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SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática dois paradigmas da teoria antropológica

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i , 
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1 
1 
1 
60 Cultlira e ratâo pratjca 
a antropologia aceitou a especificidade do "primitivo" como sua ta refa acadêmica, 
embora isso pudesse significar uma amputaçao da sua per linência pelo menas tao 
drastica quanta a rclativizaçào do materialismo hist6rico, 1èntei discutir agui a 
plaus ibilidade do ponto de vista "duas sociedade - duas ciências': lv/as SOnlcnte 
para II cga- lo cm U11/ capitulo posterior como uma espécie de fa lsa consciéncia: uma 
traduçao de integraçôes diferentes de c6digo e praxis em uma distinçao radica l na 
natureza das saciedades, como se uma nao conhecesse ncnhum axioma cancep-
tuaI. da mesma forma que a outra nao conhece nenhuma conseqüência prât ica. 
Acho que isso é "falsa consciència': porque a distinçao de saida Iegit ima 0 modo de 
aparência da sociedade ocidental como sua verdadeira explicaçao. A derivaçao da 
organizaçâo a partir da atividade pratica e da consciência a partir das relaçôes 
entre pessoas ignora a qualidade simb6lica ordenada das nossas pr6prias institui-
ç6es. Mas se por urn lado se conclui que a determinaçao da consciência pela ser 
social, coma é geralmente entendida, precisa de alguma reavaliaçao, pOl' outro 
lado se conclui também que ela continua, exatamente como é, a rnelhor explicaçao 
da ciência social ocidental. Pois muito dessa ciência é a autoconcepçao do capita-
lismo. 
o verdadeiro problema para 0 marxismo e para a antropologia se localiza na 
relaçao entre a praxis e a ordem simb6lica. E esse é um problema mais bem 
explicado a partir da hist6ria da pr6pria antropologia - exatamente porque a 
hist6ria da antropologia é um coroIar io permanente da contradiçao da sua exis-
tência camo uma ciência ' ocidental das outras culturas. A contrad içao é uma 
condiçao original: uma ciência do homem patrocinada par uma sociedade que, tal 
como as outras, se definiu exclusivamente a si pr6pria como humanidade e a sua 
pr6pria ordem coma cultura. Apesar de tudo, acredito que no C3S0 ant ropol6gico 
essa sociedade real~ente aprendeu alguma coisa das outras - sobre si m esma. 
\ 
$ZII$, ;a;: 
m CULTURA E RAZAo PRATICA 
dois paradigmas da teoria ant ropol6gica 
A oposiçao levantada recentemente por Lévi-Strauss entre ecologia e estruturali s-
ma - dentro de uma unidade de naturalismo mais elevada, ou talvez se trate de 
um materialismo transcendental- nao é nova. Em seus contom os principais, é 
endèmica à antropologia anglo-saxônica. Esst conflito entre a at ividade pratica e 
os limites da mente se insere em uma contradiçao original e basica, entre cujos 
p6los a teor ia antropol6gica lem osci lado desde 0 século XIX camo UITI prisioneiro 
que caminha compassadamente entre as mais distantes paredes da sua cela. Mui-
tas das mes mas premissas que separam 0 estruturalismo de uma explicaçao por 
adap ta ça a também diferenciam Boas de Morgan, Radcliffe Brown de Malinowski 
- ou mesmo aspectos diferentes de um unico projeta te6rico, como a énfase 
colocada ao mesmo tempo na definiçao simb6lica da cultura e no seu determinis-
ma tecnoI6gico na ob ra de Leslie White. As alternativas nesse veneravel conflito 
entre utilitarismo e um enfoque cultural podern ser colocadas da seguinte forma: 
se a ordern cultura l tem de ser concebida camo a codificaçao da açao intencional j e pragmatica real do homem, ou se, ao contrario, a açao humana no munda dcve 
ser compreendida camo mediada pela projeto cultura l, que ordena imediatamen-
te a experiência prâtica, a pratica ordinaria, e 0 relacionamento ent re as duas. A 
diferença nao é simples, nem sera resolvida pela feliz conclusao acadêmica de que 
a resposta se encontra em algum lugar no meio das duas ou mesmo em ambas as 
partes Osto é, dialet icamente). Afina l, nunca ha um verdadeiro diaIogo entre 0 
silêncio e 0 discurso: de um lado, as leis e forças naturais «independentes da 
vontade humana", e do outra 0 sentido que os grupos de homens conferem 
variavelmen te a si mesmos e ao mundo. Por taoto, a oposiçao nao l'ode estar 
comprometida; nas palavras de Louis Dumont, a relaçâo nao pode ser senao uma 
superposiçao. No final, a cultura esta râ rclacionada, na sua especificidade, a lima 
ou out ra 16gica dominante - a 16gica "objetiva" da superio ridade pnHica ou a 
l6gica significativa no "esquema conceituaJ': No primeiro caso, a cultura ~ um 
6 1 
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.",~' . 
62 Cu/furc< e f «ZaO pra/Ica 
sistema instrumen t.al ; no segundo, 0 instrumental se encontra sujeito a sistemas 
de uma outra espécie. 
A relevância dessa controvérsia provinciana para a invocaçao da prâxis de 
Marx é patente, muita embora, como veremos, a posiçao de Marx nao possa seT 
simplesmente assimilada ao materialismo empirista reconhecido na antropologia. 
É através de uma versao moderada do marxismo, "senao do pr6prio Marx", que 
Lévi-Strauss apresenta muita resumidamente sua pr6pria perspectiva: 
1 
Se afirmamos que 0 esqucma conceitual comanda c define as prâticas, é porque estas, 
objcto de cstudo do ctn6logo, sob a forma de realidades discretas, localizadas no 
tempo e no espaça c dîstintivas de gêneras de vida e de formas de civilizaçao, nao se 
confundem corn a prâxis que - neste ponta, ao men os, estamos de acordo cam 
Sartre - constitui para as ciências do homem a totalidade fundamental. 0 marxis-
mo, senao a proprio Marx, racl~cinou muitas vezes como se as praticas decorressem 
imediatamente da prâxis. Sem pôr em dûvida 0 incontestavel primado das infra-cs-
truturas, cremos que entre praxis e prâticas se intercala sempre um mediador, que é 0 
esqucma conceitual, par ob ra do quaI uma matéria e uma forma, desprovidas ambas 
de existência indcpendente, realizam-se coma estruturas, isto é, camo seres, ao mes-
mo tempo empfricos e inteligiveis. [1966, p.130-1 .] 
Lévi-Strauss continua, explicando 0 contraste coma se fosse uma questào de 
Itividades complementar.es: 
.t para esta tearia das superestruturas, mal e mal esboçada par Marx, que desejamos 
contribuir, reservando à hist6ria - assistida pela demografia, pela tecnologia, pela 
geografia hist6rica c pela etl1agrafia - a cuidado de desenvolver a estudo das infra-
estruturas propriarncntc ditas; que nao pode ser principalmente de nossa responsabi-
lidadc, porque a etnologia é, antes de mais nada, uma psicologia. [Ibid. ) 
A seriedade da crîtica de Lévi-Strauss se apresenta assim dissimulada por esta 
modesta renûncia. Talvcz cIe esteja cedendo uma parte muito grande da sua 
ciência. Se 0 esquema conceitual abrange a matéria nos termos de uma existência 
humana, ele nao vern ao cenario da açâo pra.tica apenas para acrescentar a inter-
pretaçào apropriada de fatos materiais ou das relaçôes instrumentais. Nem a de 
codificaçao do esquema seria confinada à "superestrutura'~ Esse esquema é a 
pr6pria organizaçâo da produçào material; ao analisa.-Io, encontramo-nos na pr6~ 
pria base econômica. Sua presença ai dissolve as antinomias classicas de infra-es-
trutura e superestrutura, uma "material" a outra "conceitual': Ë clara que ela nâo 
dissolve 0 "material" enquanto tal. Mas as chamadas causas materiais devem ser, 
enquanto tais, a produlo de um sistema simb61ico cujo canüer cabc a n6s investi -
gar, pois sem a mediaçâo desse esquema cultural nenhuma relaçào adequada entre 
uma dada condiçào matcrial e uma determinada forma cultural po de ser especifi -
Dois paradigmas da Icoria alltropol6gica 63 
cada. As determinaçôes gerais da praxis estào sujeitas às formulaçôes espedficas 
da cul tura, isto é, de uma ordem que goza, por suas propriedades de sistema 
sîmb6 lico, de uma autonomia fundamental. 
Morgan 
As questôes envolvidas na opçao entre a 16gica pratîca e a significativa travaram, 
coma ja disse, em dezenas de campos de batalha, cern anos de guerra antropo16gi-
ca. Uma reflexào sobre essa hist6ria nos ajudara a clarificar essas quest6cs.Devo 
advcrtir, porérn, que a excursao sera uma historia "para n6s" - uma forma de 
tomarmos consciência de n6s mcsmos na hist6ria - sem qualquer pretensao ao 
status de uma "verdadeira" abordagem diacrônica. Nesse sentido, estabeleço os 
contrastes entre Lewis Henry Morgan e Franz Boas como uma oposiçao paradig-
matica, sem referência às outras figuras do contexto intelectual da época, cujas 
influências foraru seguramente crfticas para a controvérsia personificada nos dois. 
Mais uma vez, deixo de lado ou teço consideraç6es sumarias sobre um grande 
nûmero de pensadores sérios dos ultimos tempos, tanto cm antropologia quanto 
em disciplinas correlatas, que outras poderiam julgar mais importantes e exem-
plificadorcs. Talvez esse tratamento cavalheiresco possa ser desculpado por atri -
buÎ-Io a uma hist6ria corn a quaI os antrop610gos j:i se familiarizaram: uma versao 
do passa do como ele é realmente 'vivido por um segmento da sociedade, camo 0 
.mapa da sua condiçao presente (ver Pouillon, 1975) . 
