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A trama fotográfica do Quebra-Quebra de 1942. Autor: Carlos Renato Araújo FREIRE. Graduando em História, UECE – CE. Orientador: Dr. Francisco José Gomes Damasceno. RESUMO: Em meio à algazarra na Praça do Ferreira, onde se avolumava uma pequena multidão em frente à coluna da hora, ouve-se o grito "Estão quebrando a padaria do Espanhol!". Assim no dia 18 de agosto de 1942 teria começado, na capital Fortalezense, o chamado Quebra-Quebra. Seria, então, o clímax de uma série de movimentações em reação ao afundamento de seis navios brasileiros por submarinos alemães em plena Segunda Guerra Mundial. Em tempos de Ditadura do Estado Novo, os jornais da época pouco falaram sobre o ocorrido, porém, uma testemunha registrou o evento em lances fotográficos. Privilegiando essas fontes iconográficas, de autoria do Sr. Thomaz Pompeu Gomes de Matos, temos como objetivo fazer um convite ao seu protocolo de leitura do Quebra-Quebra de 42. PALAVRAS-CHAVE: Segunda Guerra Mundial, Estado Novo, História do Ceará, Fotografia. Em setembro de 1939, o mundo toma conhecimento da deflagração de mais um conflito de alcance internacional. O início da Segunda Guerra é acompanhado à distância pela população Fortalezense através das notícias das agências internacionais, neste ínterim as mobilizações não passavam de missas mensais pelos mortos da guerra e o envio de quantias em dinheiro afim de “socorrer as crianças vítimas dos infortúnios desta guerra”. A política externa brasileira pautava-se na “eqüidistância pragmática”, mantendo uma zona de neutralidade em relação as potências mundiais visando aumentar o seu poder de barganha comercial. A guerra só começou a se tornar mais próxima gradativamente após o ataque japonês à base norte-americana de Pearl Harbour (Havaí), que marcou a entrada norte- americana no combate no final do ano de 1941 e, por parte do Brasil, o rompimento das relações internacionais com os países do eixo. Face ao rompimento diplomático, a Interventoria Federal lança nota oficial afirmando que quaisquer que fossem as conseqüências, o dever “é manter-nos serenos, conscios das responsabilidades que temos para com a pátria e confiantes na ação esclarecida do Presidente Getúlio Vargas [...]”1. Cada um deveria acatar as decisões e cumprir, no setor em que se encontrar, as tarefas atribuídas. Seguinda a linha de alinhamento às direções do Estado, recomendava-se que “o nosso povo, 2 tradicionalmente ordeiro e pacífico, se abstenha de qualquer atitude agressiva contra os súditos daquela nações, suas pessôas, seus bens e sua honra”. Acrescenta, o articulista do jornal O Nordeste, o emprego da violência seria contra os sentimentos cristãos e o meio de fraternidade disseminados, profundamente, “n´alma popular”. Enfim, todos os elementos sociais deveriam colaborar com os representantes dos poderes constituídos, na execução das medidas indispensáveis a que o trabalho e a tranqüilidade não sofram alteração. Palavras como disciplina, ordem e subordinação marcariam a tônica do discurso de colaboração com os esforços da guerra. Nessas circunstâncias internacionais a influência política e econômica americana sobre a América latina reduzia sensivelmente as possibilidades de adesão do Brasil às forças do eixo, a despeito das estreitas afinidades ideológicas que cooptavam segmentos da cúpula militar e do Estado Novo ao ideário fascista. Em virtude de sua “colaboração pró-America”, paulatinamente, o Brasil transita dessa neutralidade formal à política de co-beligerância através das seguintes medidas: rompimento das relações com o eixo (janeiro de 42), fechamento de acordos diplomáticos com Washington (fevereiro/março) e a elaboração de um acordo militar secreto entres os dois países com vistas à defesa do território brasileiro e extração sistemática da borracha amazônica.2 Essa estreita colaboração com o esforço de guerra norte-americano atraiu a hostilidade do Eixo, e no começo do ano de 42 vários navios mercantes brasileiros são afundados. Um clima de tensão se instaurou, provocando uma mudança na dinâmica diária da cidade. As instruções de “defesa passiva” eram divulgadas incessantemente através de cartazes espalhados pelos logradouros da cidade e pelos diversos jornais, indicando o grau de preocupação e mobilização. As instruções destinadas a população geral pediam “serenidade e