Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
ADEUS AOS ENGENHOS Afonso Henrique Fávero (UFS) Banguê, de José Lins do Rego, situa-se numa quadra em que o Brasil conhece mudanças de toda ordem. Na base dessas alterações, está a derrocada do mundo rural, ao lado de uma acentuada expansão urbana, matéria cara ao nosso chamado romance de 30. Com efeito, tal período comporta uma série de narrativas interessadas na figura do homem com raízes rurais, mas impelido a viver fora de sua ambientação de origem. O momento histórico, marcado pelos estertores da República Velha e pela Revolução de 1930, converte-se no pano de fundo a sustentar uma temática literária como essa. O livro de José Lins do Rego aponta, no caso, para o instante em que o proprietário da terra é defenestrado de seu mundo e despachado para uma cidade qualquer. No presente trabalho, busca-se acompanhar a perspectiva do narrador-personagem, o bacharel em Direito Carlos de Melo, face às razões que desencadearam semelhante processo; além disso, busca-se também avaliar o grau de pertinência que essa sua perspectiva possa vir a apresentar. Em ensaio sobre A moratória, peça teatral de Jorge Andrade, Décio de Almeida Prado deixa observação muito apropriada a respeito de uma situação peculiar ao universo literário brasileiro, numa época em que este se encontrava sob o influxo daqueles eventos históricos acima mencionados. Trata-se da “dolorosa passagem do Brasil dos fazendeiros para o Brasil urbano”, circunstância que tanto se refletiu em obras de autores ligados de algum modo a esse período, durante o qual o país conheceu sensível processo de modernização. Assim se refere Décio de Almeida Prado a certos escritores que emblematizam tal situação, bem como a condicionamentos que haviam de marcar-lhes a perspectiva: A sensibilidade de Jorge Andrade pertence a um tipo muito comum, embora pouco estudado, na moderna literatura brasileira, aparecendo, sob outras formas, em autores tão diversos como José Lins do Rego e Carlos Drummond de Andrade: a sensibilidade do filho de fazendeiro, do homem que se conserva sentimentalmente preso, pela memória, a um passado patriarcalista que sabe já não ter qualquer significação atual. (PRADO apud ANDRADE, 1975:11) Além de Drummond e José Lins, vamos encontrar esse tipo de descompasso também em páginas de Graciliano Ramos, Cyro dos Anjos, Érico Veríssimo e um 235 elenco nada pequeno de outros nomes relevantes da história literária brasileira. Em todos eles, avulta o homem de tradição rural transferido compulsoriamente, por assim dizer, para a vida na cidade, onde vai cumprir, via de regra, o papel de “fazendeiro do ar”. Ou para lembrarmos a síntese famosa de Drummond: “Tive ouro, tive gado, tive fazendas. / Hoje sou funcionário público” (DRUMMOND, 1978:45). De todos eles, é possível acompanhar relatos – ficcionais ou não – que examinam de forma dramática a condição ambivalente de pertencer-se e de já se ter pertencido a épocas e espaços contrastados, razão maior, sem dúvida, daquelas identidades cindidas. Naturalmente, diante de tal quadro de mudanças a implicar perdas de todo tipo, o sentimento predominante é o de decadência. Sobre isto, podemos acompanhar a reflexão oportuna de Antonio Candido em prefácio a livro de Sérgio Miceli; e, diga-se, reflexão tão mais oportuna, pois que vem, entre outras coisas, ratificar os nomes dos escritores aludidos há pouco: Sempre me intrigou o fato de num país novo como o Brasil, e num século como o nosso, a ficção, a poesia, o teatro produzirem a maioria das obras de valor no tema da decadência – social, familiar, pessoal. Assim vemos em Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Érico Veríssimo, Ciro dos Anjos, Lúcio Cardoso, Nelson Rodrigues, Jorge Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade. Cheguei a pensar que esse “estigma” (para usar uma palavra prezada por Miceli) seria quase requisito para produzir obras valiosas, e que portanto os rebentos das famílias mais velhas estariam no caso em situação favorável. (CANDIDO apud MICELI, 2001:75) E, particularmente sobre José Lins do Rego, diz Antonio Candido em outro estudo mais antigo, dentro da mesma linha de pensamento: “Os seus heróis são de decadência e de transição, tipos desorganizados pelo choque entre um passado e um presente divorciado do futuro” (CANDIDO, 1992:61). Temos assim uma observação que condensa o feitio de o romancista criar seus personagens, com validade