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COLEÇÃO TEORIA E F ILOSOFIA DO DIRE ITO C O O R D E N A D A P O R R O N A L D O P O R T O M A C E D O J R . RETÓRICA E O ESTADO DE DIREITO Neil MacCormick AGRADECIMENTOS Vários dos capítulos deste livro são versões mais ou menos reescritas de trabalhos publicados anteriormente, e são publicados dessa forma com o consentimento de publicações anteriores, o qual eu agradeço, conforme segue. Capítulo 2; "Rhetoric and the Rule of Lav^", em David Dyzenhaus (oy:g.),RecraftingtheRuleofLaw{Oidoxd\ Hart Publishing, 1999), p. 163-77, tendo sido apresentado por ocasião do Perelman Syinposium no 'Paideia' World Congress in Philosophy, na Universidade de Boston em agosto de 1998, e pu- blicado nos Anais da Conferência. O Capítulo 3 não foi publicado anteriormente, mas foi preparado numa versão prévia para a John Dewey Lecture do ano 2000 na Universidade de Minnesota, u m convite pelo qual fiquei muito honrado. O Capítulo 4 contém elementos extraídos dos seguintes artigos que apare- ceram no International Journal forSemiotks and Law: "Notes on Narrativity and the NormativeSyllogism" U5L4(1991), p. 163-74; "Legal Deduction, Legal Predicates and Expert Systems" ULS 5 (1992); e 'A Deductivist Rejoinder to a Semiotic Criti- que" ULS 5 (1992), p. 215-24. A editora original, Deborah Charles, de Roby, Merseyside, UK, detinha os direitos autorais, mas que foram transferidos poste- riormente a Kluwcr Academic. A publicação desses textos neste livro se deve à gentil permissão da Springer Science and Business Media. Um artigo similar, "Le- gal Reasoning and the Institutional Theory of Law", foi publicado em P. KoUer, W Krawietz e E Strasser (oigs.) Institution und Recht, Rechtstheorie, Bàh^ 14, p. 117- 39, Ducker&HumboldtGmbH, Carl Heinrich Becker Weg 9,12165 Berlin (1994). O Capítulo 5 é substancialmente novo, mas tem sua origem, e em parte coincide com "Universalisation and Induction in Law", em C. Farrali e E. Pattaro (orgs.), Reason in Law-Proceedings of the Conference Held in Bologna, de 12 a 15 de dezembro de 1984 (Milão: Dott. Giuffrè Editore, 1987), p. 91-106; publicado por Giuffrè Editore, Via Busto Arsizio 40, 20151 Müão, Itália. Capítulo 6: "Legal Decisions and their Consequences: from Dewey to Dworkin", New York University Law Review 58 (1983), p. 239-58 (original- RETÓR ICA E O E S T A D O DE D I R E I T O — N E I L M A C C O R M I C K ELSEVIER mente uma John Dewey Lecture, proferida na Escola de Direito da Universi- dade de Nova York, em 1983). Capítulo 7: 'Argumentation e Interpretation in Law" Kluwer Academic Publishers, Argumentation 9 (1995), p. 467-80, pela gentil permissão de Springer Science and Business Media. Também "Argumentation and Interpretation in Law", em Ratio Júris 6 (1993), p. 16-29, pela gentil per- missão de Blackwell and Co., 108 Cowley Road, Oxford OX4 IJF. Capítulo 8: "Why Cases have Rationes and What There Are", por Neil MacCormick, de Precedent and Law, editado por Goldstein, Laurence (Oxford: Oxford University Press, 1987). Capítulo 9: Esta é u m a versão parcialmente reescrita de "On Reasonableness", em Ch. Perelman e R. Vander Est (orgs.), LesNotions à Contenu Variable 6Tn Droit, com a gentil permissão da editora, Etablissements E. Bruylant, Bruxelas; uma versão posterior, alterada, intitulada "Reasonableness and Objectivity", foi publicada no número especial da Notre Dame Review em homenagem a Kent Greenawalt - Volume 74, Número 5, Notre Dame Review (Junho/1999), p. 1575-603. O Capítulo 10 é substancialmente novo, mas tem sua origem, e em parte coincide com, "On Coherence in Legal Reasoning" em W. Krawietz et. al. (orgs.), Theorie der Normen (Berlin: Duncker und Humboldt, 1984), p. 37-53. Capítulo 11: "Time, Narratives and Law", em J. Bjarup e M. Blegvad (orgs.). Time, Law and Society (ARSP-Beiheft 64), p. 111-25, por gentil permis- são de Franz Steiner Verlag (Postfach 10 10 61, D-70009 Stuttgart). " ' - Capítulo 12: "Defeasibility in Law and Logic", em Z. Bankowski, I. White e U. Hahn, Informatics and the Foundations of Legal Reasoning (Dordrecht: Kluwer, 1995), por gentil permissão de Springer Science and Business Media. O Capítulo 13 é substancialmente novo, mas tem sua origem em, e em parte coincide com, "Can Judges Make Mistakes?", em H. Jung e U. Neumann (orgs.), Rechtsbegründung - Rechtsbegründungen (Baden-Baden: Nomos Verlaggesellschaft, 1999), p. 76-89; em sua primeira aparição, ele foi a pales- tra anual de 1986 do Centre for Law and Society da Universidade de Edimburgo. O Capítulo 13, junto com o Capítulo 6, supera o meu "The Limits of Reason: A Reply to Dr. Knud Haakonssen", in Archiv für Rechts - und Sozialphilosophie 67 (1981), p. 504-9, que respondeu ao "The Limits of Reason and the Infinity of Argument", de Haakonssen, no mesmo volume nas páginas 491-503; por haver prestado atenção no caráter persuasivo, em vez de demonstrativo, dos argumentos ao longo deste trabalho, devo muito a esse artigo de Haakonssen. VIM PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA Tenho grande satisfação em apresentar a tradução de meu livro para a língua portuguesa por acadêmicos brasileiros que também são meus amigos. Sou muito grato ao esforço deles, tal a importância de imia real consciência mútua entre juristas e filósofos do Direito provenientes de diferentes tradi- ções jurídicas e jurisdições. Somos todos preocupados com boas razões e boa argumentação no Direito. O Direito não é somente a vontade dos poderosos. O Direito é capaz de expressar a vontade racional de toda a sociedade. Certamente, no contexto do Estado territorial contemporâneo, o Direi- to apresenta duas faces. Por u m lado, p)or meio do aparato coercitivo estatal, assegura ou pretende assegurar u m tipo de ordem imposta entre os residen- tes do estado, principalmente seus cidadãos, mas residentes estrangeiros tam- bém. Numa perspectiva ideal, por outro lado, pode ser concebido como um elemento na argumentação prática coletiva (collective practkal reasoning) das autoridades governamentais e dos cidadãos. Não é apenas uma ordem im- posta, mas é também uma base para a interação razoável entre os muitos elementos dos quais o Estado é composto. O ideal do Estado de Direito (Rule of Law) leva a sério a possibilidade de que o Direito, enquanto base de razão prática (practical reason), possa colocar limites reais sobre as atividades coercitivas do Estado. A certeza jurídica pode ser obtida, em princípio, mesmo entre aqueles que contestam a justiça ou conveniência das regras jurídicas cuja aplicação ajuda a atingir tal certeza. Por outro lado, o próprio fato de que o Direito é um foco de argumentação prática acarreta que tudo no Direito pareça sempre aberto à argumentação prá- tica diante de tribunais judiciais e outros lugares. Essas não são questões em relação às quais haja qualquer diferença séria entre países da tradição do civil law, como Brasil, Portugal, Alemanha, França e assim por diante, e países da tradição do common law como a Inglaterra, RETÓR ICA E O E S T A C O DE D J I : ^ " OU mesmo países com u m "sistema misto" como a Escócia. As modalidades superficiais de a p r e s e n t a ç ã o das decisões diferem, e h á diferenças reais em relação aos tipos de argumento a partir de precedentes judiciais, apesar de que tais diferenças podem ser menos fundamentais do que teorias sobre as "fontes do Direito" às vezes sugerem. Racionalidade é uma característica comum e definidora dos seres hu- manos. É uma c a r a c t e r í s t i c a possível e desejável dos arranjos políticos e so- ciais. A criação e aplicação razoável do Direito é um objetivo valioso e digno do esforço humano. Não é uma garantia de justiça perfeita, mas é certamen- te uma proteção contras as piores formas de injustiça. Eu espero e acredito que este livro possa ajudar a mostrar os caminhos em direção à razoabilidade na tomada de decisão. Apesar de fazer menção especial aos sistemas jurídi- cos em relação aos quais tenho n^ ior familiaridade,espero e acredito que ele tenha também re l evânc ia e valor para advogados, juizes e acadêmicos que trabalham em outros sistemas e em outras tradições. Edimburgo, janeiro de 2008 Neil MacCormick PREFÁCIO Tive a grande felicidade de receber a Leverhulme Personal Research Professorship, primeiro entre os anos de 1997 e 1999 e, depois, com uma extraordinariamente generosa renovação do Leverhulme Trustees, por um período adicional a partir do mês de setembro de 2004. Essa renovação vem depois de u m intervalo de cinco anos durante os quais fui Membro do Parla- mento Europeu pela Escócia. Eu registro meus calorosos agradecimentos aos Trustees, e também aos Professores Barry Supple e Sir Richard Brook, suces- sivamente Diretores do Trust, pela gentileza e estímulo. Este é o segundo livro de u m quarteto sobre o tema "Direito, Estado e Razão Prática", e espero que o terceiro, Institutions of Law, apareça dentro de dezoito meses. Retórica e o Estado de Direito é um livro que veio ganhando forma há bastante tempo - em torno de vinte e cinco anos. Meu Argumenta- ção Jurídica e Teoria do Direito foi publicado primeiramente em 1978, e des- de então tive o privilégio de receber muitos comentários e resenhas críticas, tanto em apoio quanto sugerindo correções. Em vez de produzir uma nova edição daquele trabalho, busquei responder, com uma certa mudança de pers- pectiva, de forma nova ao debate provocado por Argumentação Jurídica. Por meio de convites para fazer visitas acadêmicas em muitos partes do mimdo, tive a oportunidade de discutir questões básicas sobre argumentação jurídica com uma grande diversidade de colegas, em quantidade excessiva para nomeá- los individualmente. Muitos outros autores, ao mesmo tempo, publicaram sábios livros e artigos sobre muitos aspectos da argumentação jurídica. Juizes em todo lugar tornaram-se mais explícitos em suas reflexões sobre seu racio- cínio e