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SÉRGIO VIEIRA DE MELLO: LEGADO TEÓRICO E AÇÕES HUMANITÁRIAS "Estou firmemente convencido de que uma estratégia para a segurança pode e deve ser guiada pela defesa do império da lei e pelo respeito aos direitos humanos” Sérgio Vieira de Mello Rafael Heynemann Seabra* Luciana Diniz Durães Pereira* Margarita Ieong Cantalapiedra* RESUMO: Este artigo trata do legado teórico e das ações humanitárias de Sérgio Vieira de Mello, brasileiro funcionário da Organização das Nações Unidas (ONU), morto em atentado da rede Al Qaeda em Bagdá, em 2003. O pensamento de Sérgio Vieira de Mello a respeito das Relações Internacionais constitui-se como relevante contribuição ao campo de estudo da Paz e da Segurança Internacionais, em especial no que se refere ao legado Kantiano. Igualmente, ao papel da ONU e ao vínculo entre paz e a proteção dos Direitos Humanos. O legado de Vieira de Mello vai além da reflexão teórica, uma vez que a forma como este atuou nas Missões Humanitárias para as quais foi designado constitui relevante guia para diplomatas e estudiosos da temática de resolução de conflitos, em especial pela capacidade executiva de Vieira de Mello, flexibilidade, liderança e carisma utilizados a serviço da população, em especial dos mais vulneráveis, características estas que o tornaram reconhecido formador de consensos e solucionador de problemas1. *Rafael Heynemann Seabra, autor do presente artigo, é Bacharel em Economista pela UFRJ, Mestre em Relações Internacionais pela UFF e membro do GAPCon. 1 Gostaríamos de registrar nossos sinceros agradecimentos ao Professor Clóvis Brigagão, idealizador e criador do GAPCon, além de coordenador do projeto “Sérgio Vieira de Mello: Política e Ações Humanitárias” da FAPERJ, uma vez que, sem sua inspiração, provavelmente este artigo não existiria. *Luciana Diniz Durães Pereira, co-autora do presente artigo, é Bacharel em Direito e Licenciada em História, ambos pela UFMG; Especialista (Faculdades Milton Campos) e Mestre (PUC Minas) em Direito Internacional Público e membro do GAPCon. *Margarita Ieong Cantalapiedra, co-autora do presente artigo, é Bacharel em Relações Internacionais pela UCAM/RJ e membro do GAPCon. SUMMARY: This article discusses the theoretical legacy and the humanitarian actions of Sérgio Vieira de Mello, a Brazilian United Nations (UN) staff, killed in an Al Qaeda attack in Bagda, back in 2003. The thought of Sérgio Vieira de Mello about International Relations represents an important contribution to the field of Peace and Security studies, particularly with respect to the Kantian legacy, the role of the UN, and the link between Peace and the protection of Human Rights. The legacy of Vieira de Mello goes beyond his thoughts, specially because the way he served in Humanitarian Missions represents a relevant guide for diplomats and scholars in the field of conflict resolution. His executive capacity, flexibility, leadership and charisma, used to serve the people, particularly the most vulnerable, are characteristics which have made Vieira de Mello a recognized consensus builder and problem solver. 1. INTRODUÇÃO Em 19 de agosto de 2003, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, funcionário das Nações Unidas, foi vitima fatal, juntamente com outros 21 (vinte e um) colegas, de um atentado de autoria da rede terrorista Al-Qaeda contra a sede das Nações Unidas, em Bagdá, no Iraque. Mais do que demonstrar a crueldade indiscriminada de ações terroristas como esta, sua morte representou forte abalo para as Nações Unidas e para os defensores da Paz e dos Direitos Humanos, visto ser Viera de Mello, naquele momento, Alto Comissário da ONU para Direitos Humanos e enviado especial do ex-Secretário Geral, Kofi Annan, ao Iraque. Por isso, neste artigo, trataremos do legado teórico de Sérgio Vieira de Mello para as Relações Internacionais e para o Direito Internacional. Para tanto, iniciaremos o artigo com uma exposição, breve, porém completa, da biografia de Vieira de Mello. Abordaremos, ainda, sua forma de agir em campo nas inúmeras Missões Humanitárias das quais participou, as quais conferiram a este honrado homem amplo reconhecimento internacional. Por fim, avaliaremos algumas características específicas do trabalho de Sérgio que, a nosso ver, ainda são pouco reconhecidas em seu país natal. 2. BREVE BIOGRAFIA DE SÉRGIO VIEIRA DE MELLO Sérgio Vieira de Mello nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 15 de março de 1948. Filho de Arnaldo Vieira de Mello e de Gilda Vieira de Mello, desde pequeno demonstrou interesse pelas questões universais ligadas à experiência humana, a começar pela natural e diversificada habilidade lingüística que o levou a estudar no tradicional Liceu Franco-Brasileiro, no bairro de Laranjeiras, no Rio. Nota-se, neste aspecto, a clara influência de seu pai que, por ser diplomata de carreira, pôde proporcionar-lhe, desde muito cedo, contato com culturas diversas e, sobretudo, com o ambiente internacional e diplomático. De acordo com sua mãe, Gilda Vieira de Mello (2008), Sérgio participou dos movimentos de 1968 na França, enquanto cursava filosofia na Sorbonne. Na ocasião, foi vitima de violência por parte das forças policiais, o que quase o levou à morte. Na mesma época, publicou artigo no jornal francês combat e assinou como brasileiro. A ditadura militar o proibiu então de vir ao Brasil pelo prazo de quatro anos. Ainda conforme Gilda, a aposentadoria forçada de seu pai pela ditadura o levou a desistir de tornar-se um diplomata a serviço do Brasil, de modo que optou por ingressar nas Nações Unidas. Com apenas 21 anos, Sérgio conseguiu ser recebido pelo então Chefe do Departamento de Recursos Humanos do Palais des Nations, Sr. Jean Halperin. Impressionado com a desenvoltura e simpatia do candidato, Halperin resolveu contratá- lo, temporariamente, para o cargo de mensageiro de uma sessão do Conselho Econômico e Social (ECOSOC). Um tempo depois, ao surgir uma vaga para o cargo de editor bilíngüe no Secretariado do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), Sérgio foi efetivamente contratado. Desde então, e durante toda a sua vida, ocupou diferentes e importantes cargos na Organização, dedicando-se sempre à proteção da pessoa humana e à defesa dos direitos humanos. Em campo, entre 1971 e 1972, serviu na atual Bangladesh. Ainda nos anos 1970, participou como gerente de missão associado no Sudão, e em seguida, como representante de missão e representante assistente do ACNUR no Chipre. De 1975 a 1977, atuou como delegado substituto do ACNUR em Moçambique. Também pelo ACNUR, participou de missão no Peru. No início