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1 A Dimensão Política da Filosofia da Libertação (dusseliana) a partir da obra: “Para uma ética da Libertação Latino-Americana IV: Política” Hugo Allan Matos* RESUMO Este artigo apresenta uma visão introdutória sobre a Política da Libertação dusseliana, partindo de sua leitura de Karl Marx. Concentrando-me em sua obra Para uma ética da libertação Latino-Americana IV: Política, comentarei alguns artigos mais recentes de Dussel e sua obra: 20 teses de política. Palavras-chave: Política, Simbólica, Totalidade, Alteridade, Ética, Dialética, Analética, Moral, Práxis, Prudência. RESUMO Presentamos en este artigo una lectura introdutoria de la Política de la Liberación dusseliana, iniciando da lectura de Karl Marx. Atendome en su obra “Para una ética de la liberación latinoamericana: política”, comentarei algunos textos mas nuevos y su obra: 20 teses de política. Palavras-chave: Política, Simbólica, Totalidade, Alteridade, Ética, Dialética, Analética, Moral, Práxis, Prudencia. *Pós graduando em Filosofia e história contemporânea pela UMESP, professor de filosofia na educação básica, membro do Núcleo de Estudos de Filosofia Latino Americana (NEFILAM) e do grupo de estudos Filosofia no Brasil e na América Latina: teoria, história e ensino (USP), dentre outros. Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/3791062630331998 2 1. INTRODUÇÃO Vivemos numa primavera política na América Latina. Este é o título em português de um artigo recente de Enrique Dussel. Este título contraria o que têm predominado no senso comum e a princípio, o que vêm ocorrendo em alguns países, como no Brasil, por exemplo, onde grande parte da população parece enojar a conjuntura política atual e a situação de totalitarismo, impunidade e corrupção, cada vez mais intensa. O Tema da política é muito polêmico, justamente devido a este enojamento de grande parte da população que se diz cansada e diz não querer saber. Contudo, qual é a política que está em vigor? Porque chegamos a esta situação? A quem interessa que a maioria do povo não goste dos assuntos referentes à política e que as coisas continuem como estão? O que é política, afinal? E como ela deve ser para que as situações de injustiças, dominações, explorações... que vêem se perpetuando neste - e outros continentes e povos -, dêem lugar a uma Nova Ordem de Justiça? Dussel, a partir da leitura crítica que faz das obras de Marx, sobretudo a partir da queda d muro de Berlim, desenvolve uma filosofia política de libertação sem precedentes. Sua crítica ao sistema hegemônico, à totalidade do mesmo, aborda características da política na história mostrando como é possível desenvolver políticas de libertação na e a partir da América Latina para o mundo. Irei me basear em sua obra: Para uma ética da libertação Latino-americana IV: Política. Mas, não vou entrar no âmbito econômico propriamente dito, que demandaria uma dedicação mais profunda. Ele inicia a citada obra nos fazendo entrar em contato com a cultura latino- americana (dependente, periférica, etc...), descrevendo um pouco da simbólica e poética da relação política a partir de textos artísticos e poéticos1. Depois, situa a economia política dando-nos uma interpretação do que chama de ontologia política a partir dos autores do centro2, como costuma fazer, partindo para a metafísica da alteridade. E por fim, questiona os sistemas políticos partindo do 1Não vou me demorar nestas citações, infelizmente, pois minha proposta será de uma introdução conceitual à política da libertação dusseliana. 2Como veremos adiante, estes conceitos de centro e periferia são fundamentais na filosofia dusseliana. 3 projeto de libertação, pensando a revolução ou construção da nova ordem que é constituída a partir de uma práxis não só de destruição da ordem vigente, mas principalmente de construção política, onde o nível tático é fundado pelo estratégico e se justificam conseqüentemente ou se desqualificam a partir do projeto libertador. Quanto à metodologia, para não fugir das exigências acadêmicas, colocarei entre aspas apenas as citações; darei destaque aos principais conceitos mantendo-os em negrito e a expressões em itálico. Sendo assim, será possível ao leitor maior atenção na compreensão destes conceitos uma vez que são essenciais para esta filosofia. Mostrando a importância da dimensão moral e metafísica de uma política de libertação, Dussel descreve como as revoluções têm sido feitas na história e dá pistas de como podemos construí-las, hoje. 2. A POLÍTICA SIMBÓLICA Na filosofia da libertação dusseliana existe uma preocupação muito grande com a dimensão política, conforme explica