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Capítulo I - Dramática da Língua Portuguesa

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[ 
r 
! 
Marco; Bogno é Doutor em linguo Portugueso pela Universidade de 
Sào Poulo, poeta, tradutor e cantisto premiada. Tem diversos livras dedicodos 
ao publico infantil e juvenil, alguns dos quais considerados "Altomente 
Recomendéveis" pela Fundaçào Nacionol da livra lnfontil e Juvenil. 
Obras do Autor: 
A invençào dos haras {con/os}, Ed. Scipione, 1988 
(IV Prêmio Bienal Nesllé de Literatura Brasileira) 
0 pape/ roxo do maçô (inlantil), Ed. l.ê, 1989 
(Prêmio "Jaào de Barro" de literatura lnfontil) 
Um céu azul para Clementina (infantill, Ed. Lê, lct91 
Frevo, amor & graviola (juvenil), Ed. Atual, 1991 
Amor, amora (juvenil), Ed. Bagaço, 1992 
Os nomes do amor (juvenil) (co-autaria corn Stela Maris Rezende), 
Ediloro Maderna, 1993 
A vingariça da cobra (juvenil), Ed. Âlica, 1995 
Dio de branco ljuvenil), Ed. Lê, 1995 
Miguel, o cravo & a rosa (infontil), Ed. Lê, 1995 
Rua da Soledade (contas), Ed. Lê, 1995 (Prêinio Estado do Parané 1989) 
A barca de Zoé (infantil), Ed. Formata, 1995 
Mirabilia (contas), Editora Didética Pauliste, 1996 
Uma v,ï6ria diferente (juvenil), Ed. Lê, 1997 
Unhas de ferro (juvenil), Ed. Lê, 1997 
A Ungua de Eulalia (novela sociolingüislica), Ed. Contexto, 1997 
Pesquisa na escola - o que é, coma se faz, Ed. Loyola, 1998 
Machado de Assis para principianles, Ed. Atico, 1998 
Preconceilo lingüfstico - o que é, coma se foz, Ed. Loyola, 1999 
Minimirim e a plane/a que encolheu (infantil), Ed. Îcone, 2000 
0 Processo de lndependência do Brasil, Ed. Âlica, 2000 
MARCOS BAGNO 
DramitiEa Ela 
If ntua pertuguesa 
Tradiçao Gramatical, Mzdia & Exclusao Social 
/17 �Aft 
,LÊ CÔP!Ai f. V 
N" CÔPIA�:...f t i/4 t�. 1.e, /< r-"'�· PASTA. · ')._ f 1 
_ J.,,- { lRt'//t1-- � vts� 
�-
� J/0-µ
Edlf6es Loyola 
f-
--�,\ 
Dram6fica da lingue porluguesa 
A Sociolingüfstica me foi apresentada, corn amor quase apost6lico, 
por STELLA MARIS BoRTONI•RICARDO, quando, iniciando meus estudos 
universitarios, ela fez eu descobrir que ja existia uma ciência dedicada ao 
estudo das relaçôes entre ifngua e sociedade e que eu, felizmente, nao pre­
cisava inventar. Mais recentemente, a retomada do intercâmbio de idéias, 
em que tive muito mais a receber do que a dar, me revelou uma cientista 
sempre inquieta, em constante progresso intelectual e, sobretudo, disposta 
a partilhar dadivosamente suas descobertas. 
A MANOEL LUIZ GONÇALVES CORRÊA agradeço sugestôes de leitura, 
observaçôes te6ricas, crfticas hem fundadas, advertências indispensaveis e 
tudo quanfo mais se abriga sob o teto generoso da amizade. 
Quero deixar registrada minha profunda gratidâo a JosÉ Lmz FIORIN, 
MARILZA DE ÜLIVEIRA, MILTON DO NASCIMENTO e a ÂNGELA CECÏLIA DE 
SouzA RODRIGUES pelas instigantes observaçôes que me levaram a recon­
siderar muito do que havia escrito nas versôes preliminares deste trabalho. 
Agradeço a DINO PRETI, do Projeto NuRc de Sâo Paulo, e a MARIA DA
PIEDADE MoREIRA DE SA (outro amor definitivo), do Projeto NuRc do 
Recife, o acesso ao material que entrou na formaçao do corpus analisado 
neste trabalho. 
Foi fondamental a ajuda oferecida por IRANDÉ ANTUNES, ÉsIO MAcEDO 
RIBEIRO, LOURENÇO CHACON e MARCOS MARCIONILO na obtençao de arti­
gos, teses e livros importantes para o empreendimento da pesquisa. 
14 
Marcos Bagno 
www.marcosbagno.com.br 
l�
+
l-.jj
Gram6tica Tradicional 
e senso comum 
1.1 GRAMÂTICA TRADICIONAL, GRAMÂTICA NORMATIVA 
E PRECONCEITO LINGÜiSTICO 
0 preconceito lingüfstico, acredito, manifesta ( em suas diversas formas, 
nas distintas faces que assume) a ideologia cristalizada ha séculos na Grama­
tica Tradicional (GT) e materializada, por assim dizer, no gênero literario 
conhecido como gramatica normativa ( GN). Fa a distinçao entre Gramatica
7:radicional e gr11mfiti@nQ1EU1tj�Q.QQ.lJ!n!!..IJl�t�{oJ,â silllpJes_�ll� �.i.�i­
nal:_i]. GT é a "ahni' de l\m "coœo" chamado_gra�tic_anonng�.t��
:,,.
AQT é 
9.. "esp_f_r,�i9��d!)]:!�ptalidade", a "doutrina" ( a i<Jeologig)__gg� da ale�.91,.;'.��.?r 
e ex-sistentia ao "ser", ao "objeto", à "coisa rnaterial''...9.ue _p2den1o�uiri_r, 
manusear e submeter aos nossos sentidos, charnada gramatica nonnativa. A 
hist6ria da filosofia nos da uma série de termos para marca; �ssa diferença. 
A GT, por exemplo, estaria no mundo numênico, no "piano das idéias" de 
Pla tao, mundus intelligibilis, metaffsico, enquanto as GN estariam no mundo 
fenomênico, mundus sensibilis, ffsico. Corn Descartes falarfamos de "espfrito" 
(GT) e "matéria" (GN). Por isso as grarnaticas norm�!;:as podem_diferir,. e. 
diferem, umas das outras, apresentando mudanças ao longo do tempo, quan-
dq_ ��_!!_Parada�-�:�!��=dc:l __ �ên_�� Jiteraif9-1.Ù.�I!!Pé.IA.Y.�!!qÇÔeS. id��m-
15 
marci
Realce
f \· 
\:"', 
L_ 
Dram61ica da lingue porluguesa 
craticas, quando comparadas entre si como obras individuais. No entanto, 
·o-"ëspfrit�;;·q�� as move, a Gi, é o mesmo. A GT, por consubstanciar uma
idealogia1 , nao tem autor, ao contrario das gramaticas narmativas, às quais
podemos nos referir como "a gramatica de Celso Cunha", "a gramatica de
Rocha Lima", "a grarnatica de Cegalla" etc.
0 carater ideologico da GT se revela na ana.lise que dela fazern autores 
nao ;ecessariarnente preocupâèlos corn essa identificaçao: 
[ ... ] nao podemes esquecer que "ancilla Theologiae", como a designa Isidoro de 
Sevilha, a gramatica (latina) estivera, na Idade Média, associada a intençôes 
e praticas teol6gicas e canônico-liturgicas e fora utilizada cemo instrumenta 
cientrfico e suporte do discurso pol(rico e administrati110 [Buescu, 1998: 17] (grifo 
meu). 
Minha ana.lise visa demonstrar que essa instrurnentalizaçao da GT como 
suporte do "discurso polftico e administrativo" nao se interrompeu corn o 
(irn da ldade Média, pe1:r11-anecendo viva e fo_rJej1té. os .. dias de hoje�·ao 
ipen?ù:�9-que_�îir�§peito à.;Ôçi�d�d.;,-�;-��iÏe_i_ra. 
--- ------·. -
Antes de prosseguir, quero insistir na distinçao entre o que é a GT e 
�--·- �.......,._ 
0 que sao os_µsas que se faz dela, para que rninha argumentaçao nao côrra 
o·riscô d� parecer uma tentativa de dernoliçao radical da GT. A Gramatica
Tradicional, nao cabem duvidas, é urn patrimônio cultural do Ocidente, 
um monumento inestimavel de saberes acumulados ao longo de mais de 
dois milênios, um repositorio das reflexoes, investigaçêies e especulaçêies 
filosoficas acerca da linguagem feitas por alguns dos mais brilhantes pen­
sadores da historia da humanidade. Corno bem enfatiza Mattos e Silva 
(1994: 14), 
independente da origem elitista dessa tradiçao de pensamento sobre a linguagem 
humana que veio a favorecer corn este instrumente, entre outres, um segmenta 
social em detrimento da maioria, o processo cumulativo que se desenvolveu 
durante vinte e três séculos e que se perpetua até nossos dias é do maior interesse 
para a historia cultural do homem e para a percepçao de como se foi construindo 
um campo do saber, o da reflexao sobre a linguagem humana, o da Lingüfstica, 
portanto. 0 embate polftice-ideol6gico que se inicia na Grécia classica abriu, 
sem duvida, um espaça para o infcio da criaçao de um discurso cientffico nao s6 
sobre a linguagem, mas também sobre o homem e o mundo. 
1. Emprego aqui o termo ideologia corn o sentido de visào de mundo ou conjunto de idéias
dominantes numa sociedade, imposto pelas classes sociais que detêm o poder pol(tico e econô· 
mico. Nao deixo de reconhecer, porém, a existência de outros conjuntos de idéias, de outras 
ideologias, associadas às outras classes sociais. 