Começo por Morgan, mas jâ me antecipo em dizer que a escolha pode ter 
sido, de certa forma, equÎvoca. Camo todo [undador, 0 pensamento de Morgan 
tende a ser mais generalizado do que os pontos de vista que divergiram dele, 
contendo dentro de si os "germes" de quase toda posiçâo posterior. Isso significa 
que a homem pode ser submetido a muitas leituras te6ri~as, sendo que q1,lalquer 
uma delas, precisamentc por se tornar uro mapa para a presente discussao, po de 
sec culpada de desrespeitar a generalidade original. Assim, Morgan foi categoriza~ 
do pelos mcios acadêmicos mais recentes camo "idealista", devido à sua ênfase no 
desdobramento dos "germes [originais] do pensamento"j coma materialista, por 
firmar a evoluçâ.o socia l sobre 0 desenvolvimento das artes de subsistência; e ainda 
camo "dualista filos6fico': por sua dependência simultânea de ambos. Por ter feito 
uma alusâo à "16gica natural da mente", alguns 0 consideravam um "mentalista", 
enquanto outros 0 acusavam de "racismo" por ter referenciado a cultura ao orga-
nismo (incluindo a famosa transmissâ.o de habitos "através do sangue"). Sem 
pretender resolver todas essas questôes, acho que é importante nao confundir 
uma certa semelhança da terminologia de Morgan corn 0 discurso do moderno 
estruturalismo, isto é, a invocaçâo dos germes originais do pensamento, desdo-
brando-se em resposta aos desejos e n~cessidades humanos, mas de acordo.com a 
, 
:s ri 
"" ç ~ 
0 ~ ~. r 
~ 
" 1 
64 CI/III/ra c razilo prritica 
"J6giea nalueal da mente': A m ente aparct:e Il:1 teo ria de Morga n mais como 0 
instrumenta do dcsenvolvimento cul tural do que como seu au tor (cf. Terray, 
1972). Mais passiva que ativa, simplcsmcnte rac ional cm vez de simb61ica, a 
inteligência responde reflcxivarncnte a sÎtuaçôes que nâo produz nem organ iza, de 
m odo que, no final, 0 que é reali zado cm fOrlll3.S culturais é urna 16gica pratica-
bio l6gica nos primeiros estagios, tecnol6gica nos ûltimos. 0 esquema conceitual 
nao é a construçâo da experiência humana, mas sua verbalizaçâo, como nas clas-
sificaçôes de parentesco que sao simplesmcnte os termos de uma ordenaçao de 
rclaçôes de fato, efetuados pela vantagcm ccon6 mica ou biol6giea. Para Morgan, 
pcnsam ento é reconhecimento; concepçao é percepçâo; e lin guagem é 0 reflexo de 
distinçôes que jél têm sua prôpria ra zao. A qualidade simb6lica da cultura nâo 
apurece no esquema de Morgan; nele, as palavras sâo simples mente os nomes de 
coisas. 
Consideremos a discussâo em Ancient Society a respeito do desenvolvimento 
do casamento punaluano, da gens (elâ) e, nessas bases, da terminologia do paren-
tesco turaniano. 0 casamento punaluano fo i para Morgan 0 triunfo da biologia na 
socicdade, uma grande reforma nas uniôes consangüineas de irmaos e irmas cm 
um grupo que ele caracterizou camo possuidor da mais rudimentar humanidade. 
A evidência crîtica desse avanço veio do conlraste corn os padrôes de casamento e 
as c1assificaçôes de parentesco dos havaianos contemporâneos. A terminologia do 
parentesco dos hava ianos comprovava 0 esta do consangüineo original, uma vez 
que todos os homens de uma mes ma geraçâo eram "irmâos': todas as mulheres 
"irmâs" e os fiIhos de todos, indiscriminadamente, "filhos" e "filhas': Mas a pratica 
do casamento, a pUllalua, exigia a exelusao das irmâs do grupo de mulheres 
compartilhado pelas irmaos, e dos irmaos do grupo de homens compartilhado 
pelas irmâs. Morgan concluiu que a contradiçâo entre casamento e parentesco no 
Havai contemporâneo remontava aos primeiros estagios de emancipaçào do esta-
do consangüineo. Eie nao estava seguro de como se produziu exatamente a proi-
biçao de casamentos entre irmao e irmâ; refere-se aos primeiros passos como 
"casos isolados", algo no modelo das variaçôes ocasionais, cujas vantagens foram 
pouco a pouco sendo reconhecidas: 
Dada a familia consangüinea, que englobava tanto os i n llllOS e irmas consangüfneos 
quanto os irmâos c irmâs colatcrais na relaçao matrimonial, na familia punaluana 
bastava excluir os primeiros do grupo, nele consc rvando apenas os segundos. Mas cra 
dificil exclui r os primeiros e man ter os scgulldos, pois ta l medida implicava uma 
mudança radical na composiçâo da familia, para nao dizer na antiga estrutura da vida 
domés tica. Ela implicava igualmente 0 abandono de um privilég io do quai os selva-
gens nào podiam desistir facilmente. Pode-se suporquc essn medida foi IOl/Tada, iniciaI-
mente, em casas iso/ados, que SIIt1S valltagellS foram /ellfalllcll te reconhecidns, e que foi 
adotada a titulo experimental durante periodos muita longos. A principio, cla foi 
Dois paradigfltQ$ da tcoria antropol6gica 65 
aplicada por algumas tribos, dcpois pela maioria, até ser finalmente un iversalmentc 
adotada pelas tribos mais evoluidas que se encontravam ainda no estado selvagem e 
entre as quais se originara 0 movimento. Sua adoçao oferece lima boa ilustraçao do 
proces$o segundo 0 quai se realiza 0 principio da seleçào natural. (Morgan, 1963 
(1877), p.433-4; grifo meu. J 
h importante perceber a natureza da intelecçâo humana que Morgan propôe 
aqui. 0 exemplo da punalua é particularmente adequado, uma vez que é comu-
m ente utilizado no primeiro ano de antropologia para ilustrar a arbitrariedade do 
sfmbolo pela observaçao de que nenhum sfmio poderia at ingir a distinçao entre 
"esposa" e "irma", da mesma forma que nao poderia estabelecer a diferença entre 
agua benta e agua destilada. 1 No entanto, 0 que Morgan esta dizendo é exatamente 
o oposto, que a diferença entre "marido" e "irmao" nao é uma const ruçao simb6-
lica colocada no mundo, mas a decorrência racional de lima diferença objetiva no 
mundo, isto é entre homens biologicamente superio res e inferiores. Trata-se de 
uma percepçao das vantagens biol6gicas como resultantes da diferença, sendo 
portanto uma representaçao em termos sociais de uma 16gica externa a esses 
termos. A reforma caracterizada pela punalua foi a primeira de uma ionga série 
que cul minou na monogamia, uma série na quai a espécie hum(lna livrou-se 
progressivamente de uma promiscuidade original e dos males decorrentes da 
procriaçao consangüinea. E esse primeiro passa resume a noçao que Morgan tem 
do. todo: cIe foi efetuado pela observaçâo e pela expùiência; atençâo às conse-
qüências deletérias do casamento dentro do grupo - "os males dos quais a 
observaçao humana naD podia indefinidamente escapar" (Morgan, 1963, pA33) 
- ~ a experiência das vantagens mentais, portanto institucionais. do casamento 
fora d~ grupo. "É uma inferência correta dizer que 0 costume punaluano chegou ~. 
à adoçao geral através da descoberta da sua intluência benéfica" (p.509). Portanto, n 
pensamento é reconheClmento e a mente é um veiculo pela quaI a natureza é '\ 
compreendida como cultura. 
A explicaçâo posterior de Morgan da gens como uma derivaçao da sociedade 
punaiuanae uma codificaçao das suas vantagens leva ao mais alto nivel a mesma 
concepçao. Enquanto matrilinear, a gens original representa 0 acabamento natu-
rai da familia punaluana no tempo, dada a impossibil idade de se verificar a pater-
n idade sob as condiçôes marita is existentes. 0 conceito social de d escendéncia é, 
mais uma vez, uma consciência de relaçôes jâ prevalecentes (p.442). (Em um 
! 0 uso de "simbol~" c. "signo" na anlropotogia amcricana, ou peto menos cm grande parte dela, 
tende a sc dar no sentldo lIlverso das famosas dcfiniçôes de Saussure, em seu CI/rso dt: liugiiisticagcra/; 
na t~adiçào anterior "simbolo" é 0 verdadeiramente arbitnlrio ou 0 naD motiva do, e "signo" é 0 
mOIi.va?O (compa r~r Langer, 1957, ou White, 1960. com Saussure, 1966 Il9l 5 J). Coma regra geral 
segulrel a usa amencnno, exccto onde 0 contexto é clarnmente saussuri nno. 
g 
0' 
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'i' 
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V' 
f. 
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ç 
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,J . 
~- ' , 
" ( 
66 Cu/wra e razào pratica 
lllomentQ posterior no esquema de Morgan, a descendéncia se tornarâ patrilinear 
sob a influência do crcscimento da "propriedade" - termo geral empregado por 
Morgan para dcsignar a l'osse da "riqueza" estratégica - que é a junçâo na quai 0 
interesse econômico, ou 0 desdobramento efetivo dos meias crcscentes de subsis-
tência, prevalece sobre a vantagem biol6gica como a determinante pratica da 
forma social.) Exatamente como a famflia punaluana, cuja funçao nesse aspecta 
cJa duplica e generaliza, a gens se tamau accita graças às CCvantagens a ela conferi-
d;1S", ou seja, a melhoria genética que deve resultar da regra da exogamia: 
Vm objeto primario da organizaçao Cfa, evidentemente, isolar uma metade dos 
descendentes de um suposto fundador, evitar 0 casamento entre eles por motivos de , 
parentesco ". A gens, que se origina provavelmente da ingenuidade de um pequeno 
bando de selvagens, deve ter logo provado sua utilidade na produçao de homens 
superiores. Sua prevalência quase universal no mundo antigo é a maior evidência das 
vantagens que da apresentou. (Ibid., p.73-4; cf. também p.68, 389, 442.) 
Por sua vez, 0 sistema de parentesco turaniano reflete a organizaçào sobre a 
base da punalua e da gens. Na sua distinçâo entre 0 parentesco paralelo e cruzado, 
cla apenas expressa as diferenças jâ estabelecidas na pratica. 0 parentesco turania-
no nao é mais que a articulaçao criteriosa das distinçôes sociais desenvolvidas pela 
scleçao natura!. 
A teoria pode ser r~sumida da seguin te forma: os homens cedo desenvolve-
ram certas prâticas, formas de comportamento, como a exclusào de irmaos e 
1 irmas de uniôes sexuais de grupo, que provàram naturalmente ser uteis e vantajo-
sas. As vantagens foram apreciadas e os comportamentos formulados como mo-
I dos de organizaçâo - por exempIa, a farnilia punaluana, a gens - que, por sua 
, vez, estavam sujeitos à reflexaa secundâria ou à codificaçao na terminologia do 
parentesco. A lin ha geral de força da demol1straçao, a orientaçtio do efeito 16gico, 
vai dos limites naturais à pratica camportamental, e da ·pratica comportarnental à 
\ instituiçao cultu ral: 
( 1) circunstância -+ pratica -+ o rganizaçao e codificaçâo (instituiçao). 
Para se cornpreender qualquer segmenta dado na cadeia de efe ito, deve-se ter 
par base 0 segmente precedente; assim como a codificaçao expressa organizaçao, 
também a estrutura institucional coma um todo esta referida à pratica e a pratica 
;\ cxperiéncia no mundo, de tai modo que a seqüência total representa a sedimen~ 
taçao, dentro da cultura, da 16gica da natureza (a vantagem adaptativa).2 
1 Em termos mais gerais, uma vez que nos ultimos estagios do esquema de Morgan 0 interesse 
~·.:onômico sc apossa da vantagem biol6gica, a l6gica bâsica poderia ser caractcrizada simplesmente 
como "vantagem pnitica". De uma pcrspectiva ecol6gica, contudo, a diferença se dâ apenas entre 
modalidades de vantagern adaptativa. (Na realidade, 0 aumento do estoque é uma mctarora que vem 
d~sde 0 homcm primitivo, passando pelos pastores patriarcais, até 0 capitalismq.) 
. ,---. 
