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@ DP&Aeditoraltda' Proibida a reprodução, total ou parcial' por qualquer meio ou processo' seja reprográfico' fotográfico' gráfico, microfilmagem etc' Estas proibições aplicam-se também às características gráficas e/ou editoriais' A violação dos direitos autorais é punível como crime (Código Penal art' 184 e §§; Lei 6'895/80)' com busca, apreensão e indenizações diversas (fÉi 9.610/98 - Iri dos Direitos Autorais - aÍrs. 122,123' 124 e 126)' DP&Aeditora Rua )oaquim Silva, 98 - 2a andar - LaPa cEP 20.241-110 - RIO DE IANEIRo - Rl - BRASIL Tel./Fax: (21) 2232 -17 68 E-mail: dPa@dPa'com'br Home Page: www'dPa'com'br Iaboratório de Políúcas Públicas (LPP/UERJ) Rua São Francisco Xavier' 524 Paúlhao João Lira Filho - 2e andar - Bloco F - sala 2136 Rio de Janeiro - RJ - Brasil cEP20550-013 Tel.: (552r) 2565 -7569 I 2234-1896 Impresso no Brasil 2003 Sumário Capítuto I Descontrução, transformação e construção de novos cenários das práticas da afro-americanidade Iesús "Chucho" Garcia Capítuto ll Raça, demografia e indicadores sociais André Augusto Pereira Brandão Capítuto lll Professoras negras no Rio de ]aneiro: história de um branqueamento M ari a Lú cia Ro drigues Müller Capítuto lV  prática pedagógica de especialistas crn relações raciais e educação Iolanda de Oliveira Capítuto V O negro na confluência da educação e da literatura M ár cia Maia de I esu s P essanh a Capítuto Vl () pré-vestibular para negros como instrumento dc política compensatória - o caso do Rio de Janeiro Sérgio da Rocha Souza Capítuto Vtt Negros egressos de uma universidade pública tto l{io delaneiro Moema De Poli Teixeira 19 73 107 145 173 _.fuilDÂ#0 i.,{u;{}c,"r{ü DE f,íXJCÂÇlo DE MTEfiôtBl8t,0rEC pOF{..}tAR Àft.}r{§lnAl . bOnn coRlt-t+lA' 193 -r 106 Relações raciais e educação: novos desafios M,rr"ros, Hebe Maria. As cores do silêncio: os significados da liberdacle no sudeste escravista. Rio de faneiro: Nova Fronteira, 1998. Coleção História do Brasil. Escrayidíi.o e cidadania no tsrasiL rnonárqulco. Rio de .[trneiro: ]orge Ztrhar, 2000. Murrrr, M. Lúcia. As construtoras da Nacao: professoras primárias na Prirneira República. Niterói: Int-ertexto, I999a. Professoras negras na Primeira República. In: Oln srue., Iolancla (coord.) Relações raciais e educação: alguns cleterminantes. Niterói: intertexto, 1999b. p. 2I 68. Cadcrnos Per-resb, l. Hemetério José dos Santos. In: FÁr,r.no, M. L.; Brrrr'r'o, J. M. Dicionário d.e educadores no Brasil: cla colônia aos dias atuais. Rio de Janeiro: Ed. UFRI, INEP- 2002. Or rvrrr,q, Iolanda. Desigualdades rar:lals: construções da infância e da juventude. Niterói: Intertexto, 1 999. Psrrnor, MichelIe. Os excluídos duHistória: operários, mulheres e prisioneiros. São Paulo: Paz e Têrra, 1988. Prrxolcr, Afrânio. Minha terra e nrinha gente. Rio de Janeiro: Francisco Alves, r9l6. Clima e saúde: introdllçíio bio geografica à civilização blasileira. Rio cle Janeiro: Cia. Editora Nacional, 1938. Brasiliana: Biblioteca Pedagógica Brasileira. Prsso,r, Frota. A educaçao e a rLttina: teses heterocloxas. Rio de Janeiro: Ecl. Leite Ribeiro, 1924. PrNurrro GrrnarrnÀps. O ensino publico. Rio de Janeiro: Rp. Jornal do Commercio, 1907. Qrrrrnoz-. M. Isaura Pereira. Identidade nacional, religião, expressôes culturais: a criação religiosa no Brasil. In: Sacns, Viola et aL. Brasil d, ELIA: religião e identidade nacior.ral. Rio de Janeiro: Graal, I988. St;rru,encz, Lilia Moritz. O espeí:áculo das raças'. cientistas, instituiçoes e questão racial no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, I 993. Srna, Eduardo. D om Oba II D'Altica, o Prbrcipe do Poro: vida, tempo e pensamento de urn homem livre de cor. São Paulo: Cia das Letras, 1997. Srt»,vrc»rr. Thom as. Preto fio branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de faneiro: Paz e Terra, 1976. )Çrvrrn, An-rélia. Discursos proferidos na solemnidade da entrega de diplomas às normalistas que terrninaram o seu curso no anno escolar de I903. Rio de Ianeiro: lyp. do Instituto Protlssional, 1904. Capituto lV A prática pedagógica de especialistas em relações raciais e educação Iolanda de Oliveira' O esgotamento das constatações sobre as práticas pedagógicas, caracÍerizadas pelo desencontro entre a educação escolar e o aluno negro, provocou o desenvolvimento da presente pesquisa, que visa evidenciar a atuação de profissionais da educação que receberam uma formação cortinuada pós- graduação lato sensu, tornando-se especialistas em relaçÕes raciais e educação, tendo, portanto, possibilidades de alterar o quadro escolar constatado como racialmente excludente. A reação ao referido esgotamento é, entretanto, anterior a esta pesquisa, porque já em 1995 foi criado o Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira (Penesb), na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), que incorporou o tema, relações raciais, às funçÕes da universidade, destacando-se na função ensino, o curso cujos egressos são sujeito/ objeto desta pesquisa. Uma postura crítica projetada no interior da UFF, de parte de alguns dos seus profissionais, fez com que a Faculdade de Educação percebesse a ausência de estudos e debates sobre a questão racial como fator determinante da exclusão escolar, o que a impedia de contribuir para a superação do citado problema. Percebendo que apenas o campo de conhecimentos pedagógicos não daria conta de promover a incorporação desejada, o Penesb reuniu profissionais que atuam em campos distintos, que en-l * Professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), doutora em Psicologia Escolar. E-mail: <iolanda.eustáquio@globo.con'r>. DP&A edirora 109108 Retações raciais e educação: novos desafios articulação, realizam a referida incorporação, tendo a produção de conhecimentos como atividade essencial e orientadora das demais funções incorporadas pelo programa. A incorporação do tema "relações raciais e educação" às funções da universidade Historicamente a universidade sempre exerceu papéis e funções diferenciadas em decorrência de suas ünculações em cada momento. Essas vinculações determinaram também a sua função social, vinculada com freqüência a interesses de grupos minoritários. Em todos os casos o saber sempre foi questão primordial, tratando-se da instituição considerada. A autonomia universitária é declarada por Cunha (1989), o qual faz referência a produção e disseminação de saberes científicos, culturais e tecnológicos como atiüdades universitárias, atribuindo à instituição, autonomia na seleção de temas para estudo, na determinação de procedimentos e no ensino, ao mesmo tempo em que destaca a necessária vinculação das atividades de extensão à produção acadêmica e ao ensino, sem o que o serviço público teria caráter assistencialista ou seria uma agência de prestação de serviço. O que está posto pelo autor indica que a universidade poderá determinar o conteúdo de suas atividades sem comprometer-se com os problemas sociais. Entretanto, considera-se que tanto a universidade pública quanto a privada sendo direta ou indiretamente mantidas pela população, devem à mesma uma contrapartida, um retorno sob a forma de produção de conhecimentos que proyoquem o aprofundamento das reflexões sobre os problemas sociais e contribuam para a sua solução. De maneira contrária ao espontaneísmo universitário colocado por Cunha, vários autores são incisivos quanto ao papel social da universidade. Vieira (1989) vincula a universidade à sociedade e expressa-se do seguinte modo: "é preciso empenhar- se na defesa de uma universidade que possa beneficiar a maioria e não colabore no pacto social dos despossuídos" (p. 12). A prática pedagógica de especiatistas Segundo Ângela de Carvalho Siqueira: A universidade, pela sua origem,tem um compromisso com a transformação da sociedade, com o exercício da crítica liwe, com a preservação do conhecimento, com a construção de um novo saber, com a beleza, com as artes, com a cultura, mas baseados na ética da democracia, da justiça e da igualdade que nortearam a sociedade humana (SteurIne, 1995, p.9). Marilena Chaui faz o destaque que se segue em relação à democratização dos bens culturais: O caráter aberto da democracia não se confunde com a utopia de uma igualdade indiferenciada (...) o que define a abertura democrática é uma outra idéia de espaço público (...) É a elevação de toda a cultura à condiçao de coisa pública. Isto não significa que a ciência, a filosofia, as artes e as técnicas se tomem transParentes e imediatamente acessíveis (...) Não significa que deixem de ser em suas expressões mais rigorosas, impenetráveis para os não'iniciados. Significa apenas, que é bastante diverso considerá-las como de direito accessíveis a todos que desejem dedicar-se a elas, do que considerá-las privilégios de uns poucos (Cruu, 1993,p.209). Os quatro autores, Pinto, Vieira, Siqueira e Chaú, são decisivos ao tratar do relacionamento que a universidade deve ter com a sociedade, sendo que Chaui é um tanto reticente quanto à relevância social dos conhecimentos a serem colocados sob a condi$o de "coisa pública". Em outra obra, Chaui refere-se à universidade como instituição social "inseparável da idéia de democracia e da democratiza@o dos saberes" (Tnnnetr, 2001, p. 217). Contrário à reforma do Estado brasileiro que sugere a separação entre docência e pesquisa, o Penesb, orientando-se pelas idéias que estreitam a produção e disseminação de saberes com os problemas sociais, considera a universidade uma instituição social, uma ação social, uma prática social, cujos temas têm origem em questões que Perturbam a igualdade enúe os homens. Entende-se que o papel do programa é oferecer uma formação universitária de qualidade e produzir conhecimentos