exemplar para o caso específico do narrador-personagem de Banguê, Carlos de Melo. Conquanto o quadro já pareça razoavelmente delineado pelas citações anteriores, vejamos ainda, de forma suplementar, como o próprio Sérgio Miceli compreende a temática em pauta, sua ligação com a década de 1930, além de apresentar reflexão que diz respeito não só aos personagens dos romances como também aos homens que os conceberam: Acaso se estabeleça um balanço a respeito da condição social que caracterizava alguns dos personagens-chaves dos romances da década de 1930, poder-se-á verificar que muitos deles condensam, no espaço 236 ficcional, a ambiguidade da trajetória de seus autores e realizam em registro negativo a experiência de vida desses autores. Tanto Belmiro Borba, o bacharel Carlos de Melo, como João Valério e Luís da Silva realizam as diversas potencialidades objetivas das quais seus próprios autores conseguiram se livrar. Pertencendo quase sempre a famílias de proprietários rurais que se arruinaram, os romancistas e seus heróis não têm outra possibilidade senão a de sobreviver às custas de empregos no serviço público, na imprensa e nos demais ofícios que se “prestam às divagações do espírito”. Dessa posição em falso entre dois mundos, os heróis desses romances extraem a matéria-prima de que se nutrem suas veleidades literárias, quase sempre exteriorizadas seja sob a forma de diários mantidos em segredo, seja sob a modalidade de escritos encomendados por jornais e políticos venais. (MICELI, 2001:160) Isto registrado, passemos a Banguê, que pode ser tomado, no limite, como romance situado nas etapas iniciais desse processo de transição do campo à cidade, dada a contingência de que a história se passa inteiramente no mundo dos engenhos. Ocorre que o leitor acompanha o enredo do livro, inteirando-se daquela ambientação rígida de senhores e cabras, mas pressentindo ao mesmo tempo o fim iminente de tal mundo, ou ao menos fim daquele tipo de organização produtiva que o país conhecia desde a implantação dos engenhos de açúcar, já no período inicial de nossa história. É importante assinalar que a vivência do antigo menino de engenho também se deu em meio urbano, quando frequentou a Faculdade de Direito do Recife. Lembro ainda suas pretensões intelectuais, manifestas nos artigos de jornal sobre as aristocracias rurais nordestinas e nos livros que planejou escrever: um primeiro sobre a figura do avô; depois, outro a respeito dos trabalhadores do engenho, só para elevar-se aos olhos de Maria Alice, mulher casada com quem viveu um romance secreto e que sempre manifestou simpatia aos seres explorados daquele sistema. Com isso, podemos perceber a propensão a estados opostos que marcará o protagonista no decorrer da narrativa, na medida em que Carlos de Melo é um homem do campo, mas contaminado pela experiência na cidade; e um virtual autor de livros capaz de mudar radicalmente a natureza dos seus temas. Pergunta-lhe Maria Alice: “– Por que o doutor não escreve um livro sobre essa gente? Em vez de exaltar a vida dos donos, o doutor podia se interessar pelos pequenos” (REGO, 2002:97). E na sequência temos a comprovação da apostasia: “Achei uma boa idéia. Concordava com tudo o que ela diziae prometi-lhe então que daria começo a um inquérito sobre a vida e a miséria dos homens do eito. Seria um gesto grandioso, porque viria de um que herdaria mais tarde estas terras e estes homens” (REGO, 2002:97-98). 237 O segmento da obra de José Lins do Rego conhecido como o “Ciclo da Cana- de-Açúcar” faz um apanhado sobre o mundo agrário nordestino nas primeiras décadas do século XX, com ênfase especialmente no declínio dos engenhos. Numa visada geral sobre a obra do autor paraibano, Adolfo Casais Monteiro trata da matéria com concepções semelhantes às que acabamos de ver em Candido e Miceli. A Banguê refere-se nos seguintes termos: Ao ler Banguê, não se pode deixar de recordar A Ilustre Casa de Ramires. Efetivamente, o drama é o mesmo: é o drama da decadência, do aniquilamento, não apenas de uma família, porque em ambos os romances a família não passa de símbolo transparente: o que agoniza é de fato uma época, uma forma de civilização. Carlos de Melo será um doente, mas é principalmente um homem que não tem nada a fazer neste mundo, um homem que perdeu o contacto com a pulsação da vida. Não pode ser como o velho José Paulino, orgulhoso dos nove engenhos que cobrem o vale do Paraíba, vivendo com simplicidade