o próprio autor: É na política que o face-a-face adquire sua última significação humana ou sua mais perversa posição [...] Em nenhum nível como no político, o eu se manifesta com maior onipotência dominadora, imperial, guerreira, conquistadora, repressora. (DUSSEL 1977, p.32) E para iniciar a reflexão sobre o tema, Dussel se apóia no processo histórico apontado pelas expressões simbólicas no decorrer do tempo. Segundo ele, esta é uma fonte confiável porque a expressão artística permite habitar o mundo político desde dentro, ou seja, partindo da consciência do povo oprimido (ou do opressor), pois para ele (DUSSEL 1977, p.33), “A arte torna possível reviver o mundo simbólico e mítico da opressão e libertação”. Estas expressões permitem com que cheguemos à origem do universo, na qual podemos contemplar beleza física incomparável, a criação perfeita. Mas, a 4 exterioridade antropológica e política, apresenta-se de outra forma. Já podemos notar miticamente o desejo de libertação futura, com conflitos entre os relatos passados estragados por coisas ruins, ou seja, já percebemos a tensão: dominador x dominado. Lembremo-nos da dominação da Serpente sobre a Eva e de Eva sobre Adão, por exemplo. Em todas as culturas, o sistema organizativo humano é compreendido como centro do mundo. Isso é a Totalidade política. “Os reis Incas dividiram o Império em quatro partes [...]. Puseram como ponto ou centro a cidade de Cuzco, que na língua particular dos Incas significa umbigo da terra” (VEGA citado por DUSSEL 1977, p.34) Além de ser um centro, tende a constituir-se como único. Mas, esta totalidade política, diferentemente da que temos (hoje) vigente, qual iremos abordar mais à frente, era fruto de um longo processo de renovação, ou seja, o sistema que se consolidava no poder, advinha de peregrinar mítico de fundadores da nova ordem, ou ainda, esta peregrinação era o tempo de libertação da ordem anterior e constituição de uma nova ordem. Todavia, os grandes impérios começam a ter consciência cronológica real e passam do âmbito mítico ao histórico. Dussel deixa claro, com diversas citações mítico-históricas que mesmo os impérios latino-americanos tiveram seus ideólogos, assim como um dos mais antigos: Moisés, que liberta seu povo da escravidão e o leva para a terra prometida (nova ordem). E em todas as totalidades políticas existe a dialética do senhor x servo, dominador x dominado. Mas, com o despertar para o tempo histórico real e abandono da fundamentação mítica, foram se impondo dominadores cada vez mais pela força. E foi na revolução urbana neolítica que aumentou a injustiça, com certa sistematização dos meios de produção e organização social. Chama à atenção as citações que Dussel faz sobre a organização do império Inca, que apesar de ser um dos mais pacíficos e mais míticos, demonstra que foi um dos mais exitosos: E partiam a terra em três partes: umapara o Sol, outra para o Rei e a outra para os naturais [...] E quando a gente do povo ou 5 província crescia em número, tiravam da parte do Sol e da parte do Inca para os vassalos (...) Davam a cada índio um tupu, que é um pedaço de terra para um plebeu casado e sem filhos. Depois que nasciam os filhos, davam para cada filho varão outro tupu e para as filhas, meio tupu. Quando o filho casava, o pai lhe dava o pedaço de terra que havia recebido para o seu sustento. (VEGA vol. II, Cap. I, p.50 citado por DUSSEL 1977, p. 38) As terras eram repartidas cada ano e nenhum particular possuía coisa própria, nem jamais possuíram os índios coisa própria (VEGA vol. II, Cap. III, p.53-54 citado por DUSSEL 1977, p.38) Este é um dos mais belos retratos sobre como estava a Ameríndia antes da chegada dos europeus. Contudo, depois de sua chegada, os relatos passam a ser tristes, pois a dominação européia representou uma catástrofe cósmica e a visão dos vencidos, passa a ser a mais alta significação simbólica que constituiu a compreensão histórica, primeiro dos índios oprimidos, depois dos mestiços, empobrecidos e migrantes, camponeses e operários, etc... Penso ser essencial constar neste artigo a referência que Dussel faz a Bartolomeu de las Casas: “...revela a posição profética de superação da dialética conquistadora por meio de uma analética meta-física e ética...” (Ibid.p.41). Com várias citações de textos casalianos, ele mostra como Bartolomeu descobre a exterioridade do índio, rompendo com a totalidade política injusta, reconhecendo-o como Outro, condenando o dominador e protestando pelo reconhecimento da alteridade latino-americana. Desde aproximadamente 1550, com o término da conquista e evangelização de grande parte da América Latina se constitui uma nova