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H. P. Lovecraft O Descendente

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“O Descendente” ∗ — H.P. Lovecraft 
Fonte: “A Tumba... e Outras Histórias”. Ed. Francisco Alves 
SCREVER SOBRE O que o doutor me conta em meu leito de morte, meu medo mais odioso é 
que o homem esteja errado. Suponho que deverei ser enterrado na semana que vem, mas... 
 Em Londres há um homem que grita quando os sinos das igrejas tocam. Ele vive totalmente 
só com seu gato malhado na Pensão Gray, e as pessoas dizem que ele é apenas um louco inofensivo. 
Seu quarto está cheio de livros de tipos mais calmos e pueris, e hora após hora ele tenta se perder 
em suas fracas páginas. Tudo o que ele quer da vida é não pensar. Por algum motivo o ato de pensar 
lhe é muito terrível, e tudo o que possa agitar a sua imaginação o faz, fugir de como uma praga. Ele 
é muito magro e enrugado, mas há quem declare que não é tão velho quanto aparenta. O medo tem 
suas garras retorcidas sobre ele, e um som o fará se sobressaltar com olhos perscrutadores e a testa 
coberta de suor. Os amigos e companheiros ele dispensa, pois não deseja responder a nenhuma 
pergunta. Os que outrora o conheceram como scholar e esteta dizem que dá pena de vê-lo agora. 
Ele abandonou a todos anos antes, e ninguém sabe ao certo se ele deixou o país ou simplesmente 
desapareceu de vista em alguma ruela oculta. Faz uma década agora desde que ele se mudou para a 
Pensão Gray, e de onde andou ele não diria nada até a noite em que o jovem Williams comprou o 
Necronomicon. 
 Williams era um sonhador, e tinha apenas vinte e três anos, e quando ele se mudou para a 
antiga casa, sentiu uma estranheza e um hálito de vento cósmico ao redor do homem cinzento e 
envelhecido no quarto ao lado. Ele forçou sua amizade onde velhos amigos não ousavam forçar a 
deles, e maravilhou-se com o medo que tomava conta daquele observador e ouvinte triste e 
sombrio. Pois que o homem sempre observava e ouvia, ninguém podia duvidar. Ele observa e ouvia 
mais com sua mente do que com os olhos e ouvidos, e lutava a cada momento para afogar alguma 
coisa em sua pesquisa incessante sobre romances alegres e insípidos. E quando os sinos das igrejas 
tocavam, ele tampava os ouvidos e gritava, e o gato cinzento que com ele morava uivava em 
uníssono até que o reverberar da última badalada morresse ao longe. 
 Mas por mais que Williams tentasse, não conseguia fazer seu vizinho falar de nada profundo 
ou oculto. O velho não acompanhava seu aspecto e maneirismos, mas fingia um sorriso e um tom 
suave de voz e falava febril e freneticamente de alegres trivialidades; sua voz a cada momento se 
elevava e engrossava até se partir num pipilante e incoerente falsete.Que seu conhecimento era 
vasto e profundo, isso suas observações mais triviais tornavam abundantemente claro; e Williams 
não se surpreendeu ao ouvir que ele freqüentou Harrow e Oxford. Posteriormente descobriu-se que 
ele não era outro que não Lorde Northam, de cujo antigo castelo hereditário na costa de Yorkshire 
tantas coisas estranhas se contavam; mas quando Williams tentou falar do castelo, e de sua reputada 
origem romana, ele se recusou a admitir que houvesse nele qualquer coisa de incomum. Até chegou 
a se arrepiar quando o assunto das supostas criptas subterrâneas, escavadas da rocha sólida que 
abunda no Mar do Norte foi trazido à tona. 
 Assim as coisas ocorreram até a noite passada, quando Williams levou para casa o infame 
Necronomicon, do árabe louco Abdul AlHazred. Ele havia ouvido falar do temível volume desde 
seus dezesseis anos, quando seu crescente amor pelo bizarro o levara a perguntar questões estranhas 
a um velho livreiro na Rua Chandos; e ele havia sempre se perguntado por que os homens 
empalideciam quando dele falavam. O velho livreiro lhe havia dito que apenas cinco cópias haviam 
sabiamente sobrevivido aos editos chocados dos sacerdotes e juízes contra ele, e que todos estavam 
encerrados com cuidado terrível por pessoas que haviam se aventurado a começar uma leitura do 
negro livro odioso. Mas agora, finalmente, ele havia não somente encontrado uma cópia acessível 
 