quase monástica, mas exigindo aos trabalhadores um esforço extenuante a troco de vil salário. Se tudo isto repugna a Carlos, ele não é contudo homem para tentar seja o que for; sonha, enoja-se de si próprio, mas não consegue ser um homem. É um ramo apodrecido na árvore, um ramo condenado a cair de podre. (MONTEIRO, 1964:173) Mais adiante, complementa o crítico português: “Da primeira à última página, Banguê é a análise duma decadência. A falência de Carlos é dupla: falência da sua vida pessoal, falência da sua função social” (1964:173). E aqui chegamos a um ponto essencial para os propósitos desta discussão. Como bem afirma Adolfo Casais Monteiro, a falência da figura central de Banguê se dá nos planos pessoal e social. Mas quais seriam as razões preponderantes que, segundo a ótica de Carlos de Melo, desencadearam mudanças tão acentuadas? Que explicações, com base em seu ponto de vista, procedem de fato para semelhante situação? Um bom caminho é acompanhar, a partir da elaboração do relato, as cogitações de Carlos de Melo, buscando compreendê-las quanto à procedência que porventura possam apresentar. Nesse sentido, veremos que sua perspectiva costuma oscilar entre raciocínios ora mais ora menos plausíveis quanto ao entendimento acurado da condição que passou a vivenciar. Parte substancial da narrativa volta-se para as especulações acerca da derrocada meio surpreendente que ele vai conhecer ao tornar-se governante daquele mundo. Os limites de sua visão funcionam, pois, como a própria caracterização de sua figura literária. Note-se que com a morte do avô, e depois de enfrentar com êxito conflitos no interior da família por causa do espólio, Carlos de Melo será o seu sucessor mais 238 importante ao receber como herança o engenho principal, essencialmente dentro da sua plenitude produtiva. Noutros termos, o narrador-personagem encontra terreno mais do que aplainado para prosseguir nas conquistas do avô e fazê-las avançar. As condições propícias encontram-se assim sintetizadas: Tinha ganho o Santa Rosa. Era meu, livre de tudo. Todo aquele mundo de terras me pertencia de porteira fechada. Gado muito para o serviço, mais de cem bois de carro, burrama grande, safra no campo para colher e um povo bom para mandar nele. Era senhor de engenho. (REGO, 2002:177) No entanto, diferentemente de qualquer expectativa favorável quanto ao futuro, aquela tamanha vantagem inicial não serviu para garantir o bom desempenho do novo senhor de engenho, que, logo na página seguinte, de forma repentina, anuncia o fracasso de sua empreitada à frente dos negócios. É, com efeito, algo inesperado inclusive para os leitores, que recebem tal notícia quase tão desconcertados quanto o próprio Carlos de Melo: Há três anos que o Santa Rosa safrejava com o seu novo dono. E estava quase de fogo morto. O que fizera para isto? Não sabia explicar o meu fracasso. Botava para cima do feitor, o feitor Nicolau. Culpava o preço do açúcar, o alambique furado e os tubos velhos. Um engenho daquele com safra de quinhentos pães! E as canas no mato, e uma carta da Casa Vergara falando na conta que estava crescendo. O dinheiro da Caixa Econômica enterrara ali. Não joguei um tostão, não me meti com raparigas e no fim de três anos não sabia de um vintém e tinha criado novas obrigações. (REGO, 2002: 178-179) (...) A verdade dura, porém, era esta: o Santa Rosa qualquer dia faria parelha com o Santa Fé do seu Lula. Havia quase mistério nestas decadências. Tudo era para que eu fosse para a frente. Terra boa, mocidade e dinheiro no bolso. E terra para tudo. Se gastasse em farras, passando bem, botando raparigas na cama, se explicava. Em que diabo ia embora o meu dinheiro? Procurava encontrar uma saída para essas divagações. Fazia conta a lápis. Gastara tanto na planta tal, recebera tanto de açúcar vendido, em apontamentos, para a moagem se tinham ido tantos contos de réis. E no fim faltava dinheiro. Como o velho Zé Paulino conseguira pagar tudo e juntar cobres para comprar terras e viver de gaveta cheia? Nunca fora ele à cidade tomar um tostão a correspondentes. E gastava à larga, havia fartura na sua despensa. Fossem ao Santa Rosa e procurassem ver a minha vida restrita, ascética quase. Não pagava mulheres, não vivia com a casa cheia de visitas, não gastava com roupas. As negras engomavam de graça, cozinhavam, só pelo prato de feijão. E não economizava. Só ia para trás. Para trás sempre. (REGO, 2002:181-182) 239 Vemos que a