argumentação, e entraram em debates com acadêmicos do Direito em muitas ocasiões. Eles continuam, obviamente, a escrever e publicar votos nos casos que decidem, provendo u m repositório espantosamente rico de exem- plos de argumentação prática em operação. R E T Ó Ü I C A E O E S T A D O DE D I R E I T O — N E I L M A C C O R M I C K ELSEVIER Eu também acumulei tantas dívidas intelectuais e dívidas de amizade e hospitalidade ao longo do tempo que é impossível agradecer adequadamente a todos os envolvidos. Com as renovadas desculpas a todos que inadvertidamente omit i , tenho ao menos agradecer à extensa Usta seguinte: Aulis Aarnio, Ruth ^ e r , Robert Alexy, Manuel Atienza, Fernando Atria, Hans Baade, Jack Balkin, Zenon Bankowski, Garrett Barden, John Bdl, Joxerramon Bengoetxea, Jes Bjanip, Mogens Blegvad, James Boyle, Beverley Brown, Stephen Burton, Tom Campbell, Emilios Christodoulidis, David Dyzenhaus, Ronald Dworkin, Carla Faralli, John Finnis, Michael Freeman, Ake Frándbeig, David Galbraith, Ffeter Goodrich, Ron Griffin, Les Green, Andrew Halpin, Herbert Hart, Graham Hughes, Bemard Jackson, Nils Jareboig, Hdke Jung, Urpo Kangas, Martin Krygier, Niki Lacey, Eerik Lagerspetz, Etouglas Leggatt, Brian Leiter, Sanford Levinson, David Lyons, Michael Machan, Alastair MacLeod, Geoffrey MarshaU, Stuart Midgley Bob Moles, Michael Moore, Geoi?e Mousourakis, David Nelken, Byung-Sun Oh, Russdl Osgood, Alan fóterson. Enrico Pãttaro, George Pavlakos, Aleksander Péczenik, Bill Itowers, Joseph Raz, Michael Roumeliotis, Wojcziech Sadurski, Burkhard Schafer, Mike Sharlot, Raimo Siltala Sundram Soosay, Bob Summers e todos os membros do Círculo de Bielefeld (Bielefelder Kreis) não mencionados aqui, Alice Tày, John Touchie, Michel Troper, Takeshi Tsvmoda, Kaarlo Tuori, VNTiUiam Twining, Sebastian Urbina, Scott Veitch, Vittorio Villa, Neil Walker, Alan Watson, Ota Weinberger, Jim Weinstein, Jerzy Wròblewski, e Mark Yiidof. Alguns deles, infelizmente, não estão mais vivos para poderem receber os agradecimentos pessoalmente, mas minha gratidão a des per- siste. Uma palavi-a particular de agradecimento é devida a Sundram Soosay por exortar-me a não ficar satisfeito com um simples formato de "ensaios reunidos", mas a revisar todo o corpo do trabalho com a intenção de reafirmar uma teoria da argumentaçãojmidica fundamentada na teoria institucional do Dii"eito {institutional theory of law). Esse é o conselho que tentei seguir, e apresento este livro como uma con- cisa afirmação contemporânea de uma teoria da argumentação jurídica como u m ramo da argumentação prática (practical reasoning). Não se trata apenas de uma coleção de ensaios soltos, mas de uma substancial reelaboração de idéias que desenvolvi ao longo dos anos e ventilei em palestras, artigos e capítulos em outros livi-os. Argumentação jurídica importa, entre outras razões, porque ela é uma chave para a possibilidade de u m Estado de Direito genuinamente objetivo, mediado pelos julgamentos fundamentados das cortes. Na tentativa de delinear o caráter de argumentos genuinamente persuasivos (mas não demonstrativos) X I I ELSEVIER . PrepACIO no contexto jurídico, eu extraí vários exemplos de julgamentos em casos já deci- didos. Esses são, de fato, principalmente das jurisdições do Reino Unido, mas mantive ao menos alguma atenção a casos do outro lado do Atlântico e também à União Européia e a alguns de seus Estados-membros. Algumas vezes se diz que a abordagem da argiunentação jurídica encontrada em livros como o presen- te é distorcida pelo fato de que ele extrai suas provas sobre o caráter da argumen- tação exclusivamente das decisões judiciais de cortes superiores de apelação. Portanto, não seria representativo do dia-a-dia real do Direito. O objetivo deste trabalho, contudo, não é ser representativo desse modo. É estabelecer uma visão de quais são os elementos de força e de fraqueza na argumentação que nos habilita (se é que podemos) a discriminar entre argumentos melhores e piores, mais ou menos racionalmente persuasivos. Para essa apreciação qualitativa, não há melhor fonte do que o tipo de argumento cuidadosamente considerado que se encontra nos votos de juizes em tribimais superiores. O livro tem esse título em parte devido ao tema desenvolvido no Capí- tulo 2, mas em parte, também, como uma saudação à memória de Chaim Perelman. Perelman tornou-se meu amigo n u m a conferência do Scots Philosophical Club, em Stirling, 1976, e me estimulou a desenvolver meus pensamentos sobre a argumentação jurídica de u m tipo inspirado por sua "nova retórica". O Capítulo 9 começou como u m artigo sobre o "razoável" por ocasião de u m seminário no Centre for Studies in Logic in Brussels, em 1982. O Capítulo 2, sob o nome O Estado de Direito e o Caráter Argumentativo do Direito, que agora foi apropriado para o livro inteiro, foi inicialmente um artigo apresentado ao Perelman Symposium no "Paideia" World Congress in Philosophy, em Boston, no ano de 1998, depois de um debate na MacQuarie University, NSW. Rastros de outros artigos escritos sob a provocação de Perelman estão espalhados de forma mais difusa pelo livro. Espero que o uso do termo "retórica" n u m sentido u m pouco amplo, e sem muita alusão aos clássicos da retórica que não o trabalho de Perelman, não seja visto como nmito inapropriado pelos puristas. Finalmente, meus agradecimentos a Gv\̂ en Booth, John Louth, e ou- tros colegas da Oxford University Press pela paciência editorial em face dos atrasos autorais. Edimburgo, janeiro de 2005 Neil MacCormick X I I I RETÓRICA E O ESTADO DE DIREITO NO BRASIL Cláudio Michelon Cornado Hübner Mendes" Marcos Paulo Veríssimo'" O ideal político do Estado de Direito faz algumas promessas. Original- mente, esse ideal esteve associado a u m regime de "governo das leis, não dos homens", de proteção contra o arbítrio e o capricho no exercício de autorida- de, a um regime de decisões justificadas racionalmente. No período moderno, ganhou alguns traços adicionais. Em nome da emancipação individual(e também do bom funcionamento das economias capitalistas), comprometeu- se também com a garantia de certeza no Direito e com a previsibilidade das decisões jurídicas. Somente posso ser livre e autônomo, nessa perspectiva, se tiver a capacidade de planejar minhas ações futuras. Para tanto, preciso ter segurança de que as conseqüências de tais ações são certas e mensuráveis de antemão e de que minhas expectativas serão atendidas. Essa é uma virtude do Estado de Direito, uma conquista dotada de valor moral, a "ética do legalismo".' Para oferecer essa capacidade de planejamento, a comunidade política institui um conjunto de fontes normativas dotadas de autoridade. Dessas ' Professor de Teoria do Direito na Universidade de Edimburgo e Professor Adjunto licenciado da UFRGS. " Doutorando em Teoria do Direito na Universidade de Edimburgo. Pesquisador licenciado da Direito CV e da Sociedade Brasileira de Direito Público - SBDP. "• Professor da Direito GV e da Sociedade Brasileira de Direito Público - SBDP. ' N. MacCormick. Retórica e o Estado de Direito, p. 9. RETÓR ICA E O E S T A D O DE D I R E I T O — N E I L M A C C O R M I C K ELSEVIER fontes é possível extrair racionalmente u m conjunto de normas, em maior ou menor medida, gerais e abstratas. Tais normas têm a pretensão de regular os eventos particulares e são a referência a partir da qual se espera que o indiví- duo seja capaz de planejar sua vida de maneira certa a segura (ou, ao menos, em u m ambiente de incerteza e insegurança controladas). Essas fontes de normas prospectivas possuem, contudo, capacidade limitada de regular ca- sos futuros. Entre a fonte do direito e a norma geral e abstrata, entre a norma e o fato concreto que desperta u m pedido de aplicação dessa norma, e entre tudo isso e a decisão de aplicação da norma, há u m processo controverso de interpretação e argumentação. Por essa razão, o caráter argumentativo do Direito e a sua promessa de certeza e segurança são dois "lugares comuns" que convivem sob certa ten- são.- Como promover ambos os ideais? Se tudo no direito está sujeito, em alguma medida, à argumentação, como posso ter certeza sobre o resultado da aplicação das normas jurídicas? Que tipo de previsibilidade o Direito ofe- rece? A tensão entre esses dois ideais é o ponto de partida do livro, cujo objetivo central é oferecer concepções compatíveis de argumentação jurídica e da previsibilidade e certeza necessárias n u m Estado de Direito. Para tanto, MacCormick percorre um caminho repleto de temas fundamentais da teoria e da prática do Direito. Mostra, ao final, que o ideal do Estado de Direito é dinâmico, não estático, que o seu caráter argumentativo é u m dos seus com- ponentes, não a sua antítese, e que a certeza jurídica, apesar de não absoluta e de sempre estar sujeita a novas exceções, pode existir dentro de alguns limites. Revela, mais claramente, a angústia (ou fascínio) de engajar-se numa atividade prática que, apesar de racional, parece não ser objetiva, que não tem soluções permanentes e absolutamente estáveis, que está sempre sujeita a novas investidas argumentativas. Apesar desses possíveis "defeitos", mos- tra como essa opção é melhor do que as alternativas. Mais do que isso, como essa opção é um marco distintivo de sociedades civilizadas. Este livro é valioso, porém, não apenas pelo seu conteúdo, pelas per- guntas e respostas que apresenta de maneira criativa, mas também pela his- tória que está por trás de sua elaboração e pela metodologia com a qual o autor enfrenta os problemas teóricos que o preocupam. ' Ver p. 19-21. XVI ELSEVIER RTIÔMCA e o ESTADO ot Dineiro NO BBASIL Neil MacCormick projetou-se internacionalmente na filosofia jurídica quando, em 1978, publicou y47gumeníafão Jurídica e Teoria do Direito.