tudo de ser publicado. Se hoje todos podem ser publicados to- dos podem se publicar, todos podem ser intelectu- ais, raros serão os que terão reconhecimento pelo que publicam. Nada de novo no front. Mais uma vez, o intelectual morre. Desta vez, por falta de papel. Daí, paradoxalmente, essa nostalgia dos intelectuais em re- lação ao papel. Essa ladainha sobre cheiro, textura, afe- tos, cor. Se ainda persiste o preconceito com o virtual, é preciso lembrar com Harold Innis que o papel enfrentou forte preconceito em determinado momento por ser um produto judeu ou árabe. Cada época com as suas resis- tências e as suas estratégias fatais. A escrita e o papel são duas invenções recentes fadadas, como tantas outras, a passar pelo ciclo nascimento, crescimen- to, apogeu e declínio. Estamos no hiperespetacu- lar, a possibilidade concreta da vida cultural plena sem escrita e sem papel. (...) Se o sistema de hierarquia social da escrita e do papel baseava-se no poder de publicar, uma nova hierarquia terá de basear-se no publicado. Se a hierarquia do papel, obviamente, tinha o poder de censurar, censura legitima- da como efeito de qualidade, uma nova hierarquia teria de inventar um poder de distinção. No mundo virtual a censura é virtualmente impossível. Não pode, ao menos, acontecer de forma velada ou dissimula- da: falta de espaço, inadequação à linha editorial, pouca qualidade (SILVA, 2012:86,87, grifos da Autora). Percebe-se, lendo esse longo trecho, que temos mais um paradoxo diante de nós. Se, na sociedade do espetáculo, a regra determina que o que está aparecendo é automaticamente considerado bom (já passou por uma SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 201444 << SUMÁRIO seleção prévia), na sociedade hiperespetacular, tudo e todos têm iguais condições de aparecer no meio digital cada vez mais predominante. Quando todos publicam, fica cada vez mais difícil selecionar (a partir de critérios arbitrários, como todos o são) o que possui qualidade ou não. Em última instância, quando tudo pode aparecer, nada aparece. Quando o bom e o ruim aparecem, na verdade, nenhum aparece. Qual o espaço do livro em uma sociedade que não precisará ler nem escrever para se comunicar? Restariam ao livro somente o papel de objeto de pesquisa para uma minoria acadêmica e a função de hierarquizar a sociedade. Talvez nem esta função hierarquizante restasse, pois, é possível ser tudo sem saber nada. 4. Considerações finais: remediação e o futuro da obra de Jorge Amado As contextualizações feitas neste ensaio servem de subsídio para realizar uma reflexão sobre o futuro do livro e da escrita, é claro, mas mais especificamente sobre o futuro da obra do escritor Jorge Amado. Alguns questionamentos nos moveram ao longo do texto: quem lerá sua obra no futuro? Por que seus livros serão lidos? Que importância o escritor terá para os leitores? Como pudemos ver, Jorge Amado é um autor que desde o início de sua carreira foi perseguido. Inicialmente, pelo caráter de denúncia de suas obras; depois pela sua filiação ao PCB; e, mais recentemente, pela sua suposta baixa qualidade literária. A questão do cânone é relevante para refletirmos sobre o futuro da obra de Jorge Amado, pois, como nos mostra Alves (2001), o autor baiano só não foi excluído do cânone porque aparece nas histórias da literatura. Mas o modo negativo com que aparece nesses trabalhos pode excluí-lo futuramente. Isso porque, por exemplo, se um estudante deparar-se com a crítica de Alfredo Bosi (ALVES, 2001), que afirma que a literatura de Jorge Amado satisfará “ao leitor glutão”, poderá não SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 2014 45 << SUMÁRIO querer se enquadrar nesse rótulo, acabando por buscar outras leituras. Segundo a pesquisadora, “provavelmente, lendo a avaliação do historiador, nenhum leitor/estudante que se qualifique como leitor burguês, detentor de um poder cultural – desejará ser identificado com um grupo com tais ‘desqualificações’’!…” (ALVES, 2001:203). A possibilidade de exclusão futura do cânone, portanto, é um risco que a obra amadiana corre, a não ser que sejam questionados os paradigmas da crítica. Sabe- se que o comunismo do autor alterou o juízo de muitos estudiosos, que não conseguiram se livrar de preconceitos políticos (que hoje se mostram ultrapassados) para avaliar a obra do autor. Entretanto, como essas histórias da literatura foram usadas na formação dos atuais professores de Letras e ainda são usadas na formação dos atuais alunos e futuros professores, quem será o leitor de Jorge Amado no futuro próximo? Arriscamos a afirmar que só lerão Jorge Amado os jovens letrados ou em letramento que contrariarem seus professores e arriscarem a ler por conta própria a obra de Amado – escapando das contraindicações –, ou aqueles que ousarem discordar das autoridades legitimadas e autoras dos julgamentos perpetuados através da fotocópia em polígrafos amarelos e quase ilegíveis. O cenário descrito anteriormente é o mais otimista porque considera que o livro ainda terá um papel importante e será um objeto de fruição e prazer da leitura para jovens, estudantes de Letras ou não. Entretanto, considerando os aspectos tanto da sociedade do espetáculo (DEBORD, 1998), como do hiperespetáculo (SILVA, 2012), veremos que o conhecimento de fato perderá importância diante do parecer ser inteligente, ou melhor, aparecer como inteligente. O uso intenso da tecnologia para a comunicação – hoje uma dificuldade para algumas gerações, mas que será natural para as vindouras – influenciará o destino da comunicação escrita, que ficará ultrapassada diante de outras técnicas. Sem SocioPoética - Volume 1 | Número 12 janeiro a junho de 201446 << SUMÁRIO escrita, também não haverá leitura. Qual será o destino dos livros para a população jovem do futuro? Apenas objetos de museu? Algo antigo usado pelos avós? Concordamos
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