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Volume 12 Literatura 23 24 Sumário Literatura Contemporânea I ........................ 4 A cultura literária no contexto contemporâneo .............................................. 8 Manifestações da arte contemporânea brasileira: Concretismo ...................... 9 Oposições ao Concretismo .............................................................................................................. 12 Neoconcretismo ...................................................................................................................................... 12 Poesia Práxis ........................................................................................................................................... 12 Cultura e Contracultura ................................................................................... 15 Poesia marginal ...................................................................................................................................... 15 Tropicalismo ............................................................................................................................................ 16 Poesia contemporânea africana de língua portuguesa ................................... 19 Literatura Contemporânea II ...................... 29 Tendências da literatura contemporânea: poesia ............................................ 30 Tendências da literatura contemporânea: prosa ............................................. 32 Tendências da literatura contemporânea: teatro ............................................ 35 Prosa contemporânea africana de língua portuguesa ..................................... 36 Acesse o livro digital e conheça os objetos digitais e slides deste volume. Literatura Contemporânea I Ponto de partida 23 1. Na imagem, um homem caminha por um ambiente que se caracteriza por quais elementos? 2. As projeções no fundo da imagem, além de aparecerem na parede, também podem ser vistas ao longo do corpo da pessoa que caminha. Que sentido podemos atribuir a essa representação? 3. Na imagem, o homem caminha na mesma direção das linhas em que estão representados os códigos projetados. Como esse fato pode ser entendido? Getty Images/Peter Macdiarmid 4 Objetivos da unidade: apresentar algumas vertentes da poesia brasileira contemporânea; caracterizar, em linhas gerais, o contexto sociocultural que serviu de pano de fundo para a pro- dução poética a partir do final dos anos de 1950; associar a produção literária a outras manifestações artísticas, especialmente à música e às artes plásticas; compreender o papel político de resistência da poesia; aproximar a produção poética brasileira daquela escrita por autores africanos de língua portuguesa. Lendo a literatura Leia o poema “razão de ser”, do escritor curitibano Paulo Leminski. razão de ser Escrevo. E pronto. Escrevo porque preciso, preciso porque estou tonto. Ninguém tem nada com isso. Escrevo porque amanhece, e as estrelas lá no céu lembram letras no papel. quando o poema me anoitece. A aranha tece teias. O peixe beija e morde o que vê. Eu escrevo apenas. Tem que ter por quê? LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 218. tor curitibano . êê. : DK O Es tú di o. 20 16 . D ig ita l. Da ni el K le in . 2 01 5. D ig ita l. Paulo Leminski nasceu em Curitiba, em 1944. Filho de pai polonês e mãe negra, desde cedo demonstrou grande interesse não somente pela literatura mas também por outras manifestações artísticas, como a música. Dialogou com diversas tendências estéticas contemporâneas, como o Concretismo, a Tropicália e a poesia marginal. Além de poe- sia, escreveu prosa, foi professor, tradutor (dominava seis idiomas: japonês, espanhol, francês, latim, inglês e grego), trabalhou com publicidade e foi faixa-preta de judô. Morreu em 1989. Da ni el K le in . 2 01 5. D ig ita l. 5 2. No plano da forma, o poema apresenta dois aspectos que chamam a atenção: a maneira como os versos se organizam para compor a estrofe e a sonoridade. Comente cada um deles. 3. No verso “Escrevo porque amanhece”, o eu lírico se vale de um argumento que se ampara em um fato corriqueiro. O que isso indica a respeito da concepção da escrita poética apresentada no texto? a) Significa que a escrita da poesia é, para o eu lírico, um fato que deve ser repetido todos os dias, assim como o sol nasce todas as manhãs. b) Indica que a poesia, por ser uma repetição cotidiana, torna-se um fardo para aquele que a produz. c) Aponta para a ideia de que a criação poética está associada à criação do próprio mundo, o qual se renova a cada manhã. d) Indica que a escrita poética, para o eu lírico, não precisa de um motivo extraordinário; simplesmente acontece, assim como os dias amanhecem. 4. Os versos “A aranha tece teias / O peixe beija e morde o que vê” estabelecem, no poema, uma comparação, a) aproximando a atividade de escrita poética a um comportamento animal. b) apresentando exemplos que não se relacionam diretamente com a escrita poética. c) chamando a atenção para o fato de que, assim como é natural as aranhas tecerem teias e os peixes beijarem e morderem o que veem, a escrita de poesia é inerente ao modo de ser do eu lírico. d) destacando a escrita poética como uma atividade que é natural a todos que se sentem comprometidos com o desejo de se expressar. 1. Que relação o título estabelece com o poema? 5. Como podem ser entendidos os versos “e as estrelas lá no céu / lembram letras no papel.” no contexto do poema? 6 Volume 12 © Sh ut te rs to ck /G au di La b CAILLEBOTTE, Gustave. Retrato de Henri Cordier. 1883. 1 óleo sobre tela, color., 65 cm × 82 cm. Museu D’Órsay, Paris. 6. Leia as imagens a seguir, cujo tema, assim como o poema de Leminski, é a escrita. Escritora britânica Agatha Christie escrevendo em sua casa, 1946 Fo to ar en a/ Co rb is/ Be ttm an n Em cada imagem, que elementos podem ser relacionados à definição do ato de escrever presente no poema de Paulo Leminski? Justifique sua resposta, explorando elementos presentes tanto no texto escrito quanto nas imagens. Representação medieval de um homem escrevendo em sua mesa de trabalho Literatura 7 Acontecia A cultura literária no contexto contemporâneo As décadas que seguiram o período pós-Segunda Guerra, particularmente os anos de 1960 até 1990, foram mar- cadas por uma série de transformações. No caso brasileiro, a feição agrário-exportadora do país foi, aos poucos, se modificando e dando lugar a uma sociedade centrada na produção e no consumo de bens de diversas ordens. Ainda que as desigualdades sociais tenham persistido como marcas negativas, tanto do ponto de vista regional (fruto de um desenvolvimento historicamente desnivelado) quanto do ponto de vista social (parcelas da população ainda não têm acesso igualitário a bens e serviços básicos para seu desenvolvimento), houve uma significativa altera- ção no perfil econômico, social e cultural dos brasileiros. Nas últimas décadas, a globalização da economia, o processo de massificação da cultura e o consumismo impacta- ram de modo decisivo a cultura literária. A circulação vertiginosa de informações em razão dos avanços da tecnologia e da internet permitiu novas maneiras de veicular o texto literário, que passou a ser disponibilizado digitalmente – sem, contudo, deixar de ser difundido também no formato do livro de papel. Isso fez com que acervos difíceis de ser consul- tados se tornassem cada vez mais de fácil acesso. Apesar dessas transformações, a literatura, no que se refere à sua relação com a sociedade e com o indivíduo, con- servou seu papel de registrar as diferentes sensibilidades. Em diálogo permanente com a realidade, atualmente, prosa e poesia se deparam com novos desafios, como o de equilibrar suas funções de entreter e de analisar criticamente os modos de ser contemporâneos. A relação da literatura com outras linguagensartísticas e com novas mídias, como cinema e televisão, acrescentou novos valores ao texto literário, assim como ampliou seu público. Formas novas, como poemas que se valem de ele- mentos visuais, convivem com formas tradicionais, como a literatura de cordel. Com a disponibilidade de obras literárias em plataforma digital e o acesso a redes de informação praticamente infinitas, o leitor contemporâneo tem como grande desafio desenvolver habilidades de leitura que lhe permitam não transformar o ato de ler em uma experiência mecânica e meramente consumista. A capacidade de realizar uma leitura crítica, a qual é constantemente desenvolvida, permite a autonomia diante do texto, pressupõe um leitor que consegue identificar os textos pouco significativos e fáceis de digerir. DK O E st úd io . 