Dois paradigmas da teorÎa alltropoMgica 67 
Mas entao a tcoria de Morgan é apropr iada a uma cllltllra nào-humana - ou 
melhor, a uma humanidade nao-cultural. TaI camo 0 pensamento é a rcconheci -
mento de uma significaçao exterior, as palavras dos ho mens nao sac a conceito 
das realidades externas, mas sim 0 seu signo. Consistindo simplesmente na capa-
cidade de agir racionalmente sobre a exper iência, a inteligência que Morgan en-
tende coma humana nao difere da de outras espécies mamfferas, especialmente do 
castor. Na sua famosa monografia The American Beaver and his Works (1968 ), 
Morgan de fend eu vigorosamente a idéia de que "a principio do pensamento" era 
comum aos homens e aos animais. As qualidades mentais do castor, escreveu eIe, 
sao "essencialmente as mes mas que aquelas manifestas pela mente humana" 
(p.252). A diferença ent re essas qualidades e 0 pensamento huma no, "e, por 
inferência, entre os prindpios que e1es representam respectivamente, é de grau e 
nao de gênera" (ibidem). A semelhança especîfica consiste na capacidade de se 
fazer <Curn uso racional" das percepçôes transmitidas pelos sent idos para agir 
pragmaticamente sobre a experiência. Dai, para Morgan, a fonte de significaçâo 
que é materializada nas produçôes das espécies, tanto na casa do africano quanta 
do castor, residir na pr6pria natureza. Morgan retornou rcpet idas vezes à psicolo~ 
gia animal, sem pre preocupado em mostrar "que todas as espécies, incluindo a 
hum an.;:!., recebem orientaçtio imediata da natureza" (Resek, 1960, p.SI; grifo 
meu). 3 Sua teoria do conhecimento foi, portanto, caracterizada pela suposiçao-
para ficarmos de acordo corn a descriçao gerai de Cassirer - de que a "real" é 
dada "tout fait, tanto na sua existência como na sua estrutura, e que para a mente 
(esprit) humana é apenas uma questao de tomar posse dessa realidade. Aquilo que 
existe e subsiste 'fora' de n6s deve ser, por assim dizer, 'transportado' para a 
c~nsciência, alterado em alguma coisa interna sem, contudo, acrescentar nada de 
novo ao processo" (Cassirer, 1933, p.18). Morgan reduziu a linguagem ao ato de 
nomear as diferenças manifestas na experiência. Preferiu respeitar a continuidade 
da inteligência, às expensas da criatividade da linguagem, susten tan do que 0 
castor era apenas "silencioso", mas nao " mudo': chegando mesmo a afirmar que a 
faculdade lingüîstica do homem era apenas rudimentar na Selvageria, desenvol-
3 Resek, 0 mais perspicaz bi6grafo de Morgan, estabelece uma conexao precisa entre a racional idadc 
atribuida aos animais e a pr6pria epistemologia antropol 6gica de Morgan. Desconfiando tanto do 
instinto quanto da imaginaç50, a longa obra de Morgan sobre a evoluçao social deixou intact a a 
i1ist6ria das idéias, mesmo que cie - racio nalista supremo - pudcsse considerar cssa pr6pria obra 
in tocada pda ideologia. Morgan "nunca duvidou de q ue seus pcnsa mentos fossem verdadeiros 
retlexos da realidadej 0 que ele via na base das Mon tan has Rochosas ou em um povoado asteca pouco 
ou nada tinna a ver com 0 fato de ser rko ou às vezes mil Whig dissidcntc. Ele teri a re;eitado a noçao 
de que fatores subjetivos, irracionais ou subconscientes fazem de cada homem seu pr6prio historia~ 
dor. As leis da natureza e da socicdade foram dcscobertas em plena luz do dia, 115.0 nos subterrâneos 
da alma ou nas meditaçôes dos fi!6sofos. Elc tentou provar isso aos outras - como sc fosse preciso 
prova - em seus ensaios sobre psicologia animal" (Resek, 1960, p.151·2). 
" 
" 
1 
------',-'---~ 
i"' . 
68 Culll/ra e razao prdtica 
venda-se gradualmente através daquele longo perfodo. Morgan fo i UI11 antrop61o-
go pré-simb6lico.4 
Ent retanlo, 0 pr6prio conceito do conceito continua em muitas antropolo-
gias da praxis recentes.Esta é uma premissa implkita,mas decisiva, da filosofia. A 
ana lise deve negligenciar a arbitrariedade fundamcntaJ da palavra -reconhecen-
do talvez que nào haja qualquer relaçao inerente entre 0 som-imagem e 0 conceito 
(idéia), supondo, porém, que exista tal relaçâo entre 0 conceito e a realidade 
objetiva à quaI ela se refere. 5 Assim, a linguagem s6 é simb6lica no sentido de que 
represcnta 0 munda de uma outra forma, mas que nao t'cm sentido algum se 
retirada do mundo; por conseguinte, é 0 comportamento do signo em uso, sc nao 
em invençao. 1 
Mas a arbitrariedade do simbolo é a condiçào indicativa da cultura humana. 6 
Isso nao se da simplesmente porque a combinaçao de sons sheep [carneiro] nào 
tem qualquer conexào necessaria corn 0 animal designado desse modo, da ffieSITIa 
forma que a palavra mouton, mas porque 0 conceito de carneiro também varia em 
diferentes sociedades. 0 exemplo acima é clara mente motivado por urn farnoso 
exemplo de Saussure, no quai ele usa a di fe rença de significado entre sheep e 
mouton para ilustrara diferença entre va lor e significaçao lingüfsticos. As palavras 
francesa e inglesa referem-se à mesma espécie, mas 0 fazem "em termos diferen-
tes"; cada uma, em virtude das diferenCÎaçôes semânticas das respectivas Hnguas, 
exprime uma concepçào distinta das (e em relaçào às) espécies. A palavra inglesa 
nao se aplica ao animal quando pronto para ser comido, no seu estado culinario, 
para 0 quaI ha um segundo termo, mutton; mas 0 francês ainda nâo foi capaz de 
participar da distinçao mais elevada entre 0 cru e 0 cozido: 
o francês moderno mouton pode ter a mes ma sign ificaçao do inglês slleep, mas nao 0 
mesmo valor, è isso por varias razoes, cm particular porque, ao falar de uma peça de 
carne pronta para ser levada àp1esa, 0 inglês usa l11uttOIl e nao sheep. A diferença de 
valor entre sheep e mutton deve-se ao fato de 0 primeiro ter, ao seu lado, um segundo 
tenno,o que nao é 0 caso da palavra francesa. 
Dentro de uma mesma lingua, todas as palavras que cxpressam idéias vizinhas se 
limitam reciprocamente ... Assim, 0 valor de qualquer termo é determinado pela que 
4 Para uma posÎçao scme1hante sobre a Iinguagem na ohr .. do antrop61ogo evolucÎOllista inglês E.B. 
Tylor, ver Hcnson (1974, p.16-7). 
5 Uma vcz que Îlcm a som-imagcm nem a idéia podcrn ocorrer um se m 0 outro, coma argumentou 
Benvcniste cm seu conhccido comentârio sobre 0 texto saussuriano, sua re1açao é cOll5ubstancial e 
absoluta, e nesse sentido nao-a rbitrâria. A verdadeira contingência est:\. entre 0 conccito e a palavra, 
um::! re1açào quc Benveniste recusa tratar, por consider:\.-Ia fom do objetivo de lingüistica 09li, 
p.43-8). 
6 "Enquanto encarannos as sensaçoes coma signos das coisas que supostamente lhcs dao origem, 
qualificando talvez esses signos corn rcferência a scns::!çOes p::! ssadas que (omm scmel hantcs, nem 
terernos arranh:ldo a superficie dessa mente humana ocupada de simbolos" (Langer, 1957, pA3). 
Dois parndigma5 da tcoria tinlropoMgica 69 
o ccrea; é impossivel flXar até mesmo 0 valor da palavra que sign ifica "sol" sem <la tes 
considerar 0 que h;, ao seu redor; ha Iinguas onde n50 é possivel dizer "scntar-sc no 
sol". ISaussurc, 1966 (1916), p.I IS-6.] 
No que d iz respeito ao conceito ou significado, uma palavra é rcfcrivel nao 
simplesmente ao mundo externo, mas antes de tudo ao seu lugar na lingua, ou 
seja, a oulras pal av ras relacionadas. Par sua diferença cm relaçâo a essas palavras, 
constr6i-se sua pr6pria avaliaçao do objeto, e no sistema dessas diferenças ha uma 
construçâo cultural da realidade. Nenhuma lingua é uma simples nomenclatura. I'"j'; 
Nenhuma se baseia cm uma simples correspondência UI11-a- UI11 dos seus proprios 1 
termos com "as" distinç6es objetivas. Cada uma confere certo valor às distinçôes 
determinadas e const itui, por conseguinte, a realidade objetiva em outra quaI ida-
de, especifica àquela sociedade.7 Na realidade, enquanlo projeto social tolal, a 
atividade simb6lica é ao mesmo tempo sintética e analitica, lrazendo para 0 
conceito toda a 16gica cultural. Se, por um lado, as diferenças nr valor lingüistico 
efetuam uma découpage part icular do mundo externo, dividindo-o de acordo com 
certos principios, por outra lado os elementos assim segregados sao reagrupados 
por correspondências significativas en tre eles. Refira-mc aqui nâo apenas a distin-
çôes semânticas, mas também a praposiçôes culturais. E a arbit rariedade simb61i-
ca das segundas é mesmo maior do que a das primeiras. Ao menos na leoria ha 
limites naturais no campo semântico de um ûnico lexema: nenhuma ûnica pala-
vra, por exemplo, é capaz de significar, simultânea e exclusivamente, as duas espé-
CÎes, boi e lagosta. Mas 0 mesmo exemplo suger ini aos americanos, entre os quais 
a peculiar combinaçao "bife e lagosta" é uma categoria definida de jantar, que a 
cultura nâo se submete a tal tipo de limitaçao. Parece nao haver qualquer limite 
te6rico determinavel a priori em relaçao ao qué sera c1assificado com quê no 
esquema cultural: "Um parente por casamento é uma anca de elefante ." A 16gica 
proposicional é rnaravilhosamente variada e assim sào as culturas, dentro deste 
mesmo e ûnico mundo. 8 
7 "A rep resenlaçào 'objetiva' - é isso 0 que eu quero tentar cxplicar - Ilao é 0 po nlo de part id a do 
processo de (ormaçào da linguagem, mas sim 0 fim ao quai esse processo conduz; ela n5.o é seu 
terminus a quo, mas sim seu termi/lus ad qI/cm. A linguagem nào entra em um mundo de perœpç6es 
objetivas acabadas, somentc para acrescen ta r, a ohjetos individuais dados e claramc nte dellmitados 
uns cm relaçao aos outros, "nomes" que seriam signos puramen lc cxteriores c arbitrarios; cla mcsma 
é um mediador na {ormaçao dos objetos; cm um scntido, é 0 mediador po r excclência. 0 instrumenta 
mais importante e mais precioso para il conquista e para a eonstruçào de urn verdadeiro mundo de 
objetos" (Cass irer, 1933, p.23). 
Para uma boa discussao antropol6gica sobre a rclatividade cultural da dislinçao entre crcnça e 
experiência, urna distinçao peculiar dessas sociedades ocidcntais que se propôcm fa u r a antropologia 
das outras, vcr Necdham, 1972 (sobretudo p.173). 