relevantes sobre raça e educação em uma postura progressista, com o 1 '10 Retações raciais e educaçáo: novos desafios propósito de fortalecer a argumentação e a ação de grupos e de setores que se empenham na realização das lutas sociais pela transformação, atendendo a necessidades sociais apontadas pela condição do negro na sociedade em geral e em particular na educação. As demandas atendidas pelo penesb são oriundas do movimento social negro que há muito tempo denuncia a desigualdade de oportunidades educacionais entre negros e brancos e os problemas raciais detectados em educação, cuja visibilidade é percebida com intensidade no cotidiano brasileiro. Referindo-se a academia e a militância, o professor Kabengele Munanga afirma que "ambos funcionam como vasos comunicantes" e acrescenta: ora a militância lança mão dos resultados da pesquisa acadêmica para esclarecer suas clúvidas e idéias sobre o processo de conscientização e mobilização política de sua comunidade, ora a comunidacle acaclêmica utiiiza as críticas da militância para rever sua postura epistemológica e setr instrumental conceitual (MuNeuc.t, 1997, p. 9). O mesmo autor afirma que os utilizadores da produção acadêmica são os militantes escolarizados, com uma posição política determinada e não a população majoritária negra, o que é impedimento a uma ação transformadora significativa. Para acessar os conhecimentos acadêmicos, retomando também a fala anteriormente citada de Marilena Chaui, a população ern geral necessita de um mediador que no caso do estudante, é o professor e, no caso dos que não estão no sistema de ensino, é da responsabilidade dos movimentos sociais promover tal acesso. Comprometido com a promoção da igualdade racial em educação, além da função c1e ensino representada pelo curso em estudo, o Penesb atua na linha de pesquisa relações raciais e educação, subdividida nos seguintes grupos de pesquisa: Raça e universidade, A questao racial na formação de professores e O negro na educação brasileira: história e memória.Tâis grupos são flexíveis, podendo eliminar ou incluir outros, de acordo cotrr as demandas apresentadas. A prática pedagógica de especialistas A atividade de extensão se realiza por meio de eventos abertos ao público em geral e por meio de cursos que incorporam também a função de ensino; ambos estreitamente vinculados à produção de saberes. O curso de pós-graduação lato sensu, cujos egressos constituem os sujeitos desta pesquisa, é um dos espaços de ensino privilegiado pelo Penesb. Visa-se não só analisar as práticas dos egressos, mas também alterar o curso a partir das ponderações feitas pelos ex- alunos e pelos professores, a partir das entrevistas realizadas com os mesmos e c1e um seminário interno. A organização do curso: educação e afro-brasileiros Destinado preferencialmente à formação continuada de profissionais da educação, o curso é oferecido à comunidade desde agosto de 1995, tendo-se concluintes de quatro turmas, em um total de 87 egressos. Os objetivos que orientam o currículo são os seguintes: Geral: . Formar quadros de profissionais da educação em cursos regulares, com a necessária competência intelectual e comprometimento político para reduzir a discriminação racial no sistema de ensino e no contexto social mais amplo. Específicos: . Oferecer a profissionais da educação em exercício na Escola Básica oportunidade cle adquirir conhecimentos que lhes possibilitem compreender e interferir na situação da população negra no sistema de ensino por meio da ressignificação da sua prática pedagógica, com vistas a democratização das oportunidades eclucacionais. . Possibilitar a extensão de uma ação pedagógica transformadora a situações em que fatores não raciais são também determinantes de outros tipos de discriminaçào. A partir do compromisso geral de formar educadores em condições de promoverem os usuários da educação, particularizott- se a questão racial, por ser este um persistente fator de seletividade 111 I I í 117 Relações raciais e educação: novos desafios escolar, antecipando, já em 1995, a Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que tem como conseqüência natural a inclusão clos estudos sobre a população afro-brasileira na formação dos profissionais da educação, sem o que teremos apenas acréscimo de aspectos legais desconectados dos factuais. A questão rtrcial clurante todo o curso é contextualizada, salientando-se questões que apontam a necessidade de um sistema de ensino desprovido de quaisquer formas de exclusão. Considerando-se o que foi destacado por Saviani (1986) salienta- se como objetivo primeiro da educação a promoção humana e segundo o citado autor, promover o homem "significa tornar o homem cada vez rrais capaz de conhecer os elementos de sua situação para intervir nela, transformando-a no sentido de uma ampliação da liberdade, da comunicação e colaboração entre os homens". Os estudos sobre o problema da não democratização dos benefícios de uma educação de qualidade, comprovados por pesquisas contemporâneas, atingindo particularmente a população negra, não se desvinculam de aspectos mais gerais do contexto da educação brasileira e de outras situaçÕes particulares de discriminação. A escola básica é salientada como parte de um sistema excludente, inviabilizadora da continuidade dos estudos e do acesso a profissões de maior remuneração e de prestígio. Além disso, prejudica o exercício da cidadania, não cumprindo o seu papel, o que compromete a identidade dos profissionais da educação que, neste caso, em sua grande maioria ratificam os lugares sociais ocupados pelos grupos marginalizados e conseqüentemente as relações de poder estabelecidas na sociedade. Entende-se que é papel da educação desnaturalizar os lugares sociais ocupados pela população como herança e educar para que se estabeleça uma relaçãohorizontal entre os homens em busca da igualdade. Sendo parte da formação continuada dos educadores e das educadoras, o curso enfrenta as limitações impostas pela formação inicial lacunar em relação à questão racial e a outros aspectos relevantes na formação dos profissionais da educação. A prática pedagógica de especiatistas 113 As dimensões determinadas para a organização dos núcleos de estudos orientam-se pelos conteúdos específicos e pela parte pedagógica, ambos perpassando pelas relações situacionais em uma açao caracterizacla pela transversalidade' A unidade teoria-prática é uma busca constante do curso' embora tal relação ainda não tenha alcançado o nível desejado' Entende-se que a dimensão dos conteúdos envolve o trabalho com diferentes áreas de conhecimentos' Isso garante aos cursistas o domínio de saberes sobre a história e de outros aspectos da cultura afro-brasileira, incluindo as formas pelas quais a sociedade atuou conduzindo os negros à condição de inferioridade social' que se comprova através dos tempos e nos dias atuais' cujas políticas vigentes não desestabilizaram as disparidades raciais' A climensão pedagógica com predominância dos estudos sobre as teorias e práticas educativas comprometidas com a educação para a promoção humana, discute o papel do profissional da educaçao em face à questão racial, como mediador dos saberes que levam os alunos, negros e não-negros, a tomarem conhecimento áu ,ou condição ,ru ,oti"dude e a perceberem a possibilidade de desconstruir as desigualdades raciais historicamente construídas, comprovando cientificamente a inconsistência teórica do racismo. Este é o momento da formação continuada em que se pretende oferecer ao profissional oportunidade cle desenvolver a sua capacidade de manipular os conhecimentos assimilados na dimensão dos conteúdos específicos, para facilitar o clomínio dos mesmos pelos estudantes da educação básica em quaisquer níveis' A dimensão dos conteúdos está relacionada com o domínio de conhecimentos científicos que constituem o acervo cultural específico sobre o negro, colocado à disposição da humanidade e devidamente selecionado pelos docentes, para possibilitar a compreensão dos problemas raciais que afetam a humanidade particularmente a educação. A dimensão pedagógica, paralela e estreitamente vinculada a dos conteúdos, inclui conhecimentos pedagógicos que discutem a condição do negro em educação, a pedagogia como ciência que temcomoobjetoofenômenoeducativoeaspossibilidadesde Relações raciais e educação: novos desafios colocar a educafo a serviço da promoção humana particularizando a questão do estudante negro. Tem-se a intenção de formar profissionais pesquisadores, principalmente por meio da dimensão pedagógica, desenvolvendo nos cursistas a capacidade de ministrar e produzir saberes sobre relações raciais a partir do objeto da pedagogia. Além das duas dimensões citadas, Severino faz referência às "relações situacionais" como uma das perspectivas na formação do educador, a qual pressupõe de parte do trabalho do professor a percepção clara e explícita "das referências existenciais de todos os sujeitos que estão envolvidos no processo educacional". Tâis referências apontam para os sujeitos, paÍa a autocompreensão, a compreensão dos outros, a reciprocidade nas relações e "à compreensão de sua pertença ao grupo social bem como de sua pertença à humanidade como um todo". Essa dimensão leva o sujeito a compreender que o indivíduo só pode se construir na interação com os outros a despeito de sua distinção em relação a estes outros, a despeito da sua diversidade. As relações situacionais ocorrem durante todo o curso, por meio de dois núcleos de estudos que, gradativamente, pÍorrocam nos cursistas uma maior compreensão de si mesmos e de sua condição na sociedade e no mundo como negros e não-negros. Isto acontece não raro por conflitos internos ou entre os