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7 ARTIGO ORIGINAL Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 7-15, abr/jun 2016Adolescência & Saúde RESUMO Objetivo: Investigar os fatores de risco relacionados à conduta de adolescentes que cometeram homicídio. Métodos: Foram analisados os prontuários de jovens detentos em um Centro de Atendimento Sócio Educativo, no período de 2014 a 2015. As variáveis consideradas foram idade, gênero, estado conjugal, escolaridade, uso de drogas e álcool, circunstâncias do crime, contexto social e familiar. Resultados: Os resultados evidenciaram um total de 28 protocolos de adolescentes masculinos, com média de idade de 17 anos, com baixos níveis de escolaridade (82%) e socioeconômico (89%), com história de abandono escolar (97%), de vulnerabilidade social (78%), de uso de álcool e drogas (75%), e de transgressão familiar (71%). O homicídio foi conduzido pelo uso de arma de fogo (53%) e esteve relacionado a dívidas de drogas (78%). Conclusão: Os fatores de risco evidenciados devem ser considerados na ressocialização dos jovens e no desenvolvimento de medidas de prevenção contra as reincidências. PALAVRAS-CHAVE Violência, crime, adolescente, fatores de risco. ABSTRACT Objective: This study investigated behavioral risk factors among adolescents committing homicide. Methods: The 2014 – 2015 records of reform school detainees were analyzed by the following variables: age, gender, marital status, education, drug and alcohol use, circumstances of the crime, social aspects and family context. Results: The results consisted of the records of 28 male adolescents with a mean age of age of 17; poor education (82%); low economic and social (89%) status; school dropouts (97%); socially vulnerable (78%); alcohol and drug use (75%); and other crimes in the family (71%). Just over half (53%) of these homicides involved fi rearms, with 78% related to drug debts. Conclusion: These risk factors must be taken into consideration during the rehabilitation of these youngsters, together with steps designed to prevent repeat offences. KEY WORDS Violence, crime, adolescent, risk factors. Adolescentes que cometeram homicídio: Quais os fatores de risco? Teens who have committed murder: What are the risk factors? Pricila Welter1 Silvana Alba Scortegagna2 Pricila Welter (pri_welter@hotmail.com) - Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Envelhecimento Humano. Universidade de Passo Fundo, BR 285, Km 171, São José. Cx. Postal 611. Passo Fundo, RS, Brasil. CEP: 99052-900. Recebido em 05/06/2015 – Aprovado em 06/07/2015 1Graduanda do Curso de Psicologia da Universidade de Passo Fundo (UPF). Passo Fundo, RS, Brasil. Bolsista de Iniciação Científi ca PROBIC- FAPERGS, em projetos relacionados à questão de aspectos psicológicos e sociodemográfi cos no contexto da criminalidade e da violência. 2Graduada em Psicologia, com mestrado em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Passo Fundo, RS, Brasil. Doutorado em Psicologia pela Universidade São Francisco (USF). São Paulo, SP, Brasil. Professora Titular III do Curso de Psicologia e dos Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu em Envelhecimento Humano e em Administração, da UPF. Passo Fundo, RS, Brasil. > > > > 8 Welter e ScortegagnaADOLESCENTES QUE COMETERAM HOMICÍDIO: QUAIS OS FATORES DE RISCO? Adolescência & SaúdeAdolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 7-15, abr/jun 2016 negativas, como o homicídio5. Entre os fatores de risco relacionados à constituição psíquica encon- tra-se a falha na instauração de limites e da fun- ção paterna. Limite é algo estruturador da criati- vidade, sua ausência impede que o adolescente pense, seja criativo e se organize psiquicamente6. Já a função paterna é fundamental para a instau- ração de regras e interditos7. Assim, na situação dos adolescentes em confl ito com a lei, a instau- ração destas funções acaba sendo fragilizada, acarretando