8 No mcslllo sentido de uma construçao cultural, pode-se observar no p:lr carneiro/carne de ca rnei-
ro (sllcep/mlllton) que esse animal, no mundo anglo-saxao, ocupa no açougue um lugal' ao lada de 
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70 Cu/Jura c razJo pratica 
Em suma, através da avaliaçao simb6lica e da sintese da realidade objetiva, 
criamos um novo tipo de objeto, com propriedades distintas: a cultura. A lingua-
gem é um meio privilegiado clesse projeta. Mas, para Morgan, a linguagem naQ é 
mais que a percepçao articulada. Dai, a passagem da natureza para a cultura, na 
visao de Morgan, nao ser mais importante do que, digamos, a reduçao da Odisséia 
da forma falada à escrita . Coma escreveu recentemente um destacado rnarxista cm 
, relaçao a Kautsky, 0 mesmo pode ser dito de Morgan. Parà cie, "a hist6ria humana 
l'" é um apêndice da hist6ria natural, sendo a sua lei de movimento simplesmente 
\formas de manifestaçao das leis bio16gicas" (Schmidt, 1971, pA?}.9 
Boas 
Eru contraposiçao ao que foi dito, a odîsséia de Boas "da ffsica à etnologia" torna-
se significativa, representando uma oposiçao dentro da quai a antropologia pas-
sou por varios ciclos durante todos esses anos. Como George Stocking (1968) 
descrcve muito bem, foi uma viagem de muitos anos na quaI Boas passou de um 
materialismo monista à descoberta de que "0 olho que vê é 0 6rgao da tradiçao"; l' uma jornada de muitos estâgios nos quais ele descobriu que, para 0 homem, 0 
:! orgânico nao procede do inorgânico, 0 subjetivo do objetivo, a mente do mundo 
1 _ e, finalmente, a cultura da natureza. Os primeiros passosforam dados dentTO 
da pr6pria fisica. Na sua dissertaçao sobre a cor da âgua do mar, Boas observou a 
dificuldade de determinar as intensidades relativas de Iuzes que diferiam levemen-
te em cor. A variaçao quantitativa no objeto nao evocava uma variaçao correspon-
dente no sujeito. lo Boas repetiu, mais tarde, a experiência ao nivel lingüfstico, 
porcos e bois, que compartilham uma' declinaçao paralela de termos para 0 estâgio de consumo 
(pig/pork, cat/le/bec}), embora todos des difiram ncsse sentido dos cavalas e cachorros. A hist6ria sem 
estrutura da a impressao de nao explicara classificaçao, uma vez que nao possuimos nenhuma palavra 
de inspiraçâo normanda para cheval par analogia às palavras para carnes de carneiro, de boi e de 
porco. No capitula 4, discuta a 16gica da comestibilidade/nao-comestibilidade no esquema america-
no (p.166-79). 
9 Estou em débito com 0 professor Paul Kay pelo muito quc elc contribuiu para a nossa discussao 
do problema da "arbitrariedade do signo". Meu débita vai mais além, chegando mesmo ao uso de 
certas [rases que sao suas - tanto quanto quaisquer erros SaD de minha intdra responsabilidade. 
Entre os erros que devo evitar encontra-se a reivindicaçao de um extremo relativismo lingüfstico. Nao 
quero dizer que 0 pensamento deva coincidir corn as distinçoc$ gramaticais de determinada Hngua. A 
idéia coma um todo parece implicar uma paralisaçâo dos poderes simb61icos neccssarios il sua 
postulaçao. Ha também alguma evidência de que 0 falar interior, que se encontra cm "um piano 
~ distinto do pensamento verbal': tenna uma cstrutura diferentc c mais simplificada que a estrutura da 
II lingua falada. Nem chegamos ainda ao nive! mais profundo dessa relaçao complexa e amplamente 
l desconhecida entre pensamento e palavra (Vygotsky, 1962) . 
10 ''Ao preparar minha tese de doutorado, tive de usar métodos fotométricos para comparar intensi-
dades de luz.lsso levou-me a considerar os valores quantitativos das sensaçoes. No decorrer de minha 
r 
Dois paradigmas da leoria antropo16gica 71 
quando, através de informantes da Costa Noroeste dos Estados Unidos, descobriu 
que os SOll.') considerados iguais por um orador de uma lingua podiam ser ouvidos 
como algo completamente diferente por pessoas que falavam outra Hngua, e 
vice-versa, na medida em que ca da um percebia no discurso do outra asdistinçôes 
apropriadas ao seu pr6prio. 11 
Nesse meio-tempo, ele passou naturaimente por uma fase de psicoflsica fe-
clllleriana que teve a mesma importância: experimentos sensoriais em fenômenos 
liminares que nao apenas reiteraram a conclusao de que as diferenças objetivas a 
estimulos llaO engendravam nenhuma diferenciaçao paralela de resposta - que a 
reaçao humana à quantidade efa em si mesma qualitativa - mas também que a 
resposta dependia de fatores situacionais e do conjunto mental da pessoa. No 
sujeito humano, a percepçao (perception) é reconhecimento (apperception), que 
depende, pode-se dizer, da tradiçao mental. A quai, par sua vez, nao é em si mesma 
decisiva nem unica para 0 homem. Para qualquer grupo humano, a tradiçao em 
questao é um conjunto de significados acumulados, teoria coletiva e hist6rica que 
faz da sua percepçao uma concepçao. 12 
Permitam-me aqui fazer uma breve digressao e uma comparaçao aparente-
mente curiosa. É fascinante que tanto Boas quanto Marx tenham passado, no 
inicio das suas vidas intelectuais, pele mesmo ponto. Em um determinado mo-
mento, ambos foram compelidos a recusar um materialismo mecanicista que lhes 
vinha do iluminismo. No entanto, escolheram respostas concebiveis alternadas, 
que nao eram em si mesmas muito diferentes, mas 0 suficiente para conduzi-Ios a 
caminhos fatalmente diferentes. Marx teve de reagir ao materialismo contempla-
tivo e sensorial de Feuerbach, um materialismo do sujeito hipotético individual 
que responde passivamente à realidade concreta; mas a reaçao de Marx também 
foi refreada pelo idealismo de Hegel, que se apropriou do sujeito ativo hist6rico. A 
soluçao, como Marx colocou na prime ira tese sobre Feuerbach, era aproveitar 0 
ativismo do idealismo.para remediar 0 defeito de um materialismo que concebia 
"a coisa, a realidade, a sensibilidade ... apenas na forma do objeto ou da contempla-
Çao, mas nao como atividade humana sensivel, pratica, nao subjetivamente" 
investigaçao, aprendi a reconhecer que existem dominios da nossa experiênda nos quais os conceitos 
de quantidade, de medidas que podem ser acresccntadas ou subtraidas como aquelas corn que eu 
estava acostumada a operar, nao sao aplidveis" (Boas [19381 il! Stocking, 1974, p. 42). 
II "A alternância dos sons é daramente um deito da pcrcepçao obtida atra\'és de um sistema de 
fonética estranho" (Boas, 1966a [1911], p.14; cf. Stocking, 1974, p.72ss.). 
12 "A primeira impressao obtida de um estudo das crenças do homem primitivo é que, embora as 
percepçoes de seus sentidos sejam suficientes, seu poder de interpretaçaa logîca parece deficiente. 
Acho que a razao para esse fato pode ser encontrada !laO cm qualquer peculiaridade fundamental da 
mente do homem primitivo, mas sobretudo no carater das idéias tradicionais pelo quai cada nova 
percepçào é interpretada; cm outras palavras, no carater das idéias tradicionais com as quais cada 
nova percepçao se associa, determinando a condusao alcançada" (Boas, 1965 [1938], p.198-9)-
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l 72 CI/III/ra c mziio pralica 
(Marx, 1965. p.66J; escrito cm 1845). "Feuerbach, naD satisfeito cam 0 pensamen-
to abstrato': escreveu Marx em sua quinta tese, "deseja a contemplaçâo; mas cIe 
nao con cebe a sensualidade COIllO atividade pratica, humano-sensorial." Marx 
salientou que cssa praxis deve sel' entendida ca mo social e na sua especificidade 
hist6rica, nao como a açào de um individuo abstrato e isola do. Entretanto, 0 
reconhecimenlo do social. comum a Marx e a Boas, foi inscrita com uma diferen-
ça de ênfases. Marx chegou até a l' ratica e as es truturas da realidade, construidas 
cam base na açào concreta e presente, cm modos historicamente especificados, de 
seres humanos sensiveis. Boas tran sferiu 0 mesmo problema do materialismo 
mecânico para os esquimôs, e mais tarde para a Costa Noroeste, para descobrir a 
especificaçâo histôrica do sujeito que age. A escolha de Marx l evou~o 30 materia-
lismo histôrico; a de Boas, à cultura. l ' 
o fato de a viagem de Boas ter acabado no poder estru turan te da tradiçao 
parece agora, em retrospecto, incren te às condiç6es do seu in îcio. Boas começou 
questionando a essència da tese de Morgan, a expressao da natureza na cultura 
pela mediaçao de uma mentalidade reflexiva. Em uma série de cartas ao seu tio na 
América, em 1882-3, Boas des creve 0 arcabouço de seu projeto esquim6: 
Embora, no inicio, minha intençao fosse esludar matematica e fisica coma meta final, 
fui levado, através do estudo das ciências natu rais, a outras questôes que logo me 
conduziram à geografia, e esse assunto de lai forma atraiu meu interesse que final-
mente 0 escolhi camo meu estudo principal. No entanto, a direçao de meu traba1ho e 
estudo foi fortemente influenciada par meu treinamento em ciências naturais, espe-
cialmente a fisica. Com 0 passar do tempo, fiquei convencido de que meu Weltans-
chaullIIg materialista anterior - para Unl fisico, algo muito compreensivel- era 
insuslentavcl, c assim cheguei a um nova ponta de vista, que me revelou a importân-
cia do estudo da interaçao entre 0 orgânico e 0 inorgânico, sobretudo entre a vida de 
Ulll pava e seu meio ambiente fisico. Assim nasceu meu plana de considerar a [se-
guinte J investigaçâo coma minha tarera de vida: até que ponto podemos considerar 
os fenômenos da vida orgânica, especialmente da vida fisica, de um ponto de vista 
mecanicista, e que conc!usôes podemser retiradas de uma consideraçâo desse gêne-
ra? fCitadoin Stocking, 1968,p.1 38.1 
13 Dai a rejeiçao paraleJa de Boas do dctcnni nislUo "geogriifico" e "econômico", baseado em uma 
noçao de cuhma nao tanto coma uma condiçao da rclaçaodo homem cam a natureza. massobretudo 
camo a cOllccpplo dela (por exemplo, 1965 119381. p.1 7S-7). 'Iodas as questoes fu ndamentaÎs do 
ultimo dcbatc - bem como as discutidas no capitula 1 -eS130 aqui prefiguradas: "nao ha razao para 
denominar as outras rases da cultura de uma superestrut ura sobre uma base econômica, pois as 
condiçôes econô micas sempre agem sobre uma cultura precxistente e elas mesmas dependem de 
outros aspectos da cultu ra" (ibid., p.I7S ). 0 tempo aguç:lria a oposiçao entre a realidade material da 
simbo lizaçào c a simbolizaçao da rèalidade material-que para Boas nao efa nem racionalidade nem 
dis(arce. 