estudantes. A tomada de conhecimento, cientificamente comprovado, de que o racismo é um aspecto da sociedade histórica e socialmente construído, e ratificado no mundo contemporâneo, é tardiamente realizada pelos pós-graduandos provocando fortes emoções individuais e intragrupos, apresentando diferentes formas de reagir às constatações cientíÍicas de que o racismo é um problema mundial. Os estudantes situam-se na sociedade em que úvem, o Brasil com suas particularidades em relação à população negra, percebendo suas ünculações com o contexto mundial. Isto implica para um significativo número, em se dar conta da própria identidade racial de forma, nào raro, não menos conflitante e às vezes bastante prolongada. A prática pedagógica de especialistas Versando sobre uma questão que a princípio provoca desconforto tanto para negros quanto para brancos, o curso tem características muito especiais porque os estudantes buscam não só o conhecimento acadêmico sobre a questão, mas também o autoconhecimento. Além das duas dimensões teóricas, a elaboração de monografiasfazparte do curso, tendo o aluno um semestre após o término das disciplinas para concluí-la. Com o propósito de assegurar a intervenção competente dos concluintes na educação formal, foi incluído como obrigatória a elaboração e desenvolvimento de um projeto de intervenção em sua atividade profissional, tendo a opção de caracterizar o projeto como pesquisa-ação e de dar ao mesmo o caráter de monografia de conclusão do curso. As pesquisas concluídas classificam-se nos seguintes grupos: . O negro no cotidiano escolar (predominante). . Fundamentos da educação do negro. . O negro na educação brasileira: história e memória. . Relações raciais e literatura. . Relações raciais na educação não formal e raça. . Educação e imprensa. Sendo oferecido há aproximadamente oito anos, o curso vem sendo gradativamente reformulado com pequenas alterações e a partir da presente pesquisa, têm-se a seguinte estrutura. Dimensões Disciplims incorporadas Homíaula -listória da Áfiica 60 {istória do Negro na Sociedade Brasileira 45 e§Pecur@§ leoria Social e Relaçóes Raciais 45 ielieião Afio-Brasileira 45 Raça, Curriculo e Pruis Pedagógica 60 Relaçõa Raciais no Ensino de Literatura 45 Pc@Bt grs Mucação e Identidade Racial hdiüdual e coletiva 30 Pesqúm Educacional e Relações Ractats ó0 Total 390 115 Retações raciais e educação: novos desafios Para garantir a unidade teoria-prática, as disciplinas Raça, Currículo e Práxis pedagógica e Pesquisa educacional e relações raciais serão ministradas ao longo do curso, orientando o processo de elaboração gradativa dos projetos de intervenção que serão objeto de acompanhamento ao término das disciplinas. A fundamentação teórica aliada à experiência profissional dos cursistas será constante. O quadro apresentado resulta da presente pesquisa, sendo uma proposta para a próxima turma que deverá ter início no primeiro semestre de 2004. Ao longo dos quatro cursos foram realizadas as seguintes alterações: na primeira turma que teve início em 1995, não foi oferecida a disciplina História da África e a parte relativa a Identidade, disciplinas que foram incluídas a partir da segunda turma. As atividades culturais constituíram na primeira e na segunda turma uma disciplina independente, passando a ser incorporadas às demais disciplinas a partir da terceira turma. As alteraçÕes que se fazem no momento referem-se principalmente à dinâmica do curso por meio do estreitamento entre as disciplinas e a maior ênfase à unidade teoria prática por meio não somente da concomitância: dimensão de conteúdos e dimensão pedagógica, mas também da inclusão obrigatória da elaboração e desenvolvimento orientados do projeto de intervenção profissional de parte de cada cursista. Anteriormente, o projeto de intervenção era elaborado na disciplina Ra ça currículo e práxis pedagógica, sem acompanhamentoposterior. Como referência e para apreciação dos leitores, neste momento especial da educação, em que a questão racial está na pauta das discussões na sociedade, apresenta-se as disciplinas do curso com os respectivos objetivos na parte final deste estudo. A proposta é apresentada para um curso de pós-graduação lato sensu em conseqüência da ausência de tais conhecimentos em nível de graduação. Entretanto o propósito é que gradativamente tais conhecimentos sejam incorporados nas diferentes disciplinas dos cursos de licenciatura, o çlue provocará uma revisão do curso de especializaçáo. A prática pedagógica de especia[istas Reconhece-se a necessidade de que todos os cursos de graduação incluam estudos obrigatórios sobre a questão racial independentes de serem ou não de licenciatura. Profissionais de todas as áreas precisam ter o domínio de conhecimentos que expliquem a maneira pela qual as desigualdades raciais foram construídas, porque estas não se restringem à educação, mas são evidenciadas em todos os setores sociais. Portanto, sugere-se que a disciplina Teoria social e relações raciais torne-se obrigatória para todos os graduandos. Esta medida fortalecerá a formação naáreadeciências sociais e humanas e dará aos demais profissionais uma visão político-social indispensável a sua atuação em uma pretensa sociedade democrática, particularmente aos da átea de ciência e tecnologia. Ouvindo os docentes Como parte da pesquisa, entrevistou-se professores e um conferencista que comparece anualmente ao programa desde o seu lançamento, dando significativa contribuição ao mesmo. Duas questões orientaram o envolvimento de tais profi-ssionais: em primeiro lugar, sabe-se que a visão de mundo do profissional e de si mesmo projeta-se na sua atuação, tendo portanto uma influência no curso; em segundo lugar, porque se pretendia realizar uma reformulação com a participaçáo coletiva dos envolvidos na formação dos usuários do Penesb. A participação dos docentes deu-se também em uma discussão coletiva com egressos, estudantes da quarta turma e candidatos ao próximo curso, egressos de um curso de extensão, no qual o conteúdo da pós-graduaçáo lato sensu é condensado em 120 horas. Estes foram especialmente convidados a fim de expressar a sua expectativa como candidatos ao curso. Nas entrevistas com docentes foram tratadas as seguintes questões: auto-identificação racial, trajetórias de üda pessoal e profissional, relações raciais em geral, relações raciais e educação, considerações sobre o curso e conceitos básicos. A discussão coletiva realizou-se como culminância das atividades de pesquisa, 1171',t6 118 Rel.ações raciais e educação: novos desafios com a participação de representantes das disciplinas e da qual resultou a elaboração das novas ementas, objetivos e bibliografia que se apresenta neste estudo. Quanto a auto-identificação, há predominância de afro- brasileiros, com a presença menos expressiva de brancos, sendo ao todo 13 professores. No quadro seguinte faz-se uma classificação por cor e sexo. Corpo docente por cor e sexo Cor serc mmculino sm feminino total Blaq I 4 5 Preta J 2 5 Puda 2 3 totâl 6 7 1.3 Contrastando com resultados de pesquisa anterior de Oliveira, Têixeira e Muller (2000), em que as autoras constatam que o magistério superior é masculino e branco, percebe-se, no curso em estudo, a presença majoritâria de mulheres e de afro- brasileiros. Provavelmente, por ser um tema de interesse particular dos negros e por motivo de ser um curso em ciências humanas em que os percentuais de estudantes negros são mais elevados, embora ainda inferiores à presença branca, o que não acontece no caso em estudo. Em relação às suas trajetórias de vida pessoal e profissional, a quase totalidade tem atuação comprometida com a questão racial negra, anterior ao Penesb, quer seja na academia, quer em movimentos sociais organizados ou reconhecido pelo entrevistado como moümento social destinado predominantemente a usuários negros. Na academia, o trabalho desses profissionais pode ser denominado militância acadêmica por se tratar de produção de saberes na área de relações raciais, atividade exercida pela maioria dos docentes (exceção de apenas um deles, que realiza significativos trabalhos acadêmicos em relação aos grupos excluídos sem particularizar a questão do negro). A atuação no Penesb é, portanto, para todos, um prolongamento de suas pesquisas e de outras atiüdades comprometidas com as relações raciais. A prática pedagógica de especiatistas É importante salientar que embora todos os professores entrevistados considerem importante o exercício da militância não-acadêmica, nenhum deles no momento concilia as duas atiüdades, o que leva a inferir sobre uma possível incompatibilidade entre ambas por serem de natureza diferente e principalmente exigirem uma dupla jornada de trabalho. Em todas as trajetórias de vida pessoal, seja dos docentes negros ou dos não-negros, há marcas evidentes dos problemas raciais, ora na família, ora no contexto social mais amplo ou em ambos. Nas trajetórias dos afro-brasileiros são citados fatos que evidenciam a presença da discriminação em suas vidas, conforme comprovam alguns relatos que se seguem: a situação de discriminação racial nesse processo de üda eclesial sempre esteve presente. O dificil éprovarque este foi o fator determinante. A minha saída do seminiírio, as alegações que fi.rndamentam a minha expulsão (porque eu não saí, fui expulso) era um problema de ordem ideológica. A igreja católica insurge evidenciando o seu forte racismo, apesar de seu lado progressista, que possibilita maneiras diferentes de ver o negro e de ter uma proposta política que pode ser considerada como reparadora das injustiças por ela praticada contra os afro-descendentes. Outra entrevistada comenta "...minha avó materna, quando ela queria me espezinhar, falava: sai daí sua negra". Essa mesma professora, tendo o pai negro, também relata: ...meu pai gostava muito de dar presente e comprou uma boneca pra mim e disse: - vai abrir, que boneca bonita comprei pra você. Quando eu cheguei era uma boneca negra, com lábios vermelhos, muito vermelhos, olhos brancos e eu levei um susto: uaaa! Tira essa boneca daquil Ele teve que trocar a boneca. Ainda a mesma professora refere-se a situações de discriminação racial de parte de freiras quando estudante do antigo curso secundário. A discriminação racial de parte da família é também salientada por uma das professoras, que sendo branca, pesquisadora da ârea 119 Relações raciais e educação: novos desafios relações raciais, declara a sua impotência no sentido de formar seu filho branco tendo um comportamento respeitoso para com os colegas negros: "eu sou mãe também e você vê seu filho discriminat embora você seja radicalmente contra isso, às vezes você pára pra pensar e se pergunta por que meu filho discriminou o amiguinho?" Percebe-se que as regras de identificação normativas estruturantes, postas pela sociedade, às quais Jurandir Freire Costa faz referência, predominam sobre a atuação das famílias que, sendo afro-brasileiras ou brancas, não conseguem nettralizá-las, permitindo a sua incorporação pelas crianças. É importante questionar até que ponto as reflexões familiares, as normas que estão formando a personalidade das crianças e dos jovens em relação à igualdade racial, foram claramente postas e intencionalmente trabalhadas? É preciso ter presente que dificilmente a desconstrução do racismo se dará sem a intervenção deliberada dos educadores, quer seja na famflia, na escola, ou em qualquer outra instituição educativa... No caso do filho da pesquisadora, parece que apesar de sua posição na ârea, a professora não consegue impedir que as equivocadas regras sociais sejam incorporadas por seu filho. Entretanto, outra professora,também branca, trabalha intencionalmente a questão racial na formação dos seus filhos, afirmando entre outras coisas que faz questão que seus filhos assistam filmes norte-americanos, porque nesses, o negro está sempre presente e também em posições de destaque, o que contribui para a formação de seus filhos brancos. Realmente, em uma situação de discriminação racial na escola, o filho dessa professora reagiu denunciando o "crime de racismo", comprovando a eficiência de uma atuação determinada na formação das crianças e ou dos jovens. Os docentes foram unânimes ao declarar ser gratificante atuar no curso, porque têm oportunidade de ministrar aulas sobre o objeto de suas investigações, o qual aborda as diferentes dimensões da questão. Ao mesmo tempo em que dá a todos os pesquisadores da ârea, particularmente convidados por este motivo, a oportunidade de fazerem a articulação entre pesquisa A prática pedagógica de especiatistas e ensino, legalmente recomendada pela reforma da universidade - e infelizmente ameaçada pela reforma estatal pretendida, que desvincula a docência da pesquisa, com o propósito de reduzir a relação dos professores universitários com o saber à mera úrlizaçáo ou no máximo a simplesmente criticar o conhecimento produzido por outros. Conclui-se que o Penesb oferece aos profissionais que nele atuam um espaço significativo de realização profissional e pessoal. Alguns docentes fazemreferência aos aspectos metodológicos utilizados destacando a importância de uma metodologia que provoque conflitos como parte do trabalho pedagógico e também destacam a importância de um estreito relacionamento com os estudantes. Sobre os conteúdos ministrados, todos destacaram aqueles de extrema relevância para o curso apontando, entretanto, a necessidade de maior articulação entre os diferentes campos de conhecimento. Quanto à avaliação, foi apontada a total receptividade dos alunos, com aplicação imediata de parte dos conteúdos. Foi destacado o prazü dos alunos na elaboração das atividades, a busca de conhecimentos sobre a temática e o interesse no aprofundamento das questões raciais. Salientam também o reconhecimento da importância dos conteúdos ministrados para a sua üda profissional e pessoal e o reconhecimento de que tais conhecimentos foram excessivamente adiados em suas trajetórias escolares. Um dos docentes declara que o interesse pelo curso passa a impressão de que os alunos foram pré-selecionados em face ao interesse pelo tema. Um dos entrevistados assim se expressa: Um curso dessa natureza é um curso que inova, pela primeira vez, o tema deixa de ser esporadicamente tratado, um tema que está institucionalizado, que entra no processo de formação da elite brasileira, pessoas que são preparadas para saber as questões que se colocam no campo da educação. Devemos preParar educadores que sabem que a diversidade é importante, que saibam também como trabalhar essa diversidade. Não basta ter a consciência, é preciso ter as 121 't20 123122 Retações raciais e educação: novos desafios ferramentas para poder trabalhar e transformar a sociedade. Neste sentido, o Penesb é uma inovação, porque é um programa permanente numa instituição que forma as pessoas, que renova o discurso, que aproveita os produtos das pesquisas para poder transformar o processo. Quanto à caracterização do programa e particularmente do curso, durante as entrevistas com os docentes, foi colocada a questão da nattreza multicultural do Penesb e particularmente do curso. Nenhum dos entrevistados caracteriza as atividades, apesar daqueles que consideram o multiculturalismo no seu sentido positivo no qual difunde-se a antidiscriminação e o respeito ao diferente. Salienta-se o aspecto multicultural em relação a diversidade da formação dos cursistas o que o levaria a pluralidade. Há também a tendência a estabelecer a relação entre multiculturalismo e políticas de ação afirmativa, relacionando o primeiro simplesmente à convivência e o segundo à correção das desigualdades socialmente construídas a partir dos significados sociais atribuídos às diferenças. Segundo Ana Canen, o multiculturalismo é uma corrente de pensamento teórico e político que dá visibilidade à composição plural e multicultural das sociedades e tem uma ação política de combate ao racismo e à discriminação. O reconhecimento da identidade e a justiça social são dois aspectos incorporados pelo conceito apresentado pela citada autora. Neste sentido, o Penesb é uma experiência multicultural, porque dá destaque à questão do negro em educação, como movimento acadêmico que insurge propondo um espaço particular para estudos sobre uma questão até então relegada na estrutura da universidade - as relações raciais em educação. Sem descartar as relaçÕes entre os diferentes segmentos sociais como determinantes do desempenho escolar, cujas discussões foram freqüentes nas décadas de 1970, 1980 e no início dos anos de 1990 sob a denominação genérica "fracasso escolar das crianças das classes populares" e outras subdenominações, época em que as pesquisas sobre a condição do negro em educação ganham espâço, ainda que quantitativamente insuficientes para explicar o fenômeno, o Penesb inaugura na universidade brasileira' em 1995, um espaço institucional particular para estudos sobre e a partir das relações raciais entre negros e brancos em educação' Neste sentido, aprovado pelo Conselho de Ensino e Pesquisa da UFF, e incluído na estrutura da Faculdade de Educação' o programa dá visibilidade à questão, afirmando que o fator racial Z ,* dot determinantes do desempenho escolar' A questão econômica como determinante exclusiva do sucesso ou do fracasso escolar é desestabilizada. Afirma, portanto' de acordo com Silva (1989), que as relações de poder não ocorrem apenas entre os segmentos sociais economicamente diferenciados, mas também nas relações de gênero, raça, etnia, sexo"' tendo suas repercussões no sistema de ensino. Retomando o conceito de multiculturalismo, destaca o pesquisador Siss (2001), não existe unidade nesta conceituação e salienta o carâter emancipatório do multiculturalismo crítico' A partir das considerações anteriores, o Penesb pode ser classificado como atividade multicultural crítica. Por outro lado, atentando para a conceituação de políticas de ação afirmativa' percebe-s" que há um cruzamento entre essas duas medidas políticas' Não nos deteremos aqui sobre os dois tipos de políticas, por não ser este o objeto de nossa pesquisa, mas cabe salientar que os conceitos correntes de políticas de ação afirmativa, ora priülegiando o seu carâter compensatório, ora a justiça distributiva, todos incorporam os princípioi salientados por Gomes (2001), que são o privilégio e a igialdade. De certa forma o multiculturalismo crítico ao dar üsibilidade a determinados aspectos de um grupo discriminado' o privilegia reivindicando a igualdade. salientando aspectos culturais afro-brasileiros e suas relações com a educação, na pesquisa, no ensino e nas atividades de extensão, o Penesb visa contribuir para promover a igualdade racial em educação, o que o caracteriza também como política de ação aÍirmativa. Não sendo um movimento reivindicatório e sim uma ação política em moldes acadêmicos, destinada a A prática pedagógica de especialistas 124 Retações raciais e educação: novos desafios A prática pedagógica de especiatistas desaparecendo dos discursos acadêmicos, permanece nas representações sociais de grande maioria da população. "O ser mestiço significa estar em processo de branqueamento e, declarar- se negro implica em regredir nesse processo." Dar oportunidade aos afro-brasileiros de conhecer-se, de se apropriarem de saberes significativos sobre a questão racial é de suma importância. Por outro lado, a red:uzida presença brancafaz inferir que permanecenesses