prejuízos a um desenvolvimento sau- dável, fazendo com que o adolescente busque no externo a lei não encontrada no convívio familiar. Além disso, as características individuais e de personalidade de adolescentes que comete- ram homicídio também podem ser considera- das elementos de risco; entre elas observam-se a baixa autoestima, autoimagem negativa, im- pulsividade, inabilidades sociais, inefi ciência de recursos para enfrentar situações complexas, distorções na autopercepção e na percepção do outro8,9,10. Na relação entre o comportamento de adolescentes perpetradores de homicídio e o contexto social e familiar, observam-se história de transgressão por parte de outros membros da família, ausência de vínculos positivos, rede de apoio fragilizada e falhas na competência pa- rental11,12. Para melhor compreensão dos fatores imbricados nas questões que envolvem adoles- centes em confl ito com a lei, algumas pesquisas encontram-se relacionadas na Tabela 1. Conforme a tabela 1, os fatores de risco para o desenvolvimento saudável dos adoles- centes e a inserção na criminalidade, dizem res- peito a: falhas importantes no desenvolvimento da competência parental4,11,12, rede familiar dis- funcional4,12, uso de drogas e álcool4,11,13,14, nível de escolaridade baixo13,14,15,16, vulnerabilidade e desigualdade social, testemunhar violência no cotidiano familiar e social4,13,15,16. Esses dados podem ser úteis para embasar as discussões so- bre a maioridade penal e para a compreensão do aumento da violência entre os jovens. Nessa direção, o presente estudo buscou investigar os fatores de risco relacionados à conduta de ado- lescentes que cometeram homicídio. INTRODUÇÃO A violência envolvendo jovens, seja na po- sição de vítimas ou de autores de crimes, cresce de forma acelerada tornando-se foco de muitas discussões. Neste contexto, diferentes posicio- namentos emergem sobre a redução da maio- ridade penal, que tem por objetivo diminuir a idade de 18 para 16 anos para a penalização de adolescentes autores de atos infracionais. A Constituição da República¹ defi ne, em seu artigo 228, que o jovem com até 18 anos de idade incompletos, é penalmente inimputável, porém responsável por seus atos. O Conselho Federal de Psicologia² expõe que a opção pela redução da maioridade penal serviria muito mais para enco- brir os graves problemas sociais e a falta de políti- cas públicas destinadas à proteção e cuidado das crianças e adolescentes brasileiros, do que para reduzir os índices de violência entre os jovens. Deste modo, compreende-se que o jovem já é responsabilizado por seus atos, e que a me- dida adotada para o delito cometido deve levar em conta a fase de desenvolvimento em que este se encontra (adolescência), seu universo familiar, social e econômico. Fortalecer o vínculo com a família, oferecer assistência aos seus membros, prover condições para a reinserção escolar e o desenvolvimento da educação formal que pos- sibilite o alcance de melhores condições socioe- conômicas e, consequentemente, de reinserção social, parecem ser políticas para proscrever o ci- clo da violência, a serem alcançadas pelo Estado. Como um fenômeno complexo, compreen- de-se que a violência, em especial o homicídio, resulta da interação entre fatores estruturais, so- ciais, psicológicos e individuais3,4. Há três níveis de conceitualização: (I) O nível estrutural, que enfatiza a infl uência da organização social na constituição do sujeito; (II) O nível sociopsicológi- co, que refere-se às instituições de controle social, como a família e a escola; (III) O nível individual, que inclui aspectos biológicos e psicológicos3. Adolescentes expostos a múltiplos fatores de risco acabam sendo prejudicados em seu desen- volvimento, o que contribui para o ato de práticas > 9Welter e Scortegagna ADOLESCENTES QUE COMETERAM HOMICÍDIO: QUAIS OS FATORES DE RISCO? Adolesc. Saude, Rio de Janeiro,v. 13, n. 2, p. 7-15, abr/jun 2016Adolescência & Saúde Tabela 1. Descrição dos estudos brasileiros com adolescentes em conflito com a lei no período de 2007 a 2013. Autores e ano do artigo Objetivo/ Instrumentos Participantes Resultados/Conclusão Roseana Mara Aredes Priuli, Maria Silvia de Moraes (2007)13 Levantar o perfil sóciodemográfico e infracional de adolescentes infratores. Prontuários da Instituição. 