ordem, a América espanhola, ou cristandade das índias. A partir da leitura de algumas obras de romance latino-americano, ele traça três estruturas simbólicas, ou três ciclos, sobre as quais se tece a consciência mítico-cotidiana do latino- americano: 6 1. Mundo colonial de dependência hispano-lusitana, que permanecerá no mundo camponês, com sua contradição: camponês (índio, negro, mestiço ou trabalhador assalariado do campo) versus oligarquia latifundiária. Características: • Origina-se miticamente pelo messianismo • Sacraliza a cristandade colonial • Noção de tempo circular • Apesar de massacres, extermínios, explorações, escravidão camponesa, medo, pela oligarquia latifundiária, o povo parecia feliz • Modo de produção tradicional, tributário, secundário, explorado 2. Mundo neocolonial de dependência anglo-americana, que se situa na cidade, sobretudo, nas capitais. Mundo industrial nascente com sua contradição: operário versus oligarquia nacional. E nas grandes capitais, o mesmo ocorre entre centro urbano e periferias, favelas, etc... Impera o ego europeu conquistador. Características: o Domínio do Atlântico para o Pacifico o Divinização do dinheiro que compra tudo e tudo destrói para crescer o Surgimento da oligarquia nacional que usufrui da pressão internacional o Dominação a partir das cidades, sobre o sertão (civilização imposta) o O progresso só acontece onde há civilização 3. Revolução. Revoltas anticoloniais, luta nacional e popular contra o imperialismo, etc... Este é um ciclo agônico, ou seja, o dos guerreiros, condutores de libertação, populistas, etc... “É a mobilização mundial dos povos oprimidos contra a expansão colonialista e imperial da América primeiro e hoje 7 principalmente dos Estados Unidos (...). Atravessa os outros dois que são de dominação, é o ciclo simbólico da guerra, da revolução, da libertação.” (DUSSEL, 1977) Características: • Processo surge muitas vezes por situações de injustiças • Surge o elemento agônico: a guerra, o combate, que às vezes é usado só para reprimir 3. LIMITES DA INTERPRETAÇÃO DIALÉTICA DA POLÍTICA A definição que Dussel atribui à política é “toda relação face-a-face de irmão - irmão” (DUSSEL, 1977, p.55). Aceito aqui a interpretação de que as relações políticas são aquelas que partem de uma pessoa ou instituição para outras. Ou ainda, de instituição para instituição. Dussel deixa claro a necessidade da distinção conceitual de política de dominação (ou dialética social de alienação), antipolítica e política da libertação (ou analética da novidade). Para a filosofia da libertação, a reformulação das ciências sociais da América Latina, teve uma importância imensa, uma vez que a filosofia política necessita da mediação destas. O pensamento latino-americano, assim como a arte e a ação dos grandes estadistas têm sempre um fundo político, ou seja, por se tratar de uma política existencial (que parte da existência como tal) é inseparável das várias dimensões da existência latino-americana. A totalidade política ou política de dominação, sistema político vigente na América Latina, é o neocolonial, em crise, desde 1930 com o fracasso (no sentido de decadência) do populismo. E é deste ponto de partida ontológico que pode surgir uma nova meta-física política latino-americana da libertação. Hegel conseguiu expressar como ninguém esta totalidade política dominadora do estado moderno. Hegel funda, baseado em Platão e Aristóteles, a categoria de totalidade como último horizonte de compreensão. O objetivo da totalidade política é o bem comum. E o mal comum é a revolução, a subversão, a mudança, pois a 8 totalidade deve ser natural, divina, eterna, o mesmo. Não há exterioridade, nem possibilidade de libertação. Dussel aponta dois caminhos a seguir para se compreender a totalidade moderna: 1. Negação do ser enquanto humano: a multidão como unidade, povo, massa, cujo movimento é irracional, selvagem, temível, bárbaro. Percebemos isso nas constituições modernas, quando se fala de povo, geralmente se trata de generalidades vagas, discursos vazios... O povo representa uma parte do Estado que não possui entidade, que não sabe o que quer. 2. Negação do ser aos povos exteriores ao centro: Baseado no direito natural possibilita ao Estado moderno, num movimento dialético (dominador), a buscar fora de si novos consumidores, e esta busca, geralmente se dá em povos inferiores. A critica que Dussel faz à política hegeliana reconhece esta totalidade não só como a serviço da propriedade privada e do capitalismo. Mas, a vê como crítica do Estado liberal (e da monarquia prussiana) e como Estado dominador: “condominação interna (sobre o ‘povo’ e as classes trabalhadoras), condominação