dos anos 1980, Sérgio foi conselheiro político sênior da Força Interina das Nações Unidas (UNIFIL). (Power Samantha, 2008, 9-18) Em final dos anos 1980, consolida sua especial atenção à questão dos refugiados e dirige o escritório do ACNUR na Ásia além de presidir o comitê geral da Conferência Internacional sobre os refugiados Indochineses. Já nos anos 1990, conduziu a complexa missão de repatriamento de cerca de 360000 refugiados cambojanos, na qual sua ousadia e determinação de agir na direção que julgava correta foram cruciais para o êxito. De 1993 a 1994 participou da Força de Proteção da Onu na Bósnia. Em 1996, foi nomeado coordenador humanitário da região dos Grandes Lagos da Africa. Ao final da década exerceu a função de representante especial interino do secretário geral em Kosovo. (Power Samantha, 2008, 9-18) De 1999 a 2002, Vieira de Mello participaria, no Timor Leste, pela Administração Transitóriada ONU no Timor Leste (UNTAET), de uma de suas mais importantes missões, tendo sido ator-chave na consolidação da independência do país e construção do estado timorense. Em 2002, como reconhecimento pelos seus mais de trinta anos de dedicação à causa dos Direitos Humanos, Sérgio Vieira de Mello foi nomeado, pelo então Secretário Geral Kofi Annan, Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos. Á frente do Alto Comissariado, posto que ocupou por quase oito meses, iniciou batalha pelo fortalecimento do órgão, criticando e visando modificar, fundamentalmente, dois aspectos: a excessiva politização da agenda de direitos humanos e as situações de double standards da antiga Comissão de Direitos Humanos, hoje atual Conselho de Direitos Humanos. Todavia, com a eclosão da Guerra di Iraque após a invasão pelos Estados Unidos, Kofi Annan, em maio de 2003, pediu a Vieira de Mello que aceitasse ser, pelo período de quatro meses, o representante especial da ONU em Bagdá. O brasileiro foi vítima fatal, junto com outros vinte e um colegas da ONU, de um atentado terrorista da Al-Qaeda, em Bagdá, na tarde do dia 19 de agosto de 2003. Seu corpo foi velado no Brasil e enterrado em Genebra, no Cimetière des Rois. Diversas homenagens póstumas foram a ele prestadas sendo duas, talvez, as mais especiais: seu busto foi colocado na frente do Palais Wilson, em Genebra, com a intenção de servir de memória e exemplo a todos os funcionários da ONU; seu nome e dia de morte foram historicamente lembrados e fixados, através de resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 11 de dezembro de 2008, como o Dia Mundial Humanitário. A importância de Sérgio Vieira de Mello é tamanha, e ainda tão evidente nos Headquarters da Organização – seja em Genebra, Nova Iorque, Viena ou qualquer outro Officer da ONU ao redor do globo – que, muitas vezes, ele é citado nos discursos de Ministros, Embaixadores, Diplomatas e Chefes de Estado. O ex - presidente Luís Inácio Lula da Silva, por exemplo, em seu último discurso na XI sessão ordinária do Conselho de Direitos Humanos da ONU, no dia quinze de junho de 2009, expressamente relembrou que “(...) a figura de Sérgio Vieira de Mello será sempre associada aos valores mais altos da Organização”. 3. ASPECTOS TEÓRICOS DO PENSAMENTO DE SÉRGIO VIEIRA DE MELLO 3.1. Sérgio Vieira de Mello e o Legado Kantiano As questões que envolvem guerra e paz são, ainda hoje, realidade da política internacional. A democracia e o Estado de Direito enfrentam dificuldades em inúmeros países enquanto a miséria e os abusos contra os direitos humanos perpetuam-se em diferentes graus, em todas as sociedades e entre elas. O Direito Internacional permanece frágil e dependente do compromisso das grandes potências, que elevam os gastos militares e desmoralizam seu próprio discurso de não proliferação nuclear. Essas são constatações que poderiam levar ao ceticismo ou ao conformismo. Sérgio Vieira de Mello, por suas ações e pensamento, representa um dos grandes contraponto a essa perspectiva. Dedicou sua carreira e perdeu a vida lutando pela paz, conjugou, como poucos, notável formação intelectual com a capacidade executiva em suas Missões. A dura realidade que presenciou o impediu de tornar-se um ingênuo, o que teria afetado suas possibilidades de alcançar os resultados que almejava. Buscou, contudo, incessantemente a paz, sem nunca perder a consciência do frágil equilíbrio das relações internacionais e, ainda assim, atuou para modificar sua natureza e encontrar caminhos para assegurar a proteção dos mais vulneráveis. O desafio teórico ao qual se propôs foi imenso: trata-se, ainda, da questão central formulada pela Escola Realista que caracterizou a guerra como componente intrínseco à natureza das relações internacionais, marcada, fundamentalmente, pela disputa de poder entre os Estados Nacionais. Cabe abordarmos, brevemente, os pressupostos dessa Escola, em particular sua crença em uma ordem internacional fundamentalmente hobbesiana. Trata-se, aqui, da chamada analogia doméstica: Hobbes formula a concepção de que, em estado de natureza, os indivíduos vivem em luta permanente, uma guerra de todos contra todos, na qual “o homem é o lobo do homem”. Ainda, conforme o filósofo, os homens abriram mão de seu poder em favor de um terceiro, o Leviatã, que com isso pacificou a sociedade. O Leviatã seria o Estado, detentor do monopólio legítimo da violência. A analogia doméstica afirma que não há, no plano internacional, entidade equivalente e os Estados permanecem em estado de natureza, caracterizado pela busca incessante por segurança e liberdade, de modo a tornarem-se uma ameaça aos demais. Para os Realistas, afirma Holsti (2002, 15) a estrutura do sistema internacional é elemento necessário para compreender o comportamento dos Estados. Embora não constitua escola homogênea, o Realismo possui alguns princípios básicos, comuns aos seus pensadores. O autor destaca como ponto central o enfoque nas questões de guerra e paz e a percepção da estrutura do sistema internacional como elemento necessário para compreender as causas da guerra e o comportamento dos Estados. Assinala, ainda, que, para os Realistas Clássicos, o conflito seria um estado natural e não fruto de circunstâncias históricas, sistemas políticos ou educação. O conflito é, portanto, inerente ao sistema. Em tais condições são claras as limitações de uma ordem pautada no direito. Neste sentido, o Direito Internacional apenas serviria para, minimamente, normatizar as relações entre os Estado que, após a assinatura dos conhecidos Tratados de Paz de Westfália, eram reconhecidos enquanto sujeitos de Direito Internacional. Neste contexto, sob a lógica da igualdade formal soberana, na qual todos os Estados que