sua explicação volta-se a princípio para uma incapacidade administrativa de cunho pessoal, pois não consegue repetir a atuação habitualmente bem sucedida do avô nas tarefas exigidas pelo engenho. As comparações entre o antigo e o atual administrador são aludidas para evidenciar a notória supremacia do primeiro em relação ao segundo, a despeito das atitudes devotadas de ambos. Também busca justificativas em planos infensos à visão clara dos acontecimentos: “Havia quase mistério nestas decadências.” Ora, empurrar as razões do fracasso para uma dimensão um tanto nebulosa como essa é de pouca ajuda. Seja como for, seguimos a angústia do narrador-personagem atrás de elucidação para o quadro problemático, percebendo, contudo, a insuficiência de argumentos como os que são apresentados. Obviamente a questão pessoal não deve ser desprezada, como bem assinalou Adolfo Casais Monteiro; mas está claro que apenas por si mesma não pode explicar o estado atual em que tudo se encontra. Ao imprimir, porém, um sentido para suas reflexões com base no pano de fundo econômico, nos rumos que o país tomava – e mesmo aparentando não possuir visão de todo lúcida quanto ao andamento das coisas –, Carlos de Melo parece tocar no ponto básico da questão, deixando entrever as causas verdadeiramente importantes por trás das mudanças: A usina estava dentro do Santa Rosa. Outros engenhos já tinham caído: Santo Antônio, Boa Sorte, Bugari. As linhas de ferro da usina passavam pelas bagaceiras. Nas casas-grandes moravam trabalhadores, e os maquinismos arrancados para vender. As tachas do Ponte Nova serviam de bebedouro para o gado. A usina comia, um por um, os engenhos. O meu avô resistiu. Vieram-lhe propostas, dariam mundos e fundos para passarem os trilhos pelo Santa Rosa. Ele estava velho e queria morrer descansado. E esbarrou no Santa Rosa o gigante. (REGO, 2002:225) Aqui, sim, desponta uma compreensão bem mais aceitáveldo fenômeno, visto que apoiada não na perspectiva idiossincrática do narrador-personagem mas antes nas injunções do contexto histórico, no tipo de uma nova organização econômica e social que trazia alterações na fisionomia do Brasil. A usina vinha a representar, pois, a modernização dos meios de produção contra a qual pouco ou nada podia o regime ainda um tanto artesanal dos engenhos, salvo aqueles que sabiam ajustar-se aos interesses do “gigante”. Era este o caso do pequeno Santa Fé, que, de fogo morto à época de seu Lula de Holanda, ressurgira enérgico sob a condução de José Marreira, o trabalhador do eito que ascendeu ao status de proprietário por meio da brutal exploração imposta aos 240 antigos pares. A usina, por seu turno, levava a exploração ao paroxismo, acabando com qualquer atividade paralela que representasse algum benefício aos trabalhadores: “Era cana e só cana. A usina só precisava daquilo. Para que moradores com roçados, criando gado?” (REGO, 2002:251). O próprio Carlos de Melo sai impressionado de uma visita de negócios à usina: O usineiro me recebeu de braços abertos. (...) Indicou-me, uma por uma, as máquinas que lhe davam numa semana a safra inteira de muitos banguês. O bagaço parecia uma farinha, quando saía dali. No Santa Rosa, as abelhas ficavam pela bagaceira, aproveitando o mel que as minhas moendas não tinham força de espremer. O usineiro me dizia que nós perdíamos quarenta por cento, botando fora uma riqueza. (REGO, 2002:231-232) Mas quando se poderia esperar de sua parte um aprofundamento mais equilibrado na discussão de tal fenômeno, cujos desdobramentos talvez levassem à real compreensão do processo em curso, o que vemos é um retrocesso, porquanto voltam a imperar as explicações de caráter pessoal. É bem verdade que voltam mais ou menos mescladas àquelas razões consideradas de maior pertinência, com a usina no papel de algoz dos engenhos, como elemento novo, moderno, que sabia desbancar os antigos proprietários e esbulhar com mais intensidade a desprotegida mão-de-obra. Mas não é difícil perceber que o relevo recai fundamentalmente na fraqueza de ânimo que Carlos de Melo atribui a si mesmo: De noite, sozinho, na sala de jantar, com o candeeiro de gás e a mesa somente posta na cabeceira, lembrei-me das noites de chá dos velhos tempos, da lâmpada de álcool prateando tudo, a mesa cheia de gente, o meu avô contando histórias. E aquilo não era de época remota: era de ontem, quase. O melhor que eu fazia era vender aquele engenho e ganhar o mundo. Faltava-me