Dois paradiglllas da /eoria alllropo16gica 73 
De cert'a forma, a carreira antropol6gica de Boas pode ser caracterizada como 
um processo no quai 0 axioma or iginaI,la construS,âo humana da experiéncia.Joi 
transposto do nivel psîcolôgico para 0 cuî~St~~ki~·g des taca 0 velho arligo 
(1888) "Sobre os sons alternantes" como contendo os germes clesse desenvolvi -
mento e, por conseguinte, do moderno conceito de cultura. Mais que um exercicio 
critico ou metodolôgico, escreve Stocking, esse artigo: 
1 prenuncia muito do pensamento antropol6gico moderno, cm direçao à "cultura". Ao 
!'1menos pa r implicaçao, de vê os fenômenos culturais em termos da ÎlI1posiçilo de tls!!fficaA.o c.o! lxel1c~9!!.!!!39J!.u..~~ da_~periên.ci~: Ele os vê como histori~a7r;;~t;~o'ndi­
. cionados e transmitidos pela processo de aprendizado. Ele os vê como determinal1tes 
de flossa s pr6prias percepç8es do mUl1do externo. Ele os vê em termos mais relativos que 
absolu tas. Grande parte do final da obra de Boas, e da dos seus seguidores, pode ser 
vista simplesmente camo a acabamento das implicaçôcs presentes nesse artigo. 
IIbid., p. 159; grifo m,u.] 
De fato, os caminhos pelas quais Boas chegou ao conceito cultural foram 
diversificados e aigu mas vezes cheios de meandros (cf. Stocking, 1968, p.195-223; 
1974, p.I-20). Vm desses caminhos tem aqui especial importância, jâ que foi 
desenvolvido no confronto direto corn Morgan sobre a questao de leis gerais de 
evoluçao socia l. A antropologia modern a tende a considerar essa controvérsia em 
particular como infeliz, pois a f~agmentaçao nominalista, operada por Boas no 
contet'ido das culturas para provar a diversidade dos processos de desenvolvîmen-
to, entronizou aquela concepçao de "far rapos e remendos" do objeto que a etno-
logîa amer icana leva ria décadas para expiaI'. Na realidade, Radin criticou, cedo e 
de form a vigorosa, a noçao "quantitativa" do traço cultural separado que Boas 
desenvolveu a partir da sua obsessao corn a contestaçâo do evolucionismo (Radin, 
1966 [1933]). No entanto, 0 desmembrarnento negativo da cultura gerou, forço-
sarnen te, um resultado contradit6rio e sintético.:Rara BO,as, <? que racionâlizou a . 
disparidade de traços aparentemente semelhantes, que realmente existiam em 
vâriasSoëledaaes.Jor~in as d iferenças emsignificados e usas determinados local- . 
.~ente. ~e esses significados implicavam processos dissim ilares de desenvolvimen- . 
to, provando que Morgan estava errado, era tambérn pOl' suas implîcaç6es de um 
contexto total e arientado: uma cultura que padronizava os traças de acordo com r~ 
Il seu prôprio espîrito singular. Dado. que Boas argumentava que as mascaras da ! ~i Il sociedade A, usadas para enganar os espiritos, nao er~I11 comparaveis às mascaras ~ 
.! da sociedade B, que comemoravam os ancestrais - e correspondentemente que d 
os c1âs, os totens ou os sistemas de metade variavam em todo 0 mundo - ele teve t·, 
de conduir pela existência de cultu ras, de totalidades cujas "idéias dominantes" 
ou padrôes criam essa diferenciaçào (Boas, 1966b [1940 J, p.270-89, e pass im). Em 
um artigo muito conhecido, "Hist6ria e antropologia': Lévi-Strauss observa a 
eventualidade conceitual do método: 
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74 Cul/!lra e razào pratica 
Procurar-se-a entao levar ao extremo 0 nominalismo boasiano, estudando cada um 
dos casas observa dos como se fossem outras tantas entidades individuais? Dever-se-a 
constatar, de um lado, que as funçôes atribuidas à organizaçao dua\ista nao coinci-
dem; e, por outra lado, que a historia de cada grupo social mostra que a divisâo cm 
metades procede das origens mais divcrsas. Assim, a organizaçâo dualista pode resul-
lar, scgundo 0 casa, da invasâo de uma populaçâo par um grupo de imigrantes; da 
fusao, por fazoes cm si mesmas variaveis (econômicas, demogrMicas. cerimoniais), 
de dois grupos tcrritorialmente vizinhos; da cristalizaçao, 50b forma de instituiçao, de 
regras empiricas destinadas a assegurar as tracas matrimoniais no scia de determina-
do grupo; da distribuiçao no interior do grupo, nas duas partes do ano, de dois tipos 
de atividade ou duas fraçôes da populaçao, de comportamentos antiéticos, mas julga-, 
dos igualmente indispensaveis para a manutençao do equiHbrio social etc. Assim, 
seremos conduzidos a despedaçar a noçâo de organizaçao dualista camo constituio-
do uma falsa, calegoria e, estendcndo este raciodnio a todos os outros aspectas da 
vida social, a negar as instituiçôes em beneficio exclusivo das sociedades. [Lévi-
Strauss, 1963b, p.lO-l.] 
A problematica geral de Boas difere, portanto, radicalmentc da de Morgan. 
Onde Morgan entendia a pratica e suas formulaçôes costumeiras pela 16gica das 
circunstâncias objetivas, Boas in tercalava um subjetivo independente entre as 
condiçôes objetivas c 0 comportamento organizado, de modo que 0 segundo nao 
derivasse mccanicamente do primeiro. Ao nivel psicol6gico, onde foi primeira-
mente anunciado, 0 termo interventor pode ser caracterizado grosso modo como 
uma operaçao mental, gerado pele contexto e pela experiência anterior, que, ao 
governar a percepçao, especifica a relaçao entre estîmulo e resposta (figura 7). Ao 
nive} cultural, em direçào ao quaI 0 pensamento de Boas estava cm continuo 
desenvolvimento, 0 termo mediador é a tradiçao, 0 VoIkergedanken ou 0 padrao 
dominante, que ordena ao mesmo tempo a relaçao com a natureza, as instituiçôes 
existentes e a sua interaçao (figura 8). 
A semelhança das duas f6rmulas corn a de Lévi-Strauss é indiscutîvel (p.61-
2). Na vcrdade, os termos da afirmaçao de Lévi-Strauss da sua posiçao - em 
oposiçao a um certo marxismo - descrevem Boas corn exatidao, especificando 
até mesmo 0 tCl titl1n quid entre a praxis e as prâticas como um "esquema concei-
tuai" (ou c6digo). Adotando esses termos, 0 contraste te6rico entre Boas e Morgan 
pode ser estabelecido, de [arma geral, como mostra a figura 9. 
É clara que 0 "es que ma conceitual" tem uma qualidade diferente nessas duas 
perspectivas. Para Boas, é a encodificaçao (encoding), enquanto para Morgan é a 
codificaçao (codiJicntioll) de distinçôes externas. Para Boas, a significaçao do obje-
to é a propriedade do pensamento, ao passo que para Morgan 0 pensamento é a 
representaçao da significaçao objetiva. Se na concepçào de Morgan pensamento e 
linguagcm funciOi}2m comC\..~o"lla de Boas tl-ata-se, essencialmente, de uma 
problematica do srmbolo. Na re31idade, a estrutura do simbôlico desenvolvida por 
'- '" ) 
Dois paradigmas da tcoria alltropol6gica 75 
Boas corrcsponderia às posiçôes empirico-racionalistas do tipo que Morgan man-
teve, isto é, uma forma caracterîstica de auto-retlexao cultural, um apelo post-fac-
tum à racionalidade de pratÎcas cuja verdadeira lôgica é nao-explfcita e cujas 
verdadeiras fontes sac desconhecidas. 
Boas afirmou que a formaçao de uma cultura, como um pracesso de tomaI'a 
experiência significativa, se exerce necessariamente cm uma teoda - da natureza, 
do homem, do ser humano na natureza. Essa teoria, contudo, continua naD sendo 
formulada pelo grupo humano que vive nela. A linguagem é um exemplo privile-
giado desse processo inconsciente, mas outres costumes, priticas, crenças e proibi-
çôes sac também baseados em pcnsamentos e idéias nao-retletidos e imemoriaveis. 
Todos eles sac baseados na categorizaçao da experiência, na apropr iaçao do perce-
bido pelo conceito, exatamente coma nas raizes da palavra ou_'2a, sintaxe de uma 
\ determinada lingua, a experiência nao é simplesment~_fepresentadâ'- é classifica--
1 \ da. E como toda classificaçao deve ter seus princîpios, cada lingua é, ao rncsmo -
V tempo, "arbitriria" cm rclaçao a qualquer outra lîngua e cm relaçao ao real, agru-
pando, sob uma significaçao unica, uma variedade de coisas ou eventos que nas 
outras lînguas poderiam ser concebidos e denotados separadamente. Boas exp li ca: 
FIGURA 7 
(2) Nivel psicol6gico 
FIGURA 8 
(3) Nrvel cultural 
FIGURA 9 
(4) Boas: 
(5) Morgan: 
estfmulo 
meio ambiente 
praxis 
- , ~ ,7"' , _' 
operaçao mental -
tradiçao 
(V6/kergediinken) 
esquema conceitual 
(c6digo) 
resposta 
~nstituiçao 
praticas 
praxis _ prtiticas_ esquema conceit.ual (c6digo) 
, S 
). 
<, 
F 
76 Culfl/ra c razào pratica 
As Ii nguas difc rem nao apenas qua nta ao carater dos scus elcmentos fonéticos e 
grupos de sons COll stitutivos mas também quanta Olos grupos de idéias que e ncon~ 
tram expressao cm grupos fonéticos flXOS ... Dma vez que 0 âmbi to total de experiên-
ci as pcssoais às qua is a lîngua serve é infin itarncnte variado c sel! objc tivo, coma um 
Lodo, devc sec expresso através de um nûmero Iim itado de palavras-lroncos, de uma 
extensa classificaçao de experiências que devem necessariamente ernbasar todo 0 
discurso articulado. 
Issa coincide corn um traça fundamen tal do pensamento humano. Em nossa expe-
riência real, nem dois estados de sen tido-impressôes ou emocionais sao idênticos. 
N6s os classificamos, de acordo cam suas semelhanças, cm grupos mais au menas 
amplas, cujas limites padern ser determinadas por uma grande variedade de pontas 
de vista ... / 
Em vârias culturas, essas c1assificaçoes podem ser baseadas em prindpios funda~ 
mel1ta lmente distintos ... Par excrilplo: observou~se que as cores sao c1assificadas em 
grupos bem dist intos, de aeor'do cam suas semelhanças, sem qualquer di fercnça 
associada à capacidade de distinguir fo rmas de cor ... A importância do fato de que a 
palavra faz surgir um quadro diferente na fala e no pensarnento, de acordo corn a 
c1assificaçào do verde (com J a arnarelo ou do verde [camI a azul coma um grupo, 
difici lmente pode ser exagerada. [Boas, 1965 (1938), p.189~90; ver também Boas, 
1966, (1 911 ).)" 