16 
Gromàlica Tradicionol e senso comum 
De fato, também na percepçao de Lyons (1968: 18), existe uma con-' 
tinuidade na historia da reflexâo sobre a linguagem no Ocidente, que co­
meça corn os gregos antigos, passa pelos escolasticos medievais e prossegue 
hoje corn os lingüistas e filosofos da linguagem: 
Q,; verdadeiros continuadores dos gr_amaticos . .classicos e escolasticos nao s1io 
aquel�;g_ue-b����� Î;��;�rvar. i�ta�to todo o arcaboug-i da graJilati�;·cl�ssk;; ·' 
�i,:;q��;9ii.�i!;PÙ�-!}�.;;;·;i);�-stig;!çaoli�;i_;�r!�i-��sgbr!!.RRiP,el 
e a natureza da lingua_gem dentro do contexto do atual pensamento cientffico, 
· - ..... -.-.--•-••-••·-- -•- -,. ·,· •.. •,,_. , .... ....-.... _. , · -·« •••"•" 
• •' 
-··----,--..._..--__ . ........-,-. c.•-,,-0.<,•"Tf") 
e .C<?.1!1. o conhecimento mais extenso sobre as ifnguas. e as_ culturas de qt1�-f� 
dispêi�_agor:;i.: 
. . - . . 
···�·=-- ... . . . 
Corn efeito, a Gramaüca Tradicional at� hqj� é o ponto de partida e 
\ta.��é;:��r,ano de fü��ô:d� _atiyj_d_a.4�: �ie��ffic� e e;;ZµTà.iivâsliUng{{(�- ,,;, -. 
t!5;a e da Fq��fü�:i!..l-Jflgl,l)!ge,rn, Nao é contra isso que nos devemos bateéJ3 
Nos devemos bater é contra os usas e os abu�<Ê perpetradrn( por aqûèles 
que, arrancando a Gramatica Tradicional do lugar que legitimamente é o 
seu - o da reflexao fi!osofica, o de ferramenta de investigaçao dos processos 
cognitivos que permitem ao ser humano fazer uso da linguagern -, impu­
seram-lhe o papel de doutrina canônica, de conjunto de dogmas irrefutaveis, 
de verdades etemas. É_çk§.s�_t)\!J;>_�l. que estar�i.falando ao..empregar QJ�..!:i.no 
GramaticaJradicipnal e ao tentauîsfi��Ï�como_umaid½ologia. Afin�l, 
assim como as fo�rnulaçêies éticas e teol6gicas atribufdas ao Jesus dos relato� 
evangélicos nao podem ser culpadas dos crimes praticados pela lgreja auto­
denominada "crista" - que, apropriando-se autoritariamente do nome de 
Cristo, oprimiu, perseguiu, torturou e assassinou seres humanos -; assim 
como nao se pode atribuir a Marx todas as atrocidades cometidas ao longo 
do século XX pelos regimcs totalitarios auto-rotulados de "marxistas", tam­
pouco pode a Gramatica Tradicional, pela que realmente é, ser responsabili-
zada pelas distorçêies ideologicas a que tem sido submetida ao longo da His-
toria por aqueles que se dizem seus "defensorcs", embora nao sejam, de di-
reito nem de fato, seus legftimos herdeiros2 • 
2. Cf. llari, 1985: 14: "Ha_ ta!ll��!Il quem aponte casos de uso irrespqnsjyd da_l,i9g�is_,Jt:a,
por �xernplo sua reduçao a um jarg_âo, de que �e lanyi miio pa_rn jugificar qualquer afi�ma�o 
CStapefU!9.!ll_ �opre fatos· cfa ffng�a,_ E.sll!S _sr_f ri.c�i�aR(l�tarn para lJ.11! proJlk!J.la Jeal, COIU __ que 0 
lingüista se irrita ·maisFo:iju�.n(ng\!_�-�-�.!!��.!...��2!19!!.:ld!;!D.Qtand9_qt1�_!?:e.nhu� ciência (alias, nenhuma lei, nenhum c_qgig_9._c\dth; __ a) !'!.Sra a salvo de aplicaçôes abt1_�ivas; �-o 
s��!l.��c:orpo Cfe do��n_a pelos abusas que se pra2����ntra ele ou em no_me dele".
17 
marci
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Drom6tico do linguo portugueso 
1.2 GRAMÂTICA TRADICIONAL: DOUTRINA, NÂO CIÊNCIA 
Estudando a historia da filosofia, das ciências e das demais formas de 
saber, topa-se corn um fato hist6rico surpreendente: a Gramatica Tradicio­
nal - que ainda é, de longe, a maxima fonte de inspiraçao doutrinaria 
para o ensino da lfngua portuguesa3 no Brasil e para as atividades econô­
micas a ele associadas (industria editorial, mfdia e multimfdia) - repousa 
até hoje em bases epistemol6gicas que remontam a uma fase da historia do 
conhecimento humano anterior ao que se convencionou chamar de "inf­
cios da ciência moderna". Acreditar na GT como explicaçao valida da 
lfngua é acreditar no sistema ptolomaico como descriçao acurada da Terra 
e d o espaça extraterrestre. f\ GT pass()� inc;§lyl!!�. pJ!la revolu.çâo promo­
vicla, porÇopémico, Galileu, Kepler, Newton e outras cientistas que,.entre 
OS_§.éculos XVIe XVll, fizeramrnir concepçoes·cfohomem,d�.!latureza e 
dec9smo que haviam dominado O mundo ocidental durante quase_dois 
milênios. Corno explica Bryan Magee (1999: 63): 
-�·--- -
A principal novidade da ciência moderna foi sua insistência em testar as teorias 
pelo confronta di!:�.tg c;_qm .a.g.;1H\lg_c!e,.serificando-as pela observaçao e pela 
mediça� dos dad�s que se esperava que elas explicassem. Antes disso, as teorias 
tinham sido testadas sobretudo pela discussao e pelo debate. 
0 •:confronta direto corn a realidade" é tudo o que as gramaticas norma­
tivas, in�-iradasna GT, nao fazem. Ern Rocha Lima (1989: 15), por exem-
plo, lê-se: 
Em extensas faixas do Brasil, e especialmente no Rio de Janeiro, a consoante /1/, 
quando em final de silaba, apresenta uma pronuncia "relaxada", que a aproxima da 
semivogal iw/. Este fato faz que desapareçam oposiçôes como as de male mau, alto e 
auto, servi/ e_ serviu -oposiçôes que a norma cuita procura cuidadosamente observar. 
Antes de mais nada, chama a atençao a tentativa de animizar a "nor-
ma culta", de personificar um conceito abstrato, quando o que existe con­
cretamente sao os falantes cuitas de uma lfngua. Ora, basta ouvir os locuto­
res de radio,� apresentado�es d�'r�i�;;;;J �-;s professores universitarios 
- três profissoes que exigem educaçao superior e, portanto, domfnio da
.3. A expressao "ensino de lfngua portuguesa" equivale, para mim, a ensino da norma-pa­
drao, ta! como a defino no Capftulo 3. Corno a norma-padrào nào é lfngua, mas s6 um ideal 
abstrato de lingua, oponho-me ao uso de expressêies coma "ensino de�erna"., U.i)a vez 
que me filio à linha ce6rica para a qµal l(ngua maienuîîulose_e)aj!!{l,_mas se adquire.nuambiente 
faml}.i�r;_ �os_grupos sociais que a _criança freqüenta antes de Î!)g!essar (se jamais ingressar) na
escola formai. 
·· · ·· · · -·- -··· · 
18 
Grom6tico Trodicionol e senso comum 
"norma culta"4 - para verificar que a afirmaçao de Rocha Lima nao se 
baseia na realidade empiricamente observavel. Ê dif fcil acreditar que algum 
falante de variedade cuita se preocupe, hoje em dia, em fazer a distinçao 
entre as palavras por ele citadas. A pronuncia do Lem final de sflaba como 
/1/ e nao como /w/ s6 se verifica na fala de pessoas de uma faixa etaria hem 
definida e/ou de falantes de variedades especfficas de português do Brasil, 
como a gaucha (e, mesmo assim, nao de modo geral) . 
A tradiçao gramatiq1J.iiin.da se apqia �m dqis pJ!we�que foramreduzi­
dos a p6 peÎ� èïê�ci� moder:n:ci1 sena9_�m.rodps o� ca.mpos da·;t�idad�-hu­
rna�;-, peï� -��-�;:i;· ��. r��;�i��p�eit�hei�cilllemo da.� :·Y�iJii.g��·,:®ii QQi-
poem o conhed!Ilento CÎf!!,ti,&.Q;_.Q.QQder �..a,@itO�,Nesse processo de 
derrubacla encontramos a fi.gura emblematica de Galileu que, arriscando a 
pr6pria vida, defendeu a nova astronomia, cujas descobertas podiam ser 
vistas pelo telesc6pio, contra a autoridade da lgreja e da ciêricia tradicional, 
que se baseavam em Arist6tel�s. Segundo Magee (1999: 67), 
as conseqüências de seu trabalho [de Galileu] para o entendimento humano do 
mundo, e portanto para os processos do pensamento humano, ultrapassam todo 
calculo. Apesar da precariedade de sua situaçao, ele ousou proclamar o princfpio 
de que o poder e a autoridade, incluindo as autoridades da religiao crista, nao 
deviam ter o direito de interferir nas atividades da ciência na busca da verdade: 
"Por que", dizia ele, "haveria de ser que um déspota absoluto, nao sendo nem 
médico nem arquiteto, mas sabendo-se livre para mandar, se pusesse a administrar 
remédias e a erguer ediftcios segundo seu capricho, para grave risco de vida de 
seus pobres pacientes e rapido desmoronamento de seus edifîcios?" Fora! - era 
seu recado às autoridades. E a difusao !enta mas definitiva dessa postura provocaria 
mudanças radicais na vida intelectual e social da Europa. 