2 01 6. D ig ita l. 8 Volume 12 Manifestações da arte contemporânea brasileira: Concretismo O Concretismo iniciou-se na década de 1950 e teve como objetivo promover uma retomada do espírito de ino- vação característico das vanguardas artísticas ocorridas no início do século XX no Brasil e no mundo. Afastando-se das concepções defendidas pela maioria dos poetas da terceira geração modernista, que entendiam ser necessária uma aproximação do texto poético a uma escrita mais tradicional, os jovens escritores paulistas Décio Pignatari, Ha- roldo de Campos e Augusto de Campos publicaram a revista literária Noigandres, não apenas introduzindo uma nova concepção da produção literária como promovendo um diálogo entre a literatura brasileira e expoentes da literatura mundial – tais como o norte-americano Ezra Pound e o russo Vladimir Maiakovski, além de artistas como Max Bill (artes plásticas) e Pierre Schaeffer (música). João Cabral de Melo Neto, Oswald de Andrade e Murilo Mendes também são referências decisivas para o movimento concretista. O surgimento oficial da poesia concreta ocorreu no ano de 1956, com a realização da I Exposição Nacional de Arte Concreta, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, mobilizando não somente poetas, mas pintores cariocas e paulistas que se vincularam ao movimento. Mais tarde, em 1958, os principais aspectos da estética concretista foram organizados sob a forma de um manifesto publicado no número 4 da revista Noigandres, chamado de plano-piloto para poesia concreta. Olhar literário Capa da edição nº. 4 da revista Noigandres poesia concreta: produto de uma evolução crítica de formas. dando por encerrado o ciclo histórico do verso (unidade rítmico-formal), a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente estrutural. espaço qualificado: estrutura espácio-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear. daí a importância da ideia de ideograma, desde o seu sentido geral de sintaxe espacial ou visual, até o seu sentido específico (fenollosa/pound) de método de compor baseado na justaposição direta – analógica, não lógico-discursiva – de elementos. [...] Entendida por seus fundadores como uma “evolução crítica das formas” (crítica no sentido de consciente, intencio- nal), a poesia concreta propôs uma superação da estrutura básica do poema, isto é, de sua forma de escrita em versos, indicando a “ocupação de todo o espaço possível para sua representação”. Desse modo, não se enfatizam o ritmo e o encadeamento das palavras; estas são consideradas “objeto” (daí a expressão palavra-objeto, empregada pelos concre- tistas), com propriedades visuais, o que conferiu mais destaque à sua forma (significante) do que aos seus significados. O Concretismo caracteriza-se como um movimento em que o racionalismo se torna o eixo de escrita do poema. Explorando o geometrismo e a visualidade das palavras no espaço em branco do papel, o poema concretista procura impactar seu leitor antes mesmo da compreensão do significado das palavras. A impressão é a de que os termos se movimentam na folha, rompendo com a linearidade previsível do verso. Desse modo, o “desenho” composto com as palavras também significa algo. CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Plano-piloto para poesia concreta. In: ______. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos – 1950-1960. São Paulo: Duas Cidades, 1975. p. 156. Literatura 9 Atividades 1. (UFES) A obra acima se intitula Pluvial, de 1959, e pertence ao livro Poesia (1949/1979), de Augusto de Campos. Dela NÃO se pode afirmar que a) lança mão da paronomásia (sons parecidos e significados diferentes). b) pode ser lida e vista vertical (chuva que cai) e horizontalmente (rio que corre). c) aponta para o projeto estético concretista da “arte pela arte”. d) rompe com a estrutura frásica do verso tradicional. e) utiliza os espaços brancos da página de forma significativa. 2. (UFRGS – RS) Leia o poema a seguir, de Décio Pignatari, e considere as afirmações que seguem. I. Trata-se de um exemplo de poesia con- creta, vanguarda do século XX que alte- rou radicalmente os recursos materiais da construção poética, valendo-se inclusive, de técnicas da publicidade. II. No poema, o uso do imperativo e o jogo lúdico das aliterações contribuem para denunciar a forma persuasiva e sedutora da mensagem publicitária que induz ao consumo. III. O último verso é a síntese da intenção sa- tírica do poema, que desqualifica o produ- to anunciado e, por extensão, a sociedade de consumo que ele representa. 10 Volume 12 3. Arnaldo Antunes é um dos poetas contemporâneos que têm suas raízes ligadas ao Concretismo. Leia, a seguir, um poema desse escritor e músico e responda às questões propostas. Quais estão corretas? a) Apenas I. b) Apenas II. c) Apenas III. d) Apenas II e III. e) I, II e III. ANTUNES, Arnaldo. 2 ou + corpos no mesmo espaço. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 119. a) Aponte três características do poema que permitem que ele seja classificado como concretista. b) Explorar a distribuição das palavras na página é uma das marcas do Concretismo. No poema de Arnaldo Antunes, que relação pode ser estabelecida entre o significado do termo agouro e o modo como as palavras ocupam o espaço da folha? Literatura 11 Oposições ao Concretismo Neoconcretismo Ainda na década de 1950, alguns artistas vinculados ao Concretismo começaram a questionar os rumos desse mo- vimento, especialmente posturas consideradas limitantes e doutrinárias demais: a aproximação do trabalho artístico com o trabalho industrial afastava qualquer sentido lírico ou simbólico da obra de arte. Nas artes plásticas, a tela concretista pressupunha a utilização de figuras, planos e cores que deveriam apontar somente para a própria obra, ou seja, não poderiam se relacionar com aspectos sociais, por exemplo. Para os artistas concretos, particularmente os paulistas, a realidade não era um elemento significativo a ser explorado na obra, cuja importância maior era a articulação formal, que buscava atingir o conceito de pura visualidade. Aos poucos, formou-se um grupo de artistas, no Rio de Janeiro, que discordava dessa rígida abordagem do concre- tismo. Defendiam uma arte que, de modo mais evidente, estivesse vinculada com a realidade. Para eles, a obra de arte não deveria ser entendida como uma máquina ou como um objeto estético racional. O artista deveria adotar uma postura intuitiva no processo de criação artística. Em 1957, um ano depois da I Exposição Nacional da Arte Concreta, ocorrida em São Paulo, aconteceram as primeiras manifestações de artistas que propunham uma nova abordagem estética, o Neoconcretismo – consolidado em 1959, com a publi- cação de um manifesto que defendia, entre seus pressupostos, a liberdade de experi- mentação e a retomada da subjetividade como essenciais ao fazer artístico. Na poesia, o grande expoente do Neoconcretismo foi Ferreira Gullar. Poeta im- portante no contexto da literatura contemporânea brasileira, em 1954, teve contato com os concretistas paulistas, fato que determinou sua integração ao movimento. Participou de modo ativoda I Exposição Nacional da Arte Concreta, mas, logo a seguir, desentendeu-se com o grupo paulista, aderindo, então, ao Neoconcretismo. Nos anos de 1960, Ferreira Gullar se voltou também para a produção teatral. Per- seguido pela Ditadura Militar por ser militante ativo do Partido Comunista Brasileiro, fugiu do país em 1971, retornando apenas em 1977. Em 2010, recebeu o Prêmio Ca- mões, um dos mais importantes reconhecimentos de sua obra literária. Suas prin- cipais obras são A luta corporal (1954), João Boa-Morte, cabra marcado para morrer (1962) e Poema sujo (1983). Poesia Práxis Poesia Práxis foi um movimento, surgido em 1962, que, assim como o Neoconcretismo, se opunha a uma série de aspectos da arte concreta. A publicação do livro Lavra lavra, cujo posfácio é o Manifesto didático da Poesia Práxis, de Mário Chamie, é tida como o ponto de partida dessa nova estética. Na Poesia Práxis, cada palavra é considerada não só por seu significado, mas também pelos significados que ela ad- quire juntamente com as outras palavras que compõem poema. Outros fatores importantes para esse movimento são a escolha dos temas, que devem estar em relação direta com a realidade social, e a “participação” do leitor, cujo papel deixa de ser passivo na composição do texto literário. Visando a essa interação, o poema deve buscar uma linguagem que seja entendida pelo leitor. Olhar literário Primeira página do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, de 21 de março de 1959, que marcou o início do Neoconcretismo – desenho gráfico de Amílcar de Castro 12 Volume 12 Os poetas da Práxis consideravam as propostas concretistas ultrapassadas e contraditórias, principalmente porque tentavam resgatar modelos poéticos do passado. Sobre o distanciamento dos concretistas em relação à realidade so- cial, afirmavam que a literatura não poderia ser desenvolvida sem envolver outros discursos que atravessam o espaço social. Outra crítica feita pela Poesia Práxis ao Concretismo referia-se à seleção dos poetas considerados referências para o projeto concretista. A opção por excluir de sua poesia a visão social e política permitiu que escritores com ideais muito diferentes (e até mesmo opostos) fossem considerados como precursores do movimento concreto. Além de Mário Chamie, outro poeta ligado à Poesia Práxis é Cassiano Ricardo, que havia participado da fase mo- dernista de 1922. 1. (UFPR) O poema que se segue integra o volume intitu- lado Muitas vozes, publicado por Ferreira Gullar no ano de 1999. Atividades Ouvindo apenas e gato e passarinho e gato e passarinho (na manhã veloz e azul de ventania e ar vores voando) e cão latindo e gato e passarinho (só rumores de cão e gato e passarinho ouço deitado no quarto às dez da manhã de um novembro no Brasil) I. No plano da linguagem poética, pelo menos um dos procedimentos empregados pelo autor em Muitas vozes encontra-se exemplificado em “Ouvindo ape- nas”: o texto espacializado (a linguagem de base visual). II. O sujeito lírico de “Ouvindo apenas” mantém-se desligado do mundo objetivo, mostrando-se insen- sível a estímulos físicos. III. O emprego de quadras e tercetos isométricos associa “Ouvindo apenas” ao modelo estrutural do soneto. IV. O poema justapõe dois registros da realidade: fora dos parênteses, os elementos da realidade são relacionados de forma objetiva; dentro dos parên- teses, fica evidenciada a atuação do componente subjetivo. V. Embora use recursos do fazer poético concretista, Ferreira Gullar harmoniza a ousadia formal com a representação da emoção. Assinale a alternativa correta. a) Somente as afirmativas I e III são verdadeiras. b) Somente as afirmativas I, IV e V são verdadeiras. c) Somente as afirmativas II, III e IV são verdadeiras. d) Somente as afirmativas II, III e V são verdadeiras. e) Somente as afirmativas II, IV e V são verdadeiras. Acerca do poema acima reproduzido, considere as se- guintes afirmativas: Literatura 13 2. (PUC-Rio – RJ) Leia atentamente o texto abaixo e responda às questões propostas. Maio 1964 (fragmento) Na leiteria a tarde se reparte em iogurtes, coalhadas, copos de leite e no espelho meu rosto. São quatro horas da tarde, em maio. Tenho 33 anos e uma gastrite. Amo a vida que é cheia de crianças, de flores e mulheres, a vida, esse direito de estar no mundo, ter dois pés e mãos, uma cara e a fome de tudo, a esperança. Esse direito de todos que nenhum ato institucional ou constitucional pode cassar ou legar. Mas quantos amigos presos! quantos em cárceres escuros onde a tarde fede a urina e terror. Há muitas famílias sem rumo esta tarde nos subúrbios de ferro e gás onde brinca irremida a infância da classe operária. .................................................................... Ferreira Gullar. Dentro da noite veloz. São Paulo: Círculo do Livro, s/d, p.53. a) Comente as seguintes afirmações: Há inúmeros elementos no texto de Ferreira Gullar, a começar pelo título, que o aproximam de fatos da história brasileira recente. Percebe-se no poema o contraste entre os valores e sentimentos do eu lírico e a realidade por ele observada. 