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A Doutrina e os Tribunais: Um Estudo Comparativo (1990) 1 Hein Kötz I. Introdução Nos últimos anos, o Estilo Judicial Comparado tornou-se um campo interessante de pesquisa para comparatistas. Se é verdade que um sistema jurídico ou um grupo de sistemas caracterizam- se por um “estilo” peculiar, pode realmente ser uma ideia promissora a de estudar a maneira como juízes justificam suas decisões e, assim, lançar alguma luz sobre o “estilo” do sistema jurídico ou dos sistemas em questão. Todos sabemos, é claro, que sentenças judiciais revelam apenas uma parte do que realmente se passa nas cabeças dos juízes. Mas sentenças judiciais e suas justificações certamente nos mostram o que é que os juízes pensam constituir argumentos legítimos e admissíveis, argumentos que provavelmente serão considerados bons exemplos de raciocínio jurídico. Sentenças judiciais fornecem, portanto, evidências valiosas acerca das posturas de juízes e advogados de maneira geral, dos papéis em que eles se veem, e das noções que mantêm sobre o direito e o processo legal num dado momento e num dado ambiente jurídico. Vários traços característicos de uma sentença judicial podem ser usados como critérios para a comparação. Um deles consiste em contar números de páginas e estudar as diferenças no que diz respeito à extensão das sentenças produzidas nos diferentes sistemas jurídicos. Um outro critério envolve perguntar se e como um juiz usa decisões prévias de outros tribunais, e do próprio tribunal de que é membro, como material para a produção do seu próprio juízo. A mesma pergunta pode ser feita em relação ao uso da legislação; e talvez seja possível dizer que qualquer estudo comparativo das formas como juízes lidam com precedentes ou como interpretam e aplicam as leis é, em alguma medida, um estudo de Estilo Judicial Comparado. Muitas outras questões interessantes podem ser brevemente mencionadas: Quais são os padrões, os modelos recorrentes de raciocínio judicial? O estilo de argumentação é indutivo ou dedutivo? Discursivo ou apodítico? Pessoal ou impessoal? A sentença tem o objetivo de 1 Tradução de Fábio Perin Shecaira para fins didáticos (abril de 2012). As notas de rodapé presentes no artigo original foram todas suprimidas. persuadir ou decretar? Oliver Wendell Holmes disse certa vez que “a raiz secreta de onde o direito extrai todo o sumo da vida... [são] considerações sobre o que é oportuno para a comunidade em questão”. Ainda que juízes em muitos países não vejam nada de fundamentalmente incorreto nessa afirmação, é duvidoso se, e em que tipo de caso, estarão preparados, com ou sem embaraço, para discutir tais considerações de maneira explícita e sincera nos seus votos. Neste estudo, procurarei examinar que uso é feito, se é que é feito, por tribunais de sistemas jurídicos selecionados, da doutrina como fonte de argumentos e ideias, como uma reformulação do direito tal como ele se apresenta, ou como um manancial de propostas sobre como o direito deveria ser. Essa tarefa não é simples, e o receio com que eu a assumo não é em nada atenuado pelo fato de que o estudioso a quem esta coletânea de ensaios se dedica tem sido, ele próprio, um pioneiro nessa área de pesquisa. Num estudo publicado há 35 anos e intitulado The Authority of Authority, Jonh H. Merryman analisou as formas como a Suprema Corte da Califórnia fazia citações. Um estudo empírico mais amplo e completo das práticas de citação daquela corte apareceu em 1977. Esses dois estudos seminais, e a disponibilidade atual de bancos de dados eletronicamente operados, levaram a uma séries de artigos similares que apresentam achados sobre o tamanho de sentenças, votos que acompanham e que divergem da maioria, referências a precedentes e leis e citações de “autoridade secundárias”, isto é, tratados, enciclopédias jurídicas, periódicos jurídicos e as Reformulações produzidas sob os cuidados do American Law Institute. A maioria dos artigos tem estudado a Suprema Corte dos Estados Unidos e uma ou mais cortes supremas estaduais