força para uma obra séria, coragem para aguentar o inimigo pela frente. Em vez de se haver com o Marreira me botando tocaias, o meu medo teria de topar com a São Félix. Mil homens trabalhavam para ela, seiscentos sacos saíam das suas entranhas, por dia. De que serviriam as trancas das minhas portas, os rifles de Floriano e Pedro Calmo? Se tivesse um amigo para me dar coragem, uma mulher mesmo com quem dormisse de noite e encorajasse o homem... Se Maria Alice não tivesse fugido daquela maneira... Para que falar de tolices. Não era forte, porque nascera assim mesmo. (REGO, 2002:230-231) Resulta daí uma série de vicissitudes como essas, que vão tomando conta de sua disposição mental e por certo distanciando-o de um entendimento mais próximo da real circunstância que o cerca. Sem modificar o ritmo de percepção, esse tipo de 241 discurso prosseguirá até as últimas páginas do romance, mostrando seu narrador mergulhado num acentuado sentimento de desorientação. Vejamos uma última vez como isto aparece no enunciado da obra: (...) Por isto não saía de casa de noite, apesar das minhas vontades de ir conversar com as primas do Maravalha. Havia por lá moças da Paraíba. Recebera convite, mas me continha. Era mais seguro ficar mesmo na minha rede. Sair com cabra, seria feio. Desconfiariam da minha fraqueza. Preferi o meu quarto. E ficar no meu quarto era mesmo que botar uma porção de gente para falar de mim. Porque os meus pensamentos se aproveitavam para se expandir. Era para fora do estado que devia ir, bater atrás de uma colocação. Não. O que devia fazer era esperar. Ou então casar-me com a filha do coronel Fagundes. Mas onde estaria Baltasar? Maria Alice vinha também naqueles retiros. Era estranho. Esta mulher não saía das minhas cogitações. Tão de longe, tão fora de tudo o que era meu e sempre que me punha a sós, ela vinha. Fraqueza. Em tudo me revelava com esta deplorável fraqueza de caráter. Em tudo. No trato com os inferiores, com os iguais, com os mais fortes, com os homens e as mulheres. (REGO, 2002:256-257) Em decorrência, Carlos de Melo passa a situar-se sempre de maneira deslocada, com dificuldades de interação com seus familiares dos engenhos vizinhos e incapacidade mesmo de lidar seja com quem for, como está dito na citação. Hesitar entre o próprio quarto e algum lugar fora do estado da Paraíba mostra as opções de quem não consegue ocupar a posição natural que lhe foi concedida pela herança familiar. Noutros termos, encafuar-se no espaço mais recôndito, que é seu quarto, ou, de outro lado, espalhar-se para mundos distantes, que é a fuga da Paraíba, significa a impossibilidade de mover-se livre e naturalmente nos seus domínios territoriais. Isto inclui, por exemplo, todas as dependências da casa-grande, os caminhos por dentro de suas terras, as matas floridas que testemunharam o idílio com Maria Alice, os partidos de cana, o eito com seus trabalhadores, as águas do rio; enfim, tudo que lhe foi caro na sua existência de menino e, depois, senhor de engenho. Do ponto de vista puramente econômico, Carlos de Melo até que não termina mal, a despeito dos inúmeros problemas e da possibilidade real de sua propriedade ter ido à arrematação pública para pagamento de dívidas. Para surpresa dele – e nossa –, o engenho Santa Rosa acaba sendo disputado pela Usina São Félix e pela usina a ser fundada por membros de sua própria família, o que lhe garantiu, de uma hora para outra, fortuna nada desprezível com a sua venda. Mas o sentimento de derrota se impõe 242 porque tem de ir para longe do lugar onde cresceu, conheceu intimamente e que a seu modo amou. Sabia que o mundo dele chegava ao fim. REFERÊNCIAS ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião – 10 livros de poesia. 9. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. ANDRADE, Jorge. A moratória. Prefácio de Décio de Almeida Prado. 4. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1975. CANDIDO, Antonio. Um romancista da decadência. In Brigada Ligeira e outros escritos. São Paulo: Editora da UNESP, 1992. MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. MONTEIRO, Adolfo Casais. O romance (teoria e crítica). Rio de Janeiro: José Olympio, 1964. REGO, José Lins do. Banguê. 21. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002. _____. Doidinho. 25. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983. _____. Menino de engenho. 85. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. 243
Compartilhar