profissionais a idéia de que a solução do problema racial em educação é da responsabilidade exclusiva dos profissionais negros. Falta nesta profissão, embora tenhamos alguns importantes aliados brancos, a conücção de que as questões raciais, bem como problemas que atingem a outros grupos, devem mobilizar os esforços de todos para promover a igualdade. Entende- se que os conhecimentos ministrados no curso devem ser apropriados por todos os educadores para fundamentar o seu projeto de transformação, junto aos usuários dos serviços educativos, quer seja excludentes ou excluídos. A desestabilização do racismo não pode ser atribuição exclusiva dos profissionais negros, mas deverá ser partilhada por todos. Sendo o magistério uma profissão branca, a omissão destes profissionais inviabiliza grande parte do trabalho educativo a ser realizado para a promoção da igualdade racial. A partir das questÕes colocadas nas entrevistas, pode-se evidenciar o que se apresenta a seguir. Entre os motivos que levaram os egressos a procurarem o curso, predomina a autodeclaração de busca de aperfeiçoamento profissional. Em um esforço individual, não raro com dupla jornada de trabalho, os profissionais buscaram aprimoramento, sem contar com o apoio da entidade mantenedoraPaÍa garantir- lhes a formação continuada em serviço. Na escola básica, o afastamento para estudos, só excepcionalmente concedido, não atingiu até o momento a nenhum dos cursistas considerados. O ônus do aperfeiçoamento tem sido exclusivo dos cursistas, com a omissão do Estado como entidade mantenedora da educação pública, reguladora do ensino privado e viabilizadora da melhoria do ensino. investigar disseminar e interferir na realidade educacional para promover a igualdade, preferimos classificar o programa como ação afirmativa sem desconsiderar que ele incorpora aspectos do multiculturalismo. Ouvindo os egressos Entre os concluintes das quatro turmas do curso em estudo, têm-se ao todo 87 profissionais que atuam em sua quase totalidade na escola básica. Do total, 23 estão em fase de elaboração da monografia porque concluíram as disciplinas no primeiro semestre de 2003- Das outras três turmas de egressos, têm-se 63 concluintes, sendo 47 com elaboração de monografias e, portanto, 16 que, tendo concluído as disciplinas, não conseguiram elaborar o trabalho monográfico. Entre os componentes das três turmas, foram entrevistados 40, e dentre estes, 35 terminaram com elaboração da monografia. Quanto a cor, os referidos egressos são crassificados do seguinte modo: 22,5o/o brancos, 25%o mesti ços e 52,5o/o negÃs. A representação racial constatada é contrária ao que ocorre na universidade em sua totalidade, na qual predominam os brancos.É um dos espaços universitário, "r."p.iàrruis em que a presençanegra é predominante tanto em relação a alunos, quanto a professores. Os motivos pelos quais esta presença se dá se evidenciam pela própria nattJreza do curso. Embora os egressos não declarem buscar no mesmo a sua identidade racial, no c-ontato direto com as turmas, a busca do autoconhecimento é eüdente. Isto acontece, não raro, nas relações conflitantes, ora na interação com professores, intra e extraclasse, com a coordenação e comos bolsistas do programa. percebe-se que a apropriação dos conhecimentos acadêmicos que comprovam a existência do racismo e a sua inconsistência científica é algo que tem um custo emocional extremamente forte para todos os segmentos raciais representados, particularmente para os negros, destacando_se entre estes os mestiços que, não sendo negros e nem brancos, são marcados pelo ideal de branqueamento brasileiro que, 127 A prática pedagógica de especiatistas Retações raciais e educação: novos desafios Torna-se evidente a necessidade de que sejam estabelecidas políticas públicas que reconheçam o magistério em todos os níveis como profissão de tempo integral e dedicação exclusiva, com salários compatíveis. É fundamental incluir na jornada de trabalho a formação continuada, o tempo para as atiüdades de planejamento e avaliação dos trabalhos, a pesquisa para reelaboração das atividades educativas e outras investigações que contribuam para explicar a dinâmica do fenômeno educativo. A garantia de afastamento para estudos, contida em alguns estatutos, deverá tornar-se uma rotina na escola básica, tal como ocorre nas universidades públicas, a despeito das adversidades constatadas no seu interior. Paralelamente, a pesquisa como privilégio exclusivo do profissional do ensino superior deverá ser superada. Entre os motivos que levaram a procura do curso, destaca-se o depoimento de uma ex-aluna mestiça que buscou nos referidos estudos a compreensão dos conflitos familiares sobre raça: "A minha famflia é uma família miscigenada e foram os conflitos que esse tema trouxe ao meu meio familiar que me fizeram procurar o curso para tentar discutir isto". A ambigüidade do ser e não ser do mestiço, "o negro, não-negro e branco e não-branco", dificulta a identidade racial do mesmo em famflias que não têm conhecimento e compromisso com o combate ao racismo, particularmente sobre os equívocos do ideal de branqueamento. O relacionamento torna-se extremamente amargo porque nessas famflias a discriminação orienta-se pela gradaçáo fenotípica dos sujeitos, privilegiando os que têm características menos negras. O preconceito racial de marca ganha espaço, perturbando as relações familiares, que se antecipam às relações em outros grupos sociais ao invés de fortalecer o ideal de ser negro, a fim de que os embates raciais na sociedade sejam superados. Fragilizados nas relações familiares, esses sujeitos em geral incorporam o desejo de serem brancos com perdas políticas e psíquicas acentuadas. Entretanto, com a depoente em questão, sua busca a conduziu a assumir-se negra, e a compor o quadro de pesquisadores da área relações raciais e educação, sendo uma entre os três egressos que atuamcomodocentesdoPenesb,apóstornar-Semestre. A referência ao preconceito de "marca" reaparece no depoimento de outra entrevistada gue afirma a existência do mesmo nas uniões inter-raciais' o çl-ue a levou a escolha deste ,"rrru puru elaboração de sua monografia' Nas entrevistas' considera-se que a questão fundamental que contribui mais diretamente paÍa a avaliaçao dos objetivos do curso' trata do ;;rri"";-.t to ,ob'" a inclusao dos estudos raciais na atividade ir"ãtti"""f de cada egresso' De acordo com as respostas a esta io"rtao, determinamos três categorias paraasua análise: inclusão ácasion'al, sistemática e ocasional/sistemática' A primeira categoria caracterizauma ação educativa a p.artir das situaçõe, "*e,ge"ciais cotidianas que evidenciam o racismo na interação entre os que estáo presentes no cotidiano escolar' Classificam-r. ,.r,r.uàgoria duas formas de atuação: uma- delas se eúdencia pela ação dJprofissional junto aos alunos em face às referidas situações . u o"iu se vincula às datas comemorativas - 3 de maio e ou o 20 de novembro' Inclui-se nesta categoria um pequeno percentual de entreüstados que têm' entretanto' em ambososcasosumaintervençãosegura,quelevaaoseStudantes explicações qr. .o-p'ovam a incánsistência das situações de racismo que surgem no ambiente escolar' Sabe-se que nos dias atuais' em decorrência dos fatores que colocaram as relações raciais na pauta das discussões contemporâneus, o siste*a escolar não é indiferente a tal questão' irr.orpàr"r,do de alguma forma' no currículo escolar' tais estudos, não raro, foúorizando a cultura de resistência africana . pt".."," no cotidiano' As atividades desenvolvidas' não raro' confirmam a equivocada posição de Comte' um dos intelectuais franceses que pensando a diversidade atribui à espécie humana trêsfaculdades:ainteligênciapredominantenaEuropa"'lugardas universidades", u"1o'ço ií'i'o qu" se evidenciaria mais forr"rn"rr. na Ásia, ondá p'áao*i"uriam as fábri cas e a afeüvidade predominante na África' na qual as festas seriam predominantes' 128 Relações raciais e educação: novos desafios Deste modo, Comte antecipa a folclorização da cultura de origem africana, presente na maioria dos espaços, principalmente nas datas comemorativas. Entretanto, destoando daquilo que ocorre na maioria das escolas, os profissionais em estudo cujas ações foram incluídas nesta categoria, diferem-se do que é comumente realizado porque embora atuando acidentalmente, desenvolvem atividades cientificamente fundamentadas, não se restringindo ao senso comum. Um percentual equiparável ao primeiro grupo alterna trabalhos ocasionais e sistemáticos, sendo que o segundo aspecto aparece ainda com muita fragilidade. Um dos entrevistados, professor de História, declara: "Estou sabendo trabalhar melhor a questão do diferente, da diversidade, evitando na sala de aula brincadeiras em relação à cor do outro... Esse curso me trouxe muitas questões científicas sobre o assunto para eu levar para a sala de aula'l Se por um lado a intervenção nas brincadeiras tem caráter ocasional, a referência à cientificidade sugere uma ação sistemática. Entende-se que a situação ideal é a alternância emergencial/ sistemático, porque mesmo incluindo os estudos raciais no seu projeto de trabalho para uma atuação determinada, o profissional se defrontará com situações cotidianas, geradas espontaneamente, que exigirão abordagens emergenciais. Entretanto, a crrtíca que se faz em relação aos classificados nesta categoria se dá por motivo da timidez de tais profissionais em relação a ousadia necessária ao trabalho sistemático. Um entrevistado, professor de Geografia, assim se expressa: "Eu dava aula num pré-vestibular para negros e carentes e a minha vida, enquanto militante do movimento popular, da associação de moradores de Santa Cruz onde eu morava, foi