Mas essas mudanças rndicais nao atingiram a Gramatica Tradicional. 
ADf'Îli�. acle-ri�·à-�e��,��-�rtsç��î6gi�;-��-���- �odem�:-"nào s�bsd�-
·
tuiu seus m�todos de arg�!E-entfi�O baseadQ§.Jl�.ê.fir.m-l!gL<19�-�.ll--�!�!9.��? 
a_m_ig_ës_p�IQ§ rp.�_tQ.9..9�-�JltfficQ§....4,a_ ()bsery_aç1!9 _de è9��!_èyerjftca_çâ,�-�­
t�stag�m de hip6teses, de. dedtJçfo de.-regras. a partir��- q9se.!:y�59�s .. 9a 
realidade sensfvel, de �rftic� das m�todq_l9.,&[as
1 
da c,o_m:1�roy�2.ou.refu��5*(). 
Cfe hip6tês�e.S_!)ela experi!:;�nta�o.etsCom5? 19da id�9logl,� (}T f um� 
''?.\s<:�r.sg 9_l,l.l!Pr�s�t,Ip6� -� gr.�t:i�� .. ��r��1.�-�J'!,Î_()!f���<:-�:-�.�§s�.Çip_o_,q�����:,so"é sempre justificativq, __ .n.unca investigativo" (Pignatari, 1998: 99). 
. _,_,.-c..w��-·�-·...---�-, -�- ·- -- • ...... -,. ,
c.-_ · · --....:�.,·• 
4. Coloco "norma cuita" entre aspas por ser uma expressao sujeita a muita ambigüidade e
confusào conceitual. 0 Capftulo 3 sera dedicado à analise dessa terminologia. 
19 
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Dromôlico do lingue porlugueso 
Por tudo isso, a GT - ao contrario das demais disciplinas ensinadas na 
escola- cyao pg9�rec_��er o.r9n1lQ.d�çifoçia: "Afinal, as ciências e a pr6pria 
filosofia admitem a crftica e a refutaçao explicita do que precedeu ou de fases 
de atividade intelectual" (Gnerre, 1985: 20), mas a Gramatica Tradicional 
nao. Ou ainda, nas palavras de Karl Popper (apud Magee, 1999: 222): "A 
ciência é talvez a unica atividade humana em que os erros sao sistematica­
mente criticados e, corn o tempo, corrigidos". Os erros contidos na doutrina 
gramatical tradicional, ja tantas vezes apontados pela Lingüfstica, ainda sao 
estampados, sem alteraçao, nas gramaticas normativas e preconizados como 
"formas certas" pelo ensino e demais mecanismos perpetuadores da GT. 
· ) A.Q�T ergue-se como um contrarieso à ciêncja1 um obstaculo ao �
do saber. Num; exp�i�� clidâÙ�;-do-que ��n;tit�i-� s�b��-aè�Ùfi�;� Magee 
(1999: 223) explica: 
Embora nenhuma teoria geral possa ser provada, ela pode ser refutada, isto é, pode 
ser testada. Corno vimos, por maior que seja o mimero de observaçoes de cisnes 
brancos, ele jamais provara a verdade da afirmaçao "Todos os cisnes sao brancos", 
pois uma unica observaçao de um cisne preto é suficiente para refuta,la. Assim, 
podemos testar afirmaçoes gerais buscando exemplos contra.rios. Sendo assim, a 
crftica se toma o principal meio pelo quai de fato progredimos. Uma afirmaçao que 
nao seria invalidada por nenhuma observaçao nao pode ser testada, e portanto nao 
pode ser chamada de cientffica, porque se tudo o que poderia acontecer é compatf­
vel corn sua verdade, entao nada pode ser visto como prova para ela. Um bom exem­
plo seria a afirmaçao "Deus existe": ela tem significado, e pode ser verdadeira, mas 
nenhuma pessoa intelectualmente séria a consideraria uma afirmaçao cientffica.. 
É sabido que a ideologia se caracteriza por ser um discurso preso ao 
passado e, portanto, nada disposta a "progredir" por meio da crftica. 
l.2.1 Gram6tica Tra�icional,. A!9_uimia _ e Astrol�gi(): três doutrinas esotéricas
0 que as três disciplinas alinhadas neste subtftulo podem ter em comum, 
a ponto de me permitir reuni-las e equipara-las? Para começar, sao muito 
antigas -:-- a Astrologia tem, no mfnimo, cinco mil anos. Além disso, ocupa­
ram, durante longos séculos, a curiosidade e o empenho de alguns dos espf­
ritos mais brilhantes da hist6ria da humanidade. Cada uma delas, fascinante 
par si mesma, deu origem a uma verdadeira ciência que, livrando-se do carater 
de "seita secreta" de sua matriz, ampliou os conhecimentos do homem sobre 
si mesmo e sobre a natureza que o circunda e da qual faz parte. 
Astrologia e Alquimia sao, de alguns séculos para ca, universalmente 
classificadas como pseudociências, isto é, como doutrinas baseadas em dados 
20 
Grom61ico Trodicionol e senso comum 
nâo passfveis de verificaçao empfrica ou inspiradas por concepçôes da natu­
reza e do homem que distorcem a realidade ao interpreta-la de modo arbi­
trario e incoerente. As_doutrinas da Astrologia tradicional, por exemplo, 
fazem sentido apenas se acreditarmos que a Terra esta im6vel no centro do 
universo, pois elas s6 levam em conta o movimento do Sol pelas conste­
laçôes do Zodfaco, desprezando totalmente o trânsito da pr6pria Terra em 
torno do Sol. �ica 6byi9 qu� a.t�oria plane!_�rJa st1bjac�n.t�. à �ttrn.lo.g\;i..� 
a Q!_Qlomaica. Corn a revoluçao copemicana do século XVI, a Astrologia, 
q�e sobrevivera durante milênios a fia, recebeu seu golpe fatal. Até hoje, 
porém, ela subsiste na forma de passatempo popular ou de superstiçao e, 
nessa qualidade, tem espaço garantido nos meios de comunicaçao e na 
efervescência pseudomfstièa que parece caracterizar .e�.t�.final de milênio. 
Se compararmos o estudo do céu a uma moeda, �.f\.strolo� doutrina 
ocultista, forma supe!s.ti.r:i�.�� de ��ylQha�o-'.<' é u��-d;·;uas faces, en­
quanto a outra é a �noml'ii;)== ciência que investiga, mede, analisa e 
interpreta corn rigor metodol6gico e critérios consistentes os dadas obtidos 
na observaçao dos fenômenos c6smicos5 • 
A �i ambém é uma doutr!na esotérica, .talveu mai5'herméti­
c.a de todas �alias,. oi nda4ue.sl,lrgiu a.noçao de -"hermeüsmo"), moddo 
'\ . - . - '·-
P�!.fütrn .. dt.�:cif.rn;ia.'QfYlti!.'',, Seus objetivos podem se resumir na palavra 
t:7:ansmutaçao, entendida em todos os seus sentidos: nas mudanças qufmicas 
. ·-- . .,,. , .. ·-· - . \ em que certos elementos·se transformam em outros, nas mudanças fisiol6-
gicas como a passagem da dpença à saude, na ansiada mutaçao da velhice 
em juventude, e até na pas;àgem de um estado terreno a uma existência 
sobrenatural. Em milênios de �Jtperimentos secretos, porém, os alquimistas 
nunca conseguiram realizar seu�\ intentos de transformar os "quatro ele­
mentos" em ouro nem de encont�ar a matéria-prima pura e perfeita de que 
se compô� tudo o que existe na n�tt.Jreza. A��lquimia é a face "oculta" da· 
Il1Q�è-c.waJ�c.ü�ro.�-t�. � iQ�imt�"'.t�mQ'iAiti9Q.9�!� h�r�2IÎ
diversoillrmos e co�i,,t.Q�. da Astrologia (par exemplo, o l!Q.ffi.� clas,coQs-,,.....-- · •'S'•-�-=- . , .,., ......... .-.... , ..... ••. ,H.-••• .-.. 7 
t�l�çge� .. !J:agJ_çi9..nais),. ,!�1IJ.J��m.a.f\fquirnia_Jc_g911 }_Q!,1.i�ic:� �ma grD:11_9� 
quantidade de termos (e]ixir,_alc_ool,_matéria-prima), ir1<:h1sive o pr6p�io nome 
d� ci{nci_a.:�.@EJgiifmip_: Além disso, �·Âlquimi;-f;i responsive}'pelà�ifrâ= 
5. Evidentemente, refiro-me aqui à Astrologia reduzida a técnicas de mera adivinhaçao ou 
de pseudoterapia psicol6gica. Tal como reconheço a importância cultural da Gramatica Tradicio­
nal, também sei que existe uma tradiçao astrol6gica que, combinada corn o estudo dos sfmbolos 
e dos mitos, constitui um interessante reposit6rio de. imuiçôes sobre a alma .humana. 
21 
ht' 
1 
TI 
}: 
�i 
Dramética da lingua portuguesa 
çao de metais e elementos minerais como o f6sforo, o bismuto, o antimônio, 
o zinco ou o amonfaco. Afinal, quinze séculos de experimentos praticos em
laborat6rios secretos nâo podiam deixar de levar a algumas descobertas,
ainda que por acaso. 
Também a GT, como enfatizei mais acima, deu enorme contribuiçâo à 
investigaçâo dos fe""ïiômenos lingüfsticos, sobretudo erµ suas estreitas ligaçôes 
corn a Filosofia. Basta lembrar que, apesar de todas as propostas termino-
16gicas nascidas durante este século e das revisôes conceituais a que foi 
submetida, a nomenclatura gramatical classica ainda da provas de grande 
vigor e utilidade. 