através da análise de práticas de citações em períodos específicos distanciados uns dos outros com o objetivo de discernir tendências e transformações no que diz respeito ao estilo judicial. Não parece estar disponível qualquer informação quantitativa sobre as práticas de citação de tribunais recursais fora dos Estados Unidos. Isso certamente é uma pena, mas não significa que devamos evitar outros estudos do assunto até que dados concretos sejam reunidos. Uma razão para isso é que, no que diz respeito à comparação de citações de “autoridade secundárias” por tribunais recursais de diferentes países, informações sobre o número de citações pode ser menos importante do que uma estimativa cuidadosa quanto ao peso dado pelo juiz ao autor a cujo trabalho ele se refere. Estatísticas sobre o número de citações de livros ou artigos por um juiz em sua sentença podem ser enganosas, pois o que importa, sobretudo no contexto de um estudo intercultural, é o uso que juízes de fato fazem de escritos doutrinários, e não os reconhecimentos que eles registram publicamente em suas sentenças. II. A Doutrina nos Tribunais Franceses Max Weber disse que o clima do sistema jurídico de uma sociedade é determinado fundamentalmente pelo tipo de pessoa que o domina – isto é, como Weber os chamava, pelos honoratiores do direito (Rechtshonoratioren). Parece lógico concluir que o número de citações de juristas, e o peso e a influência que os tribunais lhes atribuem, são diretamente proporcionais ao prestígio social e à estima pública de professores e outros estudiosos do direito. No entanto, as setenças da Cour de cassation francesa claramentre demonstram que essa hipótese não está correta. Não estou certo de que juristas franceses sejam Rechtshonoratioren no sentido weberiano, mas a sua influência sobre a cultura jurídica francesa certamente não é suficientemente marginal para explicar o fato de que o mais alto tribunal francês jamais os cita. Embora referências a escritos doutrinários e a precedentes apareçam ocasionalmente em julgados de tribunais inferiores, a Cour de cassation não participa dessa prática. Isso deriva da sua proposta de tornar o texto das suas sentenças tão denso, conciso, contundente e compacto quanto possível. Apartes, digressões e excessos retóricos são rigorosamente evitados; e tampouco se faz referência aos fatos subjacentes ao caso, à história legal ou a considerações de natureza política. Suas sentenças não dão a impressão de que são produtos de juízes de carne e osso, que algum dia se permitiram o luxo de ter dúvidas sobre aquilo que fazem; parece ser uma exigência da majesté de la loi que o juízo se apresente como uma operação cirúrgica que leva ao resultado através de uma “dedução simples e limpa a partir de premissas que tomam a forma de um princípio abstrato, normalmente extraído de uma lei ”. Não há dúvida de que os juízes da Cour de cassation estão atentos para escritos doutrinários e para considerações de natureza econômica e social. Mas isso sempre é excluído do voto e pode ser identificado apenas nos raros casos em que a sentença é publicada juntamente com uma nota oficial do juge rapporteur ou com as conclusões do ministère public. A explicação do estilo francês deve ser buscada na história. Sob o ancien régime o direito era administrado pelos parlements, cujos juízes eram nomeados pelo rei a partir da chamada noblesse de robe, isto é, um grupo de famílias poderosas e prestigiadas cujos membros muitas vezes se especializavam na prática do direito por gerações. Assim como outras instituições daantiga ordem feudal, os parlements e a noblesse de robe foram extinguidas pela Revolução. O novo sistema se baseava na estrita aplicação do princípio da separação dos poderes, e a tarefa do novo juiz era vista como limitada à aplicação do direito tal como estabelecido pelo poder legislativo. Originalmente, se os juízes vissem numa lei uma ambiguidade ou lacuna, estavam proibidos de resolver a dúvida por meio de interpretação ou de completar a lacuna; em vez disso, tinham de encaminhar o caso ao legislativo. Hoje, juízes