externa (sobre as colônias e neocolônias)”. (DUSSEL, 1977, p.67) E mais: em seu desenvolvimento, exportou o modelo liberal que antes criticava às suas novas colônias. O ponto de partida deste Estado é o ser em-si, a vontade livre. A posse, o dinheiro, é o principio do homem-burguês. A posse, leva à instituição da propriedade privada. Mas, o contrato burguês a supera. Contrato este que obriga, pelo direito, afirmar em sua ação moral a totalidade do sistema, o mesmo. Quando a positividade do sistema é legitimada e passa a ser vivida, como hábito, constitui-se um ethos, que no caso, é possessor, dominador, conquistador. Ethos este, que apesar de algumas contradições em sua constituição, justamente por causa da não totalização da exterioridade, permite a pluralidade não resolvida. E por isso o Estado liberal é cego. E é este modelo que é exportado para as neocolonias latino-americanas. 9 Para controlar esta pluralidade não resolvida, apesar de defender os direitos individuais e suas liberdades, o Estado precisa usar do poder como controle e domínio interno. Porque junto a estapluralidade, está a contradição essencial do capitalismo, profetizada por Hegel: Se a universalização das relações é inevitável para o desenvolvimento do sistema, aumentará o acúmulo de riquezas, mas também, necessitará de divisão e delimitação do trabalho especializado, aumentando a dependência e a miséria da classe trabalhadora, que cada vez menos gozará dos benefícios desta sociedade. As respostas modernas a esta contradição lógica é proteção policial à propriedade privada e exportação de população operária e de produtos às colônias. Ou seja, conquista e colonização da periferia. Até que ela consiga a independência para ser estado neocolonial, como o Brasil, por exemplo. Mas, nem Hegel, nem os socialistas utópicos perceberam que esta tensão provocada pela contradição essencial do capitalismo não foi resolvida, só foi exportada. Assim, é tarefa da metafísica política periférica resolve-la. Não podemos esquecer que nesta totalidade do estado moderno, os Estados são soberanos e as relações internacionais são formais e externas. Estão em luta contínua e por estarem em estado natural, a violência e a guerra são inevitáveis. Assim, os Estados capitalistas modernos europeus, tendo resolvido suas tensões internas, deverão preocupar-se com os estados liberais periféricos, levando a eles a salvação da civilização. Esta ontologia dominadora é que justifica a expansão conquistadora de todos os impérios. Apesar de toda opressão ter sua ideologia, tanto os impérios mais antigos as tiveram, quanto o Estado moderno, é comum que a opressão começa, ao julgar o outro como não ser, como tendo que participar do mesmo. Assim, sabendo que o problema fundamental e limite do Estado moderno é a tentativa de anulação da alteridade política, impossibilitando a novidade política, fica impossível a libertação a partir deste ponto, contudo, é necessária uma nova filosofia política, que parta justamente da exterioridade negada (alteridade) e resolva as contradições deixadas pelo sistema vigente, constituindo o novo. 10 4. DESCRIÇÃO META-FÍSICA DA POLÍTICA Para que sejam solucionadas as contradições geradas pelo sistema capitalista, imperial, dominador, faz-se necessária uma nova ontologia política, pois, esta política partirá da periferia, da exterioridade do sistema. Deverá ser então, uma política que se liberte, deverá partir do âmbito metafísico, real, da alteridade antropológica no nível social. Resumindo, há duas políticas: a. Política do sistema capitalista: racionalidade é manter a dominação b. Antipolítica: ou política escatológica, cuja nova racionalidade é saber formular praticamente, realizar o caminho e a construção da ordem nova na justiça. O metafísico é o que não têm lugar, utópico. A América Latina foi a utopia na origem da europeidade. A América Latina sempre esteve fora da ordem estabelecida, simplesmente não era. Ainda hoje é a exterioridade, a alteridade política, o outro. a. A nação oprimida como povo Este não rompimento da exterioridade geopolítica, ou melhor, a afirmação enquanto outro e exterior ao mesmo é a revolução da libertação nacional. Pois se afirma exterior ao capitalismo internacional. Mas têm sua exterioridade interna a resolver. O espaço político é uma multidão de tensões que lutam pelo controle, poder, dominação sob império de uma vontade orgânica. Ontologicamente, tendem a, depois de instituído seu centro, conquistar mais territórios para que sejam suas periferias, como já vimos. Mas a partir da primeira guerra mundial, o processo de conscientização da periferia enquanto outro é iniciado. Depois da segunda guerra mundial, este processo de conscientização, ganha conotação maior e já passa a ser uma práxis de libertação. 