^ Aquele livro faz parte daquilo que o próprio autor chamou, em sua Valedictory Lecture, de seu "período Hartiano". Essa fase do seu pensamento, que inicia em 1972 e vai até começo da década de 1980, foi sucedida por u m período, entre 1979 e 1992, em que foi itnpactado por imi conjunto de influências intelectuais que acabam por determinar seu paulatino afastamento de Hart.'* Em segui- da, entre os anos de 1992 a 2004, MacCormick passa pelo que chamou de "período europeu", no qual atenta para o caráter da ordem jurídica sui generis que se forma na Europa e de uma autoridade política transnacional que trans- forma o conceito de soberania e passa a despertar a preocupação com o constitucionalismo para além das fronteiras do estado nacional. Culmina, finalmente, no que ele denominou de "período conclusivo", no qual se propõe a escrever uma série de quatro livros, intitulada 'Direito, Estado e Razão Prática'. O livro Retórica e o Estado de Direito pertence justamente a essa série.' Durante mais de três décadas, MacCormick beneficiou-se de uma ex- tensa fortuna crítica, e esse constante diálogo com os seus críticos sofisticou ' Originalmente, Legal Reasoning and Legal Theory (Oxford: Clarendon Press, 1978). '' Entre essas influências estão a filosofia do iluminismo escocês em geral e principalnfiente a obra de Stair e dos juristas que o sucederam; a obra de John Finnis e a nova perspectiva sobre razão prática, natureza humana e bem comum que ela propicia; a provocação de novos teóricos sobre a importância da interpretação no direito, entre eles Ronald Dworkin e Robert Summers; a percepção do direito como um discurso racional, apontada por Robert Alexy; e, finalmente, o positivismo institucional de Ota Weinberger. ' Sua Valedictory Lecture (palestra que marcou o encerramento de seu período como Regius Professor of Public Law and the Law of Nature and Nations da Universidade de Edimburgo) teve o título de "Just Law" e foi proferida em 28 de Janeiro de 2008, ocasião em que se tornou Professor Emérito da mesma Universidade. Nessa ocasião, o autor ofereceu esse panorama sobre a evolução de sua própria obra. Trata-se de um pensamento que toma como ponto de partida a original percepção de que o Direito é um "fato institucional" (idéia que expressou, primeiramen- te, em sua Inaugural Lecture, proferida em 1973, intitulada "Law as Institutional Fact") que se refinou para alcançar a formulação mais precisa e definitiva do Direito como "ordem normativa institucional" (institutional normative order), desenvolvida a fundo em seu recente livro Institutions of Law. Ademais, à medida que atenua sua adesão ao positivismo hartiano, passa a conceber a relação entre Direito e moral de forma mais próxima à "fórmula de Radbruch", segundo a qual situações extremas de injustiça não podem ser consideradas "Direito". Nesse espírito, 35 anos depois, em sua Valedictory Lecture, enfatiza que o Direito tem uma aspiração à justiça iaspiration to justice) e que a teoria do Direito não deve apenas cumprir a óbvia tarefa de teorizar sobre o Direito. Sua missão mais ambiciosa é teorizar sobre o "Direito justo" (/usf law): "A teoria do Direito é também sobre Direito justo" ("Jurisprudence is aiso about Just law"). X V I I RETÓÜ ICA E O E S T A D O DE D I R E I T O — N E I L M A C C O R M I C K ELSEVIER diversos aspectos do seu pensamento. Engajou-se não só com interlocutores britânicos, mas também com muitos autores importantes dos Estados Unidos, da Europa continental e da Escandinávia. Sua filosofia política (na qual se insere seu tratamento do ideal do Estado de Direito), sua concepção de argu- mentação jurídica (cujo ponto culminante é o Retórica e o Estado de Direito) e mesmo sua concepção de Direito (revisitada no recente Institutions of Law') evoluíram gradativamente. Essa evolução pode ser traçada em diversos livros e artigos publicados entre 1978 e 2007. Entre outras pubKcações sobre a sua "teoria institucional do Direito" e sobre a sua teoria constitucional para a União Européia, coordenou, junto com Robert Summers, u m projeto compa- rativo coletivo que resultou em dois importantes livros: Interpretando Leise Interpretando Precedentes.' Essas duas obras apresentam e comparam siste- maticamente as técnicas de interpretação das leis e dos precedentes de vários países importantes do Direito ocidental e desenham a metodologia da "re- construção racional". Em 2005, o autor publicou Retórica e o Estado de Direi- to, uma tentativa de consolidar essa experiência acumulada e de revisar e reconstruir a posição de seu primeiro livro. Argumentação Jurídica e Teoria do Direito. É, nas palavras do autor, a afirmação definitiva de sua teoria da argumentação jurídica. O presente livro é, portanto, a demonstração de como a interação cons- trutiva com os críticos pode contribuir para o desenvolvimento de idéias e para uma reelaboração mais refinada e poderosa de posições iniciais. Trata- se de uma atitude intelectual notável e incomum. MacCormick leva seus interlocutores a sério e não hesita em concordar com eles e em revisar as suas próprias idéias quando os considera corretos, ou em discordar e manter sua opinião, não sem antes depurá-la e mostrar precisamente por que discor- da. Sempre indica explicitamente onde seus argumentos se inserem na tradi- ção do pensamento, quais são suas referências e quais autores o influenciam em cada momento.® Não está obcecado em demonstrar ou insistir na corre- « N. MacCormick. Institutions of Law (Oxford: OUP, 2007). ' Originalmente, Interpreting Statutes, Dartmouth Publishing, 1991; e Interpreting Precedents, Dartmouth Publishing, 1997, ° Em sua Valedictory Lecture, Neil MacCormick demonstrou essa preocupação com transparência ao enumerar, explicitamente, suas principais dívidas intelectuais. Conforme dito acima, elas foram: H. L A. Hart, o iluminismo escocês (principalmente na obra de Stair), John Finnis, Ronald Dworkin, Robert Alexy e Otta Weinberger. X V I I I ELSEVIER R ÍTÕMCA E O ESTADO DE DIREITO NO BRASIL ção de suas posições originais, mas sim em encontrar as melhores respostas possíveis aos problemas que foi-mula. Pressupõe que seus críticos estejam, freqüentemente e pelo menos em alguma medida, corretos, e é na análise cuidadosa desta exata medida que ele qualifica e reapresenta o seu próprio argumento, tentando reconciliá-lo com a crítica. Pode-se dizer que tal ética acadêmica corresponde ao que, na tradição da retórica e da filosofia, se convencionou chamar de "princípio da caridade".' Esta atitude, provavelmente, influencia o caráter de sua própria teoria. É possível perceber, em praticamente todas as questões que o livro enfrenta, um grande esforço recondliatório e gradualista na busca de costurar um espaço conceituai para o "meio-termo", uma posição intermediária que não se adapta a uma dicotomia estática. Faz concessões para ambos os lados, mas não se acomoda a nenhum deles pois percebe que perderia algo cognitivamente importante e empobreceria a sua percepção do fenômeno ju- rídico. Rejeita, nesse sentido, a radicalidade de certos diagnósticos pretensamente definitivos sobre as qualidades ou defeitos do Estado de Direi- to. Obviamente, essas concessões só são feitas na medida em que MacCormick percebe que elas são necessárias à melhor compreensão do Direito. Qualquer crítica que ele não considere esclarecedora de alguma forma é refutada com argumentos contundentes. Algumas teses do livro exemplificam isso mais claramente: as regras jurídicas, de fato, não propiciam certeza absoluta, mas é possível minimizar a sua incerteza e indeterminabilidade; pode-se distinguir bons e maus argu- mentos, argumentos mais ou menos razoáveis, mas as pessoas continuarão a discordar sobre eles; argumentos jurídicos não são demonstrativos e con- clusivos, mas há aqueles mais persuasivos e objetivos do que outros; a dedu- ção, o silogismo e a decisão com base na análise das conseqüências (conseqüencialismo) não esgotam, certamente, o fenômeno jurídico, mas contam ao menos parte da história; juizes são falíveis, realmente, mas nem ix)r isso suas decisões deixam de ter validade dentro da ordem jurídica, e a validade da decisão não se confunde com a sua correção; juizes não são, efetivamente, aplicadores mecânicos de normas jurídicas, mas estão sujeitos a limites diferentes daqueles que agem sobre o legislador. ' Um princípio caro a muitos filósofos e que poderia ser formulado, de modo simplificado, da seguinte maneira: qualquer enunciado ou conjunto de enunciados proferidos por outra pessoa devem ser considerados, na maior medida possível, como não sendo nem absurdos, nem banais. XIX RFTÔR ICA t O E S T A D O D t D I B E I T O — N E I I M A C C O R M I C K ELSEVIER Esse esforço reconciliatório não se confunde com ecletismo ou sincretismo metodológico, por meio do qual os mais diversos argumentos, ainda que sejam contraditórios, são combinados, sem nenhuma mediação ou qualificação, dentro de uma macroteoria. Nessas teorias sincréticas as in- consistências ficam escondidas e o argumento ganha uma aparência persu- asiva. O próprio autor, em seu livro subseqüente, publicado em 2007, refuta o sincretismo metodológico: É fácil, portanto, prever os críticos acusando o presente trabalho de ecletismo simplista, de sincretismo metodológico. Talvez digam ser este apenas um exem- plo de um jurista se movendo rápida e frivolamente de uma teoria incompatível para outra teoria incompatível, selecionando porções aparentemente atraentes de cada uma e juntando-as sem perceber sua profunda incompatibilidade. Tal crítica seria, contudo, inadequada. Impressionar-se excessivamente com tal tipo de acusação envolveria retirar-se para o tipo de isolacionismo teórico castigado por Roger Cotterrell.'" Neil MacCormick escapa tanto do isolacionismo teórico típico de cer- tas correntes extremadas de pensamento quanto da tentação de transformar a teoria do Direito em uma mera colcha de retalhos. Não se satisfaz com o fatalismo de posições como a do realismo jurídico americano