disciplina” para que os minutos que decorriam entre o toque da sirene e o ataque do inimigo não fossem tomados pelo pânico. O artigo no jornal O Povo sintetiza da seguinte forma como deveria ser a conduta dos fortalezenses quando estes fossem supreendidos na rua pelas sirenes de alarme: a- Na falta dos abrigos públicos, temos que procurar o edifício mais próximo ou nos postarmos, pelo menos, nas reintrancias das fachadas, nos vãos das portas, caso estejam fechadas; b- se estamos num bond, ônibus ou qualquer viatura, devemos abandoná-lo em ordem, logo este pare, o que está obrigado a fazer sem tardanças para se colocar na mão, junto à calçada, afim de não prejudicar o transito, sobremodo 3 necessário aos serviços de socorro. Na descida do veículo nada de gritos desesperados e de correrias infrutíferas, para não determinar o pânico. Em seguida, busquemos as casas da circunvizinhança e, uma vez dentro delas tomemos as posições de defesa já indicadas.3 Vários ensaios simulando um ataque aéreo foram realizados, as sirenes tocavam e os habitantes colocavam as instruções em prática. Faziam partes desses ensaios também o black-out, onde as luzes das ruas e das casas eram apagadas, os automóveis de faróis apagados, os bondes teriam suas lanças desprendidas, enfim, qualquer indicio luminoso poderia oferecer alvo de ataque. Ensaiam-se a campanha dos metais arrecadando utensílios domésticos contendo os metais de difícil aquisição no mercado estrangeiro em vista da situação internacional. È realizado também a “Semana Anti- Nazista”, realizando comícios em praça pública e palestras nos colégios da cidade propagando o sentimento de repúdio aos países do eixo. É nessa conjuntura, após o afundamento de mais seis navios brasileiros por submarinos alemães entre os dias 15 e 17 de agosto, que irá acontecer, em 18 de agosto de 1942, o evento chamado de Quebra-Quebra. Entretanto, em tempos de Ditadura do Estado Novo Varguista, os jornais evitaram comentários a respeito do ocorrido. Ainda assim temos acesso a alguns indícios do que haveria ocorrido. No jornal O Nordeste, do dia 19 de agosto, em edital na primeira página, comenta-se sobre a “Grande massa de povo, ontem, durante quase todo o dia, principalmente depois das 10 horas, veio as ruas em manifestações coletivas de desagravo à covarde agressão dos piratas nazistas à Marinha mercante Nacional.”4 Considerando justificável e inevitável às repercussões dos afundamentos na multidão, a população agora deveria se colocar dentro dos imperativos do patriotismo e manter-se confiante nos labores do alto poder nacional. Obedecendo aos apelos das autoridades visando calma, ordem e disciplina. “Passou-se o tempo dos devancios faciosos, das intrigas partidárias, das rivalidades mesquinhas. O que se quer, o que o poder público reclama é a união de todos os brasileiros[...]”.5 Dessa forma privilegiamos, então, outra fonte de acesso ao fato. Utilizaremos as fotografias e as narrativas, particularmente as do fotógrafo amador Sr. Thomaz Pompeu Gomes de Matos, que envolvem a temática das movimentações populares em torno do dia 18 de agosto de 1942 em Fortaleza, como fonte primária para entender esse evento. Nesse dia a cidade “acorda” com uma Missa realizada na Igreja do Patrocínio, onde uma grande multidão se concentra abarrotando-se em frente as suas portas. Pela 4 mesma atenção ao luto nacional, as aulas da faculdade de direito foramsuspensas. Um informante privilegiado descreve o clímax dos acontecimentos: [...] A revolta popular aumentava de minuto a minuto. Vi várias mulheres chorando durante a Missa. Nesse clima de revolta e indiguinação fomos para a Faculdade de Direito e lá nos reunimos em frente ao prédio onde oradores falaram concitando o Governo Federal a declarar Guerra à Alemanha.[...] Mais ou menos às 10:30 saímos em passeata [...] e [chegamos] a velha praça do Ferreira. [...]Por onde íamos passando a fileira ia aumentando consideravelmente. Quando atingimos a Coluna, ali já se encontrava uma compacta multidão a gritar “morra Hitler e seus asseclas!”. Vários oradores se fizeram ouvir [...] [avultando] o número de manifestantes face ao fechamento do comércio as 11:00 horas como era de hábito na época. Nisso, no meio da multidão ouve-se um grito: “Estão quebrando a padaria do Espanhol!”