3. Indique um aspecto que diferencie a poesia concreta da poesia práxis. 14 Volume 12 Cultura e Contracultura Em meio à pulverização de sistemas e tendências estéticas, surgiu, na década de 1960, nos Estados Unidos, um mo- vimento que ficou conhecido como Contracultura. Em síntese, foi um movimento de contestação social e política que rapidamente se espalhou, fazendo com que jovens do mundo inteiro começassem a questionar os padrões de uma sociedade baseada em valores conservadores. Propunham formas de relacionamento pautadas em posicionamentos mais libertários e identificadas com uma cultura underground (fora dos padrões comerciais). A proposição de novos valores vinha acompanhada de um comportamento que valorizava, ao mesmo tempo, de- sejos e interesses individuais e necessidades coletivas. Houve também uma valorização das culturas orientais (como uma resposta ao pragmatismo e consumismo do ocidente capitalista), o que promoveu a incorporação de elementos religiosos para a tomada de uma consciência mística inédita até então. A seguir, duas manifestações estéticas ocorridas no contexto brasileiro que podem ser associadas em grande me- dida ao movimento da Contracultura. Poesia marginal A poesia marginal, produzida entre os anos de 1970 e 1980, foi uma espécie de resposta aos mecanismos de cen- sura impostos pela Ditadura Militar. Essa geração de poetas também é chamada de Geração do Mimeógrafo. Sua principal marca foi a substituição dos meios tradicionais de circulação das obras – vendidas em formatos de livros produzidos por editoras e comercializados em livrarias – por meios alternativos. Com pequenas tiragens, as cópias eram mimeografadas e comercializadas a custos baixíssimos e geralmente eram vendidas de mão em mão nos espaços culturais. Dessa forma, essa literatura “escapava” da repressão da censura, que, nesse momento, exercia de forma violenta o controle de bens culturais em território nacional. Nomes importantes como Paulo Leminski, Francis- co Alvim, Waly Salomão, Torquato Neto, José Agripino de Paula e Chacal destacam-se nesse movimento. Além do campo literário, a poesia marginal influenciou diretamente outras linguagens artísticas. Na música, por exemplo, Tom Zé, Jorge Mautner, Jards Macalé e Luiz Melodia dialogaram com os poetas marginais, fato que lhes valeu a alcunha, dada pela imprensa da época, de “compositores maldi- tos”. Esses músicos não encontravam espaço nas grandes gravadoras por serem considerados “alternativos” e pouco “vendáveis”, segundo o padrões comerciais. Subversão era uma das palavras de ordem dos poetas marginais. Opondo-se frontalmente à cultura oficial literá- ria brasileira, essa produção poética utilizava, para compor seu jogo expressivo, uma linguagem com fortes marcas de coloquialidadee formas diretas e curtas. O tom de brincadeira, a espontaneidade, os jogos de palavras e a tendência a observar a vida comum por uma perspectiva carregada de cinismo estabeleciam um diálogo imediato com parte da poesia modernista de 1922. Olhar literário Bandeira serigrafada, intitulada Seja marginal, seja herói, obra de Hélio Oiticica, de 1968, propunha, em meio à truculência da repressão militar, uma espécie de “desobediência criativa” Literatura 15 Tropicalismo A Tropicália, ou Tropicalismo, foi um movimento de expressão artística e cultural que estabeleceu, na virada da década de 1960 para a de 1970, uma relação com a literatura e com as artes desenvolvidas com base no Modernismo. Acompanhando uma tendência de internacionalização da cultura que marcou as transformações artísticas desde o Concretismo, a Tropicália dialogou com muitas vanguardas europeias e norte-americanas, como a Pop Art. Apesar de ter seu eixo central focado na tentativa de inovar a música popular brasileira (MPB), foi um movimento que se estendeu ao cinema, às artes plásticas e à literatura. Misturando elementos de linguagens variadas, como aspectos visuais e realização de performances nos espetáculos musicais, a Tropicália aproximou a cultura erudita da cultura pop, mesclando intencionalmente valores universais e atemporais a elementos da cultura de massa, produtos de uma sociedade industrializada e consumista em que a arte, como qualquer objeto, se transforma em algo a ser consumido e descartado. Seu marco inicial ocorreu durante o III Festival de Música Popular Bra- sileira, em 1967. Nesse festival, as canções “Domingo no parque” (Gilberto Gil) e “Alegria, alegria” (Caetano Veloso) apresentaram letras e melodias ino- vadoras, o que as distanciou de uma grande parte das canções lançadas nessa mesma ocasião, continuadoras do samba, da bossa nova e ligadas às canções de protesto. Entre as inovações apresentadas, destaca-se a utilização de cortes cine- matográficos na sequência das ações descritas nas letras, o uso conjunto do violão e da guitarra elétrica (considerada, nessa época, um instrumen- to musical ilegítimo para uma música popular brasileira) e a miscelânea de sons derivados de vários estilos musicais (como o rock, a bossa nova, o baião, o samba e o bolero). A Tropicália marcou um ponto de articulação entre as manifestações estéticas e políticas que configuraram o cenário nacional da época, como o Cinema Novo (por exemplo, o cinema de Glauber Rocha, que rompeu radicalmente com o formato do cinema norte-americano), a bossa nova, a poesia concre- ta e o teatro revolucionário de José Celso Martinez Corrêa com seu resgate da antropofagia modernista. Em função do regime militar imposto à nação em 1964, ao longo da década de 1960, a sociedade brasileira passou por um processo de restrição da liberdade de expressão cada vez mais profundo. Grupos de resistência viam na manuten- ção de uma cultura de origem popular um meio de con- servar traços da identidade nacional e de se opor à entrada do que consideravam “lixo cultural”, produzido pelos países desenvolvidos como forma de subjugar ideologicamente o Brasil. O Tropicalismo pode ser considerado uma força de sín- tese da arte brasileira, pois resgatou as raízes da cultura nacional (integrando ritmos tradicionais a novos registros musicais) e abriu-se de modo crítico aos movimentos so- ciais e culturais internacionais. As canções de protesto eram composições de música popular que tinham como um de seus elementos principais a denúncia, escrita de modo poético, de uma situação de caráter político, social ou econômico. No Brasil, muitas dessas canções foram compostas nas décadas de 1960 e 1970, sobretudo como críticas à Di- tadura Militar. Entre seus principais composi- tores, encontravam-se Chico Buarque, Geraldo Vandré, Edu Lobo e Sérgio Ricardo. Capa do disco Panis et circencis, de 1968, obra coletiva que veiculou várias canções tropicalistas 16 Volume 12 Atividades 1. Leia os versos a seguir, que fazem parte de uma canção de Gilberto Gil e Torquato Neto. Geleia Geral Um poeta desfolha a bandeira E a manhã tropical se inicia Resplendente, cadente, fagueira Num calor girassol com alegria Na geleia geral brasileira Que o Jornal do Brasil anuncia Ê, bumba-yê-yê-boi Ano que vem, mês que foi Ê, bumba-yê-yê-yê É a mesma dança, meu boi A alegria é a prova dos nove E a tristeza é teu porto seguro Minha terra é onde o sol é mais limpo E Mangueira é onde o samba é mais puro Tumbadora na selva-selvagem Pindorama, país do futuro Ê, bumba-yê-yê-boi Ano que vem, mês que foi Ê, bumba-yê-yê-yê É a mesma dança, meu boi É a mesma dança na sala No Canecão, na TV E quem não dança não fala Assiste a tudo e se cala Não vê no meio da sala As relíquias do Brasil: Doce mulata malvada Um LP de Sinatra Maracujá, mês de abril Santo barroco baiano Superpoder de paisano Formiplac e céu de anil Três destaques da Portela Carne-seca na janela Alguém que chora por mim Um carnaval de verdade Hospitaleira amizade Brutalidade jardim Ê, bumba-yê-yê-boi Ano que vem, mês que foi Ê, bumba-yê-yê-yê É a mesma dança, meu boi Plurialva, contente e brejeira Miss linda Brasil diz “bom dia” E outra moça também, Carolina Da janela examina a folia Salve o lindo pendão dos seus olhos E a saúde que o olhar irradia Ê, bumba-yê-yê-boi Ano que vem, mês que foi Ê, bumba-yê-yê-yê É a mesma dança, meu boi Um poeta desfolha a bandeira E eu me sinto melhor colorido Pego um jato, viajo, arrebento Com o roteiro do sexto sentido Voz do morro, pilão de concreto Tropicália, bananas ao vento Ê, bumba-yê-yê-boi Ano que vem, mês que foi Ê, bumba-yê-yê-yê É a mesma dança, meu boi GIL, Gilberto. Geleia Geral. In: RENNO, Carlos (Org.). Gilberto Gil: todas as letras. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 97. ©Gege Edições (Brasil e América do Sul)/Preta Music (resto do mundo) ©Warner Chappell Edições Musicais Ltda. Literatura 17 a) Uma das marcas formais dessa canção é sua es- trutura fragmentária, em que elementos que ca- racterizam o Brasil são sobrepostos uns aos outros. Selecione e comente uma passagem da canção em que se possa observar a utilização desse recurso. b) Que aproximações podem ser feitas entre a forma fragmentária da canção e o Manifesto Antropofágico? 2. Leia o poema de Chacal, um dos mais significativos escritores da poesia marginal. Em seguida, responda às questões propostas. Amor puro nosso amor puro pulou o muro caiu na vida jamais seremos o par romântico que outrora fomos. CHACAL. Amor puro. In: ______. Belvedere [1971-2007]. São Paulo: Cosac Naify; Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. p. 247. a) A poesia marginal apresentou algumas marcas es- pecíficas no que diz respeito aos usos da linguagem poética. Indique duas dessas marcas presentes no poema lido. b) Qual é o significado do terceiro verso, “caiu na vida”, no contexto do poema? c) Há um paradoxo no poema construído com base na relação temporal nos três últimos versos. Que para- doxo é esse? 3. (ITA – SP) Leia o poema a seguir, “Na contramão”, de Chacal. ela ali tão sem eu aqui sem chão nós assim ninguém cada um na mão Acerca desse poema, considere as seguintes afirmações: I. Ele possui uma das marcas mais típicas da poesia contemporânea, que é a brevidade. II. É notória a informalidade da linguagem, que afasta o poema da tradição culta e erudita. III. Há um sentimentalismo contemporâneo que filtra os excessos da expressão sentimental. IV. Existe a persistência do tema do desencontro amo- roso (tradicional na literatura). Está(ão) CORRETA(s) a) apenas I. b) apenas I e II. c) apenas I, II e III. d) apenas III e IV. e) todas. 18 Volume 12 Poesia contemporânea africana de língua portuguesa Acompanhando algumas das tendências mundiais da produção poética, a literatura em versos escrita por autores africanos de expressão portuguesa pode ser caracterizada como bastante diversa, seja em relação a seu repertório temático,seja em relação às formas. ConexõesConexões Com uma consciência muito clara do processo que constitui sua trajetória, essa poesia revela uma capacidade de se situar em relação a etapas anteriores do fazer poético. Ou seja, do ponto de vista tanto dos estilos individuais quanto das questões relacionadas a uma dimensão social e coletiva, a poesia africana contemporânea de língua portuguesa vive um momento de afirmação de suas raízes e, paralelamente, estabelece com outros centros culturais mundiais um diálogo cada vez mais intenso e significativo. Um rápido olhar sobre a produção de três países (Angola, Moçambique e Cabo Verde) pode oferecer uma com- preensão sobre alguns dos caminhos trilhados pelos poetas contemporâneos. Em Angola, elementos relacionados à melancolia podem ser considerados constantes na produção poética das últimas décadas. Uma visão da realidade humana marcada pela incerteza e pela perplexidade aparece nos poemas sob o viés da desconstrução e da metalinguagem, da transgressão e do erotismo, do sentimento de errância e do questionamento relacionado ao pertencimento. Esses elementos são explorados nos textos cujas formas variam da revitalização da oralidade e da tradição ao rompimento com os laços que possam remeter poeta e leitor a modelos poéticos do passado. No escuro. No silêncio. dobrei os arcos de papel debaixo do tecido de areia. no escuro, no silêncio por habitar venci as lágrimas. nas estrelas ou nas cortinas ou nos plátanos mastiguei os sonhos. e vi os sonhos se diluírem entre as árvores no rosto do asfalto esquecido. no escuro, no silêncio. DK O E st úd io . 2 01 6. D ig ita l. MAIMONA, João. No escuro. No silêncio. In: DÁSKALOS, Maria Alexandre et al. Poesia africana de língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 111. Literatura 19 A expressão da melancolia é um dos eixos do poema. A tristeza se reflete na imagem dos sonhos que são destruí- dos (mastigados e diluídos), reforçando o sentimento de desesperança (“venci as lágrimas”). O espaço do “escuro” e do “silêncio” remete-se a uma realidade associada, a um só tempo, ao medo e à morte. Como que contraditoriamente, porém, a imagem dos “plátanos” aponta para a vida. A oscilação entre vida e morte, entre destruição e renascimento, e a contradição da existência humana no mundo contemporâneo são, enfim, algumas das expressões perceptíveis nesse poema. Entre os poetas angolanos, destacam-se, além de João Maimona, Duarte de Carvalho, João Tala, Arlindo Barbeitos, Maria Alexandre Dáskalos, Maria Amélia Dalomba, Paula Tavares e Abreu Paxe. João Maimona nasceu em 1955, em Quiboclo, Angola. Na cidade de Huambo, em seu país natal, participou da fundação do grupo Brigada Jovem de Literatu- ra, em 1981, que exaltava os valores da independência de Angola. Entre suas principais obras estão Quando se ouvir os sinos das sementes (1993) e Idade das palavras (1997), ambos livros de poemas. Maria Alexandre Dáskalos, Mar a sombra dos teus olhos, a testa clara, a linha que vai das sobrancelhas à cartilagem marfim, estática, e onde nenhum vento já irriga o tumultuar do sangue o rio aberto em teus lábios; a sombra dos teus olhos, amêndoas perfiladas, e o sorriso, colcha rendilhada afagando o Tempo; a sombra dos teus olhos, Mãe, no retrato. PATRAQUIM, Luís Carlos. In: DÁSKALOS, Maria Alexandre et al. Poesia africana de língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 231. Ilu st ra çõ es : Da ni el K le in . 2 01 5. D ig ita l. plátanos: árvores ornamentais, utilizadas em parques e jardins por sua capacidade de “viver intensamente” todas as estações do ano – suas folhas trocam de coloração em cada fase dos períodos anuais. Em Moçambique, três grandes poetas, todos falecidos, são responsáveis pela produção mais importante ocorrida na língua portuguesa desse país no século passado: José Craveirinha, Rui Knopfli e Noêmia de Souza. Destacam-se, nessa produção, a exploração estética de sonoridades típicas do falar moçambicano, no plano da forma, assim como o confronto entre os modos de ser africano e europeu, no plano do conteúdo. Um questionamento das situações de opressão e exploração humana, muitas delas referindo-se a acontecimentos que encontram uma fun- damentação na História, também surge como uma constante dessa poesia. Em épocas mais atuais, a poesia de Moçambique tem como marca um apelo mais subjetivo, procurando represen- tar poeticamente uma dimensão mais intimista do humano. Luís Carlos Patraquim nasceu na cidade de Lourenço Marques, Moçambique, em 1953. Mora em Portu- gal desde 1980, escrevendo textos para a impressa desse país e de seu país natal. Autor de roteiros de cinema e de peças teatrais, ganhou o Prémio Na- cional de Poesia, de Moçambique, em 1995. Entre suas obras encontram-se Monção (1980), A inadiá- vel viagem (1985) e O osso côncavo (2005). 20 Volume 12 ELÍSIO, Filinto. Acerca do amor. In: DÁSKALOS, Maria Alexandre et al. Poesia africana de língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. p. 171. Acerca do amor Do amor só digo isto: o sol adormece ao crepúsculo no oferecido colo do poente e nada é tão belo e íntimo. O resto é business dos amantes. Dizê-lo seria fragmentar a lua inteira. Esse poema é composto de três estrofes que partem de um verso que se repete e que focaliza sempre como ponto inicial os olhos, delineando a figura de um rosto feminino materno. Note que há certa regularidade decrescente nessa descrição, que parte de uma estrofe de sete versos, passando para uma estrofe de quatro versos para, finalmente, chegar à última estrofe de três versos. A trajetória decrescente pode também ser vista na diminuição do número de palavras em cada estrofe (34 na primeira, 15 na segunda e 8 na terceira), indicando quase uma redução de termos pela metade em cada estrofe. Conforme a observação vai se repetindo, a percepção se torna mais objetiva: na última estrofe, não há metáforas para designar o rosto, diferentemente das duas primeiras estrofes, carregadas de imagens sugestivas que misturam elementos humanos e naturais (olhos, testas, sobrancelhas, lábios, sangue, sorriso X vento, rio, marfim, amêndoas, Tempo). Uma possibilidade de análise, portanto, aponta para uma transição entre um modo subjetivo de observar o rosto materno (descrito a partir de um número considerável de metáforas que adjetivam a face da mulher) e uma maneira ob- jetiva de falar desse mesmo rosto (com poucas palavras substantivas). Passando gradativamente das imagens metafóricas à identificação com um “retrato”, o poema “desmetaforiza” a imagem, tornando-a uma expressão literal, direta, concreta. Essa interpretação do poema, que é apenas uma entre muitas outras possibilidades, é um exemplo de uma poesia moçambicana contemporânea que se afasta de questões sociais para mergulhar na subjetividade. Destacam-se, no contexto da produção poética de Moçambique atual, além de Luís Carlos Patraquim, Virgílio de Lemos, Eduardo White, Nélson Saúte e Armando Arthur. Em Cabo Verde, apesar de a diversidade de propostas ser talvez uma das marcas mais claras da produção poética contemporânea, escritores como Corsino Fortes, José Vicente Lopes, Vera Duarte, Dina Salústio, Filinto Elísio e José Luis Tavares atualizam a tradição poética desse país. Temas como fome, condição insular (o país é formado por um con- junto de ilhas), paisagem marítima e seca, constantes que atravessam a literatura caboverdiana, são abordados com base em questionamentos de caráter cosmopolita. DKO Estúdio. 