franceses não só interpretam a legislação, como são tão ousados e inovadores quanto os demais tribunais recursais europeus. No entanto, as velhas convenções estilísticas sobrevivem: A principal função da sentença de uma alta corte é demonstrar ao mundo que a corte, no exercício dos seus poderes excepcionais, nada se arroga e meramente aplica o direito.... E, assim, o modelo dos anos 1790 continua intacto. O jargão jurídico majestoso é apresentado como um exercício de lógica, descendo inevitavelmente de algum dispositivo do Código ou de outra lei. É o direito que fala. Os juízes são meros instrumentos do direito, embora a esta altura o processo todo seja mais adequadamente descrito como ventriloquismo de alto nível. III. A Doutrina nos Tribunais Ingleses W.L. Twining disse certa vez que “o jurista britânico, diferentemente do jurista da Europa continental, tende a ser um personagem marginal de pequena visibilidade”, e que isso é “simbolizado pelo fato de que ele é notável pela sua ausência no teatro, romance, cinema e novela”. Seria precipitada a conclusão de que ele também deve ser notável pela sua ausência como fonte de ideias úteis em decisões judiciais. De fato, há declarações judiciais mais antigas que refletem uma tendência para diminuir o trabalho de doutrinadores e para afirmar a regra “melhor lido depois de morto”. Assim, em Union Bank v Munster [1887], quando um advogado referiu-se a uma passagem de Fry on Specific Performance, o juiz Kekewich disse o seguinte sobre livros didáticos: Parece-me muito lamentável, e este é um lamento que todo juiz provavelmente compartilha, que livros didáticos sejam com cada vez mais frequência citados nos tribunais – falo, naturalmente, de livros escritos por autores vivos – e alguns juízes chegaram ao ponto de dizer que é proibido citá- los. Em Greenlands Ltd. V Wilmhurst [1913], depois de uma referência ser feita a Ogders on Libel and Slander, o lorde Vaughan Williams disse: É certo que o livro do Sr. Ogders é um trabalho muito admirável, que todos nós usamos, mas acredito que devemos manter nesta Corte a antiga ideia de que advogados não têm o direito de citar autores vivos como autoridades em defesa da tese que subscrevem, mas que podem adotar as afirmações do autor como parte do seu argumento. Nem sempre é claro o que juízes queriam dizer quando falavam que o trabalho de um autor vivo não deveria ser citado “como autoridade”. Quando um advogado usa a palavra “autoridade”, ele pode simplesmente referir-se a uma declaração de um jurista sem sugerir nada a respeito do seu peso ou influência. Mas a declaração de um autor pode também ter autoridade “persuasiva” ou, em casos excepcionais, “obrigatória”. O lorde Buckmaster parecia ter a autoridade “obrigatória” em mente quando falou de “autores de autoridade” em Donoghue v Stevenson [1932]: Agora o common law deve ser encontrado em livros de escritores de autoridade e nas decisões dos juízes encarregados da sua administração. [Neste caso] os livros não dão nenhuma assistência já que o trabalho de autores vivos, por mais merecidamente eminentes, não podem ser usados como autoridades ainda que as suas opiniões exijam atenção; e os livros antigos não ajudam. Volto-me, portanto, aos casos julgados. “Escritores de autoridade” nesse sentido são aqueles poucos autores que – como Glanvill, Bracton, Littleton ou Coke – adquiriram com o tempo tanta influência a ponto de eles mesmos hoje poderem ser usados como fontes de evidência daquilo que o common law determinava na época em que seus trabalhos foram publicados. Referências a esses trabalhos hoje têm pouca importância e não merecem a nossa atenção aqui. A despeito do que os juízes ingleses tenham dito no passado sobre os escritos doutrinários, não há dúvida de que hoje as referências às opiniões de juristas, vivos ou mortos, são bastante comuns. Tampouco se questiona a possibilidade de citar um autor com base no fato de que a sua declaração não foi formalmente “adotada” por um advogado como “parte do seu argumento”. Há até mesmo alguns belos elogios feitos