48 adolescentes, entre 14 e 18 anos de idade completos, que cumpriam medida socioeducativa de Internação. Faixa etária de 17 anos. Escolaridade baixa, evasão escolar, e uso de drogas. Residiam em bairros de vulnerabilidade social. Sandra Eni Fernandes Nunes Pereira, Maria Fátima Olivier Sudbrack (2008)11 Descrever a relação entre os níveis de dependência das drogas e a prática de atos infracionais. Entrevistas semiestruturadas. 29 adolescentes, autores de infração, no contexto da Vara da Infância e Juventude de Brasília. Uso de álcool ou drogas no momento da infração. Ausência de afetividade e autoridade na família. Mayra Costa Martins, Sandra Cristina Pillon (2008)14 Analisar a relação entre o uso de drogas e o ato infracional. Questionário estruturado. 150 adolescentes, cumprindo medida socioeducativa de internação pela primeira vez. Média de 16 anos. Baixa escolaridade. Uso de álcool e drogas. Herminia Castro Silva, Hilda Daniela Oliveira (2011)12 Discutir o papel desempenhado pelo jovem no processo de estabelecimento das interações no cotidiano de sua vida na criminalidade. Entrevistas individuais e em grupos e pesquisa nos prontuários. 14 adolescentes entre 16 e 18 anos de idade, privados de liberdade em uma Instituição Socioeducativa. Envolvimento de familiares com o crime. Situação de trabalho instável. A maior parte dos jovens não acredita que possa sair da situação porque passou a ser sua rotina, porque o contexto continua o mesmo. Jana Gonçalves Zappe e Ana Cristina Garcia Dias (2012)4 Compreender como a dinâmica familiar pode estar associada à prática de atos infracionais. Estudo de casos múltiplos. 5 jovens privados de liberdade. Duas entrevistas individuais guiadas com cada adolescente. Fragilidades e violência nas relações familiares, falta do quadro de referência para o desenvolvimento psicológico saudável. Bianca Izoton Coelho e Edinete Maria Rosa (2013)15 Analisar as representações do ato infracional e medida socioeducativa. Entrevista Semiestruturada e técnica das evocações livre. 46 adolescentes, com idade entre 15 e 18 anos, que cumpriam, há mais de três meses, a medida de Liberdade Assistida. A caracterização demonstrou renda familiar e nível de escolaridade baixos, local de residência precário. Marina Rezende Bazon, Jorge Luiz da Silva, Renata Martins Ferrari (2013)16 Descrever as trajetórias escolares de adolescentes em conflito com a lei. Entrevistas semiestruturadas. 6 adolescentes em cumprimento de Medida Socioeducativa e seus respectivos responsáveis. Os adolescentes foram apreendidos durante o período de evasão escolar. Dificuldades de aprendizagem, reprovações. Necessidade do apoio escolar para superarem as práticas infracionais. 10 Welter e ScortegagnaADOLESCENTES QUE COMETERAM HOMICÍDIO: QUAIS OS FATORES DE RISCO? Adolescência & SaúdeAdolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 7-15, abr/jun 2016 MÉTODOS Trata-se de um estudo retrospectivo docu- mental, tendo como fonte todos os prontuários de adolescentes que cometeram homicídio, que constavam em um Centro de Atendimento So- cioeducativo (CASE), no período de janeiro de 2014 a janeiro de 2015, em uma cidade do norte do estado do Rio Grande do Sul. Como proce- dimentos, inicialmente contatou-se o CASE, por meio do diretor responsável pela instituição, o qual assinou a Carta de Autorização para a rea- lização deste estudo. Na sequência, a pesquisa obteve a aprovação do Comitê de Ética em Pes- quisa (CEP) da Universidade sob protocolo de número 110/2009. De posse destes documentos, realizou-se a análise documental dos protocolos. Os dados foram