2016. Digital. Literatura 21 Organize as ideias Como proposta de síntese dos conteúdos trabalhados nesta unidade, elabore um texto dissertativo cujo tema é: A literatura contemporânea produzida a partir da década de 1950 pode ser considerada uma continuidade do Modernismo ou é possível entendê-la como uma nova etapa, um novo estilo de época? Para escrever esse texto, você deve prestar atenção nos critérios de avaliação a seguir.Filinto Elísio No poema, o sentimento amoroso (ou melhor, a parte que dele é impor- tante, segundo o eu lírico) é transfigurado na paisagem do anoitecer. A essa beleza, porém, o poema apresenta um “oposto”: o amor “business”, a nego- ciação amorosa entre os amantes. O amor, como é expresso nesses versos, apresenta duas faces: uma altamente lírica, tradicional, que, como em ou- tros poemas do passado, projeta-se eternamente sobre a natureza como algo “belo e íntimo”; outra antilírica, contemporânea, o amor como um negócio (business). Assim, o poema de Filinto Elísio atualiza um sentimento bastante explorado em poemas, o amor, criando uma contraposição entre passado e presente, entre natural e negócio, entre tradição e contemporaneidade. Tipo de texto e abordagem: Atenção para atender aos padrões de uma disserta- ção, que pressupõe uma apresentação articulada de ideias, bem como uma ade- quação ao tema. Para embasar as ideias que você vai expor em seu texto, consulte não só os textos que fazem parte desta unidade, mas também outros, que possam ser coletados em fontes diversas (livros, enciclopédias, internet, etc.). Lembre-se de que as fontes devem ser confiáveis, ou seja, não colete dados de lugares que não pareçam adequados, pois informações equivocadas podem desqualificar seu texto. Estrutura: Nesse aspecto, são avaliados a coerência do texto, a composição dos parágrafos, os elementos de coesão, assim como a organização dos argumentos e seu encadeamento. Expressividade: Atente aos aspectos gramaticais, tais como ortografia, pontuação e demais adequações. Além disso, lembre-se de que você deve defender um ponto de vista de modo claro. Da ni el K le in . 2 01 5. D ig ita l. 22 Volume 12 Hora de estudo 1. (UEPG – PR) Com referência ao texto poético a seguir (“Caprichos e Relaxos”), de autoria de Paulo Leminski, como também a respeito de sua obra como um todo, assinale o que for correto. cansei da frase polida por anjos de cara pálida palmeiras batendo palmas ao passarem paradas agora eu quero a pedrada chuva de pedras palavras distribuindo pauladas. (01) O lirismo reflexivo de Leminski nos impulsiona para a leitura intertextual dos seus versos; perce- bemos que a partir da linguagem se autorreferen- cia em uma atitude crítica diante do mundo. (02) A metalinguagem constitui um traço marcante desse poeta; ao mesmo tempo que elabora a poesia, discute o fazer poético. (04) Leminski indica que não quer ser formal, poli- do, bater palmas para o nacionalismo/militaris- mo (“paradas”); prefere a verdade das “pedras palavras”. (08) A inquietude do autor diante dos movimentos com os quais travou diálogo – concretismo, poesia marginal, poesia oriental e tropicalismo – e nos quais nunca se fixou, revela a atitude de alguém que procurava sua própria direção no espaço literário. 2. (CFTMG) No Concretismo, vertente da poesia contem- porânea surgida a partir dos anos 50, a característica essencial é a(o) a) emprego de aliterações. b) apreço pela musicalidade. c) exploração do significante. d) uso de versos tradicionais. 3. (ITA – SP) Leia os textos seguintes: (1) [...] Minha terra tem palmeiras Onde canta o sabiá; As aves que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. [...] (Dias, Gonçalves. “Poesias completas”. São Paulo: Saraiva, 1957.) (2) lá? ah! Sabiá... papá... maná... Sofá... sinhá... cá? bah! (Paes, J. P. “Um por todos. Poesia reunida.” São Paulo: Brasiliense, 1986.) a) Aponte uma característica do texto (1) que o filia ao Romantismo e uma do texto (2) que o filia ao Concretismo. b) É possível relacionar o texto (2) com o (1)? Justifique. 4. (UFES) Destes penhascos fez a natureza O berço, em que nasci! oh queima cuidara, Que entre penhas tão duras se criara Uma alma terna, um peito sem dureza! Amor, que vence os tigres, por empresa Tomou logo render-me; ele declara Contra o meu coração guerra tão rara, Que não me foi bastante a fortaleza. Pois mais que eu mesmo conhecesse o dano, A que dava ocasião minha brandura, Nunca pude fugir ao cego engano: Literatura 23 24 Volume 12 c) 1-Arcadismo; 2-concreta; 3-árcades; 4-concreto; 5-concreta. d) 1-Concretismo; 2-árcade; 3-árcades; 4-árcade; 5-concreta. e) 1-Arcadismo; 2-árcade; 3-árcades; 4-concreto; 5-árcade. 5. (UFRGS – RS) Considere as seguintes afirmações sobre o Concretismo. I. Buscou na visualidade um dos suportes para atingir rupturas radicais com a ordem discursiva da língua portuguesa. II. Teve como integrantes fundamentais Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari. III. Foi um projeto de renovação formal e estética da poesia brasileira, cuja importância fica restrita à dé- cada de 1950. Quais estão corretas? a) Apenas I b) Apenas II c) Apenas III d) Apenas I e II e) I, II e III 6. (INSPER – SP) Dois e dois: quatro Como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena embora o pão seja caro e a liberdade pequena. Como teus olhos são claros e a tua pele, morena como é azul o oceano e a lagoa, serena como um tempo de alegria por trás do terror me acena e a noite carrega o dia no seu colo de açucena – sei que dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena mesmo que o pão seja caro e a liberdade, pequena. (Ferreira Gullar) Vós, que ostentais a condição mais dura, Temei, penhas, temei; que Amor tirano, Onde há mais resistência, mas se apura. (Cláudio Manuel da Costa) ruaruaruasol ruaruasolrua ruasolruarua solruaruarua ruaruaruas (Ronaldo Azeredo) Considerando as obras supracitadas como ilustrati- vas da poesia árcade e da poesia concreta, assinale a opção cuja ordem preenche CORRETAMENTE as afir- mativas seguintes: 1 - “O __________ é, pois, consciência de integra- ção: de ajustamento a uma ordem natural, social e literária, decorrendo disso a estética da imitação, por meio da qual o espírito reproduz as formas na- turais, não apenas como elas aparecem à razão, mas como as conceberam e recriaram os bons au- tores da Antiguidade.” 2 - “Os elementos de composição característicos da poesia _________ são a organização geo- métrica do espaço e o jogo de semelhanças de significantes.” 3 - “Os ___________ se recusavam a uma explora- ção mais completa da psicologia humana, assim como se tinham negado a uma concepção mais imaginativa da linguagem.” 4 - “Talvez se pudesse concluir que um poema __________ seja definido mais ou menos assim: um tipo de composição poética centrada na utili- zação de poucos elementos dispostos no papel de modo a valorizar a distribuição espacial, o tamanho e a forma dos caracteres tipográficos e as seme- lhanças fônicas entre as palavras.” 5 - A poesia __________ significou o reconhecimen- to do poema como objeto também espacial, e da necessidade de procedimentos composicionais compatíveis com essa realidade.” a) 1-Arcadismo; 2-concreta; 3-concretistas; 4-con- creto; 5-árcade. b) 1-Concretismo; 2-concreta; 3-concretistas; 4-árca- de; 5-concreta. Assinale a alternativa em que se analisa corretamente o sentido dos versos de Ferreira Gullar. a) A partir de uma visão niilista, o poeta encara as difi- culdades existenciais que enfrenta como insolúveis. b) A visão determinista do poeta define o seu desti- no em relação à amada, tal como uma operação matemática. c) Trata-se de um poema com discurso panfletário contra os problemas sociais e a falta de liberdade no país. d) No poema, o eu lírico tem consciência dos proble- mas, mas se norteia pela certeza da validade da vida. e) O poeta tem convicção da validade da vida, mas he- sita diante da projeção de um ideal a ser alcançado. 7. (UEPG – PR) Redundâncias Ferreira Gullar Ter medo da morte é coisa dos vivos o morto está livre de tudo o que é vida Ter apego ao mundo é coisa dos vivos para o morto não há (não houve) raios rios risos E ninguém vive a morte quer morto quer vivo mera noção que existe só enquanto existo Analise as proposições e, considerandoos aspectos do poema e a obra em que está inserido, assinale o que for correto. (01) Esse poema de Ferreira Gullar, do livro Muitas Vo- zes, reitera a temática da obra – a morte – algo simples, no entanto redundante, como o próprio título nos aponta. (02) Para o eu lírico o vivo tem a ideia fixa da morte; o morto não tem noção do próprio estado em que se encontra, estado de puro nada. (04) Depreende-se no poema que para o morto, em seu estado atual, não há raios (metonímia: tem- pestades – metáfora das tristezas), rios (metáfora das travessias da vida), e risos (metáfora das ale- grias), só o estado do nada. (08) A repetição sonora da consoante “R” (nono verso: “raios rios risos”), sem a pausa forçada das vír- gulas, sugere a passagem veloz das imagens da vida – imagens condenadas ao nada. (16) Os poemas que compõem Muitas Vozes conden- sam toda experiência do poeta, acumulada ao longo de quase sete décadas, em alguns, a morte ganha significados diferentes. 8. (UFU – MG) Leia os versos do poeta Ferreira Gullar. [...] Quantas tardes numa tarde! e era outra, fresca, debaixo das árvores boas a tarde na praia do Jenipapeiro [...] Muitos Muitos dias há num dia só porque as coisas mesmas os compõem com sua carne (ou ferro que nome tenha essa matéria tempo suja ou não) [...] É impossível dizer em quantas velocidades diferentes se move uma cidade a cada instante “Melhores poemas.” Com relação ao fragmento acima, marque a afirmativa correta. a) O poeta faz uma reflexão sobre a simultaneidade e a temporalidade das coisas, excluindo, implicitamen- te, a reflexão da temporalidade humana. b) As lembranças e associações evocadas pela memó- ria atualizam o passado, fazendo-o repetir-se sem alterações, como se vê na primeira estrofe. c) A assimetria dos versos e a forma como são dispostos Literatura 25 26 Volume 12 10. (UNITAU – SP) Segundo o poeta Mário Chamie, deter- minado movimento poético “opõe à palavra-coisa, do concretismo, a palavra-energia; não considera o poema como um objeto estático e fechado e sim como um pro- duto dinâmico, passível de transformação pela influência ou manipulação do leitor”. Trata-se de referência ao(à) a) Hermetismo. b) Dadaísmo. c) Cubismo. d) Poesia Práxis. e) Simbolismo. 