11 Um importante pensamento citado por Dussel é o de Mao Tse-Tung, que realizou uma revolução de libertação nacional e social. O principal ponto citado é que apesar de ser contra a direita ele é também contra a extrema esquerda ou contrario a teoria de uma só revolução. Ele divide a revolução em duas partes: nacionalista: (interna) nova democracia organizada contra o imperialismo colonial. Socialista: dirigida por operários e camponeses. Depois de realizada esta segunda revolução, a China não retornou à dependência, evitou-se a contra-revolução. Depois de abordados estes temas paralelos, Dussel nos mostra como a nação é oprimida geopoliticamente, com a divisão do hemisfério norte capitalista como continental, onde está concentrado o poder político mundial e o hemisfério sul, que é oceânico. Sendo assim, a América Latina é uma ilha e como tal, deve se unir por mar ou ar, com seus iguais: China, Índia, sudoeste asiático, o mundo árabe, a África negra, etc... Pois todos os movimentos de libertação destes países periféricos têm em comum o momento de exterioridade metafísica, ou seja, estão além da ordem imperial, se configuram como povos que tem uma história exterior à do centro. “O dilema deve definir-se assim: libertação nacional popular ou regresso à dependência. Não há outra possibilidade!3” (DUSSEL,1977, p.89) b. As classes oprimidas como povo4 Tomada a consciência desta condição de exterioridade, o não-ser político são as classes oprimidas. Neste caso, o próprio Estado, em sua totalidade e situação de dependência, exclui as vítimas (que não tem as possibilidades para realizar o projeto vigente do Estado Nacional) A condição de alteridade político-social é descoberta no pensamento semita (anavim) pobre. Esta é uma subversão ético-política de todo sistema possível. Dussel nos mostra que o cristianismo primitivo possibilita a diferenciação de qualquer classe dominadora possível, uma vez que o pobre, nunca poderá ser 3 Destaque meu. 4 Hoje Dussel amplia o sujeito-histórico material da Ética da Libertação como vítima, ou seja, neste contexto de globalização e dominação imperial, a categoria pobre, já não mais dá conta da quantidade e diversidade de vítimas produzidas por este sistema demoníaco. CF. DUSSEL, 2000. 12 dominador, enquanto classe na política (apesar de poder ser na erótica e pedagógica), pois ele nunca terá possibilidade de realizar o projeto do sistema nacional, sempre será a apresentação da exterioridade do sistema. E é este mesmo cristianismo primitivo, que abre uma tradição que nos serve enquanto libertadora: “todos os crentes viviam unidos e compartilhavam tudo quanto tinham. Vendiam seus bens e propriedades e repartiam segundo as necessidades de cada um” (AT5 2,44-45) Após refletir esta temática, o autor dá outros exemplos de comunidades que seguem a mesma lógica cristã, até chegar no socialismo utópico, que fora uma crítica à burguesia inglesa e francesa (nova classe dominadora, após vencer a nobreza). A não realização do socialismo na América Latina a seu ver foi devido ao baixo número de componentes da classe proletária. No decorrer desta explanação, percebe-se que as principais dificuldades das classes oprimidas como povo são a propriedade privada, que é contraria à própria natureza humana e a massificação opressora e negativa da alteridade. O mais importante até aqui, é o surgimento das classes oprimidas externas, ou seja, os marginalizados. Com seu infra-trabalho (sofrimento sem limite) gera uma consciência revolucionária nova na história mundial. A exterioridade política constitui-se quando o outro rompe a totalidade do sistema como aquele que não têm lugar, nem ser. Contudo, ele tem sua própria positividade metafísica, ou seja, tem sua cultura, sua religiosidade, sua língua, etc... E isso, além da ordem estabelecida pelo Estado, exterior a ele. O outro é o momento analético, que se apresenta como provocação, rebelião:É o momento utópico, real, escatológico. Dizer sim-ao-Outro político é o critério absoluto da eticidade política (...) A política é o momento irmão-irmão da ética; é justa e boa uma ação política se for encaminhada a afirmar, respeitar, ‘deixar ser’ o pobre, a classe oprimida, a nação dependente”. (DUSSEl, 1977, p.99) É necessária ainda, a distinção entre o oprimido como oprimido e o oprimido como exterioridade. O primeiro, Dussel interpreta como apenas uma AT= Atos dos apóstolos, livro bíblico. 