Me parece muito instrutivo comparar a Gramatica Tradicional à Alqui-· 
mia e à Astrologia. Cada uma d·essas três pseudociências, como foi dito,
esta na o�ui_Q_e uma ciência �o sen!,ic!.�.!E-2,2,�mo ���set���: respectiva­
-��� fi Un_güf� �a e a:'Agmnoinia(QE�E.1-�tica1Tradicional, 
<�lquirriiafJ\strologià bas�iam-se em: v!�ë?�s cfo.mi,md..9.., _ _è �a_t_urez_�-� �Q ho­
!!!_ern. incompatfveis corn tud�<:iqueat�almente se sab�ci i:espeito_do mundo,
da;;tureia :� ·do homem. .. . . 
- . . ----
Se nao é ���-�iê�cia, o que é a Gramatica Tradicional? É uma doutri­
na, composte! de dogrrws a serem ace/tOSCQffiO verck!dgs Îf!COn_test<l�-;is e nao ge ··
lèis g_rripiricarnente test.aveis, sujei� � ç__9_rrikfg4dClÇ@..91!,Q...I.<;ft1-.fgç/io.'. S..eu.c:orpo 
de definJQ)_e�,_pi:ec�i�Ps.e_p_r�s_criçôes_a,p�.n,as _ _gp_arente..rneme_s_erve tm.@_um 
estudo da lfngua._ A fonç;ïo deÏ;�Çde fato, substc.1nciaJm.en_te, ideol6gicd: a
ôTI um i�;tru�ento, u�d��-�;Ît-;;�J�_i�g!Ù��çao da� ;1�;��s ëlômlnan-
t�s �() poder. 
. . - .. . . 
· Nao sera por outro motivo que muitos gramaticos tradicionalistass_e 
recusam a aceitar as propostas de abordagem do fenômeno da linguagem 
feitas pela Lingüfstica: sâo propostas que lançam duvidas sobre a validade 
do discurso gramatical tradicional, que deixam à mostra as inconsistências
desse discurso. 
0 exemplo talvez mais extremista desse reacionarismo anticientffico, 
no Brasil, se encontra em Napoleâo Mendes de Almeida que afirma ( 1994:
316) que o estudo da Lingüfstica serve "para fixar inuteis, pretensiosas e
ridfculas bizantinices" e que esta ciência é "um dos estorvos do aprendizado 
da lfngua portuguesa em escolas brasileiras". É a defesa intransigente e 
obscurantista da GT e de seu discurso contra qualquer tentativa de renova­
çâo da mundividência que ela comporta. Segundo Hari (1985: 15), reaçôes 
desse tipo contra a inclusao da Lingüfstica nos cursos de Letras têm motivas 
bem definidos: 
22 
(ff 
Gramética Tradicional e senso comum 
Exclui-se a Lingüfstica porque suscita a todo momento o contraste entre culturas 
dominantes e culturas relegadas ( como no caso das lfnguas indfgenas ou das areas 
de bilingüismo resultantes de imigraçao), entre formas de expressao socialmente 
prestigiosas e formas de expressao desprestigiadas ( como no contraste entre a li­
teratura oficial e a literatura popular); entre a soluçao de gabinete e as soluçôes 
de quem vive os fatos; entre a industria de livros didaticos das grandes tiragens 
e os materiai� cujo parâmetro sao pessoas reais. 
A crftica da GT, portanto, deve ser feita contra o pano de fundo da 
· histdria a;;_·-aêncii-�-d��. idéias ·;�
 geraL ·- ......... , 
·- . -- ... -- . - . - . -� � ,--.. 
__ , ____ , ______ ...,,.... ....... =-
--·-.,�---�'"""'--'�"' • . .. ·- ·,-·,1 
1.2.2 Uma doutrina medieval 
Reiterando a importância das descobertas cientfficas para o surgimento 
da Era Moderna, Magee escreve (1999: 69):
As conseqüências de tudo iss9 para as estruturas de pensamento e as autorida­
des tradicionais foram cataclismicas. Começou-se a acreditar cada vez mais 
que, em matéria de busca da verdade, a tradiçao era um estorvo e a autoridade 
nao tinha lugar. Qualquer afirmaçiio do tipo "x é verdade" ja nao topava corn 
a pergunta: "Que autoridade disse isso?", mas corn a pergunta: "Que provas 
você tem disso?" - e as autoridades acabaram por ser vistas como tao sujeitas 
ao questionamento crftico, como tendo de responder por seus atos, quanto as 
demais pessoas. 
Esses grandes movimentos intelectuais demoraram a se produzir, é claro, 
mas desempenharam um pape! central ao provocar o fim do que chamamos 
Idade Média. A lgreja cat6lica perdeu seu controle sobre a vida intelectual 
e cultural da Europa -por completo nos pafses que se tomaram protestan­
tes, mas em certa medida at_é mesmo nos que permanecerc1m cat6licos, 
onde, a longo prazo, ela também o perderia quase_completamente. No nfvel 
dentffico, à visa() cie J?llD.40.SJll�}:�.rava s�ndo derrubad.a era essencialmeµte 
o aristotelisff\O, ·
Se esses grandes movimentos provocaram o fim da Idade Média, e
se a Gramatica Tradicional, como acredito, permaneceu infensa a eles, 
nao hesito em dizer que .JLQI - que inspira a pratica pedag6gica da 
lfngua portuguesa até hoje, no limiar do século XXI - é umajoutrina 
»!_edieval, com�!�d.9 o q�_e.sse,.a.dletiv9c::ost.4ll_l_�Jmp119!.r g� pejoratiYO, e 
depreci;Hjvo. 
A alusâo ao aristotelismo vem mesmo a calhar. Na peça Vida de Gaüleu,
de Bertolt Brecht (encenada pela primeira vez em 1943), os sabios convo-
23 
marci
Realce
marci
Realce
Dramâlica da lingue portuguesa 
cados pelo grâo-duque de Florença para examinar as novas descobertas 
astronômicas de Galileu ( um fil6sofo, um matematico e um te6logo) recu­
sam-se terminantemente a olhar pela luneta, como lhes sugere Galileu, 
para comprovar, corn esse gesto simples, as afirmaçôes feitas por ele. Em 
vez disso, propê\em resolver a questâo por meio da discussâo, do debate, da 
dialética. A todo momento, Galileu lhes pede que olhem pelo telesc6pio, 
mas eles preferem continuar presos à tradiçao e à especulaçao: 
24 
OFJLÔSOFO 
[ ... ] 0 universo do divino.Arist6teles, corn as suas esferas misticamente musicais 
e as suas ab6badas de cristal e os movimentos circulares de seus corpos e o ângulo 
obHquo do trajeto solar e os mistérios da tabela dos satélites e a riqueza estelar do 
catalogo da calota austral e a arquitetura iluminada do globo celeste, forma uma 
construçâo de tal ordem e beleza, que deverfamos hesitar muito antes de pertur­
bar esta harmonia. 
[... ] 
0 MATEMATICO 
Enfim, que adianta dançar sobre ovos? Mais cedo ou mais tarde, o Senhor Gali­
leu se habituara aos fatos. A esfera de cristal seria furada pelos planetas de Jupi­
ter. É simplfssimo. 
FEDERZONJ 
0 senhor nâo vai acreditar, mas nao existem as esferas de cristal. 
0 FILÔSOFO 
Existem, qualquer manual ensina isto, meu rapaz. 
FEDERZONJ 
Nesse caso, é preciso escrever manuais novas. 
0 FILÔSOFO 
Alteza, o meu ilustre colega e eu nos apoiamos em nada menas que na autoridade 
do divino Arist6teles, nele mesmo. 
GALILEU 
Meus senhores, a fé na autoridade de Arist6telcs é uma coisa, e os fatos, que sâo 
tangfveis, sao outra. Os senhores dizem que segundo Arist6teles ha esferas de 
cristal la no alto; que, portanto, ha movimentos que nâo sâo possfveis, porque as 
estrelas seriam obrigadas a quebrar as esferas. Mas e se os senhores puderem consta­
tar esses movimentos? lsto nâo indicaria aos senhores que essas esferas de cristal 
nao existem? Meus senhores, eu lhes peço corn toda a humildade que acreditem 
nos seus olhos. 
G,amélico Tradicional e senso comum 
O MATEMATICO 
Meu carc Galileu, por mais antiquado que pam;-a ao senhor, eu ainda tenho o 
habito de Ier Arist6teles, e lhe garanto que acrediro nos meus olhos quando leio. 
[... ) 
0 FILÔSOFO 
Se a intençâo aqui é su jar Arist6teles, uma autoridade aceita nâo s6 pela totalidade 
da ciência antiga, como também pelas grandes Padres da lgreja, quer me parecer 
supérfluo prosseguir nesta discussâo. Eu recuso discussôes que nâo tenham objeti­
vo concreto. Para mim, chega. 
(Brecht, 1977: 80-85) 
�mo.dt;.fll� _s,e__\lf.irn.io_t1 rompe_IlqC> c9.m �.!!.�cli_ç�q_aristotélica. 