11. (UFRGS – RS) No bloco superior abaixo, estão listadas duas obras, apresentadas ora separadas, ora combina- das; no inferior, afirmações referentes a essas obras. Associe adequadamente o bloco inferior ao superior. 1. Tropicália ou Panis et Circencis 2. O amor de Pedro por João 3. Tropicália ou Panis et Circencis e O amor de Pedro por João ( ) Presença do contexto da ditadura civil militar bra- sileira. ( ) Apresentação de experimentações formais. ( ) Acompanhamento de trajetória de quem aderiu à luta armada. ( ) Lançamento durante os anos de chumbo da dita- dura militar brasileira. A sequência correta de preenchimento dos parênteses, de cima para baixo, é a) 1 - 3 - 1 - 2. b) 3 - 3 - 2 - 1. c) 2 - 1 - 3 - 1. d) 3 - 1 - 2 - 2. e) 1 - 2 - 3 - 3. 12. (UFRGS – RS) Assinale com V (verdadeiro) ou F (falso) as afirmações a seguir sobre o movimento tropicalista. ( ) Constituiu um movimento contracultural do final dos anos 60, liderado pelos músicos Caetano Veloso e Gilberto Gil. ( ) A sua estética compreendia o estilhaçamento da linguagem discursiva, a miscigenação de sons, ritmos e instrumentos diferenciados, a valorização do corpo e o tom parodístico das composições. c) A assimetria dos versos e a forma como são dis- postos no papel representam um estilo literário e desconsideram o tratamento temático do texto. d) Os versos são marcados pela ideia de simultaneida- de, tanto da lembrança quanto da existência real das coisas, o que leva o poeta à reflexão sobre o tempo. 9. (ENEM) Ferreira Gullar, um dos grandes poetas brasi- leiros da atualidade, é autor de “Bicho urbano”, poema sobre a sua relação com as pequenas e grandes cidades. Bicho urbano Se disser que prefiro morar em Pirapemas ou em outra qualquer pequena cidade do país estou mentindo ainda que lá se possa de manhã lavar o rosto no orvalho e o pão preserve aquele branco sabor de alvorada. A natureza me assusta. Com seus matos sombrios suas águas suas aves que são como aparições me assusta quase tanto quanto esse abismo de gases e de estrelas aberto sob minha cabeça. (GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1991) Embora não opte por viver numa pequena cidade, o poeta reconhece elementos de valor no cotidiano das pequenas comunidades. Para expressar a relação do homem com alguns desses elementos, ele recorre à sinestesia, construção de linguagem em que se mes- clam impressões sensoriais diversas. Assinale a opção em que se observa esse recurso. a) “e o pão preserve aquele branco / sabor de alvorada.” b) “ainda que lá se possa de manhã / lavar o rosto no orvalho” c) “A natureza me assusta. / Com seus matos som- brios suas águas” d) “suas aves que são como aparições / me assusta quase tanto quanto” e) “me assusta quase tanto quanto / esse abismo / de gases e de estrelas” Literatura 27 ( ) Em 1968, a apresentação da canção “É Proibido Proibir”, por Caetano Veloso, no Festival Interna- cional da Canção, foi a primeira manifestação des- se movimento e teve uma recepção calorosa por parte do público e da crítica. ( ) As canções tropicalistas afinavam-se e davam continuidade à chamada «canção de protesto», da década de 60, por priorizarem o conteúdo sociopolítico. ( ) Além das obras musicais, são consideradas ma- nifestações do tropicalismo no Brasil a encenação da peça “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, pelo dramaturgo Celso Martinez Corrêa, e os fil- mes de Glauber Rocha. A sequência correta de preenchimento dos parênteses, de cima para baixo, é a) V - V - F - F - V. b) F - V - V - F - F. c) V - F - V - F - V. d) F - F - V - V - F. e) V - F - F - V - V 13. (UFES) Como atitude, o tropicalismo está presen- te em outras produções culturais da época, como a encenação de “O Rei da Vela”; de Os- wald de Andrade, pelo Grupo Oficina; ou no filme “Terra em transe”, de Glauber Rocha; ou nas experiências de artes plásticas de Hélio Oiticica. O tropicalismo é a expressão de uma crise, uma opção estética que inclui um pro- jeto de vida, em que o comportamento passa a ser elemento crítico, subvertendo a ordem mesma do cotidiano e marcando os traços que vão influenciar de maneira decisiva as tendências literárias marginais. O tropicalis- mo revaloriza a necessidade de revolucionar o corpo e o comportamento. Será inclusive por esse aspecto da crítica comportamental que Caetano Veloso e Gilberto Gil serão exi- lados pelo regime militar. As preocupações com o corpo, o erotismo, as drogas, a sub- versão de valores apareciam como demons- trações da insatisfação com um momento em que a permanência do regime de restrição promovia a inquietação, a dúvida e a crise da intelectualidade. Com base no trecho – retirado do estudo “Literatura marginal e o comportamento desviante”, de 1979, de autoria de Ana Cristina Cesar –, assinale a opção CORRETA. a) A obra de João Cabral e a Poesia Concreta repre- sentam uma forte influência nas produções tropica- listas e marginais. b) As letras das canções tropicalistas – como “Domin- go no parque” e “Alegria, alegria” – pregam a toma- da do poder pela via armada. c) Caetano Veloso e Gilberto Gil, no Manifesto Tropica- lista, retomam as propostas oswaldinas de implan- tação do Matriarcado de Pindorama. d) Em suas produções, os tropicalistas mostraram a convivência do arcaico com o moderno e os poetas marginais privilegiam a linguagem coloquial. e) Parte da poesia feita nos anos 70 denominou-se marginal porque os poetas eram bandidos, subver- sivos e perseguidos pelo regime militar. 14. (UFSC) Leia. As aparências revelam Afirma uma Firma que o Brasilconfirma: “Vamos substituir o Café pelo Aço”. Vai ser duríssimo descondicionar o paladar Não há na violência que a linguagem imita algo da violência propriamente dita? CACASO. As aparências revelam. In: WEINTRAUB, Fabio (Org.). Poesia marginal. São Paulo: Ática, 2004. p. 61. Para gostar de ler 39. Com base no texto, na leitura da coletânea de poemas Poesia marginal e no contexto de produção desses poemas, assinale a(s) proposição(ões) CORRETA(S). (01) Entre as temáticas das quais se ocupou a poe- sia marginal da década de 1970, havia espaço para painéis sociais, para a memória afetiva e a pesquisa poética e para o registro literário da inti- midade. Sem grandes exageros, a única regra era atender aos princípios da norma padrão da língua. 28 16. (UFMG) Leia este poema: PAPO DE ÍNDIO Veio uns ômi di saia preta cheiu di caixinha e pó branco qui êles disserum qui chamava açucri Aí êles falaram e nós fechamu a cara depois êles arrepitirum e nós fechamu o corpo Aí êles insistiram e nós comemu êles. CHACAL. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). “26 poetas hoje”. 6. ed. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2007. p. 219. REDIJA um texto, indicando três características desse poema que permitem reconhecê-lo como continuidade da poética modernista, particularmente da poesia pau- -brasil de Oswald de Andrade. 17. Leia o poema a seguir de autoria de Ana Cristina César. Cabeceira Intratável. Não quero mais pôr poemas no papel nem dar a conhecer minha ternura. Faço ar de dura, muito sóbria e dura, não pergunto “da sombra daquele beijo que farei?” É inútil ficar à escuta ou manobrar a lupa da adivinhação. Dito isto o livro de cabeceira cai no chão. Tua mão que desliza distraidamente? sobre a minha mão CÉSAR, Ana Cristina. Cabeceira. In: ______. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 106. Destaque três elementos, entre aspectos formais e de conteúdo, que permitam compreender possíveis senti- dos para esse poema. (02) Os versos “Vai ser duríssimo descondicionar / o paladar” podem ser entendidos metaforicamen- te como uma referência a sacrifícios impostos à população, obrigada a acomodar-se a uma nova ordem econômica. (04) Nos poemas reunidos em Poesia marginal, os autores enfocam a denúncia e a crítica social de uma maneira sisuda, sem apelar para o humor, pois visam conferir credibilidade ao que é dito. (08) A frase “Vamos substituir o Café pelo Aço” pode ser interpretada como uma referência à abertura do país para a exportação de minérios, defendida por empresários e pelo Governo à época da Dita- dura Militar. (16) No primeiro e segundo versos, no jogo de pala- vras “Afirma”, “Firma” e “confirma”, repete-se o segmento firma; isso pode ser interpretado como uma referência à influência das grandes empre- sas nas políticas estatais. (32) Na estrofe final, observa-se como Cacaso procura desvincular a linguagem das práticas sociais, ao propor que não há violência nas palavras em si, mas apenas na realidade a que elas se referem. 15. (ENEM) Reclame Se o mundo não vai bem a seus olhos, use lentes ... ou transforme o mundo ótica olho vivo agradece a preferência CHACAL et al. Poesia marginal. São Paulo: Ática, 2006. Chacal é um dos representantes da geração poética de 1970. A produção literária dessa geração, considerada marginal e engajada, de que é representativo o poema apresentado, valoriza a) o experimentalismo em versos curtos e tom jocoso. b) a sociedade de consumo, com o uso da linguagem publicitária. c) a construção do poema, em detrimento do conteúdo. d) a experimentação formal dos neossimbolistas. e) o uso de versos curtos e uniformes quanto à métrica. Volume 12 Literatura Contemporânea II Ponto de partida 24 1. A imagem representa páginas de um livro reproduzidas em uma plataforma digital. Como leitor, você já teve algum contato com uma publicação como essa? Qual era essa publicação? 