13 parte funcional do sistema. Já o segundo, é um momento exterior ao sistema. “A noção de povo inclui ambos aspectos”, (DUSSEL, 1977, p.99) mas o processo de libertação política nega o oprimido como diferença da totalidade política (no sentido de dever se enquadrar), nega a negação (da dialética dominadora) e permite que o oprimido cresça enquanto distinto, como outro. Faz-se igualmente necessário o esclarecimento da noção de Estado. Pois, o Estado cópia do estado liberal exportado para as neocolônias e portanto, dependente e não detentor do real exercício do poder não é exatamente como o original. A finalidade do Estado é a ação política, o exercício do poder, que está estritamente relacionado à totalidade política, sendo assim, o Estado dependente não tem o poder da decisão, pois tanto o cultural, econômico, social, etc... são ditados pelo centro. O Estado até pode tentar omitir a dependência, exercendo assim, seu poder sobre o povo. Mas, quando o povo se conscientiza e se rebela, o Estado deve controlá-lo pela força. O Estado é a totalidade política do exercício do poder. E é diferente de nação que é a totalidade etnica ou sócio-cultural e de pátria que é relacionada à história do país, ao solo, ao território habitado por uma nação. Mas, o povo, se por um lado é a totalidade da população, a massa, a multidão, por outro lado é o sujeito sócio-político da libertação. Estado, como nação ou pátria se referem à totalidade política, mas povo refere-se à exterioridade desta totalidade, é a origem do poder, arché na justiça, do poder da pátria futura e por isso, está além deste poder (anarchía). A libertação latino-americana só será possível se for, antes, libertação nacional, que depende da libertação popular, ou seja, para que ocorra, é necessário que os operários, camponeses, marginalizados, os pobres, se libertem. Para que seja possível uma nova ordem (revolução), é necessário que os pobres, exerçam o poder, enquanto outro. Se não, ainda que exerça o poder, mas repita e/ou se subordine ao centro, perpetuará a totalidade política ontológica moderna, o mesmo. A totalidade vigente se rompe com a descoberta deste novo sujeito histórico, o pobre, exterior a ela e que exige, por sua provocação, uma continuação da história, a partir de uma revolução que lhes permita manifestar sua potência criadora, produzindo o que o sistema não lhes permite. Os trabalhadores, 14 portando, não só o proletariado, mas quem possui a capacidade revolucionária de ir além da totalidade do sistema, através do plus-trabalho, que se refere a uma classe (plus-classe) que se define não como assalariada, mas, além disso, através de novas formas de economias que superem esta dependência do salário, até que o trabalho e o trabalhador não serão mais assalariados. Esta “... categoria metafísica indicaria exatamente a negatividade de um sujeito explorado pelo sistema, (...) mas também com tempo livre subversivo como plus-trabalho e como subjetividade livre, com anterioridade histórica e posterioridade histórica ao sistema, como momento metafísico revolucionário”.(DUSSEL, 1977, p.103) Esta realidade do pobre de exterioridade prático-poiética (possibilidade de nova política e tecnologia) constitui-o na época de crise como sujeito histórico por excelência. A maldade política, neste contexto, é a negação da práxis do povo desde sua exterioridade e por isso, nasce a ética, para garantir que esta pratica revolucionária das classes emergentes, ocorra. 5. A ETICIDADE DO PROJETO POLÍTICO Até agora, vimos nas entrelinhas que o projeto econômico da modernidade foi iniciado e mediado por uma ontologia. E assim, é também todo projeto político, que deve ser precedido de um projeto, de uma finalidade: fazer política para quê? e que política fazer? Nesta parte do texto Dussel faz a distinção entre interesse comum do sistema vigente e bem comum metafísico de uma ordem futura de libertação. Mostra a diferença entre um projeto dialético (melhoramento do mesmo) e um projeto analético (rompimento da totalidade a partir da exterioridade). Dussel estabelece o critério ético absoluto como projeto perverso e justo. O primeiro acontece quando totaliza um sistema negando o outro em qualquer aspecto. E é justo quando se trata de um projeto de compreensão de uma nova 15 ordem futura e o outro político, a nação dependente, o pobre... participa de um momento livre solidário que resultará numa nova totalidade política adveniente. Um projeto político de libertação deve ser um projeto existencial que se configura no decorrer da história, a partir da exterioridade, nunca pode ser pronto, totalitário. Tal projeto nunca está no plano político, pois é a hipótese do planejamento e da ação política. Sobre tal projeto, a filosofia nada pode dizer. Apenas pode descrever. Contudo, o artista, poeta, músico, o