Até mesm...9.,,.0,.teatro modeg�Q sctpq_de se estabde_�er quand� re��;o�-�s 
P'iëëcit.�; q� _129ética de .Arist6tel�s. A Gramtitica· Tradid�n�Î, p��é�,- . 
corri� hem sabemos, é roda ela fundamentalmente aristotélica - seus 
defensores a.té hoje recusan{ olhar pela luneta para ver a realidade d�;-
f;t;;;�â;;ceit�m O conyit�l;�r; "���eclit;r ��l--S��s;lho·;;;�·;-;�ais· aëfmr 
d;i;�que "é Qreciso escrever �a�u;i� n;vos", rn-��p;;pô�-Ô�a�·rg-;�ëï� 
q�}Q��i -�eA�·r;��i!�cÎ�e o�;;�·-�:fi��:r�i; îu-��ra /�i�.tÏ�� •é{.ir��i}�ri_�s:
ra.yaÇHtO, 
Aristotélica, sim, e apesar disso conseguiu sobreviver ao cataclismo, 
coma diz Magee, provocado pela derrubada do aristotelismo promovida 
por Copérnico, Galileu, Newton, e tantos outras. E sobreviveu também a 
outros terremotos epistemol6gicos, coma o deflagrado por Einstein e sua 
teoria da relatividade, que alterou profundamente as concepçôes tradicio­
nais de universo, tempo, espaço, energia e matéria. Corno escreve Gnerre 
(1985: 19-20): 
k' 
\sy 
0 corpus de conhecimento constitufdo pela tradiçâo classica, nâo utilitârio em 
sentido trivial, esta associado com a virtude, corn a sabedoria, corn a respeitabi­
lidade, caracterfsticas estas que constituem um amparo de legitimaçâo para exercer 
o poder das decisëies de alcance publico. [ ... ] 9 fato é que na cade ia d�,l(èg_iI_i.r.n,açao 
do saber nâo aconteceu nenhuma revoluçao-:nennümii"iûüélançîd� poder �b/o­
l�Î:�· par;:Q_constlrucio��\ nenhu�a lllllél�r1ça ��ï��!larq�Ja _pàra:à,i�p;iï;fisâ, 
etc. A cadeia de legitimaçôesdo saber velll em linhfl clireta de descendêncja. A 
){tam�tJ.ça normatiYa é -� elemento p_ti_Y.,[lt!gl_<1QQ._n,e�ç�ll�I}h�.4��età'_J�-PJ?d.�i �b�hi;'"to. AfinalJ as_d�ncias e y._pr6{:ria JH9s9fia admitem a crftic;i_ e,a !,efu�açâ,;?,_�pl!­
cita do que pre_cede_u ou de.fases.da.atividade int.elecJual. Nao.é o mesmo paraa
lfngu; pad;âo. 
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25 
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Dram6fica da lingue parfuguesa 
1.3 IDEOLOGIA GRAMATICAL 
Corno sustentam Marx e Engels (1991 (1846]: 72), o domfnio de uma 
classe social sobre as demais nâo ocorre apenas no piano material pela 
detençao dos meios econômicos de produçâo, do poder po[ftico, das fontes 
de matéria-prima, dos bens fundiarios etc. É preciso que esse domfnio tam­
bém se dê no p[ano espiritual, das idéias. Desse modo, 
1) embora a sociedade esteja dividida em classes e cada quai devesse ter suas pro­
prias idéias, a dominaçao de uma classe sobre as outras faz corn que s6 sejam 
consideradas validas, verdadeiras e racionais as idéias da classe dominante; 
2) para que isto ocorra, é preciso que os membros da sociedade nao se percebam
coma estando divididos em classes, mas se vejam coma tendo certas caracte­
risticas humanas comuns a todos e que tornam as diferenças sociais algo deri­
vado ou de menor importância.
��Ç_baui (1998; 9.4)...cl��ifiçi! .. l!ÇÎ!llq,Çk''i.qéj;i/'pudermo� inc:luir 
"variedades _ lingüfsticas" sera fa.cil entender O carater.jdeolôg(êo da di-àma­
ti�:ÎT;;c1T;;ro�[dZque;tâ; imburdas a�aticas normativ�1;;� a 
Lingüfstica, e mais precisamente a Sociolingüfstica, ha m�rotenha postu­
lado a existência, no universo particular de toda e cada lfngua viva, de mul­
tiplas variedades lingüfsticas associadas a diferenciaçoes regionais, étnicas, 
etarias, de classe social etc., as gramaticas normativas brasileiras permanecem 
apegadas ao mito da "lfngua unica" e se apresentam como "descriçâo" de 
uma variedade lingüfstica supostamente empregada pelas "pessoas cuitas" do 
pafs, isto é, pelas classes dominantes, apresentando-a sempre como o "padrâo" 
a ser imitado. D.aJ,p.asce o preconceito de que toda e qua[quer varieg<!de 
dlferente dessa é "feii, "est_ropÎad��-'-'.corromRJcl_a"·e �-� é'râro escÜta� gue
"���r�g_�1�i'.: Çria-se assim uma entidade ;bstrat���h;��d� "Lf�gua 
Portuguesa", cuja definiçào e descriçào - ta[ como dadas nas GN - nâo 
encontram comprovaçâo empfrica na rea!idade hist6rico-social. 
Os tftu!os mesmos desses compêndios deixam clara essa opçâo ideol6-
gica. Se eliminarmos um ou outro adjetivo ("novfssima", "contemporânea", 
"moderna") - em gera[ imposto pelas editoras para distinguir seus "produ­
tos" -, praticamente todos os compêndios se chamam Gramatica da Ungua
portuguesa ou Gramatica do português, como se "[fngua portuguesa" e "portu­
guês" fossem conceitos unfvocos, inequfvocos e compactos, r6tulos de uso 
exclusivo para a supost.a variedade lingüfstica das classes dominantes -
tal como o.s vinhos das grandes regiôes produtoras européias trazem o selo 
"denominaçào de origem controlada". Toda diferenciaçâo social é apagada 
26 
Gram6tica .Tradicianal e sensa camum 
para "que os membros da sociedade nâo se percebam divididos em classes" 
e, conseqüentemente, divididos em universos lingüfsticos diferentes. 
Coerente corn essa ideologia, e corn o discurso que a ela corresponde 
assim-a-dëfendé CegaUa_ 11'1. �li� îyq�(!ijirni_ira?n4tiëa)aJ(n�]iË!i��i� 
(1990: xvii): 
A Gramatica, segundo a conceituamos, nao é nem deve ser um fim, senao um 
meio posta a nosso alcance para disciplinar a linguagem e atingir a �eal 
da expressao oral e escrita. Maldizer da Gramatica seria tao desarrazoado quant� 
malsinar os compêndios de boas maneiras s6 porque preceituam as normas de 
polidez que todo civilizado deve acatar. 
Conceituar a "Gramatica" como um meio para "disciplinar a linguagem 
e atingir a forma idéal da expressâo oral e escrita" é uma declaraçâo de prin­
dpios ideol6gicos e at1ticientfficos tâo bem enunciada que dispensa comen­
tario. A comparaçâo corn os compêndios de boas maneiras deixa ainda mais 
a nu o reducionismo ideol6giuo do autor. Para ele os pre(con)ceitos da gra­
matica normativa sâo validos para todo e qualquer falante de português, em 
qualquer lugar, em quaiquer época, por serem equivalentes às "normas de 
policiez" dos manuais de boas maneiras. Corno se as "norrnas de policiez" de 
uma determinada classe social, de u�.4�.mmma.dp_iii�;_;;IT:l� cl�i_ër�in�da 
�oca tivessem aceit�ô'ùruversal em todas as cu!turàs, em todas as suas
fa�� hist6ricas. 
_,.___ - .. ------ ......... --.--·· ............. .,. .... .......... · .. -.. · 
A Gramatica da Ungua portuguesa, de Pasquale Cipro Neto e Ulisses 
Infante (1997: 16), segue a mesma trilha: 
As lfnguas que têm forma escrita, coma é o casa do português, necessitam da Gra­
matica nonnativa para quf_§.�_gqrQ_nta_g_��@_cfa de um padrao lingüfsti<:<! !l.nifQTl:!lÇ 
nQ_cru.ëL�.r..e_g!§_n.e_a_.11r��LÇgnhi�-à�ëült.aé.·p�r�a,:1,1to,_t1ma 
fo�a dt:�E...8,,f�W g_e,§§.U�!!?.2-.Sl!!t.ui:at:e à-linguage�_o.ficiaIJg�i(os
 meus]. 
A inversâo da realidade e da historia ( uma caracterfstica das ideo!o-
gias) esta claramente expressa aqui: nâo é o gramatico normativista que 
precisa de uma lfngua ou de uma variedade de lfngua como corpus para sua 
descriçâo e ana.lise, mas as lfnguas é que "necessitam da Gramatica norrp..?: �------- .,..,.,_�* ·--.,_.,.,..-. -- . - •. --,. _._., •. -,.,, ... ·==··'-····��-·----�...,. ;, 
�Jya'' para. "garnn.tii:". a.'�exi§tência� .. d�um padrau.lingüis.tiç_o "uniforme . 
�-&1:_é!!!l�tica normativa,JJ.OrtalllQ, _ _l}�e> _e�iste lf:lg_l!.a cultb Nao.f.pQr
a��_gu�.IE�tos -��9sos .dQ..fe.o.ômenoclas_icteoJogias 
falam da ilusiio
_çriaaa por elas. Neste caso, a ilusao de que é possfvel existir um padrao lin-
,_.,....,._.,---.....,...,.,.___. 
güfstico uniforme, quando se sabe que toda lfngua é essencia[mente hetero-
gênea e multiforme. Vê-se também que, para os autores, "produçào cultural"
27 
Dramélica da lingue porluguesa 
é apenas aquela oriunda dos meios "cultos", das classes sociais de prestfgio, 
que têm acesso à linguagem oficial (na verdade, elas nào "têm acesso" e, 
sim, criam, definem, detenninam e impôem a linguagem oficial). A literatura 
de cordel, o cancioneiro popular, as parlendas e rimas tradicionais, as fabulas, 
lendas e mitos, as adivinhas e simpatias, as cantigas de roda, os remédios 
caseiros, as receitas tradicionais, as brincadeiras infantis, as danças tfpicas, 
os ritmos musicais, os metros da poesia oral, as festas e folguedos, os autos 
populares, o artesanato ... enfim, todo o saber, todo o folclore, toda a cultura
do povo, em suas diversas manifestaçôes e expressôes, nao pode merecer o -
r6tulo de "produçao cultural" por nào estar "registrada" em "norma culta". 