2. No que se refere especificamente a obras literárias, qual é sua experiência de leitura em um suporte como esse? 3. Para você, existe diferença entre a leitura realizada em um suporte tradicional em papel e a realizada em uma tela de computador? Por quê? ©Sh utte rsto ck/B loom ua 29 Objetivos da unidade: apresentar algumas tendências da poesia brasileira contemporânea; apresentar algumas tendências da literatura brasileira contemporânea em prosa; apresentar algumas tendências do teatro contemporâneo; apresentar algumas tendências da produção em prosa escrita por autores de países africanos de língua portuguesa. Acontecia Nas últimas décadas, as transformações sociais e econômicas modificaram os modos como a literatura é produzida no Brasil. Livros de todos os tipos e para todos os gostos passaram a ser mais acessíveis a uma parcela considerável da população. Pro- gramas governamentais e iniciativas individuais ou institucionais tornaram o livro um objeto menos distante do brasileiro. Essa transformação, porém, não significa neces- sariamente uma leitura mais qualificada: em vez de obras de grande valor literário, os leitores optam, muitas vezes, por best-sellers, livros que seguem modelos mais simples para agradar ao leitor. Novos canais de circulação do texto literário surgem e ganham espaço antes ocu- pado pelo livro “tradicional”. Em meio à revolução tecnológica, observa-se um fenô- meno que se dá não somente no Brasil, mas em grande parte do mundo: a prosa de ficção é hoje o tipo de literatura mais consumido pelos leitores. Acompanhando o romance, as narrativas curtas também têm cumprido o papel de formar leitores. As crônicas, que ainda circulam nos jornais, impressos e digitais, são apreciadas por muitos. Os contos, por sua vez, satis- fazem os leitores que procuram uma narrativa mais “rápida”. Apesar da preferência pela prosa, os poemas também são produzidos e lidos. A poesia contemporânea tem se revelado muito imaginativa, explorando os limites da linguagem e propiciando ao leitor novas descobertas sobre si mesmo e sobre a realidade que o cerca. O experimentalismo, a ruptura dos limites do próprio gênero poético e a mistura entre poesia e outras linguagens caracterizam nosso tempo, tornando a leitura de poemas uma atividade ao mesmo tempo prazerosa e reflexiva. © iS to ck ph ot o. co m /c ar lo fra nc o Tendências da literatura contemporânea: poesia Assim como grande parte das manifestações artísticas criadas e compartilhadas em tempos atuais, os caminhos da poesia contemporânea são marcados pela diversidade. Valendo-se, por vezes, de uma linguagem inusitada, exploran- do temáticas relacionadas à violência, à perplexidade do sujeito em um mundo estranho e ao subjetivismo, a poesia brasileira das últimas décadas tem, na metalinguagem, na ironia e na contradição, algumas de suas ferramentas para sensibilizar o leitor. Uma vertente da produção poética baseia-se na expressão da subjetividade, aprofundando e registrando uma ex- periência lírica que, muitas vezes, se contrapõe a uma realidade caracterizada pelo consumismo, pela falta de reflexão e pela sensação de que os homens de hoje são mais individualistas e mais alienados. Olhar literário 30 Volume 12 Em outra vertente da escrita poética, o experimentalismo de novas formas e a ampliação de temas indicam uma espécie de continuidade com o Modernismo de 1922. Essa poesia acaba por se tornar uma escrita que faz referência a literaturas passadas, revisitando poetas de momentos anteriores e estabelecendo com eles novos diálogos poéticos. A exploração de sons, os rompimentos com as estruturas linguísticas e sintáticas, a aproximação da escrita poética com outras linguagens (artes visuais, cinema, vídeos, performances, música, HQ, etc.), a criação de novas palavras e outros recursos mostram um enorme vigor na busca de formas de expressão de nosso tempo. As iniciativas de descentralizar a poesia, realizadas por um conjunto de poetas considerados “marginais” por procura- rem se manter “à margem”da produção e do consumo cultural comercial e de grande distribuição, têm favorecido o surgimen- to de escritores excelentes, embora pouco conhecidos. Nesse novo contexto, em que a poesia deixa de ser um produto “re- quintado”, de circulação restrita, a produção poética passa a dar voz a realidades que poucas vezes haviam sido efetivamente problematizadas. Temáticas específicas surgem e determinam uma mudança radical na linguagem poética, como a violência, a solidão, a discriminação, a fragilidade humana e a sexualidade. Atividades só me consolaria: o ejetor de teias do homem-aranha só lá no alto entre prédios não se veria este coração sem plumas – algum vilão por aí usa um colar de penas made in my heart – só lá em cima entre edifícios com o aval das pombas uma criança olha pra cima mamãe, mamãe é a mulher -aranha? não seja tola ela está limpando janelas só me consolaria: o ejetor de teias do homem-aranha só lá no alto entre prédios não se veria um coração sem planos FREITAS, Angélica. Rilke Shake. São Paulo: Cosac Naify; Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. p. 47-48. Leia o poema a seguir, escrito por Angélica Freitas. DK O E st úd io . 2 01 6. D ig ita l. Alguns dos poetas considerados “marginais” s e envolvem diretamente em iniciativas relacionadas à produçã o e à circu- lação de literatura nas zonas periféricas dos gran des centros urbanos brasileiros. Uma delas, denominada Coop erifa, é as- sim descrita por Sérgio Vaz, um de seus idealizador es: “um mo- vimento cultural de/para periferia. É um movime nto cultural realizado e pensado sob a benção da comunidade”. Foi fundada em 2000, em Taboão da Serra. Seu objetivo é reun ir artistas da periferia, desenvolvendo, com base em seus trabal hos, ativida- des culturais (teatro, exposições, saraus, shows de m úsica, etc.). Literatura 31 a) Uma das características do livro de poemas Rilke Shake, um trocadilho elaborado com o nome do poeta tcheco Rainer Maria Rilke e da bebida milk-shake, é a associação entre o universo pop e o cotidiano das cidades. Identi- fique uma citação presente no poema que comprova essa associação. b) Ao termo “só”, presente várias vezes no poema, podem ser atribuídos dois sentidos diferentes. Quais são eles? c) A ironia e o humor, heranças do Modernismo, estão presentes no poema. Retire do texto uma passagem em que essa utilização esteja evidente. d) Interprete o sentido da expressão “coração sem planos”, que finaliza o poema. Tendências da literatura contemporânea: prosa Os múltiplos rumos tomados pelas produções literárias em prosa na contemporaneidade, assim como os poemas, têm como marca uma diversidade que dificulta sua sistematização. De um lado, os estilos dos autores apresentam preocupações estéticas singulares, o que faz com que o projeto literário de cada escritor já traga em si um conjunto de questões próprias. Um exemplo disso diz respeito a influências ou diálogos que cada escritor estabelece com a tradição literária que o antecedeu. É comum, em eventos públicos, como palestras e fóruns de discussão sobre literatura, os escritores apresentarem em suas falas seus entendimentos sobre a “herança” que receberam de um grupo de autores que fazem parte de seu “repertório” pessoal como leitores. Questões como “que autores mais influenciam sua escrita?” ou “que obras literárias influenciam sua literatura?” são co- locadas para os autores para que se compreenda algo de sua produção. Olhar literário 32 Volume 12 A prosa contemporânea vive uma espécie de contra- dição: assimila a influência recebida da produção literá- ria do passado (inserindo-se em uma tradição literária) e, ao mesmo tempo, busca uma ruptura, uma negação, em relação ao que já foi escrito. Cabe destacar que esse impasse é algo relativamente novo no campo da literatu- ra. Antes do Modernismo, os escritores empenhavam-se em produzir obras que fossem reconhecidas como boas representações de um estilo (por exemplo: o escritor da literatura clássico-renascentista era valorizado por imitar as obras da Antiguidade Clássica; o escritor romântico, ao escrever romance históricos, por exemplo, tinha por meta construir personagens que representassem um ideal de coragem, caráter e justiça – aspectos que eram tidos como valores na literatura da época). A seguir, algumas tendências que aproximam as obras escritas nos últimos cinquenta anos: • uma espécie de ultrarrealismo, que se baseia na representação da violência como aspecto im- portante para a composição da narrativa – nessa prosa literária, geralmente o cenário em que se dão os acontecimentos é urbano; • uma retomada regionalista, que procura exaltar personagens como representantes de pequenas comunida- des, situadas em contextos que mesclam os universos rural e urbano – nessa literatura, os modos de falar do narrador e do personagem são caracterizados pela utilização de expressões linguísticas identificadas com uma região; • o romance histórico, que mistura o ficcional a fatos que ocorreram; • a narrativa de caráter psicológico, que explora dimensões mais subjetivas da realidade em que os persona- gens se inserem – nesses textos, predominam as narrativas em primeira pessoa, o que aproxima o leitor e a intimidade das personagens. Evidentemente, há obras mistas, que se inserem em mais de uma dessas tendências, e ainda obras que fogem a essas classificações. Em relação à recepção das produções literárias (não só em prosa, mas também no que se refere à produção de poe- mas), merecem destaque os novos espaços por meio dos quais escritores e leitores têm mantido trocas, influenciando- -se mutuamente: • revistas literárias, acadêmicas ou não, impressas e digitais, apresentam novos escritores para o público leitor; • blogs literários, alimentados tanto por escritores quanto por leitores, têm constituído espaços de trocas de ideias, o que alimenta o processo de recepção das obras; • crítica de jornal, que surgiu no século XIX, se mantém prestigiada, apresentando obras novas ou reedições, aju- dando a divulgar novos textos e cumprindo um papel de formar leitores (oferecendo ao leitor um olhar crítico em relação aos textos literários); • crítica acadêmica, que tem mostrado um interesse efetivo na análise e interpretação de escritores em atividade e obras lançadas recentemente. DK O E st úd io . 