Boas argumentoli mais tarde - em uma observaçao hoje cJass ica _ que, 
embora a linguagem e outras cos tumes sejam organizados por lima 16gica nao~re­
f1 etida) ha lima diferença entre el es no fato de que as class ificaçoes da primeira 
normalm ente nao atingem a consciência, ao passo que as categorias da cultura a 
atingem, estando tipicamente sujeitas a uma reinterpretaçao secundaria (1966a, 
p.63). A diferença desponta essencialmente no modo de reproduçao. Encaixadas 
em regras inconscientes, as categorias de linguagem sao automaticamente repro-
duzidas na fala. Mas a continuidade do costume é sem pre vulnera.vel à ruptura, 
quer somente pela comparaçao co'rn outras formas, quer na socia lizaçao do jovem. 
o costume, conseqüentemente, toma-se um obje to de contemplaçao, bem como 
uma fonte dela, e emprestamos uma expressao convencional que mal parece 
razoaveJ a uma razao convencional que permanece nào~expressa . A 16gica cultu ral 
reaparece entào sob uma forma mistificada - como ideologia. Nào mais como 
um princîpio d e classificaçào, mas como satisfaçao de uma demanda por jus tifica~ 
14 As cxplic:lçôcs de Boas dos gr:lus de generalizaçao c difcrendaçlio, cspccialm ell{c 110 vocabu/<irio, 
cram vaganwntc funcionalistas, apebn do para os "interesses" ou para as "ncccss idades" do POyo. Ele 
enfatizou, po rém, que as categorias de uma populaçào (dai os interessc5 e as necessidades) nao podem 
ser comprccndidas pela invocaçao de processos racionais, isto é, baseados no raciodnio conscien te, 
ou na lltilidadc pdt ica ( 1965[ 1938), p.204-25). Nessa mesma época, Boas recusou~st' a reconhecer a 
pnltica camo sen do, de fato, a unica base das categorias terlllinol6gicas, pois poderia facilmente 
acontecer 0 c~lI1tr:i rîo, isto é, 0 comportamento relletir a d assificaçâo. Foi a partir dessa posiçao que 
cIe encarou as teorias de Morgan de tenn inologia de parentesco (por exemplo, 1966a [ 1911), 1'.68-9). 
Dois pnrndigmns dn ' carÎn mr'ropo/6gicn 77 
tiva. Por conseguinte, nao aparece mais como algo arbitn.hio em relaçâo a uma 
realidade objetiv<i, Illas como algo motivado pela re~lidade cultur~J.. . _ 
As implicaçoes dessa compreensào para 0 proJc to ant ropologlCo alnda nao 
es tâo rcso lvidas. E em alguns aspectos, nao fora m ai nda percebidas. POl" um bdo, 
quanto do que considcramos como inst ituiçôes e crenças essenciais dev.e se r a~a ~ 
lisado como uma elimologia do povo? Por outro lado, nao parece sel" maIs pOSS IVel 
compart ilhar do otimismo de Boas quanto às catego rias antrop~I~~icas que, por 
alguma operaçào positivista continuada , oposta à formaçao das Ide.las e costu mes 
às quais das se referem , poderiam ser realmen te "derivadas de, COI1s!stentes com c, 
num certo sentido, internas aos pr6prios fenômenos" (S tocking, 1974, pA). Em 
todo caso, 0 comentario sobre a analise racional ista de Morgan implicado pela 
noçao de consciência secundaria Jlao seria difici l de ser desenvolvido. Se po r um 
lado "a origem dos costumes do homem primit ivo nao deve ser procurada e~l . 
. processÇ)s [.~cio nais", como cscre·veu Boas (196S [1938 j, p.2IS), por outro ~ ~n~ 
.. ' gem de certos proèessos rac ionais podia ser procurada no costpme. A razoablh.da~ 
de das instituiçoes, e acima de tudo sua utilidade, é a forma pela quaI nos exphca~ 
mos a n6s mesmos. A racionalidade é nossa racionalizaçao. Boas fornece a exem ~ 
plo do tabu do incesto, que ha algum tempo nos contentavamos em atribuir a 
razoes religiosas, mas que hoje é "um conceito uti li tario, sendo 0 med~ ~e filhos 
nào-saudaveis - devido ao casamento dentro do grupo de parentes proxlmos-
apresentado coma a razao para nossos sentimentos" (I 965. [1 938], p.20B). ~s. 
A questao é que, quando interpretamos 0 convenclonal. coma ~ utIl, el: 
também se transforma, para n6s, no "natural", no duplo senudo de merente a 
natureza e de normal à cultura. Por isso é que Morgan fez dessa contradiçao.uma 
teoria etnol6gica, 0 status do que poderia se r enUio descrito C?I1"lO .a ap_l"opnaçao 
das realidades significativas dOlS vidas de outros povos pelas raclonahzaçoes secun~ 
darias das nossas pr6prias. 
Variedades antropol6gicas da razâo prâtica 
Anunciado primeiramente na obra de Morgan e Boas, 0 desacordo basico ~obre a 
natureza do objeto antropol6gico continua a se fazer presente, m esmo hOJe, e de 
15 0 exemplo mais conhecido é a origem do cornpo rtarnen\ o que sc tem ii I.llcsa: "0 easo, ~.o 
comport :lInento que se tem à mesa ofereee também um barn exemplo d~ c~pbcaçao secundar.I,I. 
Coma nao é usual se levar a (aca il boca, surge da! a intuiçiio de que a (aca naD e usada dessa manClfa 
porque, cmprega.ndo-a, co rrer-se-ia a risco de carlar os 1 5bi~s. A tardia i.nvcnçào do garfo e a fato de 
facas sem co rte serem usadas em muitos pafses, e de que eXIste Ulll penga semelhante d~ se furar a 
lfnglla ou os l:ibios cam os garfos de aço pon li agudos comUlllcnte usados I~a Europa, delxam claro 
que eSS<l explicaçao é apenas uma tentativa radonali sta secunddria para expllc;\ r umcostume que, de 
outm modo, permaneceria inexpl ic;ivel" (Boas, 1965 [1938]. p.65 ). 
'Jill ~ .>: 
'" ~ 
• 
, 
1 
78 ClIltura e razao prririca 
todos os modos - através de outras controvérsias te6ricas. Isto nao significa 
subestimar 0 alcance de antinomias famosas tais como "hist6ria/ciência': "cultu-
ra/sociedade': "diacronia/sincronia': Mas se essas oposiçôes foram bem-sucedidas 
30 gerarem 0 desdobramento de UI11 momento te6rico para 0 seguin te, isso se 
deveu apenas à reproduçào, em cada estagio, das contradiçôes nâo-solucionadas 
na base. No final, as perspectivas posteriores que aparecem demarcando rupturas 
te6ricas encontram-se, internamente, em pendência ao longo das mes mas linhas 
que separam a visao de Morgan da de Boas. Desta forma é que se distingue U111 
funcionalismo do outro, como também um historicismo do outro, assim como a 
metade de funcionalistas ou evolucionistas encontra um improvavel aliado na 
tribo do outro. Parece muito para'doxal agrupar certas ênfases te6ricas de Lévi-
Strauss e Leslie VVhite? (ver mais adiante, p.106-7). 0 acordo em termos de prin-
cipios entre 0 arquievolucionista Morgan e 0 arqu ifuncionalista Malinowski é 
muito mais completo. 
Malinowski e 0 "neofuncionalismo" 
De uma forma ainda mais explicita que Morgan, Malinowski considerou a cultura 
coma a realizaçao instrumental de necessidades biol6gicas, construîda a partir da 
açao pnitica e do in ter;esse, como se orientada por uma espécie de super-raciona-
lidade - à quaI a Iinguagem fornece apenas a vantagem de um suporte te6rico (cf. 
Leach, 1957). Devemos ter como base, escreveu Malinowski, dois axiomas: "Ern 
primeiro lugar, e principal mente, toda cultura deve satisfazer ao sistema biol6gico 
de necessidades, corno as ditadas pelo metabolismo, reproduçao, as condiçôes 
fisiol6gicas da temperatura." E em segundo lugar, "toda realizaçao cultural que 
implica 0 uso de artefatos e do simbolismo é um realce instrumental da anatomia 
humana, e refere-se, direta ou indiretamente, à satisfaçao de uma necessidade 
fisiea" (Malinowski, 1960 [1944), p.l?!). Utilizando uma frase do soei6logo ffan-
cês Baudrillard, é como se a cultura fosse uma metafora sustentada sobre as 
funçôes biol6gicas da digestao. Em tiltima ana lise, a cultura é referenciâvel à 
utilidade prâtico-orgânica. Simples ou complexa, é "um vasto aparato, parciaI-
1 mente mate rial, parcialmente humano, e parcialmente espiritual, através do quai ~ 0 homern é capaz de competir corn 0 concreto em problemas especificos corn os 
quais se defronta" (Malinowski, 1960 [1944). p.36). 
Apresentar a concordância, ponto pOl' ponto, do texto de Morgan corn 0 de 
Malinowski seria cair no lugar-comum. Por ser mais explicito, Malinowski torna~ 
se mais interessante para certas implicaç6es te6ricas do argumento das praxis que 
sâo apenas sugeridas em Morgan, embora elas estejam, na realidade, contidas ali e 
em muitas versôes posteriores, até na mais recente ecologia "neofuncionalista". 
Abordarei diversas dessas implicaç6es, que podem sel' resumidamente intituladas 
,"<; -' 
--- --.- ---_._-- -- - ,. 
Dois paradigmas da tcoria flmropolOgica 79 
de "0 hllh ris etnogrJ.fico", "rendimentos decrescentes na explicaçao funcionalista", 1 
"tel [Q I ", "fetlChismo da eco}ogla': "dualismo utihtario" e "desapareClmento da j 
cul tU! a" A p lll11e lra tem a ver corn a relaçâo partlCular su}elt%b}eto envolvida na 
ênfase pl agmâtIca, que contrasta Iadicalmente corn 0 relatIvismo ~oaslano. ~"c-"'-"'----""'1 ,.._ .... 