ou a dos estu- dos jurídicos críticos {criticai legal stiidies), segundo as quais o Direito não passaria, respectivamente, do que os juizes dizem que o Direito é ou de um ^ «mples mascaramento de batalhas ideológicas travestidas da aparente neu- { tralidade da técnica jurídica. Por outro lado, também não cai na descrição ^ fantasiosa do formalismo, que cumpriu papel ideológico central, desde a Re- volução Francesa, na sustentação da crença de que o juiz não é mais do que a "boca da lei". Portanto, não é porque descobrimos que as regras jurídicas ( não nos dão toda a segurança que desejávamos que devemos ignorar comple- ( tamente seu potencial para oferecê-la, em maior ou menor grau. ( "/t is easy therefore to foresee at this point critics leveiling at the present work accusations offacile eclecticism, or methodological syncretism. They may well say this is just an instance of a jurist flitting in a light-minded way from incompatible theory to incompatible theory, selecting attractive- seeming portions and lumping them together in blithe disregard of their deep incompatibility. Such criticism would, however, be ill-founded. To be over-impressed with sucb accusations would involve retreating into the kind oftheoretical isolationism castigated by Roger Cotterrell". (Institutions of Law, Oxford University Press, 2007, p. 303) XX ft; ELSEVIER RÍTÕMCA E O ESTADO DE DIREITO NO BRASIL Seria possível, porém, produzir uma teoria sofisticada e coerente que seja sensível a diversos pontos de vista e ocupe tal espaço do meio-termo? Procurar defender uma tal teoria, como faz este livro, é certamente menos confortável do que se apegar a qualquer das descrições absolutas e maniqueístas do fenômeno jurídico. Pode ser que sua teoria não esteja inteiramente corre- ta, mas pelo menos aponta para um caminho que permite capturar o fenô- meno jurídico mais integralmente. Este livro, obviamente, não teria razão de ser traduzido para a língua portuguesa se não nos ajudasse a pensar sobre o Brasil, Como vai o Estado de Direito brasileiro? Como vai anossa prática de argumentação jurídica? Em que medida a argumentação jurídica importa na forma como os tribunais e agentes públicos em geral têm tomado suas decisões? A resposta mais simples a essas questões é admitir que a auto-com- preensão da argumentação jurídica no Brasil se tomou fragmentada e, de certa forma, dispersa, A crítica ao formalismo que começa no início do século XX, com autores como Carlos Maximiliano, e que, de certa forma, persiste até hoje não oferece em troca uma teoria da argumentação relativamente articulada ou sistemática. Ao contrário, faz por vezes uso indiscriminado de teorias díspares com propósito quase que exclusivamente doutrinário. No mundo todo, ao longo, sobretudo, da segunda metade do século XX, novos métodos de interpretação da lei foram propostos e se adicionaram aos métodos tradicionais. Após uma primeira leva de críticas, Perelman e Viehweg propuseram outras estratégias e técnicas argumentativas fundadas na retórica aristotélica. Mais recentemente, afirmou-se que a utilização de princípios jurídicos em processos argumentativos teria aberto terreno para outra forma de argumentação jurídica que levaria à necessidade de outros tipos de argumento, como o da comparação dos relativos pesos das normas (ponderação). A recepção dessas teorias no Brasil nem sempre foi capaz, to- davia, de apreendê-las em todo o rigor e contornos originais, nem de identi- ficar os pontos de divergência que as caracterizaram. Em vez disso, seu uso marcadamente forense foijou uma espécie de amálgama dessas visões todas, produzindo uma massa de artifícios retóricos que passou a ser contraposta de forma dicotômica ao "formalismo positivista". Essa prática produziu um modelo de discurso que acabou por legitimar a apresentação de convicções subjetivas como se fossem Direito objetivo (e como se, nessa condição, fos- sem a única possibilidade de Direito objetivo, sem alternativas). X X I R E T Ó Ü I C A E O E S T A D O DE D I R E I T O — N E I L M A C C O R M I C K ELSEVIER Contudo, se o resultado desse século de luta contra o formalismo é um conjunto assistemático de técnicas e métodos de argvmientação em busca de u m a estrutura, o que MacCormick provê em Retórica e o Estado de Direito é justamente u m a teoria sobre como vários desses elementos se combinam em u m a estrutura compatível com o ideal do Estado de Direito. O autor propõe u m a determinada forma de ai-ticulação dos vários elementos da argumenta- ção jurídica, como a lógica formal ," a consistência e a coerência (Le. os princípios jurídicos), o conseqüencialismo, a força persuasiva dos preceden- tes (mesmo em sistemas em que os precedentes não são obrigatórios), e a relação entre regras e princípios imiversais e casos particulares. Mostra como combinar esses elementos de forma impessoal, racional e universalizável. Poder-se-ia objetar que u m tal projeto de inserção da argumentação jurídica em u m a estrutura que, se não é rígida, é ao menos coerente e siste- mática vai de encontro aos "costumes argumentativos brasileiros". No país em que o bacharelismo'^ ainda é u m importante componente da vida social, onde o argumento de autoridade é u m dos mais persuasivos e efetivos cânones a r g u m e n t a t i v o s , defender u m a fo rma de argumentação como a que MacCormick propõe poderia ser considerado algo inadequado ou, ao menos, fútil. A cultura jurídica no Brasil parece ser u m ambiente particularmente inóspito para formas não personalistas de argumentação em razão da predo- minância da autoridade e da erudição (em decisões judiciais, em pareceres etc.) como indicadores da qualidade de u m argumento. A já referida estrutura fragmentária da argumentação jurídica, resultante da multifacetada crítica ao formalismo, foi terreno fértil para o crescimento desse personalismo." A " O papel da lógica formal foi um dos alvos mais atacados por essas críticas ao formalismo. No entanto, nem mesmo os seus mais radicais críticos defenderam a tese de que a argumentação jurídica possa ser estruturada em termos de falácias. A lógica formal parece, portanto, ter algum papel dentro da argumentação jurídica, e MacCormick tenta demonstrar essa exata medida. " O bacharelismo é um traço Identificado na sociedade brasileira que se caracteriza pela valori- zação do diploma e dos títulos acadêmicos como instrumento para aquisição de status e de poder. Um estudo importante sobre o assunto é: Sérgio Adorno, Os Aprendizes do Poder: o bacharelismo liberal na política brasileira (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988). " Uma referência obrigatória sobre este traço personalista das relações interpessoais na socieda- de brasileira, cuja expressão mais acabada reside na figura do "homem cordial", que é impermeá- vel a padrões impessoais e objetivos nas suas relações, é: Sérgio Buarque de Holianda, Raízes do Brasil (Rio de Janeiro: José Olympio, 1987). XXII ELSEVIER RÍTÕMCA E O ESTADO DE DIREITO NO BRASIL certeza que não se podia mais encontrar nas razões do Direito passou a ser encontrada em pessoas. O governo dos homens (no caso, dos professores, dos jurisconsultos, dos grandes juizes etc.) subordina, em alguma medida, o go- verno das leis. A tradução do presente livro foi estimulada pela crença, compartilhada por muitos (e, entre esses, pelos tradutores), de que essa tendência possa ser revertida, e de que é possível combinar uma teoria da argumentação que não gera absoluta certeza com o ideal do Estado de Direito, sem se deixar seduzir pela certeza fácil e arbitrária do personalismo. Este livro, obviamente, não traz receitas prontas. Ele integra um conjunto de obras, quer já clássicas, quer contemporâneas, que nos ajudam a entender o papel e o valor da racionalidade na prática jurídica. Pode-se ler proveitosamente este livro em diferentes estágios de for- mação, desde o início de um curso de graduação em Direito até uma pós- graduação, ou mesmo como suporte à prática profissional de juizes, advogados etc. Essa leitura representa u m desafio intelectual duplo: compreender as complexas respostas do autor a cada problema e se posicionar pessoalmente sobre elas de maneira que faça jus ao esforço argumentativo do autor. X X I I I NOTA DOS TRADUTORES A tradução de Retórica e o Estado de Direito teve o privilégio de ser feita num contexto de diálogo com o próprio autor, que contribuiu com parte de seu tempo não apenas para escrever u m prefácio a esta edição e conceder uma entrevista de apresentação do livi-o, mas também para discutir dúvidas e opções de tradução que tivemos ao longo do trabalho. A transposição para a língua portuguesa de um trabalho acadêmico na área do Direito escrito em inglês encontra ao menos dois tipos de dificuldades: em primeiro lugar, os obstáculos decorrentes dos diferentes ritmos e estruturas gramaticais das duas línguas; em segundo lugar, as diferenças entre os dois sistemas jurídi- cos e seus respectivos conceitos e instituições, que muitas vezes não encon- tram equivalência perfeita um no outro. A qualidade da recepção de um livro estrangeiro numa cultura jurídica e acadêmica local depende, em parte, da qualidade da tradução e especial- mente do cuidado terminológico com expressões técnicas específicas. À me- dida que se traduz u m conjunto de obras dentro de uma mesma tradição de pensamento, como no caso desta coleção de Teoria do Direito, que abrange vários livros da tradição jurídica anglo-saxã, torna-se ainda mais importan- te convencionar as traduções desses termos técnicos, condição para que es- sas obras possam dialogar fluentemente na língua da tradução assim como o fazem na língua original. Por essa razão, a explicitação das eventuais dúvi- das e das escolhas de tradução é útil para minimizar potenciais problemas de interpretação do texto e para ajudar na consolidação de u m vocabulário está- vel para os