ocasionalmente ao auxílio dado aos tribunais por juristas. Pois, em uma resenha da terceira edição do livro de Winfield, A Text-Book of the Law of Tort, o lorde Denning disse que esse trabalho é o livro que se busca sempre que há dúvida sobre o direito. O lugar ocupado primeiro por Pollock, e em seguida por Salmon, hoje é ocupado por Winfield. A razão pela qual tais livros são tão úteis é que não são coletâneas de casos, mas repositórios de princípios. São escritos por homens que estudaram o direito como ciência, com mais imparcialidade do que é possível para homens intensamente ocupados com a prática forense. A influência de juristas é maior hoje do que nunca, e é maior do que eles mesmos imaginam. A sua influência é exercida sobretudo através de seus escritos. A ideia de que seus trabalhos não são de autoridade antes da morte do autor há muito está falida. De fato, quanto mais recente o trabalho, mais convincente ele é, especialmente quando se trata de um autor como o professor Winfield: pois ele considera os desenvolvimentos recentes na jurisprudência e na literatura atual. Winfield agora é citado no lugar de Pollock; e Cheshire and Fifoot, no lugar de Anson. Os ensaios do professor Goodhart têm tido influência decisiva em muitas decisões importantes. Os vastos tomos escritos e editados por operadores para operadores têm uma função diferente. São trabalhos valiosos como fontes de consulta. São citados não pelos princípios, mas pelas detalhadas regras sobre assuntos específicos. São muito importantes na prática diária, mas não se comparam a livros como o de Winfiled no que diz respeito a princípios fundamentais. As evidências estatísticas não são tão impressionates quanto se pode imaginar. Uma análise aleatória do primeiro volume de All England Law Reports para 1985 resultou em 72 citações de “autoridades secundárias” nos 93 casos publicados da Alta Corte de Justiça e da Corte de Apelação. Trata-se de uma média de 0,77 citações de “autoridade secundárias” por caso. Na avaliação desse número, algumas coisas devem ser mantidas em mente. Por um lado, só são pulicadas as sentenças da Alta Corte e da Corte de Apelação quando contêm o que se considera uma contribuição material para o direito. Por isso, é mais provável que sentenças publicadas contenham referências a escritos doutrinários do que sentenças não publicadas. Por outro lado, o estilo de trabalho dos juízes ingleses não é conducente às práticas de ampla citação encontradas em alguns países da civil law e nos Estados Unidos. Uma parcela significativa até mesmo das decisões publicadas é proferida oralmente ao final ou logo depois dos debates. Nessa situação um juiz limitar-se-á a referir ou discutir um argumento específico proposto pelos advogados e apoiado numa referência a algum jurista. Mas a citação indiscriminada de material que em nada soma ao poder persuasivo do juízo está fora de questão. Até mesmo quando a decisão é reservada e há tempo para a pesquisa jurídica independente, um juiz inglês hesitará muito em mencionarum caso, e mais ainda em referir-se a uma “autoridade secundária”, a menos que tenha sido citado por um advogado e exposto a debate oral. Também parece haver uma postura cética e relutante quanto ao peso a ser conferido a livros didáticos e artigos em periódicos. Falando de decisões da Câmara dos Lordes, o lorde Wilberforce certa vez admitiu que “os comentários de certos autores, como o professor Goodhart, exerceram uma influência considerável”, mas, num caso recente, lembrou enfaticamente os advogados ingleses dos grandes perigos inerentes ao uso de livros didáticos. É claro que o peso a ser atribuido a um escritor depende da força do seu argumento, da reputação do autor e da honestidade da pesquisa. Mas isso é tão óbvio que é curioso o fato de lorde Wilberforce ter dito, depois de citar um livro didático: Meus Lordes, essa passagem é uma ilustração quase perfeita dos riscos, percebidos pelos nossos predecessores mas negligenciados em tempos modernos, que há em confiar num livro didático para uma análise de decisões judiciais. A