categorizados de acordo com as seguintes variáveis: (a) informações so- bre características sociodemográfi cas como gê- nero, idade, estado civil, escolaridade; (b) his- tórico de uso de drogas e álcool, constituição familiar, e circunstâncias do crime cometido. A análise dos resultados contou com a estatística descritiva e a literatura pertinente. RESULTADOS De um total de 75 prontuários (100%) de adolescentes que cometeram diferentes atos in- fracionais como roubo, tráfi co de drogas, porte ilegal de arma, internos no CASE, foram identifi - cados 28 prontuários (37%) com história de ho- micídio. Os dados sociodemográfi cos e as carac- terísticas psicossociais dos adolescentes podem ser visualizados na tabela 2. Conforme apresentado na tabela 2, todos os adolescentes (100%, n=28) que praticaram homicídio eram do gênero masculino, com ida- des entre 14 e 19 anos, média de 17 anos, sendo a maior parte solteiros (92,9%, n=26), seguido de união estável (7,1%, n=2). No CASE em que a pesquisa foi realizada não havia adolescentes femininas cumprindo medida. Sobre a escolaridade, 82% (n=23) frequen- tavam o ensino fundamental, tão somente 18% (n=5) estavam no Ensino Médio. A maior parte dos adolescentes cursava a 7º série (25%, n=7), seguido da 6º série (21,4% n=6). O abando- no escolar antes do crime ocorreu em 96,4% (n=27) dos casos, exclusivamente um adoles- cente (3,7%, n=1) não havia deixado de fre- quentar a escola antes de ter cometido o crime. O ato homicida foi classifi cado como qua- lifi cado, com a intenção de matar, em 90%, (n=25) dos casos, 78% (n=22) motivados por desentendimentos anteriores como brigas de jo- gos ou por ciúmes de ex-namoradas envolvidas em outros relacionamentos, ou por dívidas de drogas. Entre os registros dos adolescentes 64% (n=18) expuseram que o crime ocorreu sem planejamento prévio, com a utilização de armas de fogo (53,5% n=15), seguido do uso de arma branca (42,8% n=12) e, minoritariamente, a ví- tima foi morta no porta malas do carro (3,7% n=1). O homicídio foi o único ato infracional co- metido (86% n=24), embora, em menor parte dos casos, tenha ocorrido relação com outras in- frações como roubo e extorsão (14% n=4). O consumo recorrente de drogas e álcool esteve presente na história de 75% (n=21) dos adolescentes, a maior parte deles fazia uso de maconha. Outros dados revelam que 78% (n=22) dos jovens provinham de um ambiente violento e de vulnerabilidade social, residiam em bairros da periferia com forte tradição no tráfi co de drogas, com precária qualidade da moradia, e subcondições de saneamento. O nível socioe- conômico foi baixo em 89,3% (n=25), apenas 10,7% (n=3) possuíam renda familiar média; os familiares responsáveis exerciam trabalho infor- mal e não tinham uma profi ssão defi nida. Sobre o contexto familiar, 71% (n=20) dos adolescentes, tinham familiares que haviam co- metido algum delito, a transgressão era existente. Na maior parte dos casos, o delito foi cometido pelo pai (50% n=10), e pelo tio (35%, n=7). Em apenas 28,6% (n=8) dos casos, os membros da família dos adolescentes não haviam sido presos. > > 11Welter e Scortegagna ADOLESCENTES QUE COMETERAM HOMICÍDIO: QUAIS OS FATORES DE RISCO? Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 7-15, abr/jun 2016Adolescência & Saúde > Tabela 2. Descrição dos dados sociodemográficose das características psicossociais dos adolescentes perpetradores de homicídio Variável Descrição £ % Idade 14 15 16 17 18 19 2 1 9 10 4 2 7,1 3,7 32,1 35,7 14,3 7,1 Gênero Masculino 28 100 Estado Civil Solteiro União Estável 26 2 92,9 7,1 Escolaridade 4ª série 5ª série 6ª série 7ª série 8ª série Ensino Médio 2 5 6 7 3 5 7,1 17,9 21,4 25,0 10,7 17,9 Arma Utilizada Arma de Fogo Arma Branca Outro 15 12 1 53,5 42,8 3,7 Outros atos infracionais Sim Não 4 24 14,3 85,7 Contexto de Vulnerabilidade Social Sim Não 22 6 78,6 21,4 Uso de drogas e álcool Sim Não 21 7 75 25 Transgressão Familiar Sim Não 20 8 71,4 28,6 £= Frequência, quantidade; % = Percentual DISCUSSÃO Entre os fatores sociodemográfi cos, a mé- dia de idade dos adolescentes foi de 17 anos, próximos a encerrar a idade de inimputabilidade penal, que é 18 anos incompletos, resultado este que corrobora outros estudos13,14. Além disso, a baixa escolaridade e a evasão escolar foram sig- nifi cativas entre os adolescentes, e necessitam ser discutidas. A escola é uma das instituições que deve- ria dar continuidade ao processo de instauração de limites e de construção da identidade, mas, neste estudo, 97% (n=27) dos adolescentes evadiram-se deste ambiente. Alguns estudos demonstram a baixa escolaridade dos jovens e a evasão escolar como fatores de risco relacio- nados a conduta homicida5,13,16. Este afastamen- to, seja por expulsão ou por processos sutis de exclusão, como baixo desempenho, confi gura- 12 Welter e ScortegagnaADOLESCENTES QUE COMETERAM HOMICÍDIO: QUAIS OS FATORES DE RISCO? Adolescência & SaúdeAdolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 7-15, abr/jun 2016 -se em um marco importante para a entrada ou para o agravamento da conduta delituosa, pois parece tornar os adolescentes mais vulneráveis, sem vínculos com as fi guras de autoridade17. Em relação ao crime cometido, 78% (n=22) referem o motivo principal relacionado a dívidas de drogas ou discussões sobre jogos e ciúmes. O uso de drogas, e o envolvimento nes- te meio, faz com que o adolescente seja mais suscetível aos comportamentos de risco, como a prática de infrações, sendo este um dos im- portantes fatores de risco na conduta de ado- lescentes homicidas13,14. Entre os adolescentes, 64% (n=18) de- monstraram que cometeram o homicídio sem planejamento, o que pode estar relacionado às características de personalidade como a impulsi- vidade, outro fator de risco que pode infl uenciar atitudes violentas. Além da impulsividade, a hi- peratividade, a ansiedade e a raiva são também características referidas8,9,10. Frente à tensão in- terna, jovens com um aparelho psíquico fragi- lizado podem utilizar defesas arcaicas, como a passagem ao ato. Esta diz respeito à impulsivi- dade e imaturidade do aparelho psíquico, sendo o ato uma tentativa de fazer ligação da pulsão18. Observa-se que a escassa mediação psíquica, e a passagem ao ato denunciam a fragilidade de recursos internos; revelam uma estruturação psíquica com lacunas, repleta de faltas; demons- tram os parcos investimentos recebidos por es- tes jovens ao longo de sua constituição. Fatores familiares, situacionais e sociais se constituem, igualmente, como importantes as- pectos a serem examinados. O contexto de vul- nerabilidade psicossocial, educacional, de con- dições precárias de moradias, com altas taxas de tráfi co de drogas e poucas oportunidades de emprego, são marcas características da maior parte da amostra deste estudo (78%, n=22). Estes dados corroboram pesquisas precedentes que reforçam tais fatores como preditores da violência10,12,13. Em relação à baixa renda envol- vendo as famílias dos jovens que cometeram o delito, a questão econômica, por vezes, pode contribuir para que os jovens tornem-se infra- tores, como forma de sobreviver e aumentar a renda familiar19. Em relação aos aspectos favoráveis ao de- senvolvimento de comportamento infrator, observa-se também o uso de drogas e álcool. Entre os adolescentes deste estudo, 75% (n=21) faziam uso de maconha semanalmente, antes da internação. Esta realidade, exposta em ou- tras pesquisas, demonstra que os fatores que infl uenciam o uso de drogas são: ser jovem, ter baixa escolaridade, disponibilidade, e presença de drogas na comunidade de convivência5,13,14. A associação entre o uso de substâncias psicoa- tivas e o cometimento de delitos, sugere que o uso de drogas deixa o adolescente mais exposto aos comportamentos de risco, como a prática infracional14. Para complementar a ideia da infl uência do nível sociopsicológico na situação dos ado- lescentes em confl