termos técnicos de obras jurídicas escritas em inglês. Esta nota introdutória pretende explicar genericamente comolidamos com alguns desses dilemas. No decorrer do livro, quando oportuno, também optamos por fazer notas de tradutor específicas no rodapé, indicadas com o sinal de asterisco. RETÓÜ ICA E O E S T A D O DE D I R E I T O — N E I L M A C C O R M I C K ELSEVIER O livro menciona urna grande quantidade de nomes próprios de auto- ridades individuais (Lord Reid, p. ex.), instituições estatais (Privy Council, p. ex.), casos judiciais (Siveet v Parsley, p. ex.) e de diplomas legais (Employment RightsAct, p. ex.). Nesses casos, adotamos a regra de não traduzi-los e de manter a expressão estrangeira em itálico, com exceção de quando os nomes encontravam tradução simples e já convencionada na língua portuguesa. Portanto, House ofLords, Court ofAppeal e American Supreme Court, entre outros exemplos, receberam as versões já consolidadas em português - respectiva- mente, Câmara dos Lordes, Corte de Apelação e Suprema Corte americana. Privy Council e Home Secretary, por outro lado, são algumas das autoridades que decidimos manter na língua original. Por não haver qualquer expressão consolidada em português para se referir a essas autoridades e tampouco uma autoridade equivalente no sistema político brasileiro, consideramos essa a melhor opção. Uma rápida pesquisa sobre o sistema político estrangeiro pode sanar eventuais dúvidas do leitor. Muitos termos específicos em inglês não possuem uma tradução exata para a língua portuguesa, quer porque tenham múltiplos sentidos, cada qual expresso por uma palavra diferente na língua portuguesa, quer porque inexista uma palavra que denote exatamente o seu significado. Isso pode ocorrer, por exemplo, com a palavra right, que mais comumente se traduz como direito individual (e, portanto, diferente de law), mas algumas vezes pode significar "correto" ou "justo". Suas traduções, em regra, foram opções desconfortáveis na falta de uma melhor alternativa em português. Nesses casos, porém, de- cidimos manter a palavra original entre parênteses e itálico, pelo menos na primeira vez em que ela apareceu em cada capítulo. Alguns termos e expressões merecem menção específica aqui, pois impõem opções problemáticas de tradução. Comecemos por uma expressão que aparece no próprio título: Rule of Law. Em geral, essa expressão é traduzida por Estado de Direito (apesar da etimologia diferente desse conceito). A mesma raiz está presente em várias outras línguas, como por exemplo: Rechtsstaat, em alemão. Estado de Derecho, em espanhol, État de droit, em francês, Stato di diritto, em italiano, e assim por diante. Optamos por manter essa tradução, mas é importante notar al- gumas das nuances do termo em inglês. A noção de Estado de Direito, na tradição do civil law, muitas vezes é entendida de forma algo diferente do sentido exato da expressão Rule of Law, tal como usada neste livro. Esta X X V I u ELSEVIER NOTA DOS TRADUTORES corresponde sobretudo a certo padrão de racionalidade na aplicação do Direi- to. Aquela, mais comumente, refere-se a u m modelo de Estado que se subor- * dina ao Direito e que, portanto, não é autoritário. Eventualmente, costuma-se ' até conceber a noção específica de "Estado de Direito" de forma conectada à ^ democracia, de onde se deriva a expressão "Estado Democrático de Direito". O próprio autor, inclusive, não utiliza a expressão Rule of Law quando quer referir-se ao sentido mais restrito de Estado de Direito, preferindo a expressão < (pouco usual em inglês) Law State. , Desse modo, se a expressão "Estado de Direito" refere-se, mais comumente, em nossa tradição, a um determinado sistema político que su- bordina a atuação do governo às regras do Direito com o objetivo de evitar o ' autoritarismo, a idéia de "rule of law", sobretudo no contexto em que o livro ( se insere, diz respeito também a esse ideal, mas acentua u m componente ( específico do Direito ao qual o Estado se subordina. Ressalta, assim, a neces- sidade de certeza em sua aplicação e põe em destaque sua constituição a ' partir de regras preexistentes e razoavelmente claras, de modo a evitar-se ' não apenas o risco de autoritarismo, mas também o de se produzirem, por ( conseqüência de um Direito menos claro, decisões judiciais erráticas, incon- sistentes e, eventualmente, arbitrárias. Entre nós, esse componente específi- co do rule of law, que é talvez aquele mais propriamente ligado ao termo tal como é utilizado no título original em inglês, é mais comumente identifica- < do com o princípio da legalidade. Portanto, uma outra opção (igualmente { desconfortável) de tradução para o título seria algo como Retórica e Legalida- i de. No caso, a escolha pela tradução afinal utilizada foi do próprio autor. Universalizability foi aqui traduzido por universálizabilidade (o texto * também apresenta algumas de suas variantes: universal, universalization e universality, correspondentes, em português, a universal, universalização e universalidade, respectivamente). Trata-se de u m termo da filosofia moral kantianajá consolidado mesmo na língua portuguesa. Numa paráfrase, sig- nificaria a "capacidade de ser imiversalizado". São universalizáveis aqueles preceitos morais igualmente aplicáveis a todos. I O substantivo defeasibility, tal como utilizado no livro, diz respeito à qualidade daquilo que pode ser subseqüentemente excepcionado. Conforme referido no Oxford American Dictionary, dtfeasible é aquilo que está "aberto, em princípio, à revisão, à otyeçao válida, ao desapossamento ou à anulação". ^ Conforme exposto neste livro, são dessa ordem as certezas e as universalizações ( X X V I I ' RETÓÜICA E O E S T A D O DE D I R E I T O — N E I L M A C C O R M I C K ELSEVIER que encontramos no Direito. São certezas e universalizações que valem plenamente, mas apenas até o momento em que sejam alteradas ou modifi- cadas (por força da argumentação). Nesse momento, tais certezas e universa- lizações são substituídas por novas certezas e universalizações, as quais, igualmente, estarão sujeitas a potenciais alterações ou modificações subse- qüentes. Considerando a dificuldade de encontrar algum termo em português que traduzisse perfeitamente essa idéia, preferimos, como regra, deixar o substantivo no original em todas as suas ocorrências. No caso de suas varian- tes, optamos por traduzi-las pelas variantes de "excepcionar", e por manter os termos originais entre parênteses e em itálico. Assim, defeat foi traduzido por excepcionar, defeating por excepcionador, defeasible por excepcionável e defeasance por exceção. Também optamos por manter no original as expressões common law e civil law, usadas para designar de forma geral os Direitos pertencentes às tradições anglo-saxã e romano-germânica, respectivamente. Nesse caso, a justificativa para essa decisão consistiu no fato de já serem, entre nós, ter- mos de uso comum, normalmente referidos em inglês, sem que para eles exista uma tradução igualmente consagrada. Especificamente no que respeita à tradição do common law, sabe-se também da importância desempenhada pelo sistema de precedentes, que são considerados fontes formais de Direito. O Direito produzido a partir dos pre- cedentes é chamado de case-law e, na falta de melhor expressão para designá- lo, traduzimos essa expressão por "Direito jurisprudencial". A razão para a escolha dessa expressão foi a tentativa de diferenciar essa fonte de Direito própria da tradição anglo-saxã daquilo que chamamos entre nós de "juris- prudência", uma vez que essa última expressão remete, entre nós, a u m corpo de decisões mais ou menos vasto ao qual não é reconhecido o status de fonte formal de Direito. Já a expressão statute, que na tradição do common law designa de u m modo geral as leis produzidas pelo Parlamento, foi nor- malmente traduzida por "lei" ou por "Direito escrito", conforme o caso. Oferecemos, a seguir, um pequeno glossário contendo as escolhas de tradução que julgamos mais importante explicitar, para o efeito de esclareci-mento do exato sentido do texto original, nas ocasiões em que tais expres- sões são utilizadas. O glossário não substitui, obviamente, a consulta a um dicionário jurídico ou a pesquisa detida do Direito estrangeiro para aqueles interessados em desenvolver um estudo mais aprofundado. X X V I I I GLOSSÁRIO INSTITUIÇÕES ESTATAIS TRADUZIDAS American Supreme Court - Suprema Corte americana Court ofAppeal - Corte de Apelação Court of Criminal Appeal - Corte de Apelação Criminal Crown - Promotoria European Court of Justice - TVibunal de Justiça Europeu Higher Court - Corte Superior House ofLords - Câmara dos Lordes Trial court - corte de primeira instância Canadian Supreme Court - Suprema Corte canadense German Constitutional Court - Tribunal Constitucional alemão INSTITUIÇÕES ESTATAIS MANTIDAS N O ORIGINAL Attorruy General Employment Appeal Tribunal EngUsh Law Commission Foreign Compensation Commission HomeSecretaty Inner House of the Court ofSession Privy Council Scottish High Court ofJusticiary T E R M O S ESPECÍFICOS Adjudication - contencioso, decisão judicial Adjudicative institutions - instituições judicantes Arguable - defensável / sujeito à argumentação The arguable character oflaw - o caráter argumentativo do Direito RETÓÜ ICA E O E S T A D O DE D I R E I T O — NEiL M A C C O R M I C K ELSEVIER Argument - disputa / argumento Authoritaüve - dotado de autoridade Backward-looking / forward-looking - retrospectivo / prospectivo Balance, balancing - balanceamento Binding - vinculantes Binding precedent - precedente vinculante Body Body oflaw - ordenamento jurídico / conjunto de normas Body of case law - conjunto de casos Public body - órgão público Case - argumento / pleito / caso Case-law - Direito jurisprudencial Problem-case - caso-problema Hard-case - caso difícil Causation - nexo de causalidade / causalidade Charge - acusação