princípio, parece uma mistura de proposições obscuras sem relação lógica umas com as outras. É claro que nem todo jurista tem o calibre de um Pollock, um Cheshire ou um Goodhart, e não há dúvida de que juízes precisam usar livros didáticos com cuidado não só porque eles podem ocasionalmente produzir uma “mistura de proposições obscuras”, mas também porque, nas palavras do juiz Megarry: A produção acadêmica é totalmente diferente da decisão judicial. O autor, sem dúvida, tem a vantagem de realizar uma pesquisa ampla e profunda sobre o assunto escolhido, assim como um longo período de gestação, além de oportunidades intermitentes para revisão. Mas ele está exposto ao risco de ceder a preconceitos, e ele carece da vantagem que deriva do impacto e estreitamento de foco que os fatos detalhados de um caso particular trazem ao juiz. Acima de tudo, ele tem de gerar suas ideias sem o auxílio do exercício purificador propiciado pelo debate cuidadoso sobre os fatos específicos de um caso controvertido. Direito debatido é direito robusto. Tudo isso é verdadeiro, mas também um tanto óbvio. Um estrangeiro da Europa continental será perdoado por acrescentar que o jurista não é o único que está exposto ao risco de ceder a preconceitos. Ainda que um autor não tenha a vantagem de assistir ao debate oral sobre os fatos específicos do caso, é o juiz que às vezes tem dificuldade para ver a floresta de princípios jurídicos além das árvores de precedentes. Talvez a melhor maneira de desenvolver o direito seja através do esforço conjunto de juízes e acadêmicos atuando em parceria. IV. A Doutrina nos Tribunais Americanos Os tribunais nos Estados Unidos sempre foram mais receptivos em relação aos juristas. Uma explicação para isso é que, nas primeiras décadas depois do período colonial, o uso de precedentes ingleses era visto como questionável. Afinal, uma revolução havia ocorrido, e, embora fosse necessário acolher o common law inglês sempre que ele fosse apropriado ao ambiente americano, parecia mais aceitável fazê-lo apoiando-se nos tratados de autores nacionais que, como Story e Kent, discutiam não apenas as fontes inglesas, mas também princípios retirados de fontes do mundo da civil law, e tendiam a enfatizar o caráter nacional do direito que expunham. Outra razão para que os tribunais confiassem em escritos de juristas pode ser visto no fato de que o grande número de casos publicados nos Estados Unidos faz com que juízes e advogados tenham dificuldade para acompanhar a produção judicial das suas próprias jurisdições. Tribunais podem, portanto, estar mais dispostos a consultar e citar enciclopédias, livros didáticos, tratados e outras formas de “autoridade secundária”, que ajudam a canalizar o fluxo interminável de casos e a apresentá-los de uma maneira mais organizada e acessível. Por fim, o prestígio crescente de professores de direito americanos no século XX pode ter contribuido para o aumento no uso de artigos de periódicos jurídicos em sentenças judiciais. Em 1931, Cardozo já havia notado que o antigo preconceito em relação à citação de periódicos jurídicos desaparecia e que a principal razão para a mudança tem sido um desalojamento dos equilíbrios existentes, uma perturbação dos pesos da autoridade e da influência. Juízes e advogados podem não se comprazer nisso, mas a verdade é que a liderança na marcha do pensamento jurídico tem passado em nosso tempo dos tribunais para as universidades. Outros juízes americanos distintos fizeram afirmações parecidas, embora apenas em discursos em faculdades de direito ou em prefácios a publicações jurídicas. É incerto, portanto, o impacto que escritos doutrinários realmente têm sobre as decisões judiciais. Alguma luz é fornecida pelo estudo seminal de Merryman sobre as práticas de citação da Suprema Corte da Califórnia. Ele encontrou 2,2 citações de “autoridades secundárias” por caso em 1950, 1,7 em 1960 e 1,8 em 1970. “Autoridades secundárias” incluem periódicos jurídicos, Reformulações, enciclopédias, anotações e “outras” autoridades (principalmente tratados). O que