compunham a sociedade internacional, ao se relacionarem jurídica ou diplomaticamente com seus pares, eram considerados igualmente dotados de soberania e, portanto, a estes nada poderia ser imposto que não na medida exata de sua respectiva vontade, interesse e prévia anuência, o Direito Internacional caracterizava-se como sendo um sistema jurídico voluntarista, de coordenação horizontal dos anseios estatais e baseado, fundamentalmente, no consentimento. Neste sentido, as palavras proferidas, em 1998, pelo Ex-Secretário Geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), Javier Solana, sobre o contexto westfaliano são esclarecedoras: Humanidade e democracia foram dois princípios essencialmente irrelevantes à ordem original de Westfália (...) o sistema de Westfália tinha seus limites. Primeiramente, porque o princípio da soberania do qual o sistema dependia também produzia as bases para a rivalidade, não uma comunidade de Estados; exclusão, não integração (Tradução nossa).2 A questão que Vieira de Mello enfrentou, dessa forma, é a da expansão do império da lei – o Direito – para o plano internacional, de modo a fundamentar a segurança dos Estados Nacionais em valores e regras, e não mais no poder e nos princípios do Direito Natural. Para isso, era necessário superar a lógica Realista por outra formulação, de forte inspiração kantiana, capaz de se sobrepor aos interesses nacionais mais estreitos em favor de elementos formadores de uma solidariedade universal. Tal como Kant, Sérgio jamais aceitou a guerra como algo natural, mas sim como manifestação do irracional a ser superada, portanto, pela razão (Vieira de Mello, 2004). O pensamento político de Kant possui elevada importância teórica para as Relações Internacionais. Em A Paz Perpétua e Outros Opúsculos Kant (2004) lança um manifesto político que repercute ainda hoje, mas quedeve ser compreendido em seu contexto. Um fator de grande influência nas idéias de Kant foi sua paixão pelos ideais da Revolução Francesa que, em um ambiente político favorável, o estimulou a publicar suas idéias sobre uma legislação internacional que seria condição para a paz duradoura. Cabe destacar que Kant viveu na Prússia e que o atraso constitucional de seu país e a constante agressão deste contra seus vizinhos eram motivos de vergonha. Além disso, tais características fizeram com que ele identificasse a relação entre regime totalitário e política externa como agressiva. Nesse sentido, concluiu que os direitos e deveres universalmente reconhecidos, dos Estados em relação aos cidadãos, necessitam do reconhecimento prévio de certos direitos e deveres entre os Estados e os cidadãos entre si. Essa teoria traria novo significado à idéia de norma internacional. Outro ponto fundamental das idéias de Kant, que marcaria Vieira de Mello, reside em sua visão e crença no poder da razão humana, concepção que o leva a crer que a humanidade aprenderia com a História e poderia, desta forma, superar o desafio da 2 In: http://www.nato.int/docu/speech/1998/index.html Acesso em: 18 de junho de 2011. guerra. Acreditava, assim, que a Revolução Francesa e seus valores seriam reconhecidos por todos os homens de boa vontade. Sendo um europeu do século XVIII, a visão de Kant sobre a política internacional consistia em períodos alternados de guerra e paz: a paz como interrupção da guerra. Apesar disso, muitos filósofos europeus acreditavam que havia uma civilização européia que os unia, e que o princípio do equilíbrio de poder garantiria uma limitação à guerra. A guerra seria, então, um mal necessário, visto que era o mecanismo pelo qual o equilíbrio de poder era alcançado. Para Kant, a paz deveria ser alcançada a longo prazo, sempre com o reconhecimento da necessidade de se alcançar a paz perpétua para se obter progressos reais nesse sentido. A ordem internacional não seria alcançada por meio da coesão e consistiria na obtenção da paz, só podendo ser iniciada quando certos governos abdicassem da guerra como política, e através dos benefícios obtidos com a paz, incentivariam a adesão de mais Estados. A não-interferência em assuntos internos dos Estados seria um pré-requisito. Kant não era um pacifista, era um legalista. No entanto, via na guerra a forma extremada do mal geral, fruto da natureza egoísta humana, que deveria ser dominada pelas leis. Apesar de sua oposição inflexível à guerra, via a guerra de defesa como justa, e a de agressão como ilegal. Desta forma, percebia a necessidade de substituir a condição internacional de guerra crônica pela legalização das relações internacionais. A ordem internacional de inspiração kantiana almejada por Vieira de Mello requeria, ainda, enfoque que transcendesse as fronteiras que dividem os seres humanos. Desta forma, buscou identidade universal que conviveria com as identidades nacionais. Esse aspecto é importante, pois, em momento algum propôs a formação de um Estado Mundial. Estava certo, entretanto, da existência da solidariedade universal. Trata-se, ainda, de visão distinta da História: as Histórias particulares, de determinado país ou povo, estão sujeitas a perspectivas guiadas pelo auto-interesse; desvios que permitem sua contestação e impedem que traduzam toda a verdade. A única História coerente com a universalidade e a verdade das leis da razão é a História Cosmopolita, perspectiva kantiana pela qual Vieira de Mello sustentou a idéia do Direito Cosmopolítico, a etapa final do processo de expansão do Direito do plano nacional à toda a humanidade. Para Sérgio, a abordagem cosmopolita evita, ou modera, os excessos particularistas que podem conduzir ao nacionalismo extremado e à guerra (Vieira de Mello, 2004). 