ito com a lei, torna-se neces- sário refl etir sobre o contexto familiar. A família é o primeiro grupo social em que o indivíduo é inserido, em que se estabelecem as primeiras relações humanas que servem de base a todas as posteriores. A família do adolescente em con- fl ito com a lei tem uma forte infl uência tanto na aquisição quanto na manutenção dos com- portamentos infratores, porém sua infl uência é também importante na extinção desses com- portamentos20. Ao analisar a família como fator de rele- vância na constituição de uma pessoa, pode-se pensar que, sendo a grande maioria dos adoles- centes (71%, n=20) procedentes de um meio familiar transgressor, o contexto em que os pi- lares de sustentação deveriam ser constituídos e a lei instaurada, é permeado de falhas. Sendo assim, os delitos perpassam as gerações e a cena familiar se torna um fator de risco. Das pessoas que haviam cometido delitos na família dos adolescentes deste estudo, em 50% (n=10) dos casos era o pai o infrator, se- guido do tio (35%, n=7). Verifi ca-se, portanto, que as fi guras de representação da lei e de iden- tifi cação, como a fi gura paterna, são frágeis e falhas. A instauração da função paterna é uma 13Welter e Scortegagna ADOLESCENTES QUE COMETERAM HOMICÍDIO: QUAIS OS FATORES DE RISCO? Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 7-15, abr/jun 2016Adolescência & Saúde > intervenção necessária e estruturante no proces- so de formação do Superego por possibilitar a interiorização de regras essenciais para a vida e permitir que o ser humano não destrua a si mes- mo e nem ao outro7. Nas situações de delinquência, a função pa- terna fi ca comprometida; então, muitos jovens procuram no externo o interdito que não encon- tram no ambiente familiar, o que pode ter ocorri- do neste estudo. Consequentemente, o ato infra- cional pode surgir de uma busca do pai ausente, da autoridade, de uma lei que seja capaz de co- locar limites. Nestas circunstâncias, não se pode deixar de questionar: como entender como auxí- lio os posicionamentos legais que são favoráveis à maioridade penal de adolescentes que comete- ram homicídio? Como a diminuição da idade de 18 para 16 anos poderá contribuir para auxiliar estes adolescentes a instaurarem a lei? Nota-se que as fi guras de autoridade, como pai e mãe dos adolescentes, não conse- guiram instaurar efi cazmente a lei, o limite, o interdito. Outros estudos com adolescentes em confl ito com a lei demonstram a difi culdade de controle dos pais frente aos seus fi lhos, em que estes jovens passam a ganhar extensa liberdade e a supervisão parental torna-se inapropriada, podendo constituir-se jovens que não respei- tem autoridade parental e não possuam um ambiente adequado ao desenvolvimento sau- dável4,10,11,12,19. Na falta de um quadro de referência, a par- tir do qual poderia construir sua identidade, o jovem poderá buscar na sociedade a referência de que necessita para transpor os primeirosestá- gios de seu desenvolvimento emocional, já que não o encontrou no meio familiar6. Daí a necessi- dade de não abster-se do papel social (legal) que podem desempenhar as instituições brasileiras, e não se promover a maioridade penal. Diante do exposto, compreende-se que a vulnerabilidade que permeia a vida destes ado- lescentes não se restringe apenas a um contexto pessoal ou individual, não é um processo linear, pois a fragilidade provém também da família, do meio social e da escola em que estão inseri- dos. Nesse sentido, indaga-se novamente: onde se encontra espaço para expressão, proteção e contenção destes adolescentes? Recorre-se ao social para buscar as falhas do cuidado e suprir esta lacuna, como se no externo buscassem o controle frente aos seus atos6. É assim que, paradoxalmente, a delinquên- cia pode ser compreendida como um pedido de auxílio, ou seja, cometer um delito poder ser entendido como ter ainda alguma esperança de buscar preencher um vazio interno, buscando no