Civil litigation - contencioso civil, procedimentos civis Claim - alegação, exigência, pleito, argumento Compensation - indenização / reparação Compensatory award - indenização Constraint - constrangimento / freio, limite Construction - interpretação / construção Decision-mãker - autoridade decisória Deductivism - dedutivismo Defeasibility - defeasibility Arguing defeasibly - argumentação sujeita a exceções Defeasible - excepcionável Defeating - excepcionador Defeat - excepcionar D^easance - exceção Depart - rejeitar, afastar (to depart from precedent / departure from precedent) XXX J ELSEVIER GLOSSÁR IO Directive - diretivas Doctrine - doutrina / teoria Enact - promulgar / editar / positivar Enacted law - Direito posto, Direito legislado Enacted mies - regras promulgadas Evidence - prova / meio de prova Circumstantial evidence - prova circunstancial Direct evidence - prova direta Law of evidence - Direito probatório Expediency - conveniência e oportunidade Fault - culpa Formalistic - formalista Formalism - formalismo Framework laws - leis-quadro Free government - governo democrático, governo livre Classes - interpretações explicativas Guidance - diretriz Holding - decisão / dispositivo Initial pleadings - petições iniciais Injury - dano, lesão Instance - desdobramento / exemplo / concretização To instantiate - exemplificar Interpretive - interpretativo Judge-made law - Direito produzido por juizes / Direito jurisprudencial Judicial lawmaking - criação judicial do Direito Jurisprudence - teoria do Direito Justification - justificativa / justificação Justifying reasons - razões justificadoras Justificatory practices - práticas justificadoras XXXI ( ^ RBTÓHICA I o E S I A O O Df D I K E I T O — N E I L M A C C O R M I C K ELSEVIHl ^ LãW - Dire i to / lei ( Laws - leis i ( Law-state - Estado de Direito i Law reports - repertórios de jurisprudência í Lawfiil / unlawfiil - legal / ilegal j Lawmaker - legislador í Lawyers, jurists - advogados, juristas Legal - jurídico, legal Legal commentators - a doutrina / doutrinadores [ Legal materiais - materiais jurídicos, documentos jurídicos, fon- tes jurídicas : Legal order - ordem jurídica í Legal reasoning - argumentação jurídica / raciocínio jurídico j Legal setting - cenário jurídico, contexto jurídico Legal system - sistema jurídico L^aíZy-juridicamente J Legislature - legislador, Poder Legislativo [ Liability - responsabilidade [ Liable - responsável / sujeito a ser responsabilizado Substitiite liability - responsabilidade subsidiária Law - Direito Law of tnists - o Direito fiduciário (trusts - arranjos fiduciários) ' Laws - leis j Loss - dano í { ( ( Material facts - fatos juridicamente relevantes Merits of the case - mérito do caso Misdirection - orientação equivocada do juiz ao júri I Offence - ofensa / infração ! Ojficial - funcionário público / agente público ^ Opinions, decisions - decisões Outweigh - superar, ter mais peso, sobrepujar {outweighing reasons) X X X I I ELSEVIER GLOSSÁR IO Persuasiveness - habilidade de persuadir / persuasividade Fractítioner - profissional do Direito, operador do Direito Precedent - precedente Precedent-based system - sistema baseado em precedentes Precedent texts - textos dos precedentes Principie - princípio Principled application - aplicação fundada em princípio Rationalizing principies - princípios de racionalização Proposition - proposição / tese Prosecutor - a persecução penal Prospective overruling - revogação com efeitos não retroativos Provision - disposição Purposive interpretation - interpretação teleológica Pursuer, plaintiffi petitioner - autor da ação judicial Reason - razão Reasoning - argumentação / raciocínio Practical reasoning - razão prática / argumentação prática Coherentist reasoning - argumentação por coerência Remedy - tutela judicial, indenização Respondent, defender, drfendant - réu Rules - regras Rule-case - caso-regra To rule - estabelecer, decidir Ruíings - decisão / soluções Scholar - acadêmico / intelectual / estudioso Shareholder - acionista Controlling shareholder - acionista controlador Sound - sólido / adequado Standard - parâmetro, padrão / conceito jurídico indeterminado Statute / statutory law - lei, leis, direito legislado Statute-book - código escrito Statutory provision - disposição legislativa Statutory interpretation - interpretação da lei X X X I I I RETÓRICA E O ESTADO DE D I R E I T O — N E I L M A C C O R M I C K ELSEVIER Thin / thick terms - ternios fracos / fortes Thought-object - objeto mental Treatises - manuais Dial - julgamento, procedimento instrutório Type-case - caso típico Universal - universal Universal instantiation - exemplificação da proposição universal Universal nexus - conector universal Universality - universalidade Universalizability - universalizabilidade Universalizer / rational universalizer - universalizador racional Universais and particulars - universais e particulares Value-expression - expressão carregada de carga valorativa Value judgment - juízo de valor Value-scepticism - ceticismo moral Weighing - sopesamento / ponderação X X X I V Á SUMÁRIO Capítulo 1 - Prólogo: A teoria institucional e a perspectiva do legislador 1 Introdução 1 1. Teoria inst i tucional 3 2. A perspectiva do legislador 9 C a p í t u l o 2 - 0 Estado de Direito e o Caráter Argumentativo do Direito 1 7 Introdução 17 1. Primeiro l u g a r - c o m u m : o caráter a rgumenta t ivo do Direito . . 1 9 2. Segundo luga r - comum : o Estado de Direito 2 1 3. Em direção à reconciliação 2 3 (a) Teorias Retóricas 2 3 (b) Teorias Procedimentais 2 8 (c) Leis 3 2 Capítulo 3 - Sobre o Silogismo Jurídico 4 3 In t rodução 4 3 1. O silogismo jur ídico 4 5 2. O Direito c o m o algo sujeito a interpretação? 5 2 3. U m a diferença do common law? 5 9 4. Insti tuição e r azão 6 4 Capítulo 4 - Em defesa do deducionismo 6 5 In t rodução 6 5 1. l l m Direito sem lacunas? 6 9RETÕH ICA E O E S T A D O DE P I H E I T O — N E I L M A C C O R M I C K ELSEVIER 2. A objeção kelseniana 73 3. Valor-verdade e fatos institucionais 81 4. Qual lógica para os juristas? 90 5. Uma objeção: classificar é também decidir 93 6. A verdade e os procedimentos para determinação da verdade.. 95 7. Avaliações na argumentação jurídica 97 8. Predicados normativos? 100 9. Conclusão 101 Capítulo 5 - Universais e Particulares 1 0 3 Introdução 103 1. Particularismo 104 2. Universalizando elementos particulares 116 3. Universalização ou generalização 121 4. Universalização e indução: o pensamento causai 126 5. A universalização na justificação 129 Capítulo 6 - Argumentação fundada em Conseqüências.. 135 Introdução 135 1. Armadilhas para os conseqüencialistas 138 2. Conseqüências como implicações - "conseqüências jurídicas" 139 3. Avaliação das conseqüências 149 4. Os valores do Direito 153 Capítulo 7 - Argumentando sobre a Interpretação 1 6 1 Introdução 161 1. Categorias de argumentos interpretativos 165 2. Argumentos conflitantes e solução de conflitos 182 3. A Interpretação no contexto da argumentação prática 184 4. Classificação 187 xxxvi ELSEVIER SUMAKIO Capítulo 8 - Usando Precedentes 191 Introdução 191 1. Justificação na decisão jurídica 195 2. Legalismo na justificação 198 3. Um modelo de ratio 202 4. A reconstrução mais racional? 204 Capítulo 9 - Sendo Razoável 2 1 3 Introdução: subjetividade e objetividade 2 1 3 1. Por que "razoabilidade"? 223 2. Interpretando a "razoabilidade" : 227 3. Sobre o que é razoável, e sobre se essa seria uma questão de fato 234 Capítulo 10 -Coerência, Princípios e Analogias 24 7 In t rodução 2 4 7 1. Coerência Normativa 249 (a) O significado da coerência 249 (b) Princípios e coerência na justificação; alguns exemplos 253 (c) Por que a coerência justifica 263 2. Analogia e princípio: "desenvolvendo o Direito" 268 3. Analogia e classificação: entendendo corretamente 276 Capítulo 11 -Nar ra t ivas Jurídicas 2 79 Introdução 279 1. Tempo e atividade 279 2. Tempo e narrativas 282 3. Narrativas e Direito: casos 285 4. Prova e coerência narrativa 288 5. A Distinção entre coerência narrativa e normativa 298 6. Coerência normativa como coerência narrativa? 303 X X X V I I RETÓÜ ICA E O E S T A D O DE D I R E I T O — N E I L M A C C O R M I C K ELSEVIER Capítulo 12 -Argumentação sujeita a exceções (Arguing Defeasibly) 3 0 7 Introdução 307 1. Pragmática e excepcionalidade 309 2. Pragmática e realismo 320 3. Defeasibility, poderes e instituições 322 4. Defeasibility de regras? 326 Capítulo 13 - Julgando equivocadamente? 329 Introdução 329 1. Sobre questões de opinião 331 2. Precedentes e a teoria declaratória 339 3. Decisionismo: um exemplo 344 4. Contra o decisionismo 351 5. Falibilidade judicial e o Estado de Direito 357 Apêndice - Entrevis ta com Neil MacCormick 3 6 3 Apêndice - índice de Casos 3 7 7 índice O n o m á s t i co 3 8 1 índice Remissivo 3 8 5 X X X V I I I Capítulo 1 PRÓLOGO: A TEORIA INSTITUCIONAL E A PERSPECTIVA DO LEGISLADOR INTRODUÇÃO 'A prisão por tempo indefinido sem acusação nem julgamento prévios é um anátema em qualquer país que observe o Estado de Direito. Ela priva a pessoa detida da prote- ção que o processo penal se destina a oferecer. Circunstâncias verdadeiramente excep- cionais precisam existir antes que esse passo extremo possa ser justificado.'" Essas palavras (proferidas por Lord Nicholls de Birkenhead) colocam em questão um dos profundos desafios enfrentados pelo Direito contemporâneo. Pode o Estado de Direito ser mantido em face dos perigos contemporâneos que emer- gem do terrorismo e das preocupações com a segurança pública? Por meio de quais argumentos advogados e juizes podem enfrentar esse problema? Esses ar- gumentos são testáveis de forma objetiva e impessoal, ou são puramente políti- cos e subjetivos, não possuindo qualquer caráter jurídico especial? Responder a essas questões exige uma ampla compreensão acerca da riatureza dos argumen- tos jurídicos. Este livro oferece uma teoria da argumentação jurídica. Ele revisa as posi- ções apresentadas em meu Legal Reasoning and Legal Theory de 1978, levando em consideração críticas significativas feitas àquele trabalho e, também, respon- dendo ao trabalho de outros estudiosos. A trajetória do meu pensamento tem ' A (FO and others v Secretary of State for the Home Department [2004] UKHL 56 {parágrafo 74). Lord Nicholls foi um dos oito (entre nove) juizes que concluíram que as circunstâncias não eram suficien- temente excepcionais para justificar a prisão sem julgamento ou acusação prévios de estrangeiros suspeitos de terrorismo, em circunstâncias nas quais cidadãos britânicos sobre os quais recairiam as mesmas suspeitas não estariam sujeitos ao mesmo regime. Os argumentos apresentados no caso ocupam um lugar importante entre aqueles discutidos ao longo deste livro. Preferindo dar ao caso um nome mais fácil de lembrar que "A(FO v Home Secretary", eu o chamo de "Caso dos Suspeitos de Terrorismo". 