. [...] Foi o início do quebra-quebra.6 Nesse mesmo alvoroço acabaram sendo quebradas e incendiadas outras casas comerciais como as Lojas Pernambucanas, Camisaria Álvaro, Jardim Japonês da família Fujita. Nosso informante é uma testemunha ocular em dois sentidos: observou o ocorrido e ainda registrou os lances através de fotografias. O desempenho fotográfico do Sr. Thomaz na década de 40 está inserido num momento de estandardização dos produtos fotográficos e uma compactação das câmaras, possibilitando uma ampliação do número de profissionais e usuários da fotografia. Já era possível encontrar os produtos importados das indústrias Kodak na Casa Parente da Rua Guilherme Rocha, prevalece, então, a máxima da fotografia amadora: “You press the botton, we do the rest”. Diferente então de outros tempos, como no século XIX, onde o controle de uma câmera fotográfica “[...] ficava restrito a um grupo seleto de fotógrafos profissionais que manipulavam aparelhos pesados e tinha de produzir o seu próprio material de trabalho (MAUAD, 1996: 75).” 5 Antes de tudo temos que por em questão um certo olhar inocente sobre as fontes iconográficas. Ao ver esta foto, tirada por Thomaz Pompeu, da “Passeata da Vitória” promovida pelo Centro Estudantil no dia 09 de Agosto de 1942 (alguns dias antes do Quebra-Quebra), fico até tentado a dizer que as imagens são “[...] uma reprodução fiel do real, da “coisa tal como ela é”(BORGES, 2003: 24).” Pode parecer que tudo que foi noticiado no jornal Correio do Ceará no dia posterior está representado lá dentro: Acompanhados de grande massa popular, ao som de estrepitosos foguetes e empunhando cartazes de propaganda democrática, os estudantes rumaram para a Praça do Ferreira, onde já se havia formado um grupo numerosissimo de pessoas. A entrada do cortejo cívico no principal logradouro da cidade foi triunfal, ouvindo-se ensurdecedoras aclamações aos nomes dos presidentes Vargas e Roosevelt, de Churchill e De Gaulle e as nações unidas, cujos heróicos combatentes derramaram o seu sangue em holocausto da Liberdade.7 Seria algo como um espelho do que realmente aconteceu. Nessas fotos detectamos um grande número de pessoas fardadas mostrando o ativismo dos estudantes daquela época, a adesão dos vários grupos sociais (estudantes, professores, motoristas, organizações católicas como a Cruz de Cristo, etc) erguendo os seus cartazes e faixas que acabam se juntando em um só grito de condenação ao nazi-facismo dos países do eixo. O que acabo de fazer foi um uso pobre das imagens como fonte: um simples recurso de autoridade para afirmar aquilo que se diz por aquilo que se vê. Proponho um uso das fotografias não como mera ilustração reproduzidas em um livro, como uma mera evidência de conclusões chegadas por outros meios, caindo nos famigerados argumentos circulares, como afirma Carlo Ginzburg. A fotografia em sua essência é uma área de litígio. Direcionando a sua utilidade para servir como fonte de um trabalho de História, o conceito de trama se torna seminal. Segundo Paul Veyne “[...] em nenhum caso, o que os historiadores chamam um evento é aprendido de uma maneira direta e completa, mas, sempre, incompleta e lateralmente, por documentos ou testemunhos, ou seja, por tekmeria, por indícios”.8 A trama seria a costura desses indícios, onde os documentos ganham importância e estatuto de fonte. Salienta-se o uso da palavra documento no seu plural, pois “[...] a narração histórica situa-se para além de todos os documentos, já que nenhum deles pode ser o próprio evento; ela não é um documentário em fotomontagem e não mostra o passado ao vivo “como se estivesse lá”.9 6 Álbum com as fotos do Quebra-Quebra organizado pelo Sr.Thomaz Pompeu Gomes de Matos. Tanto pelo temor de se ser envolvido em alguma querela policial, como por motivos de constrangimento pessoal com pessoas próximas, essas vinte e três fotografias foram guardadas em foro íntimo no arquivo pessoal do Sr. Thomaz Pompeu, tendo sido mostradas apenas para familiares e amigos próximos até o começo da década de 80. É Foucault que nos chama atenção para os suportes dessas fotografias e as suas “modalidades de existência”, ou seja, os modos de circulação, de valorização, de atribuição, de apropriação destas fotos.10 A divulgação mais ampla dessas fotografias só acontecerá depois de 40 anos já no final de outra ditadura. Eram tempos do esgotamento do Milagre Brasileiro. A dita Abertura lenta e gradual estava em corrente processo, intensificada