Produçao cultural é, aqui também, uma "denominaçao de origem controlada". 
0 uso do adjetivq_Efi�ial no trecho acima citado de Cipro & Infante 
remete à teoria da "economiâ-aas tracas lingüfsticas", proposta por Bourdieu 
(1996: 32): 
A lfngua oficial esta enredada corn o Estado, tanto em sua gênese como em seus 
usos sociais. É no processo de constituiçao do Estado que se criam as condiçôes 
de constituiçâo de um mercado lingüfstico unificado e dominado pela lfngua 
oficial: obrigat6ria em ocasiôes e espaças oficiais ( escolas, entidades publicas, 
instituiçôes polfticas, etc.), esta lfngua de Estado toma-se a norma te6rica pela 
quai todas as praticas lingüfsticas sao objetivamente medidas. Ninguém pode 
ignorar a lei lingüfstica que dispôe de seu corpo de juristas (os gramaticos) e de 
seus agentes de imposiçâo e de controle (os professores), investidos do poder de 
submeter universalmente ao exame e à sançâo jurfdica do tftulo escolar o desem­
penho lingüfstico dos sujeitos falantes. 
Para que um modo de expressào entre outros ( uma lfngua, no caso do 
bilingüismo, uma utilizaçao da lfngua, no caso de uma sociedade dividida 
em classes) se imponha como unico legftimo, é preciso que o mercado 
lingüfstico seja unificado e que os diferentes dialetos ( de classe, regionais 
ou étnicos) estejam na pratica referidos à lfngua ou ao uso legftimo. En­
quanto produto da dominaçâ.o polf tica incessantemente reproduzida por 
instituiçôes capazes de impor o reconhecimento universal da lfngua domi­nante, a integraçâ.o numa mesma "comunidade lingüfstica" constitui a 
condiçao da instauraçao de relaçôes de dominaçao lingüfstica. 
Prosseguindo sua ana.lise do processo de constituiçâ.o das ideologias, 
Chaui explica: 
28 
3) para que todos os membros da sociedade se identifiquem corn essas caracte­
rfsticas supostamente comuns a todos, é preciso que elas sejam convertidas
_e_111 idéia_:_�muns_a todos. Para que isto ocorr� é p���iso cjüêâé:lâsseëfomirÎarité,
Grarnélica Trodicional e senso comum 
além de produzir suas pr6prias idéias, também possa distribu(-las, o que é 
feito, por exemplo, através da educaçao, da religiao, dos costumes, dos meios 
de comunicaçao disponfveis. 
A Gramatica Tradicional cumpre perfeitamente o papel de distribuiçao 
das cr�nças déimTnani:és aë que fala ChaùC Quando se analisa o qt{e chamo 
d�-mfrologiiiâol>ffëonêëito-Unià<stiCO(cC p;6�irr{o·c�p1t�Ï�),-.encQnt���se· 
alguns -chavôes concementes à lfngua portugue$a_que_ refletem precisam�!).te 
o sucesso. da ideoiogia <:lginin�nte em transformar em opi�iê\es -correntes,
em·I�g��es-co���,. a-s�a prôpri� concepçfü) distorçiJi de lf�g�;; "B;a�il�-i�o
nao sabe,português", "português é muit()_ diffcil", "as_pessog,i sem ins!_ruçao
falam tudo-errado" etc. A difusao dessas e de outras "ilusôes", feita Î;-�1;
escola e pelos meibs de cômunicaçao, cristaliza-se no @e chamo de drculo
vicioso do preconceito lingü(stico (Bagno, 1999: 73) que tem seu poni:o __ de
pardda'ë dëchega.g;'�� G�;�1atka Tradicional. < - . .
0 papel dos meios de comunicaçao nesse processo evidencia-se, nos 
dias que correm, pela força crescente de um movimento que denomino 
�ogyam.atiquice, levado adiante por comandos paragramaticais: programas 
de radio e de televisao, colunas de jornais e de revistas, manuais de redaçao 
de empresas jornalfsticas, "consultôrios gramaticais" por telefone, paginas 
na Internet, co-R0Ms etc. Em todas essas manifestaçôes da neogramatiquice,
encontramos expressos os chavôes a que me referi: 
• "Fala-se mal o português. Ou melhor, fala-se errado" (Sérgio Limoli, IswÉ,
20/8/1997).
• "S6 fndio fala pra mim fazer". (Eduardo Martins, IswÉ, 20/8/1997).
• "Professor de português - um idioma que de tao maltratado no dia-a-dia dos
brasileiros, precisa ser divulgado e explicado para os milhôes que o têm como
lingua materna" (Mario Sabino, Veja, 10/9/1997).
• "A lfngua é dificil" (Marilene Felinto, Folha de S. Paulo, 28/10/1997).
• "Atentados contra a lingua portuguesa" (Daniel Castro, Folha de S. Paulo, 
26/10/1997).
• "Nunca se escreveu e falou tao mal o idioma de Ruy Barbosa" (Arnaldo Niskier,
Folha de S. Paulo, 15/1/1998).
• "A lingua portuguesa propriamente dita é bastante dificil" (Arnaldo Niskier,
0 Dia, 28/02/1999).
• "Basta pensar que a lfngua bras ile ira é outra. Uma pequena mostra de erros de
redaçao coletados na imprensa revela que o português aqui transformou-se
num vernaculo scm l6gica nem regras" (Marilene Felinto, Folha de S. Paulo, 
04/01/2000).
29 
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Dram6fica da lingue porfuguesa 
Esses sao alguns dos inumeros exemplos de como a mfdia ( e agui apenas 
a mfdia impressa) participa ativamente do processo de consolidaçao 
da ideologia da Gramatica Tradicional e, por meio dela, do preconceito 
lingüfstico. A esses comandos paragramaticais, em suas formas classicas e 
contemporâneas, sera dedicado um lugar de destaque neste livro (Capftu­
los 3 e 4). 
0 quarto e ultimo aspecto da dominaçào ideol6gica, segundo Chaui, 
é o seguinte: 
4) como tais idéias [as da classe dominante] nao exprimem a rcalidade real, mas
representam a aparência social, as imagens das coisas e dos homens, é possfvel
passar a considera-las como independentes da realidade e, mais do que isso,
inverter a relaçao fazenda corn que a realidade concreta seja tida como a
realizaçao dessas idéias.
Ja se viu de que modo a ideologia é usada para se contrapor à ciência, 
isto é, à investigaçao empfrica da "realidade real". Vimos também, na cita­
çào de Cipro & Infante, de que modo a Gramatica Tradicional empreende 
a inversao da relaçao idéias-realidade: a existência de um padrao uniforme é 
garantida pela gramatica normativa. Essa inversao é notavel quando se trata 
da relaçao entre éscriw �f alâ:"'O certo é falar assim porque se escreve assim"; 
â forma graficà-dàspalàvras é que nos deve guiar no momento de pronuncia­
las; a lfngua oral é que deve "respeitar" a ortografia, enquadrar-se em seus 
mol des, caber na roupagem grafica, e nao o contrario ... 
A distância entre a ideologia da GT e a realidade social é bem demons-
trada por Britto e D'Angelis (1998: 2): 
A insistência no ensino da gramatica canônica articula-se COfll--três..DQÇQ� que 
nao se confinnam na analise das praticas sociais: a.d_e.que .i.a.çà,9 .. !}Qrmativa tem 
por finalidade evitar a corrupçao e a degradaçao da Ungua nacional; ade ·que a 
chàmadà nurma cuita é pr6pria de relaçôes formais, de �odo que·s��-nao d�mf­
pi_o Ïmpfb n� exclusà� d� sujeito de;sas si_tuag"i��; C. a de _qÙe_§!!IJ ç9�mento 
garan:t:e à acesso à dêtermin�d�s��pr�ssoes superiores de cultÙra e inform;çiio'. 
Concluindo sua analise dos quatro procedimentos elencados par ela, 
Chaui (p. 95) diz que eles constituem 
30 
a operaçao intelectual por excelência da ideologia: a criaçao de universais abstra­
tos, isto é, a transformaçào das idéias particulares da classe dominante em idéias 
universais de todos e para todos os membros da sociedade. Essa universalidade 
das idéias é abstrata porque nao corresponde a nada real e concreto, visto que no 
real existem concretamente classes particulares e nao a universalidade humana. 
fi,s idéias da ideologia sao, pois, uniyersais_ abstratos. 
Graméfica Tradicional e senso comum 
M�_ p:i.r�ce que. a. GT.reali.za plenamen�e,��,LQP�.rn.çao Jntelectual, e 
pode�o-�,consta,taJ seu sw:e�s.o pr�cjsal_!lente 11{) arraigado preconceito lin� 
güfsÎ:ko q_ue ��a_ç��r,!zL�_.cµlt1JrnJm3§ik1ra. Novamente, se onde Ch;ui 
escreveu 1'idéias" for possfvel Ier "variedade lingüfstica", ficara facil enten­
der por que classifico a GT de ideologia. Afinal, a variedade lingüfstica das 
classes dominantes (se é que existe, se é que nao passa, ela também, de um 
· "universal abstrato"; ver Capftulo 3) é que se transforma nesse universal
abstrato chamado "Lfngua Portuguesa". S6 ela vale para todos os membros
da sociedade brasileira como lfngua legftima e <ligna de respeito. Tudo o
que escapa do domfnio lingüfstico delimitado pelas gramaticas normativas
é "corruptela", é "feio", é "errado". Nao é "lfngua de gente" ou, quando
muito, é lfngua de §eres h1,1manos degradados, os parias da sociedade. Par
isso Napoleao Mendes de Almeida fala c\e "lfngµa_d� co1inh�ir�s" ou de
"infelizes caipiras", Luiz Antonio Sacconi condena a "lfngua de jacu" ou
dë"lrâsnôs";�êriq'uanto Eduard<? Martins a atribui a "fndios":
A atitude hip6crita do poder'quando se abriga par trâs da "vontade de todos", 
vontade que ele suscita, planeja e interpreta, é um dado permanente da polftica. 