o scntldo dominante do projeto de MahnowskI cra reduzlr. de todas as . ~, ~ ES ';-l 
mancil as, costumes aparentemente bizarros, do Inttcluuma austrahano ao tote- ~ ~ ~ ~ f ..;, 
mlsmo de Trobnand, a valores pratlcos (Jela-se bioI6gicos).l? eVl,dente que Mah- ~ ~ 5S:-? : 
nO\vskt fOI 01 ientado poruma sllnpatia pecuh:r para corn oS,,~bon~lI1es (~f. Jarvle, 1 ~ 5-~ ;J '" 
1969, P 2-3) Ele gostana de mostrar que a razao subJ3cente as mascaras aparen- ! ~' __ .. _ , 
temente sem senti do do que en tao chamavamos de "selvagens" (Richards, 1957, 1 r ~ 'V' '' .c... 'l 
p.IS) era algo que qualquer europeu poderia entender: a vantagem materia1. Isso s~ ~ ~ ,1 :t 3 
significava, de fato, uma inversao do relat!vi~mo b~asian~, se informada y.ela ~ g ~ ~ 
mesma indulgência. Sob certo aspecto, 0 IntlchlUma e lucratIvo; logo, 0 abongme ff S ~ , 
australiano é nosso irmao: 
Desde 0 começo ... um interesse na utilidade das mascaras aparentemente sem senti-
do do que entao chamavamos "selva gens" foi 0 ponto principal na sua obra [de 
Malinowski]. Seu primeiro artigo foi publicado com a intençâo de demonstrar que as 
cerimônias Intichiuma dos aborîgines australianos, corn suas danças selvagens, scus_., 
corpos pintados e seus escudos simbolicamente esculpidos, desempenham efetiva-
mente uma funçao na sua vida econômica ... Ap6s a sua viagem de estudo às ilhas 
Trobriand, publicou seu primeiro artigo importante sobre a vida econômica dos 
habitantes das ilhas, no quaI manifestava a mesma determinaçao de provar que 
aquilo que aos europeus pareciam trocas de bens cerimoniais sem utilidade desempe-
nhava, na realidade, um importante papel na sua organizaçao econômica [Richards, 
1967,p.18)16 
Ha nisso uma dimensâo mais ampla do que a implicaçao 6bvia d~_que, se a 
interpretaçao for aceitavel ao europeu, ela diz mais 'sobre de do que sobre os 
"selva gens" - mais geralrnente de que a "ética" do antrop610go é a "êmica" da sua 
pr6pria sociedade. Aigo deve ser dito sobre a relaçao sujeito/objeto, subentendida 
pela compulsao em atribuir um "sentido" pratico a um costume ex6tico que é tao 
intricado quanto nao é de cara uma questao de necessidade pratica. Ela eleva 0 
antrop610go à divindade de um sujeito constituinte, de quem emana 0 projeto da 
16 Como 0 projeto de Malinowski é popularmcnte descrito: do blzarro ao bazar 0 artlgo d: Leac~ 
(1957) sobre Malinowski faz uma excelcnte ami!ise clesse processo de "fazer sentido", Malmow~kl 
cscreveu: "Na realidade, seremos capazes de provar que aigu mas realidades que nos parecem mUlto 
estranh:ls il primeira vista (canibalismo, cOtlvade, mumificaçao etc.) estâo essencial~ente ligadas ~ 
elemcntos culturais muito univcrsais c fundamcntalmentc humanos, e esse reconhecllllento acabara 
admitindo a explicaçao, ou scja, a dcscriçao, cm termos familiares, de costumes cx6ticos" (1960 
[1933 J, pA). 
!k l ~ 
• ,".:1 
r 
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1 
{ 
80 Clllll/ra c razao prtltic(/ 
clil l ur~l. Em vez de submeler-se à compreensào de uma estrutura corn uma exis-
tênda indcpendente e autênti ca, cie co mpn.-'ènde a est rutura pela sua compreen-
stlO do objelivo dela, fazendo assim cam que sua existëncia 1 da estrutura J dependa 
delco 
l'ara Mal inowski cra um ponta import~l1te do método etnografico "pcrecber 
() ponta de vista do nativo, sua relaçào com a vida, para compreender a sua visâo 
do sel! Illundo" (1950 [1922 J p.25 ). Este cra Uffi principio fundamental do seu 
"cmpirismo radical", como chama Leach. Ha, porérn. uma contradiçao clara entre 
esse empir ismo e a compulsao para disso lve r costumes estranhos cm noçôes 
ul ilit;i ri3s. 0 "empir ismo" en tao deve cOll sisl ir na aplicaçao radical de uma teoria 
- :1 dos in teresses praticos e do calculo pessoal - que sustenta que as rnaneiras 
ap:1n.'ntl'mente peculiares pelas quais as pessoas estào agindo nao merecem em 
nada, nos seus proprios termos, a nossa alençao. Cer ta vez, Kroeber lançou a 
,sl'guinte pergunta, pensando obviamen te em Malinowski: "Por que um Yurok nao 
(O ill e l' Ill sua canoa enquanto navega no occano?" A questôes como esta "nao ha 
Ilenhuma rcsposta 6bvia coma a que se da a perguntas do ti po: por que uma flecha 
é eillplumada ou quai é 0 uso dade a uma rede de pescar" (Kroeber, 1948, p. 307). 
j\ l:tl inowski - fcita esta critica - se recusa a rcconhecer qualquer capacidade no 
sis tl'Illa cultural, quantomen os tenlar compreender sua 16gica inerente. Areas 
intcÎras da cultura escapam, portanto, a uma explicaçao funcionalista, uma vez 
qut.' IÜO fonnam nenhum, sentido pnHico aparcntc. Leach coloca a feitiçar ia corno 
\l1ll c:ü'mplo do que acaba de ser d ito: "De acordo cam a dogma de Malinowski, 
pelo quai essa racionalidade é natura l à espécie humana, as crenças em feitiçaria 
1) - Il;10 sendo nem sensiveis nem racionais - nunca foram efet ivamente incorpo-
~ radas ao esquema fun cionalista" (Leach, 1957, p.128-9; cf. Nadel , 1957). 
t-tlYia muitos outros domînios da vida dus îlhas Trobriand - parentesco, 
nu~i.l, polîtica - dos quais Malinowski deixou-nos uma avaliaçao incompleta e 
Il :1o-sist€'matizada, devido a algul1s desses mesmos escrupulos t'c6ricos. Ele co nsi-
Jt'r~lY.l (1$ textos e declaraçôes de pessoas como simples formulaçôes do ideal, cm 
lOlll !,.uaç:1o com os motivos reais pragmaticos que governavam as relaçôes dos 
hOI11I.'I1~ com tais regras e entre si (cf. Malinowski, 196611926]). Em tudo isso, 
\\alillo"'ski inverteu nao apenas as prem issas de uma antropologia boasiana, 
':O tl1('\ t;lI11bém 0 relac ionamento original do antrop6logo com a populaçao. Ë 
hem wrJade que Boas termina ria tendo uma compreensao do parentesco Kwa-
kiutl i:!ll~ll à que Malinowski teve do sistema Trobriand. De fato, Boas fo i muito 
I1Ul:' illù)t'fente, a partir de um respei to decente pela ininteligibi lidade do indio. 
BO.l:' .l.:h.1Y;l que os fatos "falariam pOl' eles mesmos': Hojc cm dia, esta aftrlnaçao 
/ t' (('IIl~ i ~i.('fada como a signo de um empirismo ingênuo, Mas, cm pri meiro lugar, 0 
~ qu I:'" ~ ;:' !'rocurava cra uma submissao à cuhura em si mes ma, um compromisso em 
1 t'n.:('tHr.H ordem nos fatos, e nao em colocar os fa tos em ordem (cf. Smith, 1959). 
;\. i n ~;.'n uid;lde cmpirista de Boas consist ia na ilusao d e que a pr6p ria ordem se 
--------~--- '-"'1f-
' ~, cc 
Dois paradigmas da teoria ant ropoMgica 8 1 
revelar ia exatamente tal como apresentada, através dos textos de mil receitas de 
salmâo, sem se beneficiar de nenhum entendimento da sua parte,17 Tratava-sc 
aqui de uma relaçâo total mente di fe rente corn 0 objeto. 0 antropôlogo foi reduzÎ-
do ao status de um aparelho de gravaçao; nem mesmo sua propria in teligência 
podia entraI' em cena, Para Malinowski, parém, a "selvagem" era negatividade 
pura. Ele nào existia; Malinowski 0 criaria: "Ouço a pa!avra 'Kiriwina' ... estou 
pronto; pequenas cabanas cinzas, r6seas: sou eu quem as descrevera ou criara" 
(Malinowski,I967, p.140). 
o funcionalismo utilitario é uma ceguei ra funcional para 0 conteudo e para 
as relaçôes internas do objeto cul tural. 0 conteudo é ap reciado apenas por seu 
efeito instrumental, sen do sua consistência interna, por conseguinte, mistificada 
como sua utilidade externa. A explicaçao funcionalista é uma espécie de barganha 
feita com a realidade etnografica, na quaI 0 conteudo é trocado por uma "com-
preensao" de le. Uma teoria, porém, deve ser julgada tallto pela ignorância que 
exige, quanto pelo "conhecimento" que oferece. Ha uma enorme disparidade 
entre a riqueza e a complexidade de fenômenos culturais como 0 Intichiurna e as 
noçôes simples do antrop610go quanto às suas virtudes econômicas. Sornente a 
fraçao mais infinitesimal dessa rica realidade, e nada do seu conteudo especifico, é 
avaliada por sua funçaO.18 Quando Malinowski demonstrou que "as cerimôn ias 
Intichiuma dos aborfgines australianos, corn suas danças selvagens, se us corpas 
'p intados e seus escudos simbolicamente esculpidos, 'desempenhavarn uma fun çao 
na sua vida econômica" - ou seja, que estimulavam a produçao através da ante-
cipaçao representada pelos ritos (Malinowski, 1912) - 0 que de fato aprendemos 
sobre essas danças selva gens, esses corpos pintados e as mil outras propriedades 
do Intichiuma? 
Esse empobrecimento conceitual é 0 modo funciona lista da produçao te6ri-
ca. Ele se apresenta exacerbado quando a funçao é buscada ao nivel biol6gico, 0 
que é quase sempre verdadeiro, nao s6 em Malinowski, como também em vers6es 
mais recenles da antropologia (cf, Vayda, 1965, p. 196; Vayda e Rappaport, 1967). 
Quanto mais 0 fato cultural se afasla da esfera da utilidade à quai esta referenciado 
- a orgânica, a econômica, a social -, menos intensas e mais mediatizadas 
devem ser as relaçôes en tre esse fato e os fen ômenos dessa esfera; conseqüente-
17 Radin apresenta resumidamente 0 pri ndpio de Bo as de que "ninguém tem a dircilo de alterar a 
fo rma cxala na quai suas in formaçôes foram recebidas", embora, na mesma obra, critique em profun-
didade a tentaçâo do mestre de retalhar a cultura em pedaços, adotando um tratamento difusion ista, 
entre outras imperfeiçôes do método historicista (1966 (l933J). Para uma excelente discussao da 
atitude de circunspecç:l.o de Boas para corn 0 fen6meno em si mesmo, ver seu artigo "0 estudo da 
geografia" (in Boas, 1966b [ 1940 J), 
18 Neste ponto, devo muito a Firthjof Bergm3nn e Raymond C. Kelly, quanto a uma primeira 
formulaçâo da "lei dos rcndimcntos decresccntcs para a explicaçao funcionalista" que deriva .dela. 