interessa é que as citações de enciclopédias, anotações e Reformulações caíram drasticamente entre 1950 e 1970, enquanto as citações de periódicos cresceram consideravelmente (de 0,4 por caso em 1950 para 0,9 em 1970). Merryman oferece duas explicações para essa tendência. Uma é que a Suprema Corte da Califórnia pode ter se tornado mais exigente no seu uso de “autoridades secundárias”, recorrendo menos à autoridade duvidosa de meras fontes de busca, como o Corpus Juris Secundum ou o American Jurisprudence, e concentrando-se nos trabalhos acadêmicos mais ambiciosos e rigorosos encontrados nos periódicos jurídicos. Outra explicação é que o número de casos decididos [pela Suprema Corte da Califórnia] declinou significativamente, enquanto o número de casos potencialmente revisáveis pelo tribunal cresceu muito. Isso mostra que a cada ano o tribunal escolhe seus casos de maneira mais cuidadosa, de modo que tem preferido lidar com os casos mais importantes. Isso leva a uma concentração em problemas novos – aqueles de maior importância social que desbravam as fronteiras do direito, particularmente as questões de direito criminal e constitucional. Esse é o tipo de direito de que os periódicos jurídicos gostam, mas a Reformulação o desconhece. As enciclopédias e anotações são fontes de inspiração notoriamente fracas naquelas áreas em que a imaginação e a originalidade são valorizadas. Como a Suprema Corte dos Estados Unidos lida com assuntos ainda mais importantes e impactantes para um amplo número de americanos, é de se esperar um número ainda maior de citações de periódicos. Isso de fato é revelado por um relatório recente sobre a “citação de fontes secundárias” nos votos da Suprema Corte dos Estados Unidos nas suas sessões de outubro dos anos de 1900, 1940 e 1980. De acordo com esse estudo o número total de citações de fontes secundárias por caso era 0,65 em 1900, 1,37 em 1940 e 7,14 em 1978. As citações de periódicos jurídicos por caso subiram de 0,2 em 1940 para 2,7 em 1978, e as citações de tratados jurídicos por caso subiram de 0,5 em 1940 para 2,1 em 1978. Enquanto a média de citações de fontes secundárias por caso era 7,14 em 1978, havia dez casos com mais de 20 citações e um caso com 50. Um número ainda maior de citações pode ser encontrado no caso Smith v Wade, decidido pela Suprema Corte em 1983. Nesse caso o principal assunto era o critério apropriado para a concessão de indenização punitiva de acordo com a seção 1 da Lei de Direitos Civis de 1871 (hoje 42 Código dos EstadosUnidos §1983). Esse assunto foi discutido tanto no voto majoritário do ministro Brennan quanto no voto minoritário do ministro Rehnquist através da reunião e análise de dúzias de decisões judiciais e fontes didáticas do final do século XIX ao longo de várias páginas de notas de rodapé que parecem o trabalho acadêmico de um historiador profissional. A ministra O’Connor, divergindo da maioria, tinha uma opinião pouco positiva em relação a essa abordagem: Ambos os votos investem em exegese profunda, mas no fim das contas pouco esclarecedora, da disponibilidade de indenização punitiva de acordo com o common law de 1871. Embora tanto o tribunal quanto o juiz Rehnquist exibam habilidade admirável para a pesquisa jurídica e para a análise de numerosos casos bolorentos, os resultados não contribuem para a investigação. A batalha de citações em série não tem vencedores. O juiz Rubin também questionou a ideia de que um juiz deve comportar-se como um acadêmico nas suas sentenças: Deixe-me mencionar uma outra tarefa judicial exigente que me parece uma preocupação obsessiva. Trata-se da nossa preocupação, sobretudo nas instâncias mais altas, em tentar redigir o tipo de voto que será considerado acadêmico por professores de faculdades de direito. Sentenças judiciais americanas superam em verbosidade, tamanho e número de citações as sentenças escritas em qualquer outro país. Deve-se exigir de todo juiz que formule as suas razões para decidir, mas essas razões deveriam ser suficientes não só para explicar o resultado aos litigantes, mas também