3.2. Perspectiva Histórica em Kant – Razão e Destino Humano Além da abordagem cosmopolita, Vieira de Mello acreditava no avanço da História na direção da racionalidade e em que devemos atuar nesse sentido. Na época de Kant, a Revolução Francesa demonstrou a possibilidade de progresso, tendo representado a convergência entre a História filosófica e a História real ao estabelecer o reinado do Direito. Possíveis retrocessos não anulariam sua relevância, pois em toda a parte estaria cravada na memória, para oportunidades futuras. Há, aqui, o aprendizado histórico proposto por Kant. Sérgio depreende da proposta de Kant lento e tortuoso caminhar em direção à paz, no qual a humanidade pouco a pouco aderiria a normas fundamentais. Trata-se de processo doloroso, mas há otimismo moderado, cauteloso, guiado pela noção de que “a razão de ser do homem é ser razão” e de que a História haveria de destacar a finalidade lógica da espécie: a racionalidade universal. Para Vieira de Mello essa meta nunca seria plenamente alcançada, permanecendo no horizonte de modo a induzir o movimento da humanidade que, apesar dos percalços, nunca retrocede inteiramente. Assim, configura o conceito filosófico de Kant da sociedade supranacional e solidária como categoria ao mesmo tempo dinâmica e de idéia civilizadora. A História será sempre imperfeita e a humanidade deve avançar, no corpo institucional, jurídico e ético, sabendo que a tentativa de fazer a História acompanhar o avanço no campo das idéias será falha, porém necessária. Em suas palavras, eis o papel da utopia: Devemos agir como se a coisa, que talvez não seja, fosse. O futuro, para Kant, é para ser inventado e afastar-se deste desígnio equivaleria a renunciar a razão de ser do homem, que consiste em ser razão (2004, 60). Vieira de Mello refuta a lógica dialética de Hegel, filósofo com o qual mantém permanente diálogo e contestação: da guerra, do irracional e do mal, não resultam benefícios futuros, ou síntese construtiva. Trata-se de desvio do caminho da humanidade, de perversão a ser dominada pela razão. O brasileiro, por sua experiência em campo, afirmava ter presenciado mais desmentidos do que comprovações do balanço otimista de Hegel. Vemos que, por seu humanismo e compaixão pelas vitimas da guerra, Sérgio não poderia admitir teoria complacente com esta realidade. 3.3. Do Direito Nacional ao Cosmopolítico – O Papel do Estado Moderno O caminhar histórico que Vieira de Mello propõe e implica em, com base em Kant, na expansão do Império da Lei do plano interno ao internacional, alcançando, finalmente, o plano cosmopolita. Se retomarmos os Realistas, teremos que a formação do Estado Nacional, necessária para instituir a Constituição Civil, implica no deslocamento do dilema hobbesiano para o ambiente externo, de onde resulta a guerra como fenômeno inevitável. Como Vieira de Mello aponta, a visão kantiana é oposta e compreende que uma Constituição Civil perfeita, ou seja, nacional, depende, necessariamente, do estabelecimento de uma legislação que regule as relações exteriores, uma vez que não há condições para o pleno desenvolvimento de uma sociedade civil em um ambiente marcado pela hostilidade, insegurança e incerteza. Logo, é preciso seguir avançando na superação da anarquia em todos os níveis. O acordo primário de formação das sociedades nacionais, inicialmente “patologicamente extorquido” da humanidade, deve evoluir para livre adesão ao direito e à razão, estando a liberdade ligada ao poder irresistível das leis exteriores justas. Os direitos nacional e internacional constituem-se, assim, em etapas desse longo caminhar. A superação do estado natural requer a formação de uma sólida sociedade civil juridicamente organizadaque Kant distribui em três níveis: o Direito Civil dos homens que formam um povo; o Direito das Gentes, que rege as relações dos Estados entre si; e o Direito Cosmopolítico, que diz respeito aos homens e Estados, como cidadãos de um Estado universal da humanidade. No primeiro nível, o do Direito Civil, Kant estabelece que o Estado deve ser Republicano, pois esta forma de governo concilia a liberdade à igualdade e autoridade de cada cidadão. Contudo, Vieira de Mello ressalva que a forma republicana não equivale, necessariamente, à democracia como compreendemos hoje, mas a um governo representativo do povo que permite a este proteger sua própria autonomia e, portanto, se baseia numa nítida separação entre os poderes executivo e legislativo. A preocupação central de Kant está em determinar que a soberania seja do povo de modo a impedir que um regime autocrático vá à guerra sem preocupar-se com seus cidadãos. Quanto ao Direito das Gentes, pode-se considerar que os Estados são comparáveis aos indivíduos, na medida em que representam seus povos, de modo que as relações jurídicas que existem na esfera civil devem ter um paralelo, adaptado, nas regras que ordenam as relações entre os Estados. Vieira de Mello pondera que não se trata de renuncia dos Estados à soberania em favor de um Estado federativo supranacional. Kant defendeu uma convenção mútua entre os povos em favor de uma aliança para a paz, que ao contrário de um tratado de paz, se propõe a eliminar, para sempre, todas as guerras. Neste sentido, o próprio modelo federal da Europa, segundo Vieira de Mello, constitui parte desta proposta. Assim, Kant define esse grande corpo cosmopolítico futuro como o cenário de ações e reações equilibradas, governadas pelos princípios da segurança coletiva e pela manutenção da sociedade interestatal. Para Vieira de Mello (2004), o filósofo é o inspirador daqueles que redigiram a Carta das Nações Unidas, pois muitos dos princípios que inspiram a Organização podem ser identificados nas leis proibitivas que estipulou no âmbito do Direito das Gentes. Kant estabeleceu, nesta seara, que nenhum tratado de paz deve conter um pretexto para uma guerra futura, ou seja: Todo e qualquer tratado ou acordo que não leva em consideração o estabelecimento ou restabelecimento da confiança entre povos e Estados e que, na sua forma política, militar, geográfica ou sociocultural, institui ou mantém certo grau de humilhação ou negação de direito, será, sem dúvida alguma, fonte de novos desentendimentos e conflitos. (2004, 47) Propôs, ainda, que nenhum Estado, grande ou pequeno, pode ser objeto de aquisição por outro Estado, sendo ilegal a utilização da força para impor a vontade sobre o outro. A dissolução dos exércitos permanentes, neste sentido, seria medida adotada para diminuir a desconfiança mútua e evitar a competição que faz com que os Estados busquem superar uns aos outros em número de tropas e em armamentos. A manutenção deste contingente elevado acaba se tornando mais custosa do que uma guerra curta, representando, portanto, um estímulo à agressão. Outra norma formulada por Kant estabelecia que os Estados não deveriam criar dívidas para seus conflitos exteriores, o que Vieira de Mello relaciona ao conceito contemporâneo de reconversão da indústria militar para a finalidade do desenvolvimento econômico e social. Além disso, no que freqüentemente é denominado como o princípio da não intervenção em assuntos internos, fundamental para o Direito Internacional, Kant afirma que nenhum Estado deve imiscuir-se pela força na constituição e governo de outro Estado. Sobre o Direito da Guerra, Kant entende que, quando esta é inevitável, nenhum Estado deve recorrer a métodos que impossibilitariam a volta da paz e da confiança recíproca, ou seja, não deve haver espaço para métodos extremos, tais como a exterminação ou a guerra punitiva. O terceiro patamar do Direito, o Cosmopolítico, deve limitar-se à hospitalidade universal que se refere à liberdade de ir e vir e à equidade de tratamento para todos os membros do gênero humano. A limitação se dá pela impossibilidade de se criar a civitas gentium. Esta permanece como um ideal da razão, que não é, entretanto, realizável. O Direito Cosmopolítico é um fio condutor e um fim último. Assim, Vieira de Mello sustenta que da sociedade internacional proposta por Kant, decorre uma nova teoria sobre o Estado cuja gênese se daria em três estágios. O primeiro corresponde à anarquia interna. O segundo seria o Estado hegeliano, que goza de ordem doméstica rigorosa, zela pelo respeito à soberania, e, como tal, propenso ao relacionamento conflituoso com outros Estados. O terceiro é o Estado pós-moderno, democrático e que conta com autonomia interna, mas que aceitaria uma gradativa devolução de soberania em prol do paradigma superior de associação supranacional. 