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82 Cu/tllra c mzao prarica 
mente, menas intensas e menas especificas serac as coerçôes sobre a natureza do 
costume cm consideraçao; menas determ inada sera a explicaçâo através de vir tu-
des func ionais, ou, inversamente, maior sera a variaçao de prâticas culturais alter-
nativas que poderiam servir igualmente (até melhor) ao mesmo prop6sito. Deve 
haver muitas maneiras de estimular a produçâo além de encenar uma cerimôn ia 
Intichiuma. Na realidade, a explicaçaa sai frustrada no seu objetivo de tomar 0 
costume inteligîvel; esta é uma forma bizarra de se ocupar dos seus pr6prios 
assuntos. Para nos provar a indeterminaçao de qualquer dessas explicaçôes. basta 
inverter a questao: é vantajoso aumentar a produçao - e, conseqüentemente, é 
vantajoso 0 Intichiuma? 0 entendimento funcionalista de Malinowski teria sido 
mais convincente se, à la Radcli ffe Br6wn, ele examinasse a cerimônia ao nivel do 
fato social. As relaçôes dominantes entre os cHis to têmicos, homens e mulheres, 
iniciados ou nao~ inic iados, ter~ain de percor rer um longe caminho até tornar 
inteligiveis as danças selvagens e os escudos esculpidos. Quanto mais se recorre às 
vantagens econômicas, menos é dito. E menos ainda teria sido obtido se Mali-
nowski tivesse levado adiante seu projeto, até 0 nivel biol6gico. Ai ent~o, 0 conteu-
do cultural, cuja especificidade consiste no seu significado, ficaria completamente 
perd ido em um d iscurso de «necessidades"vazio de significaçao. 
Tentou ~ se formular u ma regra geral dos rendimentos decrescentcs para a 
explicaçao funcionalista: quanto mais distante e d istinta a prâtica cultural do 
observador da sua pretensa funçâo, menos essa funçao especificara 0 fe nômeno. A 
regra deve ser concebida com o uma expressao instrumental da "autonomia relati-
va" de d iferentes dominios culturais (cerimônia/economia), e particularmente da 
irredutibilidade do cultural aos nfveis constitutivos da integraçâo feno menal (su-
perorgânic% rgânico). Nesse ultimo aspecto, a fo nte geral de inadequaçâo nas 
explicaçôes pela f~.mçâo natural esta relac ionada, precisamente,à atividade valora~ 
tiva da simbolizaçao: mais uma vez, a natureza arbitraria do signo, que envolve 0 
objetivo apenas selctivamente, submete 0 natural a uma 16gica espedfica da cul tu-
ra. Lucien Sebag demonstra-o bem: 
por definiçao, toda refraçao de uma realidade através de uma linguagem implica uma 
perda de informaçao, podendo 0 que é abandonado, por sua vez, tornar-se 0 objeto de 
um tratamento da mesma ordem. A atividade lingüistica aparece portanto como um 
esforço permanente para submeter a um conjunto de formas um dado que sempre 
ultrapassa os seus limites. Mas nao é esta uma caractcdsticaapenas da linguagem; é a 
cultura como um todo que se deixa de fini r da mesma rnaneira. A relaçao do dado 
natural coloca isso em pie na luz: quer se trate da sexualidade, dos rirmos do dcsenvol-
viOlenta do corpo, da gama das sensaçôcs ou' dos afetos, cada sociedade aparece coma 
submetendo a um principio de organizaçao que nunca é a ûnico concebivel uma 
realidade que se presta a urna multiplicidade de transformaçôes. A partir desse fato, 
compreende-se por que a explicaçao naturalista é sempre insuficicI11e, pois a essência 
da necessidade, descoberta aquém das diversas modulaç5es culturais, nao nos pode 
1· 
Dois pamdigmlls da tcoria antropol6gica 83 
dar senao 0 esboço da pr6pria forma da cultura, nunca do seu conteûdo; ora, é este 
illtimo que deve ser compreendido. [Sebag, 1964, p.166-7. ] f Em francês no origina1.] 
É 0 conteudo que deve ser compreendido. Esse é 0 nosso objetivo. No entan-
to, a pratica funcionalîsta, C0l110 ja vîmos, consiste em considerar as propriedades 
culturais simples mente camo a aparência. 0 concreto-real cultural torna-se um 
abs tralo-aparente, apenas uma forma de comportamento assumida pelas forças 
mais fundamentais da economia ou da biologia. Sartre fala, num contexto analo-
go, de um "banho de acido sulfurico". Além d isso, como as forças supostamente 
essenciais sac na verdade abstratas - sobrevivência humaI/a, necessidades numa-
tlas, etc. -, a abstraçao do simb6lico atinente ao objeto foi complementada pela 
simbolizaçao de uma abstraçao pertencente ao antrop610go. 0 ataque de Sartre 
tinha camo alvo um certo marxismo, que se contenta em negligenciar a 16gica 
autêntica de um "fato superestrutural", lai coma uma obra de arte ou um ato 
poHtico, e as determinaçôes especificas do seu autor, em favor das determinaçôes 
gerais de classe e produçâo. A partir dessa visâo, a poesia de uro Valéry é repudiada 
coma um exemplo de "idealismo burguês': A crîtica de Sartre parece apropriada, 
ponto par ponto, à pratica funcionalista clâssica: 
u formalismomarxista é um projeto de eliminaçao. 0 método é idèn tico ao terror na 
sua recusa inflexîvel do dlferetrte; sua meta é a assim ilaçao total corn um minimo 
. possivel de esforço. 0 objetivo .nao é integrar aquilo que é diferente enquanto tal, 
preservando para de uma relat iva autonomia, mas sim suprimi-Io ... Delerminaçôes 
espedficas despertam na teoria as mcsmas suspeilas que as pessoas despertam na 
realidade. Para a maioria dos marxistas, pensar é exigir totalidade e, com esse prelex~ 
to, substituir a particularidade pele univcrsal. l! nccessario levar-nos de volta ao 
concreto [0 material] e conseqüentemente apresenlar-nos com determinaçôes fun-
damentais mas abstratas ... 0 marxista pensaria estar perdendo 0 seu tempo se, por 
exemplo, tentasse compreender a originalidade de um pensamento burguès. Aos seus 
01h05, a ûnica coisa que importa é mostrar que 0 pellsamento é um modo de idealis-
mo ... O marxista, por conseguinte, é levado a tomar por aparência 0 contcûdo real de 
um comportamento ou de um pensamento e, quando dissolve 0 particular no Uni-
versai, tem a satisfaçao de acrcditar que esta reduzindo a aparência à verdade. (Sartre, 
1963,p.48-9.]. 
Da mesrna forma, Malinowski disso lveu repelidas vezes a ordem simb6lica 
na verdade âcida da razao instrumental. Qualquer que fosse 0 dominio cultural 
em questào, seu exame s6 podia começar livrando-se da consistência simb6lica. 
Parentesco ou tOlem isl11o, mito ou magia, crença nos espiritos ou d isposiçao do 
morto, e até mesmo a anâlise da pr6pria linguagem - em relaçao a tudo 0 
primeiro passo de Malinowski era negar qualquer 16gica interna, qualquer est ru-
tura significativa, ao fenômeno coma tal (ver, par exemplo, a anilise que permeia 
todo a seu Magic Science and Religion (1954]). Dai decorria que a i ntel~cçao 
, -
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! 
84 CIIltllra c razào pratica 
jihum;:ma, a "especulaçâo': como }.[alinowski a considerava, nuo poderia ter qual -
ïquer papel constitutivo. 0 costume se origina na prâtica, na vida - nao no jogo 
Ido pensamento, mas no da emoçâo e do desejo, no do instinto e da necessidade: 
Nessa perspect iva, dific ilmente urn "selvagem" teria uro Interesse na natureza que 
nac fosse ditado pela fome, nem articularia qualquer concepçâo além da raciona-
Iizaçâo clesse desejo. Dai a famosa afirmaçâo de Malinowski sobre a mentalidade 
manifesta nas classificaçoes totêm icas: "a caminho que vai da selva para 0 estô-
mago do selvagem, e conseqüentemente para a sua cabeça, é muito curto, e para 
ele 0 munda é um indiscr iminado pano de fund o contra 0 quai se d estacam as 
espécies uteis de plan tas e animais e dentre elas sobretudo as comestive is" (1954. 
p.44) . Do mesmo modo) "ha pouco ,.espaço para 0 simbolismo nas suas idéias c 
contos" (ibid .• p.97). Quanto ao mito, nao é "uma raps6dia inutil ... mas uma força 
cu ltural ativa, extremamente importante" (ibid., p.97) : 
o mito estudado vivo ... nao é simb6lico, mas urna cxpressao direta do obje to cm 
questao; nao é uma explicaçao para a satisfaçao de um interesse cientîfico, mas urna 
ressurreiçao narrativa de urna realidade primeva, narrada para a satisfaçao de pro· 
fundos desejos rcligiosos, anseios marais, submissôes sociais, e até mesmo necessida· 
des praticas [ibid .• p.l 0 J ... Pademos, certamente, descartar·nos de todas as interpre· 
taçôes expl icativas e simb6licas dess~s mitas de origcm. Os pcrsonagcns e seres sao 0 
que parcccm ser na superficie, e n30 sirnbolos de realidades ocultas. No que toca à 
funçao explicativa desses mitas, nâo ha qualquer probJema de que eles dêcm conta, 
qualquer curiosidade 'que eles satisfaçam, qualquer teoria que eJes encerrem." [ibid. , 
p. 1261 . 
Esta também foi a famosa abordagem de Malinowski à linguagem. Pa ce, Boas. 
a linguagem n ao contém teoria aigu ma: ela nada contém. n ada além de urn gesto 
verba l. d e " 'apreensao' das c01sas", cujo significado consiste nos efeitos induzidos 
sobre os ouvintes. ''As palavras sao parte da açao e sao equivalentes às açôes" 
(Malinowski, 1965 [19351 2:9). E eomo as palavras sao aç'a, 0 signifieado é a 
reaçao evocadaj as primeiras SaD 0 estimulo, 0 segundo é a resposta; Uluas sao 0 
instrumen ta, 0 outra é 0 seu pr6prio produto: 
o significado de urna ûnica expressao vocal. que nesses casos é rcduzida quase semprc 
a urna palavra, pode ser definido como a llludança produzida pela som no campor· 
tamento das pessoas. ta manci ra pela quai um som, proferido ap ropriadamentc. ê 
correlacionado corn elementos espaciais c temporais e com movimentos do corpo 
humano que canstitui 0 seu significado; e isso se dcve <1 respostas culturais produzi· 
das por treinamenlo, "condicionamento" ou educaçao. Uma palavra é um esllmulo 
condicionante da açao humana e torna·sc. por assim dizer, ullla "aprecnsao" das 
cOLsas externas 30 alcance de qucm fala, mas dentro de quem ouve [ibid., 1'.59. J 19 
19 Malinowski dcscnvolveu essa visao instrumentaI·pragmalica da linguagem cm uma séri e de t'seri· 
Dois paradigllul5 da teor;a IlI!tropolOg;cn 85 
Fica evidente também que 0 significado é limitado à expcr iência pela associa· 
çao. isto é, a urna referência original e indicado ra que cont inua senda 0 conccito 
bâsico da exp ressao vocal através das suas reproduçôes s~bs('qüentes . Pa ra Mali· 
nowski, a linguagem. em vez de cJassificar il exper iència, é ela pr6pria dividida pela 
exper iência. VIlla palavra se diferencia de outra da mesma fo rma que a contexto 
do mundo real na q uai a p ri rneira ocorre é perceptivelmen te dis tingulvel d o 
contexto do segundo. "A li nguagem espelha, na sua estru lura, as catcgorias rea is 
d erivadas de atitudes praticas da criança e do homem natural ou prim itivo para 
com a mundo eircundant." (Malinowski, 1949 [1923], 1'.327-8). Esse tipo de 
recusa fundamenta l do simb6lico. da pa lavra como categoria. levou Mali nowski a 
aIgu mas escolhas

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