1 RcTõmcA E o ESTADO DC DiRtiTo - N E I L M A C C O K M I C K ELSEVIER estado distante de alguns dos elementos que formaram o pano de fundo de meu argumento em Legal Reasoning and Legal Theory, sobretudo daqueles colhidos do positivismo jurídico apresentado por H.L. Hart e do ceticismo moral derivado de David Hume. As formas básicas de argumentos jurídicos continuam parecendo- me terem sido bem descritas no livro de 1978. Agora, contudo, parece-me que toda a empreitada de explicar e sistematizar critérios e formas de boa argumen- tação jurídica tenha que ser colocada no contexto dos valores fundamentais que nós imputamos à ordem jurídica. A argumentação em relação à aplicação do Direito à luz desses valores é persuasiva, não demonstrativa, e nesse sentido o presente livro é uma contribuição à "nova retórica" tratada pioneiramente por meu falecido amigo e respeitado colega Chaim Perelman, j u n t o com Lucie Olbrechts-Tyteca. Alguns argumentos são genuinamente melhores que outros, ainda que seja freqüentemente possível que juizes razoáveis e bastante experien- tes divirjam quanto à conclusão correta a ser atingida. Nesses casos, decisões devem ainda assim ser tomadas, em caráter final mas não infalível, porque não é em contrapartida razoável usar métodos como uma votação majoritária para resolver uma questão que deve ser resolvida no interesse da justiça e da boa ordem. ̂ Hido isso tem relação com o Estado de Direito. Respeitar o Estado de Direi- to é algo de profundo valor político em Estados ou confederações de Estados, como a União Européia. Ter leis devidamente publicadas e prospectivas, igualda- de dos cidadãos diante dessas leis e limitação do poder oficial em respeito a elas são os alicerces da liberdade democrática, consistindo em elementos essenciais para a estabilidade econômica. T\ido isso não seria possível se as leis e os argu- mentos a respeito delas tivessem apenas u m simulacro de inteligibilidade. Nesse caso, quando chegasse o momento de aplicá-las, qualquer coisa poderia aconte- cer, por conta da radical indeterminação dos textos legais e da ausência de quais- quer bases razoáveis para preferir uma interpretação a outra. À visão pós-positivista do Direito pressuposta nesta investigação acerca dos argumentos jurídicos é dado o nome de "teoria institucional do Direito". Uma pequena explicação é necessáría aqui para revelar as premissas acerca do caráter do Direito que animam o resto do livro e dão apoio ao estudo da argu- mentação jurídica aqui oferecido. ' Scott Veitch questiona a necessidade de alcançar uma decisão final em casos especialmente contro- versos, e o faz a partir de uma perspectiva liberal específica do Estado de Direito. Esse é um questionamento importante, com o qual irei lidar mais adiante neste trabalho. Ver S. Veitcfi, Moral Conflict and Legal Reasoning (Oxford: Hart Publishing, 1999), p. 169-71.ELSEVIER C A P Í T U L O 1 — PRÓLOGO: A TEORIA INSTITUCIONAL E A PCRSPCCTIVA DO LEGISLADOR 1 . TEORIA INSTITUCIONAL o Direito é uma ordem normativa institucional. O exemplo mais saliente e comumente debatido do Direito, o Direito interno do Estado moderno, tem características especiais, e é apropriado ao propósito deste livro focar-se princi- palmente nessas ou em ou t ras características similares de organizações supranacionais duráveis como a União Européia. Mas, neste estágio preliminar, uma visão mais geral é apropriada. Duas idéias proximamente relacionadas, aquelas de "ordem jurídica" e "sis- tema jurídico", são essenciais a essa visão mais geral. A ordem jurídica é um exemplo de ordem normativa. Ela se estabelece quando a vida em uma determi- nada sociedade segue seu curso de uma maneira ordenada e com uma razoável segurança de expectativas comuns entre as pessoas, sobre as bases de uma ob- servância razoável das normas de conduta aplicáveis pela maior parte das pessoas. Isso pressLipõe uma concepção de Direito como algo até certo ponto sistemático e organizado, u m conjunto de normas organizado e sistemático em sua natureza. Se as pessoas acreditam e orientam sua conduta de acordo com u m conjunto de normas considerado como u m sistema jurídico, essa é uma maneira de atingir uma certa medida de ordem e segurança entre elas. Isso é possível mesmo em sociedades de larga escala, cuja maior parte dos membros não tem qualquer co- nhecimento pessoal uns dos outros. É claro que u m sistema jurídico não é uma entidade física tangível. É uma construção ideal ou u m objeto mental. Um siste- ma jurídico pertence ao mundo social real, não a vun mvmdo puro de idéias, na medida em que uma ordem legal correspondente exista, ainda que imperfeita- mente. Afirmar que u m "sistema jurídico" existe em algum lugar é uma forma de dar conta da ordem social que é encontrada ali. Um elemento significativo no ordenamento à nossa volta pode ser uma "ordem jurídica". Duas condições pre- cisam ser satisfeitas para que isso possa se dar dessa maneira. A primeira é a seguinte: há muitas normas de conduta regulando as ativi- dades das pessoas, e essas atividades em grande medida se conformam àquilo que as normas exigem. Ademais, conformando-se de fato ou não, e não impor- tando em que medida as pessoas estejam ou não cientes de uma dada norma específica, elas estão cientes de que há normas regulando aquilo que elas fazem. O que elas fazem é, portanto, legal ou ilegal, ou de uma outra forma juridica- mente efetivo ou inefetivo. Uma consciência generalizada disso informa muito do que as pessoas fazem e, em particular, o modo como elas respondem a e fazem julgamentos sobre aquilo que as outras pessoas fazem (e até mesmo sobre o que elas mesmas fazem). RETÓRICA E O ESTADO DE D I R E I T O — N E I L M A C C O R M I C K ELSEVIER A segunda condição é esta: todas as numerosas normas de que falamos são consideradas como sendo em alguma medida interconectadas umas às outras. Todas elas se ajustam formando em alguma medida u m único corpo do "Direito". É na articulação desse corpo único que nós utilizamos a idéia de "sistema". "Nós", que utilizamos a idéia de sistema, somos todos aqueles envolvidos até certo ponto no estudo profissional ou acadêmico do Direito, ou seja, na "ciência jurídica". A sistematização do Direito e da compreensão jurídica tem sido uma tarefa contínua da ciência jurídica sob muitas formas ao longo de três milênios. Não precisamos fingir que exista uma única visão ou versão verdadeira do que seja o sistema jurídico; tem havido muitas descrições iluminadoras de um ou outro aspecto dessa idéia ou família de idéias. O que é oferecido aqui é um mode- lo baseado na idéia de ordem normativa institucional. O primeiro elemento nes- sa idéia lida com a tentativa de garantir a existência de julgamentos imparciais e respeitados em casos que envolvam disputa ou controvérsia acerca do significa- do de uma norma em u m dado contexto prático, ou que envolvam sua aplicação justa em u m determinado caso. Esse elemento também lida com situações nas quais alguém se nega a se submeter voluntariamente a uma dada sanção ou conseqüência jurídica, mesmo que não exista nenhuma dúvida séria quanto ao fato de ter havido a violação de uma norma capaz de acarretar aquela sanção ou conseqüência jurídica. Aqui também torna-se necessária alguma forma de inter- venção imparcial de u m terceiro. A simples intervenção de um espectador ou de árbitros escolhidos pelas partes pode algumas vezes ser suficiente para suprir essas necessidades, mas, nas hipóteses em que ocorre recusa de submissão vo- luntária, ou quando não há qualquer razão para crer que a submissão voluntária poderá ocorrer, algo mais é necessário. É preciso haver, então, algum modo de recorrer a uma pessoa ou grupo de pessoas com autoridade reconhecida para tomar decisões em casos como esses, sem viés evidente em relação a uma parte ou à outra. Essas pessoas têm de ser brindadas com u m status pessoal, ou poder suficiente, ou com o apoio daqueles que exerçam u m poder suficiente para tomar quaisquer decisões e fazê-las efetivas mesmo contra uma parte recalcitrante, ao menos na maior parte dos casos. Esse pode, em muitos casos (e não apenas naquele do Estado soberano que é senhor de u m território definido), ser o portão de entrada que marca o início de certa organização. Esse é o ponto no qual passam a existir critérios sobre: • quais indivíduos, com quais qualificações, são competentes para agir como julgadores; • quais as circunstâncias que os autorizam a exercer essa competência; e jL ELSEVIER C A P Í T U L O 1 — PRÓLOGO: A TEORIA INSTITUCIONAL E A PCRSPCCTIVA DO LEGISLADOR • quais (se é que ajam algumas) as formalidades de tipo processual que devem ser observadas para dar início ao processo de julgamento, para levá-lo adiante isento de quaisquer vícios e para chegar a uma conclu- são. Tal conclusão toma a forma de uma decisão ou ordem emitida pela autoridade a cargo do julgamento e vinculante em relação àqueles