para permitir que compreendam seu valor como precedente e os limites de sua autoridade. Seria bom se adotássemos um estilo padronizado de votar, se não citássemos autoridades para apoiar afirmações elementares e se não imitássemos artigos de periódicos com o objetivo de impressionar com nossa pesquisa acadêmica nossos colegas e os advogados. Ocasionalmente, cada um de nós pode produzir uma sentença, talvez num caso muito significativo, que exige a exposição de todos os nossos talentos, mas temo que grande parte do nosso tempo e do tempo de nossos assistentes seja perdida na busca de expressões elegantes, no acréscimo de citações e na tentativa de produzir obras de arte. V. A Doutrina nos Tribunais Alemães O que diria o juiz Rubin se tivesse familiaridade como os votos de tribunais alemães? No que diz respeito ao número de citações de “autoridades secundárias” por caso eles provavelmente lideram mundialmente. As reações de advogados estrangeiros têm variado entre o espanto, a inveja e o divertimento. Pois, em sua Introduction au droit allemand, os professores Fromont e Rieg escreveram que: A influência da doutrina sobre a jurisprudência é particularmente aparente na Alemanha. É sabido que as sentenças se apresentam com uma forma que, na França, seria classificada como “dissertação”. A maioria das decisões desde as dos juízes de primeira instância até as das Cortes federais contêm referências doutrinárias como parte da argumentação... constata-se, assim, uma profunda penetração da doutrina na jurisprudência, uma penetração com que sonham todos os juristas franceses. Escolhendo aleatoriamente o volume 95 do Entscheidungen des Bundesgerichtshofes in Zivilsachen, com 41 decisões tomadas em 1985, encontrei 533 citações de “autoridades secundárias”, isto é, 13 citações desse tipo por caso. Havia em média 6,2 citações por caso dos ditos “comentários”, 3,5 citações de artigos em periódicos jurídicos, 2,5 de tratados jurídicos, 0.4 de notas sobre casos e 0,4 de outras fontes secundárias. Não há dúvida de que trabalhos doutrinários têm influência considerável sobre as decisões de juízes alemães, mas sua natureza e medida precisa são difíceis de estimar. Muitas citações de fontes secundárias em casos alemães não são citações de autoridades, isto é, sua principal função não é justificar ou dar maior força persuasiva a uma tese de direito. Às vezes a citação se refere a um livro ou artigo que discute uma questão suscitada mas não resolvida pelo tribunal. Às vezes a referência é feita apenas para mostrar a posição de uma pessoa específica, e não para defender tal posição como correta ou aprovada. Às vezes citações servem como um guia conveniente para os estudos futuros do leitor interessado, indicando onde certos dados, particularmente outros casos, podem ser encontrados, sem sugerir que os dados são definitivos ou que suas consequências são adequadas. Às vezes a citação é usada como uma referência sumária ao estado do direito a partir do qual o tribunal procede. Referências a fontes primárias, embora possíveis, podem, nessa situação, ser enfadonhas. Citar um tratado ou comentário não só é mais rápido e fácil, como também pode apresentar o direito a partir de uma perspectiva mais completa e rica. Por outro lado, há muitas citações de fontes secundárias que não têm o objetivo de instruir o leitor, de poupar o trabalho de fazer referência a autoridades primárias, ou de reforçar a decisão fazendo com que um assistente, em defesa de uma tese razoavelmente óbvia, descubra todos os autores que têm a mesma opinião. O tribunal pode querer demonstrar que sua posição, ainda que controvertida, é compartilhada pela maioria dos autores ou por aqueles que têm uma reputação especial na área em questão. O tribunal pode ir além e discutir argumentos específicos de um dado autor que sejam contrários ou favoráveis a uma regra estabelecida em um caso anterior ou sugerida por algum dos litigantes. Não é nada incomum que um tribunal reconheça dessa forma a importância da sua dívida em relação às ideias e aos argumentos de juristas, sejam