∗ QUATRO FRAGMENTOS (Azathot, The Descendent, The Book, The Thing Under in the Moonlight): estes 
fragmentos descobertos entre os papéis de Lovecraft são presumivelmente suas tentativas de se estabelecer em formas 
rudimentares, preparando-se para expansão em histórias mais longas, alguns de seus sonhos. Nenhum deles jamais foi 
aumentado. Chaves para as fontes de sonhos destes fragmentos podem ser encontradas em cartas escritas por Lovecraft. 
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mas adquirido a um preço ridiculamente baixo. Foi na loja de um judeu, nas vizinhanças esquálidas 
do Mercado Clare, onde lê já havia compra coisas estranhas antes, e quase imaginava o velho levita 
recurvado e sorridente entre fiapos de barba quando fez a grande descoberta. A pesada capa de 
couro com o cadeado de aço estava tão proeminentemente visível, e o preço era tão absurdamente 
baixo. 
 O único vislumbre que ele teve do título foi suficiente para fazê-lo delirar, e alguns dos 
diagramas dispostos no vago texto em latim excitavam as mais tensas e inquietantes lembranças de 
seu cérebro. Ele sentia que era muito necessário levar a coisa poderosa para casa e começar a 
decifrá-la, e levou-a da loja com tamanha precipitação que o velho judeu riu perturbadoramente 
atrás dele. Mas quando finalmente estava a salvo em seu quarto, descobriu que a combinação do 
livro negro e do idioma adulterado era demais para seus poderes de lingüística, e relutantemente 
pediu ajuda de seu estranho amigo amedrontado para decifrar o distorcido latim medieval. Lorde 
Northam conversava banalidades com seu gato malhado, e reagiu violentamente quando o jovem 
entrou. Então viu o volume e tremeu violentamente, e desfaleceu por completo quando Williams 
pronunciou o título. Foi quando recuperou os sentidos que ele contou sua história; contou sua 
fantástica ficção de loucura em frenéticos sussurros para que seu amigo fosse rápido em queimar 
livro amaldiçoado e espalhar bem distante suas cinzas. 
 Deve haver, Lorde Northam sussurrou, deve haver alguma coisa errada no começo; mas isso 
nunca teria chegado a um fim se ele não tivesse ido tão longe. Ele era o décimo-nono barão de uma 
linhagem cujo início ia desconfortavelmente distante no passado — inacreditavelmente distante, se 
a vaga tradição for considerada, pois havia histórias de família sobre uma descendência que 
remonta a tempos pré-saxônicos, quando um certo Luneu Gabínio Capito, tribuno militar da 
Terceira Legião Augusta então estacionada em Lindum, na Britânia Romana, havia sido 
sumariamente expulso de seu comando por participação em certos rituais que não tinha ligação com 
qualquer religião conhecida. Gabínio havia, segundo corria o rumor, entrado na caverna da encosta, 
onde estranhas pessoas se reuniam, e feito o Sinal dos Antigos na escuridão; estranhas pessoas que 
os Bretões não conheciam, salvo por medo, e que foram os últimos sobrevivente de uma grande 
terra a oeste que havia afundado, deixando apenas as ilhas com os círculos e templos dos quais 
Stonehenge era o maior. Não havia certeza, claro, na lenda, de que Gabínio houvesse construído 
uma fortaleza impregnada sobre a caverna proibida e fundado uma linguagem que pictos e saxões, 
daneses e normandos foram incapazes obliterar; ou na suposição tácita de que daquela linhagem 
surgira o bravo e companheiro tenente do Príncipe Negro que Eduardo III tornara Barão de 
Northam. Essas coisas não eram certas, mas eram contadas com freqüência; e em verdade o 
trabalho em pedra da Fortaleza Northam parecia de forma alarmante como a alvenaria da Muralha 
de Adriano. Em criança, Lorde Northam tivera sonhos peculiares quando dormia naspartes mais 
velhas do castelo, e adquirira um constante hábito de vasculhar na memória cenas semi-amorfas e 
padrões de impressões que não formavam parte de sua experiência acordado. Ele se tornou um 
sonhador que descobriu a vida mansa e insatisfatória; um pesquisador de reinos estranhos e 
relacionamentos um dia familiares, mas que não se encontram em nenhum lugar das regiões visíveis 
da Terra. 
 Preenchido com uma sensação de que nosso mundo tangível é apenas um átomo num vasto e 
ominoso material, e que demônios ocultos pressionam e permeiam a esfera do conhecido a cada 
ponto, Northam na juventude e nos primeiros anos de fase adulta secou as fontes da religião formal 
e dos mistérios ocultos. Em nenhuma parte, entretanto, pôde ele encontrar paz e contentamento; e, à 
medida que crescia, a paralisia e as limitações da vida tornavam-se mais e mais enlouquecedoras 
para ele. Durante os anos 90 ele estudou o satanismo, e em todos os momentos devorou avidamente 
qualquer doutrina ou teoria que parecesse prometer fuga das visões fechadas da ciência e das tolas 
leis imutáveis da natureza. Livros como o relato quimérico de Ignatius Donnely sobre Altântida, e 
uma dúzia de obscuros precursores de Charles Fort o fascinavam com suas divulgações. Viajava 
léguas para acompanhar uma história furtiva de vilarejo de maravilhas anormais, e um dia foi ao 
deserto da Arábia para procurar uma Cidade Sem Nome por relatos vagos, que nenhum homem 
havia visto jamais. Dentro dele se elevava a fé tantalizante de que em alguma parte existiria um 
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portal, que se encontrado o admitiria livremente àquelas profundezas extremas cujos ecos soavam 
tão fracos nos fundos de uma memória. Poderia estar no mundo visível, ainda que podesse também 
estar em sua mente e em sua alma. Talvez ele mantivesse no interior de seu próprio cérebro semi-
inexplorado aquela ligação críptica que o despertaria a vidas ancestrais e futuras em dimensões 
esquecidas; que o ligariam às estrelas, e aos infinitos e eternidades além delas... 
(circa 1926)

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