sempre ligada às questões populares (...) comecei a discutir dentro do PT (...) então juntou a discussão na prática de pré- vestibular com a discussão no interior do partido". O pré-vestibular, mais especificamente o PVNC, inaugurou um espaço particularmente destinado à formação política da população negra com a A prática pedagógica de especiatistas atividade Cultura e Cidadania. Entretanto, o entrevistado não atenta para o fato de que a questáo racial deve ser objeto de estudo de todos os usuários da educação e que a Geografia é uma área de estudos em que tais estudos podem contribuir fortemente para comprovar a existência do racismo como invenção dos homens e of,erecer aos estudantes instrumentos para ações sociais com üstas ao desaparecimento da condição subalterna do negro na sociedade. No Brasil, sem descartar a possibilidade de estar omitindo o trabalho de outros profissionais da área, destaco o do professor Rafael Sanzio Araú1o dos Anjos da UnB, Cartografia, Educação e Geografia Afro-Brasileira, qtre sugere a inclusão de tais estudos nos currículos dos estudantes de Geografia. Sobre o mesmo tema, destaca-se também o grupo de professores da Associação Universitária de Professores de Didática das Ciências Sociais da Espanha que analisando os currículos da escola básica, tomando como parâmetro o valor da igualdade, sugerem o estudo através dos seguintes eixos temáticos entre outros. Eixo temático - sociedade e território: meio ambiêntê ê conhecimento geográfico Objetivos: tomada de conhecimento dos grandes problemas que se enfrenta na vida humana sobre a terra, incluindo o meio social e humano e as desigualdades de gênero e raça: a degradação do meio ambiente e a superexploração dos recursos, o crescimento demográfico desequilibrado, as desigualdades econômicas entre os poyos. Este eixo temático pode ser abordado de acordo com o nível de desenvolvimento dos estudantes desde os estudos iniciais na educação infantil, quando o ponto de partida deve ser o imediato, as experiências vividas, até chegar aos níveis mais abstratos. Igualmente, os outros eixos ternáticos apresentados pelos referidos profissionais, sugerem a incorporação dos estudos raciais e de gênero de maneira sistemática, os quais se podem adequar aos primeiros anos de estudos. 129 í3r130 Relações raciais e educação: novos desafios No eixo temático A populnfro e o espaço urbano os autores apresentam os seguintes itens incluindo a questão de raça e gênero: desequilíbrios no crescimento da populaSo e diüsão desigual dos recursos (superpopulação, envelhecimento, controle da natalidade e migrações). Neste eixo, considerando a realidade brasileira, pode- se oferecer ao aluno da escola brásica oportunidade de comprovar que a pobreza é mais perversa pÍra com a população negra e que a mesma não tem gera@o espontânea. Este eixo comporta também estudos sobre a origem e formação das favelas por serem estas, um fenômeno urbano oriundo da falta de comprometimento do Estado para com as populações que migraram para os grandes centros urbanos, passando a se constituir em um grande contingente de desempregados ou jogados em atiüdades informais. A cor das populações faveladas é um estudo também oportuno neste eixo, em confronto com o estudo da cor das populações residentes em locais privilegiados e dotados dos serviços urbanos. Em decorrência de tais estudos, ficarão evidentes as formas pelas quais a sociedade inventou a discriminação espacial da popula@o negra. Um terceiro eixo temático apresentado pelo grupo tem também um rico potencial paÍaa inclusão dos estudos raciais em estudos interdisciplinares particularizando a Geografia. Atiüdade humana e o espaço geográfico, sendo um prolongamento do anterior, apresenta os seguintes desdobramentos: espaço e poder político. A distribuição desigual do poder político com destaque na raça e no gênero. O estudo das relações de poder entre os diferentes grupos humanos pode ser realizado desde o ambiente mais restrito da família em que as relações de gênero ganham destaque, sem descartar questão racial, até as relações mais amplas entre os continentes que comprovam a dominação branca e masculina. Na categoria trabalho sistemático, inclui-se a grande maioria dos entreüstados. Em seus depoimentos deixam clara a decisão de priorizar o sistemático, através da seleção de conteúdos que são incluídos no seu trabalho profissional. A prática pedagógica de especialistas Entre os depoimentos, destacamos os que se seguem: ...agora, depois desse embasamento teórico que eu tive aqui no curso, estou tentando incluir da seguinte maneira: trabalho com livros infanto-juvenis, paradidáticos e após os alunos lerem e de uma série de atiüdades que eu proponho dentro da sala de aula, dentro do programa do planejamento anual, úabalho a questão racial, busco discussões sobre os personagens, a discussão aparece. As vezes trago um texto do próprio liwo didático, porque quando escolhemos o liwo didático procuramos ver se o liwo inclui estas questões ou então trago uma notícia de jornal; eu sempre estou tentando, dentro do período de aula, incluir a questão racial, mas de maneirasistematizada, já está no meu planejamento, não é uma coisa aleatória, desde o ano passado quando eu comecei a estudar aqú principalmente. Antes eu o fazia de maneira aleatória, agora eu incluo no meu planejamento (Professor de Português). A declaração seguinte é de um professor de História: É aquela coisa, a autonomia do professor é muito questionada dentro da escola pela direção e coordenações que querem cercear a autonomia do professor na sala de aula, mas quando o professor tem uma visão mais clara da sociedade, não tem jeito, ele coloca mesmo a questão na sala de aula, mas quando a leva para o conselho de classe, o restante dos colegas minimizam a sua atuação e dizem que a questão nãoé importante... aquelas velhas teorias do preconceito social e o professor acaba enfraquecido politicamente dentro do seu grupo porque os outros colegas não dão o apoio necessário, por não estarem conscientizados ...mas os alunos aceitam bem. Enquanto, por um lado, o primeiro professor consegue aliados, o segundo encontra resistência no ambiente em que atua, reconhecendo o despreparo dos profissionais, inclusive de parte da administração da escola, para compreender a importância da questão e da autonomia profissional docente, que é condição indispensável para uma atuação transformadora. Este professor salienta o problema das drogas na escola, como impedimento a realização de um trabalho satisfatório. São "novos padrões de relacionamento entre o meio urbano e a escola" (Gurr.mnans, 1997) que atingem o sistema escolar como um todo, sendo uma questão 133132 Retaçoes raciais e educação: novos desafios que extrapola a competência da escola, devendo ser tratado pelos órgãos de segurança pública a serem acionados pelas escolas tanto públicas quanto particulares. Seguem-se outros depoimentos que justificam a sua inclusão nesta categoria ...hoje a minha visão é outra... no magistério eu estou entrando no segundo bimestre e estou introduzindo alguns autores negros para serem lidos pelos alunos, vou pedir um trabalho para nota... estive conversando com algumas professoras de literatura e elas também não conheciam a Geni Guimarães. Pela primeira vez estou introduzindo um autor negro na literatura ...depois desse curso eu me vejo como alguém que tem que ser multiplicador e tento agír da maneira mais natural possível, questionando muitas vezes, fazendo com que as pessoas pensem um pouco sobre a questão (Professora de Português). Eu incluí história da África no segundo ano do Ensino Médio quando eu trato da abolipo da escravatura. No terceiro ano, quando eu estou falando deEstadoNovo, do imperialismo, euincluo osestudos sobre aorigemdo racismo, do preconceito contra o negro (Professor de História). Pois é ...foi maravilhoso para mim porque fazia tempo que eu não voltava para a Faculdade... achei o curso muito interessante, bem organizado, bem fundamentado, muito frutífero para a minha vida profissional... me deu ânimo, incentivo para fazer a semana afro- brasileira na escola. Eu trabalhava individualmente, mas o curso me deu um suporte, uma força que me animou para fazer uma coisa maior e então começamos a semana afro-brasileira na escola e este ano conseguimos que esta semana entÍasse na programação da escola. As aulas de História da África foram brilhantes, eu aprendi aqui e passava na escola. Eu mudei o currículo com os meus alunos, eles produziram livros que vão ser expostos na semana afro-brasileira... foi o melhor trabalho que eu iâ fi2. Os alunos ficaram muito empolgados. Foram estimulados com o estudo de História daÁfrica, tomando conhecimento de que a África não é só pobreza e doença. ...Dando Egito eu falo daÁfrica, onde fica o Egito? Mas aÁfricanão é só o Egito, mas teve outras civiüzações grandiosas e acrescento estudos sobre a África hoje. Este ano vamos fazer algo além da semana afro- brasileira, queremos um núcleo de estudos e pesquisas afro-brasileiro na escola (Professora de História). A prática pedagógica de especialistas Eu fiz o meu plano anual para a turma de 4a série do ensino fundamental com a qual eu estava trabalhando o ano passado. Tenho conversado muito com as professoras de 4u série esse ano, a partir do que eu fiz no currículo para ver se elas implementam a questão na sala de aula... não podemos atuar apenas nas datas comemorativas, mas infelizmente as escolas se restringem a isto (Pedagoga). A última depoente parte de estudos sobre a identidade individual e nacional, incorporando a temática racial também na literatura e na construção de gráficos sobre saúde e educação da população brasileira. De acordo com a sua