3.4. Sérgio Vieira de Mello e o Debate sobre o “Fim da História” O legado kantiano nas relações internacionais diz respeito ao papel da democracia, das Organizações Internacionais e da lei internacional para um mundo pacífico. A noção de que valores devem ter papel preponderante nas relações internacionais, oferece, contudo, margem para que potências os utilizem de forma deturpada e em função de seus únicos e exclusivos interesses. Devemos refletir, brevemente, sobre o papel das idéias de Kant na política externa estadunidense. Cabe a ressalva de que o pensamento de Kant não é propriamente formador das linhas de atuação externa dos EUA. O filósofo teve suas idéias políticas destacadas pelos pensadores da política norte-americana, tendo em vista o papel que atribui à República e às instituições na política internacional, idéias essas que foram ao encontro do papel que os EUA se atribuem no mundo. A questão da promoção da democracia como parte da missão dos EUA, bem como a criação de instituições internacionais que, em certa medida, reproduziriam os valores democráticos estadunidenses, envolve grande controvérsia. De fato, os EUA atuaram para consolidar as Organizações Internacionais enquanto relevantes atores da sociedade internacional – inclusive na qualidade de sujeito de direito internacional, em especial a ONU – ao mesmo tempo em que asseguraram a democracia na Europa ocidental e no Japão. Por outro lado, coube à periferia do sistema – incluindo a América Latina – o patrocínio a ditaduras militares voltadas para a contenção do Socialismo/Comunismo. De forma similar, os EUA se permitem, com freqüência, atuar ao largo das normas internacionais tendo em vista seu interesse nacional. Em outros momentos, acrescentam a Democracia ao interesse nacional, que adquire, assim, perigosos contornos de cruzada. Não é objetivo deste artigo debater, de forma aprofundada, as vertentes da política externa estadunidense, mas sim enfatizar os perigos de uma apropriação indevida do legado Kantiano pelos EUA. Sérgio Vieira de Mello se ateve a essa questão ao questionar, de forma contundente, a hipótese de “Fim da História” decretada por Francis Fukuyama em artigo de mesmo nome, em 1989, ampliada, posteriormente, em 1992, no livro “O Fim da História e o Último Homem”. Fukuyama sustenta a tese de que a democracia liberal teria provado ser a única forma de governo humano verdadeiramente legítima e, como tal, com capacidade de universalizar-se. Formulou essa hipótese em momento histórico particular, marcado pelo fim da Guerra Fria e de um poder estadunidense sem paralelo. Para Vieira de Mello essa linha de pensamento representava “um misto de otimismo ingênuo e arrogância do mais forte” (2004, 35). “Uma humanidade virtuosa seriaestática, propriamente anti-histórica” (2004, 43). Era preciso estar consciente de que a História não havia terminado, sendo necessário dar-lhe direção. A direção, vale ressaltar, não deveria dar-se pelas mãos de uma superpotência dotada de “valores superiores” e, por isso, apta a atuar unilateralmente para difundi-los. Vieira de Mello não relativiza o valor da democracia e crê em seu valor universal, mas reserva à ONU o papel preponderante nesse caminhar histórico. 3.5 A Organização das Nações Unidas na Transição do Real ao Racional e a Questão dos Direitos Humanos A vertente kantiana, brilhantemente interpretada por Vieira de Mello, representa um caminho para a superação da lógica Realista. Uma das armadilhas, como vimos, consiste na apropriação deturpada desta linha de pensamento, tendo em vista que fatores ideológicos e uma suposta “missão civilizatória” foram, freqüentemente, apropriadas pelos Estados Nacionais em termos de seus interesses. Ciente desta armadilha, Vieira de Mello defendeu que a ONU era o único órgão de finalidade universal que, por sua independência e imparcialidade, seria capaz de transcender o imediato e particular interesse dos Estados e demais Organizações Internacionais (Vieira de Mello, 2004b). Estas características conferem à ONU ascendência moral no cenário internacional. Para o brasileiro, esta é o arquétipo da sociedade internacional e seus agentes, especialmente o Secretariado e o Conselho de Segurança, que devem atuar como aceleradores da transição do racional ao real e, também, na problemática conciliação entre ética e política. A negação do valor desta estrutura de racionalidade política e moral seria, em sua visão, um divórcio deliberado entre o racional e o real. Em sua conceituação da ONU, Vieira de Mello volta a dialogar com Hegel, mais precisamente sobre o conceito de “Espírito do Mundo” do filósofo que se explicitaria na dinâmica do desenvolvimento da história. Em suas palavras, este: (...) explica, justifica, integra, absorve, ultrapassa e transforma as manifestações do mal absoluto. Cada um desses verbos é indemonstrável e inaceitável. Além disso, o Espírito do mundo é um conceito totalizante e totalitário, felizmente não verificável. (Vieira de Mello, 2004b, 84) É assim que sua concepção do papel da ONU será formulada em contraposição ao “Espírito do Mundo” de Hegel. Diante da impossibilidade de aceitar em qualquer hipótese os comportamentos infra-humanos ou desumanos, Vieira de Mello a define como a “Consciência do Mundo” a instituição privilegiada de expressão da consciência pública mundial. Através desta concepção, a ONU manteria um estado de permanente tensão com a realidade que se propõe a transformar. Cabe a esta Organização, portanto, nas ocasiões em que poderiam entrar em choque os princípios da humanidade, empregar a força para prevenir o mal, ou, se tarde de mais, impedir que se chegue à degradação extrema. O elemento primordial da “Consciência do Mundo” deve ser a proteção dos Direitos Humanos, relacionados