povo etc... sempre o dizem e criam a ordem futura de justiça. O político prudente é aquele que faz do projeto de seu povo, o seu projeto. Platão propõe uma utopia crítica. Que se trata de uma obra de arte que permite a formulação tanto do projeto político quanto de modelos tecnocratas. Assim, podemos concluir que a utopia que não põe em questão o projeto cotidiano abre brechas dentro do mesmo. É necessário que levemos em consideração que existem dois tipos de utopias na temporalidade: a ontológica e a metafísica. As ontológicas, sempre foram, criticas dentro de um mesmo sistema (inclusive Marx). Pois todas elas têm como ponto de partida a totalidade moderna que permite a crítica aos projetos políticos e aos modelos desprendidos deles. A utopia permite que o projeto político esteja vinculado com o projeto existencial. Já a utopia da temporalidade metafísica, parte desde a exterioridade do pobre e nunca descreve os frutos de seu projeto (ordem nova), ao contrário da ontológica. Ocupa-se em reformular as categorias políticas, de acordo com seu projeto (que é o do povo) para possibilitar a libertação. Apresenta as brechas por onde se podem produzir as evasões subversivas a partir das categorias negativas do sistema dominante. O bem comum escatológico (formulado pelos semitas) é um exemplo de utopia metafísica (anterior ao período medieval que se formula a ontologia). A terra prometida onde corre leite e mel, além de utopia metafísica é um exemplo de projeto político de libertação que se concretiza no caminhar para o novo. Mas, este projeto de libertação deve ser verdadeiramente o vivido pelo político junto ao seu povo. Porque esta libertação é um movimento de amor ao bem comum futuro. E é esta dimensão que sempre atraiu os povos no caminho 16 para a libertação e é este o fundamento da moralidade da práxis da libertação, que é julgado pelo critério de que todo projeto é bom quando serve ao pobre e é justo quando combate o injusto. O interesse comum serve a alguns no sistema injusto, já o bem comum lança todos à construção (após a destruição) de um sistema mais humano, futuro, pois é uma política de escuta ao Outro, ao que está exterior ao sistema, ao pobre. (CF. DUSSEL, 1977,p.131) 6. A MORALIDADE DA PRAXIS DE LIBERTAÇÃO POLÍTICA Comoúltimo capítulo desta sua filosofia política de libertação, Dussel trata do que chama de praxologia, dividindo-a em duas partes: 1. Política: Ou práxis de dominação política sobre a América Latina. Para fundamentar a dominação, os Estados utilizam-se do seu direito positivo, fundamentado no direito natural, para formar um ethos de conformidade e naturalidade no povo que passa a aceitar a dominação. Quando há a paz interna o político prático participa do poder e influencia sua distribuição. Não existe a preocupação com a eticidade do sistema, ou os benefícios que a guerra causa. A única preocupação é o poder, a perpetuação do mesmo, a estratégia é manter-se no poder. A totalidade passa a ser imoral. Esquece-se das noções antigas de práxis e prudência políticas e se exerce uma arte técnica do poder e organização social. A prudência se transformou em arte militar apenas. A guerra é vista como jogo (que inclusive é valida para dar lucro a industrias armamentistas, por exemplo). 2. Práxis de Libertação política: divide-se em dois momentos que podem ser simultâneos e mais dois momentos conseqüentes: a. Destrutivo: ou luta da libertação. São essenciais o carisma profético e a arte militar. Sobressai-se a virtude da coragem. Esta práxis tem como fim único o projeto de libertação do povo. b. Construtivo ou condução política na organização da ordem nova na justiça. Hegemonia e prudência política são as chaves. Virtude da prudência e da justiça. A negociação, o político e a filosofia ontológica. 17 c. Um terceiro momento é a época clássica, aparece a nova dominação. d. Um quarto, decadência, ou luta contra os novos oprimidos. O primeiro momento é a resposta efetiva daqueles que ouvem ao clamor do povo que a partir do amor-de-justiça aceita o projeto de um novo sistema, de uma nova ordem, em oposição à vigente. Mas o aceite deste projeto não parte da necessidade do sistema, mas da gratuidade do eis me aqui para ajudar na construção de uma ordem futura. A necessidade de uma preponderância que se assemelha à ação militar parece ser bem clara, pois, para auxiliar na realização da destruição de uma ordem vigente são necessárias várias virtudes, dentre elas, a prudência. Mas, esta prudência, não pode confundir-se com o manejar o poder, do projeto vigente dominador, mas trata-se frónesis dos gregos, prudentia dos latinos ou sabedoria prática; ou seja, o hábito de realizar o