formação, cada componente deste grupo majoritário tem uma prâtica comprometida com a inclusão dos estudos sobre os afro-brasileiros em suas atividades profissionais, intencionalmente planejadas. Incluem-se entre estes os que não atuam na educação formal, jornalistas e assistentes sociais que sendo um pequeno grupo, igualmente incorporaram a questão racial em seu exercício profissional, sendo que em alguns casos, o curso contribuiu para fortalecer a fundamentação cientíÍica de alguns trabalhos que já vinham sendo desenvolvidos. Destaca-se em todos os níveis em que estes profissionais atuam a História da África como forma de recuperar, e comprovar, a dignidade do povo africano na época pré-colonial e violentada no período de exploração do continente pela Europa. Este conteúdo recebe de parte de componentes deste SuPo, a forma didática necessária a assimilação dos mesmos pelos seus destinatários em diferentes fases de desenvolvimento, a partir da educação infantil. Para este caso é utilizado, entre outros, o recurso freqüente à literatura, com a recuperação das histórias dos reis e rainhas africanos. A tomada de conhecimento de que existem famflias reais negras provoca nos estudantes uma atitude de surpresa, sendo extremamente edificante, segundo os depoentes, levando a superação da imagem freqüente do negro associada apenas à escravidão. Pode-se inferir que se recupera, a partir dai, o ser negro de parte dos afro-brasileiros e o respeito devido a esta população de parte dos não-negros. 134 Retaçôes raciais e educacão: novos desafios A História da África, parte dos egressos incorpora a história cultural, dando ênfase a explicação sobre a maneira pela qual o racisnto fbi histórica e socialmente construído, confornre depoimento de um dos professores de histírria, transcrito neste estudo. Além da predominância de negros no curso, verifica-se a exclusividade de profissiou;ris das áreas de ciências sociaris e humtrnas e de literatura e excepcionahnente profissionais de outros cursos. A área de ciência e tecnologiar, durante a oferta de quatro cursos, r-rão se fez representar. Esttr constatação comprova a grave deficiência desses cursos em relação i\ formação hunrana, o que exige um repensar dos mesmos, a fim de que se possa oferecer aos selrs destinatários opurtuniclade de colocar a ciência e a tecnologia a serviço da prr'.-roção da humaniclacle cor.r-ro objetivcr primeiro de sua atuação profissional. Senc'lo o espaço privilegiado para o estudo da questão racial e de out«rs problemas que perturbam a população, as ciências sociais e humanas precisant perpassar, significativtrmente, tod<ts os cursos urriversitarios. Analisando os currículos da escola básica, um grupo dc professores pertencentes a jh citada Associação universitária cle Professores de Didática das Ciências Socinis, na Espanha, destirca os seguintes objetivos para o ensino desta tírea: Identificar e apreciar. p[rraliclade das comuniclacles sociais às cluais pertenccm, (...) rechaçando as discrimfu.rações existentes por rnotivo de nascintento, raçâ, sexo, religião, opir.rião ou qualquer outra circunstância pessclal e social. Apreciar os direitos e liberdacles como Llm ganho irrenunciável (...), deuunciando atitudes e situaçÕes discrir.r-rinatórias e injustas c mostranclo-se solidário com os povos, grupos socilis e pess()as privadas cle seus clireitos oLr clos recursos eco,ômic.s cle que neccssita (lX sirnpósio de Didiitica das Ciências Sociais, Espirnha, Universidacle deLleida, l99B). Destinados à Escola Básica, tais objetivos devem ser incorporados por todos os cursos universittirios, com o prop(rsito de possibilitirr A prática pedagógica de especialistas uma atuação de ptrrte de todos os profissionais, cor-r.r visttrs i\ redução e/ou eliminação dos problernas que atingenr a humaniclaclc. Retornando aos depoimentos dos egressos, conclui-se quc o curso contribuiu para coloctrr osprofissionais em condições cle enfrentar e desestabilizar o racismo em educação incorporando majoritariamente a questão racial sistemática e intencionalmente ern suas práticns, superando situtrçÕes constatadas em pesquisas anteriores em que tais profissionais afirmavarm o seu clespreparo para ulna atuação competente ern face às questões raciais. Conclui-se portanto que a formação proÍissional é um fator decisivo nar alteração do quadro de desigualdades raciais constatado no sistema de ensino brasileiro. Entretanto, tem-se clareza de que o que é ministrado não cobre todas as áreas de conhecimento que dariam aos profissionais, uma visão das diÍêrentes dimensÕes da questão racial. Mesnro na proposta reformulada, percebe-se a ausêncitr dos estudos nas tireas de ciências biológicas, nas artes (artes cênicas, artes plhsticas, dança e rnúsica) e em geografia. O conhecimento biológico contribuiria para desestabilizar o racismo científico que naturaliza a condição de inÍ'crioriclade clcr negro, as artes como fonxa de expressão contribuenr para a emancipação humana, dotando o ser da ousaclia necessária zro enfrentamento das situaçÕes de discriminaçiirl r' a pr()por novas soluçÕes para as mesrrras. A geografia, tendo o espaço como objeto de estudo, vai contribuir ptrra a tomada de conhecirnento das formas sociiris da segregaçào espacial da população negra. O ensino da geografia tem tarnbém a possibilidade de incluir a questão racial nos estudos sobre a paisagem entre outros. O caráter global dos conhecirnentos da realidade corlprovaln a sua transversalidade. Entretanto torna-se impossível, em unr curso de pós-graduação lato se,,,sr, esgotar todas as dimensÕes da questão racial em seu caráter multirreferencial. This conhecimentos precisam ser antecipados e ministrados ao Iongo de todos os níveis de ensino, a firr-r cle promover a superação da apropriação tardia dos mesmos. 135 Relações raciais e educação: novos desafios Apesar daatração positiva do grupo de egressos considerado, percebe-se nos mesmos, deficiências oriundas de lacunas na sua formação inicial, que os cursos ministrados não deram contam de levar-lhes a sua superação. Trata-se da capacidade de assumir plenamente a autonomia inerente a profissão, através da elaboração satisfatória do próprio projeto de trabalho. Como exigência da disciplina Raça, Currículo e Priíxis Pedagógica, os planos de ensino são elaborados atendendo à necessidade de uma ação transformadora, mas percebe-se falhas a serem superadas. Para isto, a nova proposta de curso desenvolverá a referida disciplina, bem como a pesquisa ao longo do curso, que culminará como vem ocorrendo anteriormente, com o referido projeto, cuja execução e aprimoramento será acompanhada por docente durante um semestre, podendo ser ou não a monografia de final de curso. Na apreciação do curso, além de algumas falas anteriores, os egressos destacaram como aspectos positivos as discussões sobre questões sociais e raciais, a abordagem temática, a competência e comprometimento com a questão de parte dos docentes e a possibilidade de retornar à academia. A seguir destacam-se alguns depoimentos: ...a gente sente um certo distanciamento com relação às pessoas da academia e isto eu não senti aqui em nenhum momento com os professores do curso, muito pelo contrário... As discussões também foram muito enriquecedoras.., em termos de cultura eu acho que avancei bastante, tanto é que muito do que eu estou fazendo agora se deve às discussões que houve no curso (Pedagoga). ...os trabalhos elaborados no final de cada disciplina foram muito opoúunos porque mostraram a sua interface (Filósofo e contabilista). Quanto aos aspectos negativos, foram citados: dificuldades na elaboração da monografra, conflitos entre a militância e a academia, tempo reduzido paraa grade proposta, discriminação não racial, mas de camadas sociais diferenciadas, necessidade de aprofundamento dos estudos sobre identidade, falta de engajamento de alguns alunos. A prática pedagógica de especiatistas Com o propósito de averiguar se as situações concretas de discriminação se caracterizam por motivo da diversidade cultural ou se são orientadas pela diversidade biológica aparente decorrente das diferenças fenotípicas, incluiu-se uma questão solicitando que os depoentes descrevessem situações üvidas ou observadas. Âs respostas contribuem para subsidiar ações pedagó gicas necessárias a sua desest abrlizaçáo. Embora tenha-se conhecimento de que as culturas de origem african4 presentes na sociedade brasileira, são objeto de discriminação, principalmente a religião, a totalidade das respostas denuncia a .o, du pele como seu determinante e portanto como principal estigtna de inferioridade. Seguem-se alguns depoimentos: ...eu tive um problema com um aluno que o pai era negro e ele odiava o pai... as brincadeiras eram "você é fllho do carvão", outro dizia "oi tiziu, como é que você está?" ...quando fui dar um passeio com a turma, no final fiquei com uns quatro ou cinco e eles pediram para comprar uns biscoitos... entramos nas Sendas e senti, todas as pessoas, os guardas pararam e ficaram nos vigiando e eu senti na pele o que eles vivenciam no dia a dia' ...na escola teve situações com professores que se dirigiam ao aluno como incapazpor causa da cor... ...às vezes me chamavam de macaca porque é muito comum o negro de pele preta ser chamado de macaco e isto eu via na sala de aula o tempo tàdo, mas eu exercia a minha autoridade firme para combater isto... (Assistente social, ex-professora das séries iniciais) ' ...