esses argumentos aceitos ou recusados ao final. Não seria muito difícil indicar uma série de decisões da Suprema Corte Federal em que autoridades secundárias enriqueceram significativamente a discussão de uma questão particular ou influenciaram diretamente o holding. Tampouco seria difícil mencionar alguns casos em que a Corte, na opinião deste autor, deveria ter tido a coragem de seguir suas próprias opiniões em vez de se perder em sutilezas doutrinárias. O que falta é uma tentativa mais sistemática de avaliar as contribuições feitas por juristas ao desenvolvimento do direito numa certa área. Uma abordagem possível seria a de selecionar uma série de casos importantes na área de, por exemplo, responsabilidade civil para analisar as autoridades secundárias usadas em defesa do holding central do tribunal em cada caso, e então especular a respeito do papel que os autores referidos tiveram na formação da opinião do tribunal VI. A Necesssidade de Estudos Adicionais Esse relato visa estimular outros estudos, e não substituí-los. Uma análise comparativa mais completa das práticas de citação de diversos países exigiria, além de dados estatísticos mais confiáveis acerca da frequência das citações dos tribunais em jurisdições de civil law, uma tentativa mais sistemática de demonstrar a importância que escritos acadêmicos realmente têm tido para o desenvolvimento da jurisprudência relativa a algum campo específico do direito. Um número grande de fatores teria de ser levado em conta para explicar diferenças nacionais. Um fator certamente é o prestígio social de juristas acadêmicos e seu papel na educação jurídica. Mas outro fator é a disponibilidade e a qualidade de escritos acadêmicos de maneira geral. Se juízes ingleses seguiram a regra “melhor lido depois de morto” por tanto tempo, pode ser que o tenham feito sem risco porque os tratados jurídicos publicados até o século XIX eram escritos com base na crença de que a palavra do autor só importava na medida em que se baseavaem autoridades judiciais. Oxford e Cambridge não ensinavam o common law antes das aulas de Wiliam Blackstone sobre o direito inglês, em 1753, em Oxford, e livros escritos por acadêmicos do calibre de Pollock e Anson não surgiram antes da década de 1870. A história faz parte da explicação, mas também pode haver uma série de limitações técnicas e organizacionais que contribuem para uma compreensão melhor de uma dada prática de citações. Sem dúvida, a ausência total de citações em sentenças da Cour de cassation francesa tem raízes históricas. Mas não se pode esquecer que, hoje, os 90 membros da Corte geram aproximadamente 17.000 decisões anuais e que, portanto, devem ter boas razões para evitar votos longos que exponham todas as considerações relevantes. Tribunais recursais tanto nos Estados Unidos quanto na Alemanha hoje citam mais “autoridades secundárias” do que há algumas décadas. Isso pode ser explicado não (ou não apenas) por uma transformação na filosofia judicial, ou pela maior quantidade ou melhor qualidade da produção acadêmica, mas pelo fato de que juízes em grau de recurso hoje podem contar com assistentes bem treinados e com bibliotecas bem equipadas. É possível ainda que as práticas de citação sejam influeciadas pelo costume anglo-americano de exigir que advogados pesquisem sobre o direito e o exponham diante do tribunal, enquanto, na civil law, de acordo com a máxima iura novit curia, a identificação do direito fica a cargo do juiz – um homem ou mulher que, sem exceção, recebeu educação universitária. Acima de tudo, práticas de citação podem ser influenciadas por crenças disseminadas a respeito da natureza do processo legal. Onde o positivismo reina e os juízes acham que o direito pode ser deduzido a partir das leis e precedentes existentes, a especulação acadêmica sobre interesses e considerações políticas relevantes será menos valorizada do que em lugares onde advogados acreditam que as regras devem ser testadas no que diz respeito à sua harmonia com valores contemporâneos.
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