a mais frágil das esferas do Direito, o Cosmopolítico. Vieira de Mello aponta que, por sua indivisibilidade e universalidade, são os conceitos mais próximos que temos para alicerçar um mundo civilizado. Isto porquê, através da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a ONU estabeleceu que: A dignidade inerente e os direitos iguais inalienáveis de todos os membros da família humana são o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. Liberdade do medo e da miséria era nossa aspiração comum e concordamos que "nós, os povos" estaríamos determinados a poupar as gerações futuras do flagelo da guerra. (Vieira de Mello, 2004c, 152) Com isso, nos aproximamos de uma síntese da teoria de Vieira de Mello a respeito da vocação das relações internacionais e, sobretudo, da própria ONU. A proteção universal dos direitos humanos é apresentada como o mais elevado grau que a razão pode imprimir na História humana, tendo a ONU como o seu principal veículo. Através desta meta, o Império da Lei avança em todos os planos do Direito descritos em Kant. Sérgio define, assim, a relação fundamental entre segurança e direitos humanos. Se a perspectiva teórica de Sérgio Vieira de Mello inspira pela forma como atribui aos direitos humanos papel central para se alcançar a paz, sua atuação em campo chama atenção pelos êxitos obtidos e compromisso assegurados com as populações locais que atendeu, em coerência com seu ideário teórico. A seguir, abordamos momentos definidores da carreira humanitária de Sérgio Vieira de Mello. 4. SÉRGIO VIEIRA DE MELLO – ENSINAMENTOS PARA A AÇÃO DIPLOMÁTICA EM CAMPO 4.1. Moçambique e Camboja Via de regra, as pessoas que não conhecem o continente africano têm uma atitude bastante cínica em relação à África, ao futuro e às chances que a África tem de superar seus muitos problemas. Apesar disso, Viera de Mello encontrava no continente uma tendência democrática muito forte (Vieira de Mello, 2008). A África é, certamente, o continente que mais necessita da ONU e da comunidade internacional para superar suas divisões e encontrar o caminho do desenvolvimento. A descolonização foi imprescindível, mas não suficiente para as nações africanas. As palavras de Sérgio Vieira de Mello, acima transcritas, refletem a visão de um brasileiro que enxergava a África para além das questões humanitárias em que estava empenhado. Em Moçambique, Sérgio demonstrou algumas das virtudes pelas quais seria reconhecido em todos os locais nos quais atuou. Sérgio vivenciou a independência de Moçambique, em 1975, e os sentimentos que esse momento suscitou em seu povo. O povo de Moçambique, e suas figuras proeminentes, destacaram a forma pela qual o brasileiro tinha contato direto e não-hierárquico com as pessoas, o que lhes transmitia grande afeto e confiança. Sérgio possuía a capacidade de se lembrar de todos, individualmente, o que demonstrava sua forma extremamente humana de lidar com as difíceis questões que lhe cabiam. Esse modo de agir fazia com que as populações locais o vissem não apenas como uma autoridade burocrática estrangeira, mas também como um amigo em quem podiam confiar e, até mesmo, respeitar suas eventuais críticas (Duarte, 2008). Vale destacar, igualmente, que a confiança em Sérgio não era desmerecida ou fruto apenas de seu carisma, pois o brasileiro estava disposto a tudo e a fazer qualquer coisa quando acreditava que determinada ação seria favorável aos interesses da população, em especial dos mais fracos e vulneráveis. Após a independência de Moçambique, Vieira de Mello foi encarregado de repatriar os refugiados, atividade que se tornaria uma de suas especialidades na ONU. Infelizmente após a independência, Moçambique passaria ainda por uma guerra civil, o que levaria Sérgio a retornar ao país, em 1996, para um segundo repatriamento de refugiados, o que realizava sob os auspícios do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). No início dos anos 1990, Sérgio atuou no Camboja, após a assinatura dos acordos de paz para a região, em 1991. O regime do Khmer Vermelho havia assassinado cerca de 2.000.000 (duas milhões) de pessoas, sendo que outras centenas de milhares deixaram o país, incluindo 360.000 (trezentos e sessenta mil) que ficaram em acampamentos na Tailândia. Novamente, o brasileiro mostrou sua forma humana ao lidar com o repatriamento dos refugiados. Estava disposto a fazer com que voltassem não apenas ao país, mas também ao vilarejo que desejassem. Era objetivo de Sérgio permitir, com isso, a plena reintegração local dos refugiados a suas respectivas terras deorigem, reunindo as famílias despedaçadas pelos deslocamentos forçados. Muitos refugiados ficaram perplexos quando lhes foi oferecida a possibilidade de escolha (Duarte, 2008). Tratava-se, também, de permitir que os refugiados desenvolvessem sua dimensão individual, e com, isso, exercessem sua dignidade. No episódio do retorno dos refugiados cambojanos outra das marca de Vieira de Mello se destacaria. Além de levar em conta os aspectos humanos envolvidos em seu trabalho, foi preciso grande ousadia e capacidade de negociação para que os refugiados que, assim optassem, pudessem retornar a salvo para os territórios dominados pelo Khmer Vermelho. Disposto a tudo quando em favor da população civil sofrida, Sérgio, acompanhado de alguns poucos funcionários da ONU, adentrou no território controlado pelo Khmer e negociou diretamente com suas lideranças, algo que nenhum funcionário da ONU jamais havia feito antes (Duarte, 2008). Sérgio usou de todo seu charme e carisma para alcançar o objetivo, mesmo quando seu interlocutor era o Khmer Vermelho. A mensagem era suave na forma, mas contundente em conteúdo. Nas palavras de Jahanshah Assadi, representante do ACNUR na fronteira da Tailândia, em 1992, Sérgio deixou claro ao Khmer que: Quando os refugiados voltarem, têm de decidir aonde querem ir, não vocês. E quando voltarem, queremos fazer o que precisamos, isto é, visitá-los, ver se estão bem”. Ele literalmente arrancou as garras que eles tinham sobre o povo havia quinze, dezesseis anos, e ele dizia: “não se metam”. (Vieira de Mello, 2008) Na ocasião do retorno dos refugiados, a ousadia de Vieira de Mello se manifestou, ainda, quando este tomou a inédita decisão de remunerar os refugiados para estimulá-los a retornar ao país. Sérgio tinha consciência de que os refugiados não estariam inteiramente seguros, de modo que sua decisão envolvia riscos. Mas era sua característica ir até o fim quando acreditava que estava no caminho certo. Como homem de campo, o brasileiro liderou pessoalmente o primeiro comboio de refugiados (Duarte, 2008). As virtudes de Sérgio Vieira de Mello ficaram claras e seu prestígio, na ONU, era crescente. Ele planejava especializar-se na questão dos refugiados, mas sua habilidade em campo e capacidade executiva fizeram com que fosse designado para o Timor Leste, naquela que seria sua missão mais abrangente. 