a quem ela é endereçada. A essa altura, podemos dizer que julgamentos institucionalizados existem nesse determinado contexto. Aqueles que podem exercer a tarefa de julgar desse modo regulado consistem, coletivamente, em uma instituição dotada de poderes judicantes. O exercício apropriado do poder, por meio de procedimentos adequa- dos e outras condições necessárias, produz decisões válidas (ou "julgamentos"). E assim podemos caracterizar a existência de "instituições judicantes", que produ- zem "julgamentos institucionalizados". No modelo em questão, esses elementos são fundamentais à ordem norma- tiva institucional. Através do portão de entrada mencionado anteriormente, nos movemos de uma ordem normativa informal e não institucional para uma ver- são já institucional de ordem normativa. Uma vez que essa transição seja feita, dois problemas surgem quase automaticamente: o problema da identidade e o da mudança. O problema da identidade diz respeito à possibilidade de determinar em qualquer momento no tempo se u m a norma particular ou disposição normativa é relevante e vinculante para os órgãos judicantes institucionais. Pres- supondo que esses órgãos não sejam considerados competentes para emitir jul- gamentos com base em simplesmente qualquer coisa, e que sua autoridade tenha se constituído no contexto de alguma compreensão ampla do que seja sua esfera de atividade e do que seja sua correlata esfera de competência, isso exigirá defini- ções tanto positivas quanto negativas. Positivamente, o que conta como base satisfatória ou razão satisfatória para a decisão? Essas bases incluem normas ou disposições normativas de algum tipo? E o que não pode contar como razão adequada ou relevante? Quais as normas que, podendo ter sido eventualmente invocadas, devem ser excluídas, por serem irrelevantes para esse processo de tomada de decisão? Nós podemos, de fato, estabelecer comocondição para a efetiva institucio- nalização que sejam reconhecidos critérios de inclusão e exclusão, ainda que não necessariamente exatos e perfeitamente detalhados. H.L.A. Hart sugere para isso a útil terminologia de "critérios de reconhecimento",^ distinguindo entre normas ' Ver H.LA. Hart, The Concept of Law, 2' ed., Oxford: Clarendon Press, 1994, p. 95-6. RETÓRICA E O ESTADO DE D I R E I T O — N E I L M A C C O R M I C K ELSEVIER reconhecidas e aquelas que não são reconhecidas como de aplicação obrigatória por parte dos órgãos judicantes. Estes podem ainda considerar que algumas nor- mas sejam de aplicação possível, mas não obrigatória. Na medida em que seja- mos capazes, em relação a uma dada instituição judicante, de especificar esses critérios, seremos capazes de imputar uma certa identidade ao corpo de razões que podem dar suporte à decisão, incluindo normas e disposições normativas que estejam em uso. O problema da mudança surge da necessidade sentida pelos seres huma- nos de ajustar suas expectativas a u m ambiente natural, tecnológico e social em mudança. Em alguma medida, as instituições judicantes precisam lidar com isso. Por exemplo, na medida em que elas incluem a necessidade de adaptação e mu- dança entre as razões que são consideradas como relevantes para dar suporte a uma decisão. Mas qualquer coisa que redunde em reforma, colocando o processo de tomada de decisão, deliberadamente, em um caminho novo em relação àquele que tenha prevalecido anteriormente, irá provavelmente exigir u m processo dife- rente de tomada de decisão e anúncio da mudança. É quase inevitável que o anúncio dessa mudança tenha que tomar a forma de algum tipo de norma geral que seja aplicada de modo a impedir a utilização de razões anteriormente reco- nhecidas à solução de u m determinado conflito. Mais uma vez, isso acaba sendo institucionalizado e, de novo, isso ocorre por meio do esclarecimento dos critérios que estabelecem - • quais indivíduos, com quais qualificações, são competentes para atuar de modo a alterar as normas em vigor; • quais as circunstâncias em que eles são autorizados a exercer essa com- petência, bem como quais, se é que haja algumas, as formalidades de tipo processual que devem ser observadas para que se possa iniciar o processo de criação de normas, levá-lo adiante sem vícios e chegar a uma conclusão. A conclusão, nesse caso, envolve a promulgação de uma norma ou con- jun to de normas explicitamente destinado a guiar as instituições judicantes e também, mais que possivelmente, as pessoas cujas vidas são afetadas pelos ór- gãos judicantes. No modelo explicado até aqui, nada foi dito quanto à separação do pessoal encarregado de operar essas instituições. O fato de ser a criação de novas normas uma atividade distinta, em princípio, daquela consistente em aplicar as normas exis- tentes (ou de trabalhar com outros fundamentos reconhecidos de decisão) não significa que precise haver pessoas diferentes encarregadas de cada uma dessas ELSEVIER CAPÍTUIO 1 — Püóioco: A TfoniA INSI ITUCIONAI t A PERSPECTIVA DO LEGISLADOR tarefas. De fato, em muitos contextos não haverá. Mas a diferenciação dessas funções torna possível alguma forma de disposição constitucional para a separa- ção dos poderes envolvidos em órgãos compostos de membros completa ou signi- ficativamente distintos. O Estado liberal-democrático tal como ele se desenvolveu a partir do século XVII tem sido marcado por esforços direcionados a atingir uma separação funcional, ainda que não absoluta, de tarefas entre diferentes órgãos institucionais. Isso envolve a proibição de que (a maior parte das) pessoas que exerçam funções em u m determinado órgão também as exerçam em outro. A "separação de poderes" compreendida nesse sentido tem sido, ao menos nos de- talhes, pensada e posta em prática de maneira diferente em diferentes tradições constitucionais, representando partículas distintas em uma tradição mais ampla de governo democrático abaixo de u m Estado Constitucional ou Rechtsstaat (Es- tado de Direito). De uma forma ou e outra, a separação de poderes é u m elemento essencial do Estado de Direito. Aqueles que aplicam o Direito, interpretando-o e desenvolvendo-o à medida que o fazem, devem ser pessoas distintas em relação àquelas que o positivam.'* Nós encontramos ordens normativas institucionais que se aproximam desse modelo em muitas formas duráveis de atividade social institucionalizada e em grupos corporativos e coletivos ou empresas, mas, em um grau particularmente alto, as encontramos em Estados nacionais. Para repetir um ponto já menciona- do, essa não é simplesmente u m a questão abstrata relativa a u m sistema normativo concebido como u m puro objeto do pensamento. A idéia de imi siste- ma como tal oferece uma moldura para entender a vida dentro de um Estado ou de uma dada coletividade como sendo algo organizado, ainda que imperfeita- mente. A conduta dos indivíduos e dos grupos se conforma em alguma medida aos padrões estabelecidos naquilo que nós consideramos serem as normas do sistema, e as pessoas podem ser avaliadas com vistas àquilo que o sistema con- sidera serem razões boas ou apropriadas para a ação (e assim por diante). Além disso, essa não é apenas uma questão de estabelecer-se uma visão externa sob a perspectiva de u m determinado observador. É também uma visão prática do pon- " A idéia de "Estado de Direito" utilizada aqui e no resto deste livro é explicada de forma mais detida no Capítulo 3 (p. 27-48) de N. MacCormick, Questioning Sovereignty: Law, State, and Nation in the European Commonwealth (Oxford: Oxford University Press, 1999). Há ainda uma excelente exposi- ção sobre o "Estado de Direito liberal" em Scott Veitch, Moral Conflict and Legal Reasoning, p. 137-40. Esse livro captura bem o conceito, mostrando algumas das dificuldades que ele apresenta para uma abordagem satisfatória da argumentação jurídica. Outra tese recente e consistente, ressaltando a relevância do Estado de Direito para a autonomia pessoal, está em Sebastian Urbina, Legal Method and the Rule of Law (Dordrecht: Kluwer Academic, 2002), p. 225-43. RETÓRICA E O ESTADO DE D I R E I T O — NE I L M A C C O R M I C K ELSEVIER to de vista do participante. Os membros de determinados grupos podem dirigir sua própria conduta com vistas (mas não necessariamente de modo absoluto ou irrestrito) àquilo que eles compreendem ser as normas do sistema. Ao concebe- rem expectativas acerca das condutas dos outros, eles podem, de u m modo mais ou menos consciente, presumir que esses outros irão dirigir seus comportamen- tos de forma similar a partir daquilo que se entende serem as normas aplicáveis a esses comportamentos. Portanto, a compreensão da existência de um sistema normativo e a compreensão do fato de que os outros vêem esse sistema normativo de modo semelhante e dão a tal sistema semelhante consideração prática contribui para, ou mesmo constitui, um certo ordenamento na conduta. Os participantes ostentam entre si uma ordem comum ou compartilhada. Eles fazem isso ao demonstrar consideração por uma concepção do sistema como algo dotado de força normativa para eles. Isso é significativo (mas não esgota completamente nem é u m determinante absoluto) entre as razões para a ação que eles elegem, e também para os modos de agir que eles consideram como sendo razoáveis. Algumas vezes, uma distinção entre uma abordagem "institucional" e ou- tra "interpretatíva" é estabelecida.^ Esse tipo de distinção não é apropriado às idéi- as expostas aqui. A idéia de ordem institucional (assim como a idéia relacionada a essa de fatos institucionais) depende de como os seres humanos agem e interpre- tam as suas próprias ações e também as ações dos outros. Uma ordem institucional eqüivale a uma moldura comum de compreensão e interpretação compartilhada entre pessoas de u m mesmo contexto social. Como uma ordem normativa, ela tem contínua necessidade de interpretação e, como uma
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