A mesma atitude se observa entre os puristas, quando pretendem encamar a 
vontade de uma instância social {como a "indole da lfngua") na quai se encontra 
o "bom uso", e se saudam coma os bons falantes [Rey, 1972: 8].
Somente a ilusao de que a Gramatica Tradicional, cristalizada nas grama­
ticas normativas, é modelo infalfvel, perfeito, universal para todas as lfnguas 
do mundo é que permite a Almeida (1994: 591) redigir disparates coma este: 
A gramâtica, no que diz respeito à funçao da palavra, é internacional. ,Qg1.,1� f
�gjç.ito_em.português.é sujeito_emch.i_n�§i .o que _é objeto direto em nosso idioma 
. � gbje�o. �i�et_CJ ,e'!l qt1�lquer ou�ro, e O 1_1,les_�o se diga de tod�s a; f�;;ç5�; si�ta­
-�':flS � de todas as classes de palav,ras. 
Essa gramatica "intemacional" ( uro universal abstrato) é pura ficçào do 
autor, decorrente de sua recusa a "olhar pelo telesc6pio" e de seu apego à 
tradiçao nao-cientffica6• Para comprovar isso, e usando o exemplo que elemesmo sugeriu - o chinês -, basta um breve exame da literatura cientf­
fica especializada: 
6. Evidentemente, essa "gramatica internacional", a que se refere Almeida, nâo é da mesma
natureza do projeta filos6fico-cientffico contido na busca da chamada gramatica uni11ersal,
empreendirnento investigativo de que se ocuparam, por exemplo, os racionalistas de Port-Roy al 
no século XVII-XVIII e o gerativismo de Chomsky, no século XX. Ê, antes, uma noçâo distorcida, 
tentativa de aplicaçâo a taclas as lfnguas do mundo das categorias formais aplicaveis ao portu; 
guês literario classico. 
31 
9-
' ( 
L 
Dromético da lingvo portugucsa 
[em chinês) nao existe nenhuma morfologia de casas que assinale diferenças entre 
relaçôes gramaticais coma sujeito, objeto direto ou objeto indireto, nem existe 
qualquer "concordância" ou flexao verbal para indicar o que é sujeito e o que é 
objeto. No chinês, de fato, ha poucas razôes gramaticais para se postular relaçôes 
gramaticais, embora haja, é claro, meios de distinguir quem fez o quê a quem, ta! 
coma existem em todas as lfnguas [Li & T hompson, 1987: 824-825). 
Nesse casa, o apego de Almeida à tradiçâo leva ele a ultrapassar os 
limites de sua pr6pria sociedade: as regras da unica gramatica que de conhece 
- a gramatica normativa da lîngua portuguesa escrita, formai, litera.ria,
classica - lhe parecem, naturalmente, validas para taclas as lfnguas da huma­
nidade. No mundo irreal desse gramatico, "todos os cisnes sâo brancos", a
despeito de evidências em contrario.
Os quatro procedimentos listados par Chaui sâo ampliados para seis 
em Eagleton (1997: 19):
Um poder dominante pode legitimar-se promovendo crenças e valores compatfveis 
corn eles; naturalizando e universalizando tais crenças de modo a toma-las 6bvias e 
aparentemente inevitaveis; denegrindo idéias que possam desafia-lo; excluindo for­
mas rivais de pensamento, mediante talvez alguma l6gica nao declarada mas siste­
matica; e obscurecendo a realidade social de modo a favorecê-lo. Tal "mistificaçao", 
como é comumente conhecida, corn freqüência assume a forma de camuflagem ou 
repressao dos conflitos sociais, da quai se origina o conceito de ideologia coma uma 
resoluçao imagina.ria de contradiçôes reais. Em qualquer formaçao ideol6gica ge­
nufna, todas as seis estratégias podem estabelecer entre si interaçôes complexas. 
Me parece que esse processo de "mistifiçaçâo" é patente, na sociedade 
brasileira, na mitologia do preconceito lingüfstico que detalharei no pr6ximo 
capftulo. Como veremos também, na parte a eles consagrada, os comandos
paragramaticais cumprem primordialmente a missâo de denegrir as manifesta­
çôes lingüfsticas que nâo se enquadrem no modela canônico e de exclu(-las
de qualquer esforço par democratizar o ambiente lingüfstico brasileiro. 
1.3.1 A realidade às avessas 
Corno adverte Fiorin (1998: 30): "A ideologia é constitufda pela reali­
dade e constituinte da realidade. Nâo é um conjunto de idéias que surge do 
nada ou da mente privilegiada de alguns pensadores". Nâo cabe acreditar, 
portanto, que as ideologias existem simplesmente porque os "seres humanos 
[estâo] atolados em preconceito irracional, incapazes de raciocinar de modo 
coerente" (Eagleton, 1997: 24). A força e o vigor perene das ideologias con­
servadoras têm sua raziio de ser no fato de codificarem "ainda que de maneira 
32 
Grumético Tradicionol e senso comum 
mistificada, necessidades e desejos genufnos" (p. 25). �J:CJ§t�_l,lf!\�J6gica, por 
mais distorcida que seja, por tr�s dos preconceitos; existe, incfo�tve, 3:lgµ,m 
��fil?-.��yerd�de.-n�le_s. ç;mo_diz Eagleton: "É falso aêiediç�� gü� � Sol�-
1 a
move ao redor da Terra, mas nâo é absurdo", e por isso uma recente sonda; -,)\.,h
[��.!!ios�tr��Sl!� Ulll: i:e�ço doib�itâniws acreditam qt1e O Sol gir,a efll to�o 
. da Te.!1:�·-€:t_:lg�?--':1-�ll�.,!i�fil!lo _deles crêem que o sistema solar é maior que 
o universo ... Também pode nâo ser absurdo acreditar que existe uma ûnicà
Üngua "b;�;;I ;,b�nit�'je ll��'r'ret;,; � que; pür extensi�, as pessoàs que a falâïn
também lev�rr! _ _l:1_!11� Y-�ç1:a .'.'.I2�c1'\."_6.onit�" e "correta" -� embora,�e.Ja falso.
Para ser eficiente, a ideologia precisa ter um enraizamento mfnirno na 
experiência das pessoas: "Uma ideologia sempre possui uma base real, s6 que 
essa base esta de ponta-cabeça, é a aparência social" (Chaui, 1998: 108). É o 
mesmo que ja diziam Marx e Engels em A ideologia alema, ao comparar a 
ideologia a uma "câmara escura" em que os homens e suas relaçoes aparecem 
inverti dos. 
No caso da Gramatica Tradicional, é fa.cil comprovar que sua doutrina 
corresponde, na superffcie dos fatos, ao que realmente acontece na lfngua 
falada pelas pessoas. Quando quero dizer que estou residindo na capital da 
Bahia desde 1980 e digo: Moro em Salvador hâ vinte anas, vejo que as grama­
ticas nomiativas têm razâo ao ensinar que mor(Lé um verbon9_pr9ente, . ..P�,is
eu o usei precisamente para relatar algo que esta acontecendo comigo neste
m�nto_ presente, . f,_s_ gr _cllll.aticas rl(2rm13.ti vas tc1mbéll1_ estâc:> __ c:er!._as,. aCJ 4!�;_r 
q1:e na oraçâo Pedro abriu a porta o sujeito é Pedro, ja gue elas definem $Uj�fço
c�ino-''êïsèrquëiirat:ica·â açid': Assim, como explica Zizek (1999: 13), 
uma ideologia nao é necessariamente "falsa": quanto a seu conteudo positiva, ela 
pode ser "verdadeira", muito precisa, pois o que realmente imp,orta nao é o con­
teudo afirmado como tal, mas o modo coma esse conteudo se relaciona com a postura 
subjetiva envolvida em seu pr6prio processo de enunciaçâo. Estamos dentro do espa­
ça ideol6gico propriamente dito no momento em que esse conteudo - "verda­
deiro" ou "falso" (se verdadeiro, tanto melhor para o efeito ideol6gico) - é
funcional corn respeito a alguma relaçao de dominaçao social ("poder", "explo­
raçao") de maneira intrinsecamente nao transparente: para ser eficaz, a l6gica de
legitimaçâo da relaçâo de dominaçâo tem que permanecer oculta. 
Afinal, como prossegue o mesmo autor (p. 16), 
A ideologia é uma comunicaçao sistematicamente distorcida: um texto em que, 
sob a influência de interesses sociais inconfessos (de dominaçao etc.), uma lacu­
na separa seu sentido publico "oficial" e sua verdadeira intençao - ou seja, em 
que lidamos corn uma t-ensao nao refletida entre o conteudo enunciado explici­
tamente no texto e seus pressupostos pragmaticos. 
33 
9-
';,
1 
Dromético do linguo portuguesa 
É o que se verifica, por exemplo, corn os comandos paragramaticais que, 
em seu alegado prop6sito de "democratizar o acesso à norma cuita", visam, 
de fato, a preservar (e, se possfvel, alargar) a distância que separa os que ja 
"sabem" essa "norma cuita" dos que a ignoram. 