4.2 Timor Leste – A Promoção da Estabilidade pela Construção do Estado Democrático de Direito Como Administrador Transitório do território do Timor Leste, Sérgio Viera de Mello detinha os poderes Executivo e Legislativo, assim como a administração da Justiça. Essas amplas atribuições eram imprescindíveis para o trabalho que tinha pela frente. O Timor estava completamente devastado pela guerra civil: a população carecia de serviços públicos básicos, não havia infra-estrutura operacional e o setor público estava praticamente abandonado, enfim, tudo estava por fazer. Para essa função era necessário alguém com grandes qualidades pessoais e profissionais, capaz de comandar a reconstrução do Estado timorense. Trinta anos de experiência na ONU certamente influenciaram na escolha do brasileiro que, entre os inúmeros elogios a ele conferidos, era conhecido como construtor de consensos (Corrêa &Mancini, 2004). Cabe ressaltar que Sérgio tinha consciência de que, para consolidar o Estado timorense, era preciso, antes de tudo, garantir a ordem e a segurança de Timor. Com grande habilidade diplomática e poder de persuasão, conseguiu, por exemplo, que navios de guerra estadunidenses permanecessem na costa durante toda a operação de manutenção da paz. Os EUA não estavam na Missão de Paz oficialmente, mas ele persuadiu o governo norte-americano a ter uma presença no mar, de modo a elevar a sensação de estabilidade. (Duarte,2008). Nota-se, assim, que Sérgio foi capaz de obter grandes conquistas humanitárias exatamente por não ignorar os imperativos da ordem e da segurança. Conforme destacou Dennis McNamara, Diretor dos Direitos Humanos no Camboja, em 1992, Sérgio soube usar as forças militares do país de forma contundente para assegurar a ordem, de modo que obteve um grau de segurança no Timor mais elevado do que no Camboja ou em Kosovo (McNamara,2008). As mulheres, tidas por Sérgio como “alicerces da paz”, receberam prioridade nacional. A sua participação plena na Administração de Transição do Timor Leste era fundamental para superar a desigualdade de tratamento que recebiam em relação aos homens (Corrêa &Mancini, 2004). Sérgio Vieira de Mello fez jus às expectativas. Na área da saúde, iniciou a construção de centros comunitários enquanto suprimentos médicos eram disponibilizados a todos os distritos; na educação, a Universidade de Timor Leste já funcionava plenamente, assim como um programa emergencial de reabilitação, e, em uma das questões que mais tomava a atenção do Administrador Transitório, a participação ativa da mulher no processo de transição, seja na formulação de leis ou formando batalhões da ETDF (Força Internacional para Timor Leste). Além disso, o sistema judicial caminhava para a efetividade, a taxa de criminalidade era baixa, milhares de refugiados retornavam e as instituições políticas de uma democracia independente tomavam forma, com a garantia da subordinação militar ao governo civil (Corrêa &Mancini, 2004). Alguns aspectos do Timor Leste, por sua vez, ofereciam condições favoráveis à Missão: a população, formada por menos de um milhão de habitantes; a área geográfica pequena a ser controlado; as mais de 20 línguas e dialetos não interferiram na coesão da população; e, tampouco, havia problemas de fundamentalismo religioso, além de o Timor possuir um ambiente político relativamente favorável. Havia, no entanto, detalhes que davam origem a criticas: o processo para o desenvolvimento e reconstrução muitas vezes era lento e, nem sempre, caminhava como o previsto. Deve-se atentar para as dificuldades de um Estado ainda muito precário. No setor da Justiça, por exemplo, quando a Missão se instalou em Timor, não havia infra-estrutura judicial, arquivos de casos, registros materiais locais e, tampouco, juízes nacionais, promotores ou defensores públicos (Corrêa &Mancini, 2004). Sérgio Viera de Mello era o homem no comando. Seu trabalho exigia muita habilidade e muito tato com o ser humano, além de destacar sua peculiar capacidade de combinar sólida formação intelectual com atuação pragmática e eficaz em campo. Nos dois anos e meio em que esteve em Timor, o brasileiro manteve a população timorense em primeiro lugar nas suas preocupações. Suas ações visavam sempre o bem comum. Mantinha o povo timorense em grande estima, sempre agradecendo o modo como fora recebido. Reconhecia, também, a força daquela gente que lutava lado a lado por cada pedaço de vida a ser recuperado. Sua sensibilidade ao sofrimento alheio era visível na tentativa de proporcionar ao povo boa qualidade de vida. Mas o Timor ainda teria que enfrentar os desafios de uma nação recém- construída, além dos deveres e obrigações de um Estado inserido no cenário internacional. A ONU estava ciente de que, mesmo quando o comando do governo passasse para o novo presidente, esta não poderia deixar de ampará-lo, e por isso, iria manter seu apoio financeiro, material e técnico aos timorenses. Para a Organização, o Timor era considerado um grande feito e motivo de orgulho, pois nada parecido tinha sido realizado antes. A necessidade do aprendizado, na prática, apenas aumentou o valor do êxito. Em grande parte isto se deu, pois, ao analisar a riqueza de um Estado, Sérgio Viera de Mello não enxergava apenas seus índiceseconômicos, mas sim como a sua respectiva população vivia. A população do Timor estava nas melhores mãos. O sentimento de Sérgio em relação ao povo de Timor, com o qual conviveu por anos, poderia se traduzir nas palavras que ele proferiu em discurso à Assembléia Constituinte de Timor Leste: A grandeza de uma nação está baseada nos ideais sob os quais ela é fundada, o caráter de seu povo, e sua visão do mundo. Considerando estes parâmetros, penso que o Timor Leste tem o potencial para tornar-se uma das grandes nações do mundo. (Vieira de Mello, 2004d, 128). No Timor Leste temos exemplo claro da forma de agir de Sérgio Vieira de Mello: fidelidade aos seus princípios morais e intelectuais, imenso carisma, compromisso e determinação em diminuir o sofrimento de um povo. Foram essas as características que permitiram a Sérgio Vieira de Mello realizar com êxito a imensa tarefa de construir um Estado. A habilidade de Vieira de Mello, em especial sua capacidade de obter acordos e gerar consensos em situações dramáticas, foram fatores determinantes para que Kofi Annan, então ex-Secretário Geral das Nações Unidas, o enviasse para sua última missão, no Iraque, após a invasão norte-americana. Por mais que a guerra fosse ilegítima, Vieira de Mello não se negaria a trabalhar para amenizar o sofrimento do povo iraquiano. Estava profundamente preocupado em fazer com que a ONU não tivesse sua imagem ligada aos EUA, de modo a não ferir a legitimidade, neutralidade e imparcialidade da Organização, seus maiores patrimônios e princípios. Todavia, como já é sabido, Viera de Mello não conseguiria cumprir mais esta Missão, pois, em 19 de agosto de 2003, constatou-se, infelizmente, que a bandeira da ONU não está imune ao terrorismo internacional: Sérgio e outros 21 (vinte e um) colegas morreram em um atentado da rede Al Qaeda contra a sede das Nações Unidas na qual trabalhavam, em Bagdá, no Iraque. 