2 01 6. D ig ita l. Literatura 33 Leia um trecho de um dos romances escritos por Chico Buarque. Atividades Antes de exibir a alguém o que lhe dito, você me faça o favor de submeter o texto a um gramá- tico, para que seus erros de ortografia não me sejam imputados. E não se esqueça que meu nome de família é Assumpção, e não Assunção, como em geral se escreve, como é capaz de constar até aí no prontuário. Assunção, na forma assim mais popular, foi o sobrenome que aquele escravo Balbino adotou, como a pedir licença para entrar na família sem sapatos. Curioso é que seu filho, também Balbino, foi cavalariço do meu pai. E o filho deste, Balbino Assunção Neto, um preto meio roliço, foi meu amigo de infância. Esse me ensinou a soltar pipa, a fazer arapucas de caçar passarinho, me fas- cinavam seus malabarismos com uma laranja nos pés, quando nem se falava em futebol. Mas depois que entrei no ginásio, minhas idas à fazenda escassearam, ele cresceu sem estudos e perdemos as afinidades. Só o reencontrava nas férias de julho, e então volta e meia lhe pedia um favor à-toa, mas para agradar a ele mesmo, que era de índole prestativa. Às vezes também o chamava para ficar por ali à disposição, porque a quietude da fazenda me aborrecia, naquele tempo a gente era veloz e o tempo se arrastava. Daí a eterna impaciência, e adoro ver seus olhos de rapariga rondando a enfermaria: eu, o relógio, a televisão, o celular, eu, a cama do tetraplégico, o soro, a sonda, o velho do Alzheimer, o celular, a televisão, eu, o relógio de novo, e não deu nem um minuto. BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.p. 18-19. imputados: atribuídos. Chico Buarque de Hollanda nasceu no Rio de Janeiro, em 1944. É cantor e compositor, reconhecidamente um dos maiores músicos de MPB. Foi duramente censurado na época da Ditadura Militar. Além das canções, escreveu peças teatrais, literatura infan- tojuvenil e ficção. Publicou os romances Estorvo (1992), Benjamin (1995), Budapeste (2003), Leite derramado (2009) e O irmão alemão (2014). a) O romance Leite derramado retrata a história de Eulálio Assumpção, um senhor idoso, internado em um hospital, filho de um senador, que narra de maneira não linear a trajetória de sua família decadente para sua filha e as en- fermeiras que cuidam dele. Que recurso o narrador em primeira pessoa utiliza para demarcar a não linearidade da narrativa no trecho apresentado? Cite um fragmento que exemplifique sua resposta. Da ni el K le in . 2 01 5. D ig ita l. 34 Volume 12 b) Eulálio, como se pode ler no trecho, faz questão de diferenciar seu nome chamando a atenção para a presença da letra p. Esse comportamento indica que característica da personagem? c) A mentalidade aristocrática de Eulálio se revela no momento em que ele relata suas lembranças sobre Balbino. Que traço ideológico e período histórico é possível depreender da fala de Eulálio a esse respeito? d) Considerando as tendências da literatura contemporânea em prosa estudadas nesta unidade, qual(is) aspecto(s) dessa literatura pode(m) ser relacionado(s) a esse trecho da obra de Chico Buarque? Tendências da literatura contemporânea: teatro Com o fim da ditadura, em meados da década de 1980, diversos grupos teatrais começam a se organizar, o que deu novo fôlego ao teatro nacional. Entre eles, destacam-se o pioneiro Asdrúbal Trouxe o Trombone e o grupo Tapa, que sempre pautou sua atuação pela escolha de textos dramáticos de grande qualidade. Nos anos de 1990, a Companhia do Latão e a companhia de teatro Os Satyros afirmaram-se com montagens ino- vadoras. Também o grupo do Teatro da Vertigem merece relevo. Seu diretor, Antonio Araújo, inovou as encenações Olhar literário Literatura 35 levando o público a espaços inusitados da cidade de São Paulo, como um hospital abandonado, uma prisão em ruínas e as margens do Rio Tietê. Do ponto de vista da produção de textos dramáticos, inúmeros autores brasileiros contemporâneos têm escrito peças consideradas pela crítica como de grande qualidade. Algumas delas tendem ao cômico, divertindo um público mais amplo. Outras estabelecem uma crítica social mais contundente. Como autores significativos, podem ser citados: Juca de Oliveira, Mauro Rasi, Miguel Falabella, Maria Adelaide Amaral, Millôr Fernandes, Renata Pallottini, Mário Prata, Antônio Fagundes, Fernando Bonassi, Mário Bortolotto e Rubens Rewald. Já no âmbito da direção teatral, é possível afirmar que três grandes diretores contribuíram de maneira decisiva para a afirmação do teatro brasileiro contemporâ- neo, em termos tanto de formação de atores como de realização de espetáculos. São eles: José Celso Martinez Corrêa, Antunes Filho e Gerald Thomas. Entrelaçamentos Prosa contemporânea africana de língua portuguesa Depois de anos de conflito armado em razão das lutas pela inde- pendência política, os países africanos de expressão portuguesa ex- perimentam um longo tempo de paz social. Depois de tornarem-se independentes, muitos dos países vivenciaram um período de guerra civil, o que resultou em marcas que não se apagaram da memória indi- vidual e coletiva. Se muito da ficção produzida entre os anos de 1960 e 1970 tinha os conflitos contra os portugueses e as lutas internas entre etnias como temas recorrentes, o período atual pode ser caracterizado pela exploração de temáticas comuns a outros lugares e povos: a corrupção, a condição da mulher, os modos de vida e as desigualdades sociais são alguns exemplos. Do ponto de vista dos recursos de linguagem, traços de ironia, me- talinguagem, rompimento com a linearidade temporal ou com a conti- nuidade espacial, multiplicidade dos pontos de vista sobre um mesmo fato, mistura de modos de falar antigos e contemporâneos, resgates do insólito e do fantástico, expressões de um certo lirismo, etc. estão entre as estratégias empregadas pelos escritores africanos. Pode-se verificar também que, mais do que nunca, a literatura africana de língua portuguesa se integra a um con- junto de códigos estéticos compartilhados com uma literatura mundializada, resultado do processo de globalização cultural. Ondjaki Em Angola, o percurso da formação do romance pode ser considerado não somente um dado significativo do ponto de vista literário, como também uma parte importante do ponto de vista histórico e social. Nesse país, a ficção se con- solidou antes se comparada às produções de outros países africanos que escre- vem em língua portuguesa. Escritores como Pepetela, José Eduardo Agualusa e Arnaldo Santos escrevem obras em que a dimensão ficcional se mistura com pas- sagens históricas a fim de resgatar as marcas do passado colonial que se projeta ainda sobre a realidade presente. Articulando inovação estilística e temática so- cial, escritores como Luandino Vieira, Ondjaki, Manuel Rui, Uanhenga Xitu e Boa- ventura Cardoso contribuem com suas obras para que se possam compreender a © Sh ut te rs to ck /IV AN CH IN A AN NA Da ni el K le in . 2 01 5. D ig ita l. 36 Volume 12 complexidade da vida social angolana e os dilemas resultantes de uma cultura carac- terizada pelo confronto constante entre as referências do mundo contemporâneo e as raízes tradicionais que fundamentam a identidade do país. Em Moçambique, o romance tem ganhado destaque principalmente a partir da década de 1980. Com uma vasta produção de qualidade, ao longo das últimas déca- das, a literatura moçambicana foi se destacando no campo da ficção com escritores como João Paulo Borges Coelho, Ungulani Ba Ka Khosa, Paulina Chiziane, Lilia Mom- plé, Aldino Muianga e Nelson Saúte. O surgimento de uma geração nova de escritores voltados para a produção literária em prosa pode ser explicado por vários fatores, entre os quais a pressão editorial que, nos dias de hoje, comercializa mais a prosa que a poesia e a adequação do gênero romance a questões específicas das sociedades contemporâneas (como a denúncia da desigualdade social, as questões raciais, o choque entre o regional e o universal, etc.). Um escritor que merece destaque é Mia Couto, cuja qualidade literária o coloca entre os escritores contemporâneos mais importantes do mundo. Em Cabo Verde, a publicação de contos e romances tem se tornado mais intensa com o passar dos anos. Escritores como Germano Almeida, Arménio Vieira, Fátima Bettencourt, Dina Salústio e Carlos Araújo estão entre os mais importantes nesse contexto. Paulina Chiziane Germano Almeida 1. Leia um trecho de um romance de Mia Couto. Deus já foi mulher. Antes de se exilar para longe da sua criação e quando ainda não se chamava Nungu, o atual Senhor do Universo parecia-se com todas as mães deste mundo. Nesse outro tempo, falávamos a mesma língua dos mares, da terra e dos céus. O meu avô diz que esse reinado há muito que morreu. Mas resta, algures dentro de nós, memória dessa época longínqua. Sobrevivem ilusões e certezas que, na nossa aldeia de Kulumani, são passadas de geração em geração. Todos sabemos, por exemplo, que o céu ainda não está acabado. São as mulheres que, desde há milénios, vão tecendo esse infinito véu. Quando os seus ventres se arredondam, uma porção de céu fica acrescentada. Ao inverso, quando perdem um filho, esse pedaço de firmamento volta a definhar. Talvez por essa razão a minha mãe, Hanifa Assulua, não tenha parado de contemplar as nuvens durante o enterro da sua filha mais velha. A minha irmã, Silência, foi a última vítima dos leões que, desde há algumas semanas, atormentam a nossa povoação. Porque morreu desfigurada, deitaram o que lhe sobrava do corpo sobre o lado esquerdo, com a cabeça
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