novo que parte do princípio (projeto) e que sabe deliberar até chegar a um juízo prático (cf. DUSSEL,1977,p.148). O ato político-prudencial, que é a eleição e execução do meio adequado, procede da seguinte maneira: O princípio não se trata apenas de um juízo abstrato, mas do projeto existencial do povo. O principio é o que ilumina as decisões táticas. Dificilmente um político que não tem como princípio o projeto de seu povo, é prudente. Aqui, Dussel difere mais uma vez a prudência do manobrar do dominador que é sempre arte ou técnica, mas nunca prudência, já que seu princípio não é o real, justo, futuro. É por isso que não há receitas para conduzir os povos. E é este projeto, princípio, que é a luz da deliberação, ou dedução, prática que leva até uma conclusão como melhor para este momento. Para um político realista, a deliberação é acerca de uma mediação que por um raciocínio prático-silogístico identifica a factibilidade física, social, política e, portanto, possível. Mas, é a consciência moral que dirá se a mediação é válida, tendo como base o projeto (princípio), ou seja, como o princípio primeiro de toda eticidade é afirmar ao outro como outro, e o da moralidade da práxis se enuncia: serve ao outro além da totalidade, o ato aplicativo da consciência moral comprova se a 18 conclusão é serviço libertador ou dominação repressiva do outro. (cf. DUSSEL,1977,p.149) Segue-se a escolha decisiva que necessita de um ethos incorruptível, pois, nem sempre o político escolhe o melhor (para o projeto), mas covardia, indecisão e muitas outras fraquezas desviam o político. Por isso que deve haver disciplina e moralidade enquanto essenciais. Quando é escolhida a mediação, deve ser imposta a si mesmo e por meio do poder ou da autoridade, deve ser proposta como ordem ao povo. Independentemente das influências e de interesses alheios ao projeto. E depois, segue a execução, ou práxis propriamente dita, realizando-se uma nova ordem. Quando completado este processo, a mediação da teoria-práxis fora realizada. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS Pelo que percebo desta obra de Dussel, nesta época, queria mesmo dar pistas, ainda que conceituais, de como é (ou pode ser) constituído um processo de revolução, ou seja, como historiador, descreve como no decorrer da história este processo veio acontecendo e como ele pode acontecer com eficácia ainda hoje. Minha identificação com sua filosofia aumenta mais porque em suas mais recentes obras, ao tratar do assunto, revê alguns conceitos e reforça outros. Sobretudo, baseado em exemplos atuais e tendo pelo menos mais 20 anos de história, analisa o cenário político atual como em crise, justamente por negar o outro, em sua exterioridade. Ou seja, Dussel continua afirmando que o processo de libertação é contínuo e passa sempre por três fases básicas: a destruição de um projeto vigente de dominação e negação do outro enquanto tal, concomitante com a luta pela libertação deste outro, culminando na tomada6 (ou conquista) do poder; depois, vem a fase clássica, onde através da prudência, o político consegue colocar em vigência seu projeto, enquanto já nasce o outro na exterioridade dele e por fim, a decadência, que é o reconhecimento (ou o dar-se a conhecer) deste outro exterior. 6Aqui, por ser o excluído que está requerindo o poder, que é seu autenticamente, não se trata de uma tomada, mas de apenas exigir o que é seu. 19 Assim, quanto mais fiel ao projeto inicial e mais aberto à exterioridade do outro, mais libertador será um projeto político. Pareceu-nos, nesta obra, que Dussel aceita a naturalidade da totalização, ou seja, como natural a dominação do outro na história. Contudo, em suas obras recentes, dá pistas de que se um projeto político permanece libertador do início ao fim, aceitando suas fases, talvez não chegue a ser opressor, a fazer parte do mesmo. Esta hipótese será ainda mais aprofundada, deixando este trabalho como introdução ao assunto, que ao menos por desejo, será muito explorado por mim. REFERÊNCIAS TEÓRICAS: DUSSEL, Enrique D. Para uma ética da libertação latino-americana vol. IV: Política. São Paulo: Loyola, 1977. ________________. Ética da Libertação: na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis, Vozes: 2000. ________________. 20 teses de política. São Paulo, Expressão Popular: 2003. ________________. Vivemos uma primavera política. In: Conferência proferida em 20.11.2006 – nas Jornadas Bolivarianas, terceira edição – Universidade Federal de Santa Catarina- Florianópolis. Tradução: Elaine Tavares. ABREVIAÇÕES UTILIZADAS NO TEXTO: AT = Atos dos Apóstolos, livro bíblico.
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