externo algo que falta internamente: a lei. Alguns autores entendem o ato delinquencial como um apelo18, uma busca pelo olhar do Ou- tro, de reconhecimento7. De um modo geral, os dados encontrados na presente pesquisa são congruentes com ou- tros estudos4,8,11,12,13,14,15,18. Demonstram que a combinação de fatores de risco, notadamente os familiares, sociais, educacionais e individuais, in- fl uenciam o comportamento infracional, e a con- duta de adolescentes que cometeram homicídio. CONCLUSÃO Esse estudo alcançou o objetivo proposto, na medida em que trouxe compreensão sobre os fatores de risco relacionados a condutas de adolescentes que cometeram homicídio. Tais fa- tores referem-se a processos de constituição indi- vidual, ao entorno familiar, social e educacional. Entre os principais achados do estudo destaca-se o baixo nível de escolaridade, a vulnerabilidade social, o uso de drogas e álcool, a transgressão familiar e as falhas na competência parental. As limitações do estudo envolvem os da- dos dos documentos analisados, podendo haver informações limitadoras em cada prontuário. Além disso, a natureza documental deste estudo impossibilita uma compreensão mais profunda da estrutura e da dinâmica familiar, e da perso- nalidade dos agressores. Entretanto, as contribuições desta pesquisa são pertinentes e atentam para o desenvolvi- mento de políticas públicas e ações interdiscipli- 14 Welter e ScortegagnaADOLESCENTES QUE COMETERAM HOMICÍDIO: QUAIS OS FATORES DE RISCO? Adolescência & SaúdeAdolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 7-15, abr/jun 2016 REFERÊNCIAS 1. Senado Federal (Brasil). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. 2. Conselho Federal de Psicologia. Redução da idade penal: socioeducação não se faz com prisão. Brasília: Conselho Federal de Psicologia; 2013. 3. Schoemaker DJ. Theories of delinquency. An examination of explanations of delinquent. 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As ações voltadas para os fatores preditores da criminalidade devem: (a) contemplar a assistência psicossocial e a saúde de todos os membros da família; (b) fomentar a escolarização dos adolescentes por meio de ofi - cinas pedagógicas e do acompanhamento psi- cossocial; (c) aumentar o nível de escolaridade da população brasileira para que possa se profi s- sionalizar e, consequentemente, obter melhores condições de trabalho e de renda. Além disso, são necessárias ações que re- caiam sobre as consequências do crime, o que implica em: (a) banir a maioridade penal, já que os adolescentes precisam de um interdito, o que pode ser oferecido, também, pelo Esta- do; (b) prover programas de reinserção social que abordem não somente o adolescente, mas a família. Há necessidade do desenvolvimento de intervenções que visem mudanças para um futuro familiar e individual melhor, em todos os contextos de saúde, social, e do trabalho. Deve-se, ainda, fomentar práticas que per- mitam reconhecer, cada vez mais, a situação de estar em confl ito com a lei como algo em mo- vimento, não intacto, mas passível de mudança, em busca de um desenvolvimento humano e digno. Por fi m, para aprofundar o conhecimen- to desta temática é necessário prosseguir com estudos para ampliação de dados relacionados aos fatores de risco das condutas homicidas. 15Welter e Scortegagna ADOLESCENTES QUE COMETERAM HOMICÍDIO: QUAIS OS FATORES DE RISCO? Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 7-15, abr/jun 2016Adolescência & Saúde 14. Martins MC, Pillon SC. A relação entre a iniciação do uso de drogas e o primeiro ato infracional entre os adolescentes em confl ito com a lei. Cad Saude Publica. 2008;24(5):1112-20. 15. Coelho BI, Rosa EM. Ato infracional e medida socioeducativa: representações de adolescentes em L.A. Psicol Soc. 2013;25(1):163-73. 16. Bazon MR, Silva JL, Ferrari RM. Trajetórias escolares de adolescentes em confl ito com a lei. 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