após com a crise econômica arrastando consigo a credibilidade dos militares e as bases sociais da aceitação da ditadura. O primeiro suporte, onde as fotos ganham uma divulgação mais ampla, é a página do jornal Opovo intitulada Pesquisa e Comunicação, datada no dia 22 de Agosto de 1982, escrita pelo memorialista e colecionador Miguel Ângelo de Azevedo (Nirez). É nessa matéria de jornal onde o evento tem uma divulgação de maior amplitude, fora do que podemos chamar de uma tradição oral, e, também, é onde as fotografias tornam-se públicas adquirindo um significado propriamente histórico. Agora as fotografias não estão relacionadas apenas com a experiência das pessoas de sua época, mas, também, fazem parte da História. Envolvendo-se assim de um capital simbólico cada vez mais ampliado e num horizonte de temporalidade cada vez mais imbricado. Reduzido a um foro íntimo, mas com grande audiência dos pesquisadores depois da divulgação no jornal, o segundo suporte é o álbum de fotografias organizado, também no começo dos anos 80, pelo próprio Thomaz Pompeu. O Álbum – que hoje se encontra na reserva técnica do Memorial da Cultura Cearense – possui uma capa dura, vermelha e em letras douradas, no canto inferior direito, está o nome do seu antigo proprietário; na lombada, também em dourado, encontra-se um nome em caixa-alta: Quebra-Quebra de 18-08-1942. É possível julgar o 7 livro pela capa, assim observamos o cuidado e carinho especial que o Sr. Thomaz tem por esse acontecimento. O Ato de organizar um passado morto dentro de um álbum tem uma intencionalidade forte de impor uma leitura, entre outras, do ocorrido. A versão de Thomaz Pompeu Gomes de Matos pode ser resumida como: uma aglomeração de pessoas desgovernadas atacando os comércios que tinham alguma coisa a ver com os países do eixo, um movimento que começou como um ato de passeata patriótico dos estudantes de direito e que, por um movimento espontâneo das massas, acabou virando o Quebra-Quebra. Passando as páginas desse álbum, observamos um certo “malabarismo” em sua organização: as fotos das passeatas passadas servem para tapar o buraco da falta de fotos das passeatas dentro do dia 18, a ordenação em uma sucessão cronológica buscando sempre a verossimilhança com a própria ordem dos ocorridos, a utilização de fotos de terceiros como que para comporum painel imagético de toda extensão da época, entre outros recursos. Já que as fotografias não adquirem significado por si só, é preciso adestrar as suas leituras e atribuições de sentido, o nosso personagem cria então um protocolo de leitura das fotos e do evento. Para o Sr. Thomaz Pompeu Gomes de Matos, “é um dever produzir lembranças; não fazê-lo é reconhecer um fracasso, é confessar a existência de segredos. O álbum é uma garantia de transparência, um passaporte de sinceridade e uma prova de ajustamento”.11 No seu caso, esse ajustamento é pelo nome, pela tradição da família. É estar em pé de igualdade com o seu Pai Raimundo Gomes de Matos (professor-fundador da Faculdade de Direito) e o seu ativismo cívico, é estar diante das figuras ilustres que visitavam a sua casa em sua infância para conversar sobre a História de Cangaceiros e Lampiões, é estar junto com a sua mãe e os cuidados que ela tinha com suas louças francesas, cuidados estes próprios de qualquer colecionador, enfim, é estar perto dos seus próximos ainda mesmo que distantes. 1 Jornal O Nordeste, 02/01/1942, p. 1 2 MOURA, Gerson. “Neutralidade dependente: o caso do Brasil, 1939-1942”. In: Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, v. 06, no 12, pp. 177-189. 3 Jornal O Povo, 17/09/1942, p. 4. 4 Jornal O Nordeste, 19/08/1942, p. 1. 5 Jornal O Nordeste, 24/08/1942, p. 1. 8 6 MATOS, Thomaz Pompeu Gomes de. O menino de Solar Rouge. Fortaleza, 1991. Livro de reminiscências não publicado, pp. 98-100. 7 Correio do Ceará, 16 de Agosto de 1942, p. 7. 8 VEYNE, Paul Marie. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Trad. De Aldar Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. 4a ed. – Brasília: Editora Universidade de Brasília (UnB), 1998, p. 18 9 Idem. 10 FOUCAULT, Michel. O que é um autor. Portugal: Vega Editora, 1992, p. 68. 11 ARTIÈRES, Philippe. “Arquivar a própria vida” In Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Ed. Getúlio Vargas, vol. 1, n. 21, 1998, p. 8.
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