5. CONCLUSÃO O legado de Sérgio Vieira de Mello é amplamente reconhecido pela comunidade internacional, mas recebe, no Brasil, destaque aquém de sua relevância. Isso se deve, supomos, à carreira de Sérgio a serviço das Nações Unidas, o que fez com que não estivesse diretamente vinculado aos interesses diplomáticos brasileiros ou às diretrizes da política externa do Itamaraty. De fato, um olhar superficial poderia supor que este filósofo da Sorbonne, que viveu sua vida adulta no exterior, não mais possuía vínculo significativo com o Brasil. Tal perspectiva é, a nosso ver, equivocada. Além dos sentimentos que nutria por seu país, muito da forma profissional de agir de Sérgio está, certamente, relacionada às características do brasileiro que se mostram benéficas no que diz respeito à construção de confiança e formação de consensos. Ao longo do artigo, citamos diversos exemplos nos quais é possível perceber que grande parte das características de Sérgio que lhe permitiram alcançar os êxitos relatados estão, de alguma forma, relacionados ao conhecido temperamento do povo brasileiro – do qual ele, de forma nata, fazia parte. Nesse sentido, destacamos sua flexibilidade em abandonar manuais quando percebia que havia outro caminho a seguir; sua amabilidade e facilidade no trato pessoal com quem quer que fosse, tendo como objetivo os interesses da população a ser assistida; e, também, sua determinação em nunca perder de vista o ser humano por trás das grandes massas e das estatísticas com que lidava. Sérgio nunca se tornou um burocrata distante e isso reforçava seu comprometimento e a confiança que todos sentiam nele. Além das características culturais do temperamento brasileiro e carioca de Sérgio Vieira de Mello, cabe ressaltar que, se por um lado ele não estava atuando diretamente a serviço do Brasil, por outro lado sua visão de mundo e atuação política dentro da ONU convergiam largamente com as linhas gerais da política externa brasileira. O Brasil, por meio de sua Diplomacia oficial, desenvolveu, nos últimos 150 anos, uma cultura pacífica com seus vizinhos, mantendo a paz nas fronteiras, por exemplo. O multilateralismo e o compromisso com as Nações Unidas e outros tantos órgãos multilaterais é uma preocupação e interesse constante da política externa brasileira. Historicamente, por exemplo, o país foi membro da Liga das Nações e é membro originário da ONU. Em consonância com o pertencimento a tais Organizações, está a postura política interna brasileira de compromisso constitucional inequívoco com a resolução pacífica de conflitos e o respeito à autodeterminação dos povos (Brigagão & Seabra, 2009). O marco da redemocratização do Brasil e da América do Sul, nos anos de 1980 a 1990, reforçariam a vocação pacífica brasileira. A política externa sofre inflexão que a distanciou do Realismo tradicional, com soberania plena do Estado e visão mais restrita do interesse nacional. Nesse momento, a direção se deu em torno das Peace Building Measures, tendo em vista o contexto da democracia, da integração regional (Mercosul e agora Unasul) e da globalização (Brigagão & Seabra, 2009). A democracia brasileira está consolidada, e, provavelmente, não há exemplo melhor da capacidade brasileira de diálogo e construção de confiança mútua do que as iniciativas, nos anos de 1980 e de 1990, de criação da Agência Brasileiro Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC) e da assinatura do Acordo Quatripartite entre Brasil, Argentina, ABACC e AIEA. Com isso, a América do Sul tornou-se um continente livre de armas nucleares, constituindo, nesse aspecto, exemplo para o mundo (Brigagão & Seabra, 2009). Em tempos mais recentes, o Brasil fez da participação em Missões de Paz parte de sua estratégia de maior inserção internacional como exportador de paz e estabilidade. É notável a participação brasileira no comando militar da Minustah (Haiti). No Haiti, vale ressaltar, verificou-se, na relação que as tropas brasileiras desenvolveram com o povo local, a mesma e gentil proximidade e trato humano de qualidade que foram marcas de Vieira de Mello em suas Missões pela ONU. No caso do Timor, a missão mais abrangente de Vieira de Mello, o Brasil reagiu prontamente, tendo aderido sem ressalvas à causa timorense e contra a invasão e ocupação do Timor pela Indonésia. Foi a favor do território em diversas votações na Assembléia Geral das Nações Unidas e mesmo a sociedade brasileira, sensibilizada, cobrava do Governo ações mais enérgicas. Na época da reconstrução do Timor, o país se sentia ainda mais presente no processo por haver um brasileiro no comando (Corrêa &Mancini, 2004). A convergência de valores entre a política externa brasileira e o legado de Sérgio Vieira de Mello, aqui brevemente abordados, demonstram, de forma clara, que caberia ao Brasil – Estado e Sociedade – valorizar, de forma mais enfática, a trajetória de Sérgio Vieira de Mello, brasileiro orgulhoso de sua origem e mundialmente admirado. Trata-se não apenas de fazer justiça à figura de Vieira de Mello, mas do próprio interesse em vinculá-lo à imagem do Brasil. REFERÊNCIAS Livros e Artigos BRIGAGAO, Clóvis; SEABRA, Rafael. (2009). Panorama estratégico da política externa brasileira: os caminhos da inserção internacional. Relações internacionais (Lisboa), v. 24, p. 075-081 CORRÊA, Luis Felipe; MANCINI, Luciana, Sérgio Vieira de Mello no Timor Leste: A Construção de Um Estado Independente, in MARCOVITCH, Jacques (org.). “Sérgio Vieira de Mello: pensamento e memória”. 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Entrevista Entrevista realizada pela co-autora Luciana Diniz Durães Pereira, em julho de 2009, em Genebra, Suíça, com o diplomata brasileiro da Missão do Brasil junto à ONU, Primeiro- Secretário Murilo Vieira Komniski. Endereços Eletrônicos http://www.usp.br/svm http://www.sergiovdmfoundation.org http://www.un.org http://www.ohchr.org http://www.unhcr.org