é muito comuln um aluno desmerecer o outro por causa da cor"' Ah você é mais preto do que eu, é mais carvão que eu, é mais tição. outro dia aprofessorabrincou com um menino euma meninade mais ou menos 6 anos: "namora ela" e o garoto respondeu: "mas ela é preta, é carvão"'" Ah! Situações üvenciadas têm várias. Eu até tenho uma proposta de fazer um liwo contando casos. um é marcante, até recente: saí para caminhar, aí fui toda engraçadinha de shortinho, tenizinho' aquela carinha assim de domingo, óculos escuros e fui saindo"' vou caminhar... Então eu vejo mais adiante uma senhora, já de idade' fazendo psiu, psiu. . . fazendo sinal para eu parar. Eu olhei e não a recoúeci, 137 136 138 Retações raciais e educação: novos desafios mas podia ser uma vizinha ...não sei o quê. parei e fiquei esperando. Ela atravessou a rua, chegou perto de mim e disse: "forno e fogão,i Percebe-se em todos os casos a presença da discriminação oriunda do preconceito de marca, de acordo com Oracy Nogueira. Segundo este autor: o preconceito racial é uma disposição (ou atitude) desfavorável, culturalmente condicionad4 em relação aos membros de umapopulaçao, aos quais se tem como estigmatizados, seja deüdo a aparência, seja devido a toda ou parte da ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece. Quando o preconceito deraçase exerce em relação àaparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços ffsicos do indiúduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, diz-se que é de marca; quando basta a suposição de que o indivíduo descende de um certo grupo étnico para que sofra as conseqüências do preconceito, diz- se que é de origem... o preconceito de marca determina uma preterição, o de origem, uma exclusão incondicional... (Nocuema, 7985,p.79). Percebe-se em todas as situações de discriminação relatadas a atribuição de significados sociais negativos ao fenótipo negro, o que deve ser preocupação de todos os educadores. Neste caso, é importante a inclusão nos estudos caracterizados pelo multiculturalismo crítico a inclusão de estudos das ciências biológicas sobre a cor da pele, e sobre a fragilidade das diferenças fenoúpicas na determinação do desempeúo dos sujeitos comprovando que os fatores sociais são os determinantes da condiçãode inferioridade dos negros. O estudo das trajetórias de negros em posições de destaque vai contribui para comprovil que a condi6o subalterna, da maioria da população negra, não é inerente à sua natureza, mas às suas condições de vida desfavoráveis. É preciso possibilitar a compreensão de que em condições igualmente favoráveis às dos brancos, negros obtêm resultados equiparáveis. Nos estudos biológicos, é preciso não perder de vista que embora nesta área exista apenas uma raça humana, o seu conceito "não tem instrumentalidade para as ciências sociais" (SEyrrnrn, s.id.). Raça é um conceito científico na ârea das ciências sociais e humanas. Otávio Ianni assim conceitua Raça: A prática pedagógica de especialistas "Raça" é o conceito científico elaborado pela reflexão sobre a dinâmica das relações sociais, quando se manifestam estereótipos, intolerâncias, discriminações, segregações ou ideologias raciais. A raça é construída socialmente no jogo das relações sociais. São indiúduos, grupos ou coletividades que se definem reciprocamente com pertencentes a raças distintas (Iervm, 1996, p. 8). Ementas da nova proposta do curso Em decorrência do curso que o Penesb/UFF oferece desde 1995 ser uma antecipação do que sugere aLei10.639, de 9 de janeiro de 2003, sobre a formação de professores por motivo de determinar a obrigatoriedade do ensino sobre a História e Cultura Afro-brasileira nos currículos do ensino Fundamental e Médio, decidiu-se apresentar, neste estudo, as ementas de cada disciplina, como referência para que as instituições interessadas façam suas apreciações, críticas e sugestões para o aprimoramento dos trabalhos que o programarcaliza e as deüdas adaptações paraa criaçáo de novos cursos e incorporação dos conteúdos enunciados pelas ementas apresentadas, nos cursos de formação inicial dos profissionais da educação. A denominação inicial do curso "Raça, Etnias e Educação no Brasil", por motivo das diferentes conceituações do termo "etnia" e em conseqüência de alguns equívocos provocados sobre a população privilegiada no mesmo, foi substituída por educação e afro-brasileiros a fim de não deixar dúvidas quanto ao objeto do curso. Isto se faz como conseqüência da necessidade de delimitar o campo de atuação do Penesb para garantir a qualidade e o aprofundamento das questões inerentes às relações raciais eüdenciadas no fenômeno educativo. Disciplina: História da Africa Professora: Mônica Lima - UFRI (Mestre) Carga horária: 60 horas/aula Ementa: Metodologia e historiografia. África: das primeiras sociedades à chegada do Islã. África, contatos e trocas. África e HistóriaAtlântica. África e o colonialismo, séculos XIX e XX. África e os desafios contemporâneos. 139 140 Relações raciais e educação: novos desafios Disciplina: Raça, Curcículo e práxis pedagógica Professoras: Iolanda de oliveira- UFF (Doutora); Margareth Martins de Araujo - UFF (Mestre) e Marta Diniz paulo (Mestre em Educação) Professora: UFRI/Uni-Rio Carga Horária: 60 horas/aula Ementa: Raça, c,rrículo epriáxis- conceituação. Relações raciais na educação brasileira: questões históricas e contemporâneas. A elaboração de projetos de intervenção, com üstas a eliminação das desigualdades raciais no sistema educacional. Disciplina: História do Negro na Sociedade Brasileira Professoras: Hebe de Castro - UFF; Sheila Faria - UFF e Marta Abreu - UFF. Carga horária: 45 horas/aula Ementa: Perspectiva histórica da questão negra no Brasil. Relações raciais no Brasilno contexto do surgimento e destruição da escrayidão moderna nasAméricas. Dis ciplina: Pesquisa Educacional Professores: Moema de Poü Tei:reira - IBGE/penesb/UFF e forge Najjar - UFF Carga horária: 60 horas/aula Ementa: Tipos de conhecimento. A especificidade do conhecimento científico' concepções sobre a relação entre sujeito e objeto napesquisa científica: os vetores epistemológicos. ciência e ideologia. As principais correntes metodologias em ciências humanas. pesquisa qualitativa e quantitativa. A pesqúsa em educação no Brasil: caminhos e descaminhos. A pesquisa sobre o negro na sociedade brasileira: marcos e perspectivas. Uma transição paradigmática?: ciência, modernidade e pós-modernidade. Disciplina: Teoria Social e Relações Raciais Professores: Almir dos santos Abreu - UFF; André Augusto pereira Brandão - UFF e Sérgio da Rocha Souza - UFF. Carga horária: 45 horas/aula Ementa: O Negro e a Miscigenação como problema par aanaçáo.O mito fundador das três raças. A gênese da idéia de democracia racial brasileira. O projeto Unesco raça e classe. As desigualdades raciais e o papel das estatísticas. As desigualdades raciais nos estudos pós 1990. Ação afirmativa. A prática pedagógica de especialistas Disciplina: Educação e ldentidade Racial Professores: Iolanda de Oliveira - UFF; Maiza de Paula Assis - Uerj. Carga horária: 30 horas/aula Ementa: Cultura e relações raciais. O lugar da Psicologia na construção da identidade racial. Concepções psicológicas de sujeito e subjetividade e suas implicações para a noção de emancipação e autonomia na educação do negro. Movimento negro e identidade. Discipkna: Relações Raciais no Ensino da Língua e da Literatura Professores: Márçia Maria de Iesus Pessanha - UFF; Maria Conceição Evaristo Brito- SME/RI; Murilo Ferreira-Fundação Educacional de Barra Mansa. Carga horária: 45 horas/aula Ementa: Aliteratura como espaço de cria$o de identidade e de diferenP com o propósito de observar os modos de representação do negro e das culturas afro-brasileiras nas obras selecionadas: textos literiírios e letras de músicas (sambas enredo, funk e hip hop) com destaque para a temática "da representação à auto-representapo do negro na literatura e música brasileira'i desdobrando-se nos itens:'A palawa do poder e o poder da palawa", "O negro como objeto do discurso"e" O negro como zujeito do discurso'lLeitura comparativa de textos literários e pusicais, observando modos distintos decomposi$o da personagem negra e de marcas etnocêntricas, difrrsoras de vários estereótipos referentes ao negro. A relação negro/educafo/cidadania como elemento de participapo econtribúPo daidentidadenacionalbrasileira- Disciplina: Relações Raciais e Religiões Afro-Brasileiras Professor: José Geraldo da Rocha Carga horária: 45 horas/aula Ementa: Identidade negra brasileira e espiritualidade de matriz africana. A religião como forma de resistência negra no período colonial. A religião afro-brasileira como objeto de preconceito, discriminação, xenofobia e intolerância. Aliberdade de expressão religiosa como direito constitucional. Carga horiíria total do curso: 390 horas/aula Referências bibliográficas Bueneur, Cristóvam. A aventura da universidade. Rio de |aneiro: Paz e Terra, t994b. 141 Relações raciais e educação: novos desafios Buaneur, Cristóvam. A retolução das prioridades: da modernidade técnica à modernidade ética. Rio de |aneiro: Paz eTera, 1994a. Cruur, Marilena. Cultura e Democracia. São Paulo: CorÍe2,6. ed,,1993. Gours, f oaquim B. Barbosa. Áçâ o afirmativa 6 pincípio anstitucional da iguallade. Rio de Janeiro: Renovar,200l. Cosra, |urandir Freire. Da cor ao corpo. In: Souza, Neusa S. Tornar-se negro.No de |aneiro: Graal, 1983. CnNua, Luiz A, Qual universidade? Sáo Paulo: Cortez/Autores Associados, 1989. FÃveno, M. Lourdes A. Universidade: democratização e qualidade do trabalho acadêmico. Perspectiva. Revista do Centro ile Ciências da Educação, Florianópolis: UFSC, v. 7, (13), p.9-28, jd.ldez. 1989. Fronrsran, Fernandes. Anotações sobre palestra proferida. ln. II Seminário uma pauta para a educaçõo nacional, Brasflia, dez. de 1994. GoNçarvts,LúsA. OLiveüa. Osilêncio:wittalpedagógico a favorda discriminaSo racial. Dissertação (Mestrado em Educação) -
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