Recorrendo, novamente, a Chaui (1998: 114-115), encontramos uma 
ck§giçâo de ideologia que parece corresponder precisamente às crfticas 
que, �ng�-do�éc�lo XX, a Lingüfstica vem fazendo da inconsistência 
da Gramatica Tradicional: 
Na qualidade de corpo te6rico e de conjunto de regras praticas, a ideologia possui 
uma coerência racional pela quai precisa pagar um preço. Esse preço é a exis­
tência de "brancos", de "lacunas" ou de "silêncios" que nunca poderâo ser preenchi­
dos sob pena de destruir a coerência ideol6gica. 0 discurso ideol6gico é coerente 
e racional porque entre suas "partes" ou entre suas "frases" ha "brancos" ou "vazios", 
responsaveis pela coerência. Assim, ela é coerente nâo apesar das lacunas, mas 
par causa ou graças às lacunas. Ela é coerente coma ciência, coma moral, como 
· tecnologia, como filosofia, coma religiâo, coma pedagogia, coma explicaçâo e
como açâo apenas porque nifo diz tudo e niio pode dizer tudo. Se dissesse tudo, se
quebraria por dentro.
Daf a recusa perempt6ria dos gramaticos tradicionalistas de admitir
que muitos de seus postulados sao inconsistentes, que ha contradiçoes inter­
nas em suas doutrinas, que muitas de suas regras sao antes exceçoes do que 
regras, que suas definiçoes de conceitos esbarram o tempo todo corn obsta­
culos que eles se negama ver. Admitir isso tudo equivaleria a preencher os 
"vazios", as "lacunas" da GT, enchendo-as corn cargas explosivas que a fa­
riam implodir. 
A dose de realidade cohtida no discurso ideol6gico esta sempre subor­
dinada à mundividência que o conforma. Nao interessa se um mesmo autor 
classico usou onde voue aonde vou indiferentemente em sua obra. As abona­
ç5es oferecidas pelo gramatico normativo serao exclusivamente aquelas que 
corroborem as suas prescriçoes, as que o ajudem na imposiçâo e conserva­
çâo da norma, no sentido mais jurfdico e moralista do termo, a despeito de 
provas em contrario: 
34 
[ ... ] o discurso ideol6gico exibe, de modo tfpico, uma certa proporçâo entre pro­
posiçôes empfricas e aquilo que poderfamos grosseiramente denominar "visâo de 
mundo", na quai a ültima leva uma ligeira vantagem sobre as primeiras. [ ... ] É 
possfvel, portanto, pensar no discurso ideol6gico coma uma complexa rede de 
elementos empfricos e normativos, dentro da quai a natureza e organizaçâo dos 
primeiros é, em ultima ana.lise, determinada pelas requisitos dos ultimos (Eagleton, 
1997: 33 ). 
Gramética Trodicional e senso comum 
Novamente, as definic,,'êies de Eagleton concordam corn as de Chaui 
(1998: 113): 
A ideologia é um conjunto l6gico, sistematico e coerente de representaçôes (idéias 
e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros 
da sociedade o que devem pensar e coma devem pensar, o que devem valorizar e 
coma devem valorizar, o que devem sentir e coma devem sentir, o que devem fazer 
e como devem fazer.�1aé+PQrt:m.t9,1ffl).COrpo explicativo (representaçües) e p*i;:o 
(����cr.�grns,. preccitos)_��.ç;.a,sgr�u"?r§§Sû�ivu, normativo, .r�fa9Qr. 
Q!:le outra coisa é a Gramatica Tradicional, .c:Qrp()rific:ad? 11as gramaticas 
normatf;� e nos comarufos PEZamrmwtif�4;·�nao e?'aqmente u� ��pt� 
logico, sistemaÎ:ico_e co�re.nçe de representaçoës)J bemcomo de ''normas ��
(egra�.de 7ol,)d�t.:D Nao êpor acaso qlie um classico paragramà.tical do in{ 
cio do século se chamava O que se nao deve dizer (Figueiredo, 1,903) e outro 
classico do final do sêculo se chama Na.a erre mais! (Sacéoni, 1998). Sao 
continuadores fiéis da velha t,radiçâo gramatical que ja na época do latim 
vulgar publicava suas listas d� "barbarismos" e "metaplasmos" como a de 
Consêncio (século V) e o famosfssimo Appendix Probi (século III). Sao, por­
tanto, mais de mil e quinhentos anos de policiamento gramatiqueiro. 0 que 
Chaui diz da ideologia - "Ela é um corpo explicativo e pratico de carater 
prescritivo, normativo, regulador" - pode ser aplicado ipsis litteris à Grama­
tica Tradicional tal como corporificada nas gramaticas normativas. 
1.3.2 Visào de mundo vitoriosa 
0 sucesso de uma ideologia é pleno quando, como ja vimos, as crenças 
que ela veicula se tornam communis opinio, "visao de mundo" compartilha­
da por todos os membros da sociedade. E amelnorïnâneira de verificar 
. " .. ' . . , ... . - . . -· ···-· . . .- -�-· . . -· ·- _ .. ,. . ' - .. -·--- ". ·-· . 
esse sucesso é aferindo a interiorizaçâo <;los preconceitos disseminados por 
essa ideologia. Quando ouvimos tao freqüentemente declaraçoes do tipo 
"brasileiro nao sabe português" ou, pior, "eu nao sei português", estamos 
<liante da absorçâo total da ideologia por parte de seus "suditos", como diz 
Eagleton. O��!:l!im�P.,t.Qc!.e. inferioridade.e., pior, suiutçeitaçiip como al_go 
"rwt11r,�l'' �â.Q .provgs .rabais c!o .. fxitn_d<.1 jg_�9l_Qg(�_g.9minan,te: 
Uma prova de que ninguém é, ideologicamente falando, um tolo completo, é o 
fato de que as pessoas ditas inferiores devem realmente aprender a sê-lo. Nâo é 
suficiente para uma mulher ou um colono serem definidos como uma forma de 
vida inferior: é preciso ensinar-lhes ati11amente essa definiçâo, e alguns deles reve­
lam-se brilhantes bacharéis nesse processo. É surpreendente quâo habeis, enge-
35 
( 
\_ 
g, 
Drom6tica da lingua portuguesa 
nhosos e perspicazes podem ser os homens e as mulheres em provar para si mesmos 
que sâo incivilizados e burros [Eagleton, 1997: 14]. 
0 velho sentimento conformista expresso no comentario "é porque 
Deus quer assim" ou "foi por vontade de Deus", que encontramos na fala 
de brasileiros desfavorecidos <liante de alguma calamidade perfeitamente 
evitavel (seca no Nordeste, enchente na periferia de Sao Paulo, desaba­
mento de barracos em favelas do Rio de Janeiro) é a sfntese perfeita desse 
processo. Mas nâo devemos crer, ingenuamente, que s6 os nossos pobres se 
submetem a ele. Desërevendo uma sociedade totalmente di versa da brasilei­
ra, a britânica, Eagleton ( 199?: 49) deixa claro que "a sociedade capitalista 
avançada ainda requer sujeitos autodisciplinados, cumpridores de seus de­
veres e inteligentemente conformistas". 
��!:!f§l�o da,jn!(:'.ÜQr,iia�9 q9_prJ�C?.J:1c::�:lto lingüfstico te�n9s os_rgsul­
_ta,dos da pesquisa. etnpree11dida por Coelho (12_9�) s_(}�re a�itudes lingüfsti­
cas no sertâo pernambucano-baiano, que revelam a que grau pocle chegar Q 
pr�cC>ncëitô contra sr mesmo:· ··--
-- · -- -- - · ···· ·· 
Partimos da hip6tese de que o nordestino do Submédio Sâo Francisco que foi para 
Sâo Paulo, por ocasiâo do enchimento do Lago de ltaparica, e manteve contato 
corn falantes paulistas, ao regressar à sua terra manifesta atitudes negativas em 
relaçâo ao seu pr6prio falar (culturalmente estigmatizado) e positivas em relaçâo 
ao falar paulista (culturalmente prestigiado). [ ... ] Os resultados indicaram tendên­
cia acentuada dos informantes do Grupo B (corn ".iagem a Sâo Paulo) a rejeitarem 
o falar nordestino e a prestigiarem o falar paulista. Os nordestinos do Grupo A
(sem viagem a Sâo Paulo) manifestaram também, embora de forma menas acen­
tuada, rejeiçâo pelo pr6prio falar e admiraçâo pelo falar paulista [Resumo).
.. -�· _·11 lJma grave conseqüência dessa situaçao estaem seu vfnculo profun.do 
et.:'.,,·, ,._, 
� -.,..; 
-�"\ _Y·
y 
'. \ 
! \,, · -
... corn a problematica da identidade. A funçao mais elementar da linguagem é 
p��iti� ;·com�rÏicaçâo êfo'indivfduo consigo mesmo: é corn a lfngua que 
pensamos, é nela que sonhamos. Por isso Jacques Lacan pôde afirmar: "O 
inconsciente· se estrutura como uma linguagem". A lfngua esta, portanto, 
profundamente entranhada na constituiçao ontol6gica, poder(amos dizer, do 
indivfduo. Menosprezar, rebaixar, ridicularizar a lfngua ou variedade de lfn­
gua empregada por um ser humano equivale a menospreza-lo, rebaixa-lo, 
ridiculariza-lo enquanto ser humano. Co!Ilo diz Mey (in Signorini, 1998: 81):
"Nâo ha.Jfnguas em.si, sgm�n.t��--;É:,Jas lfn�f!_s", palavras que encontram 
eco nesta afirmaçao de Auroux (1998: 19): "AJ!ngua_erf!sJ.ri.âo ex_is!.e· Nâo 
elfJfü!ID, Çrn certas porçxies de espaçx:i�t_empo, se_fl�O. sµjeitÇ>S, dotados de .Ç.ê:_tas 
capacidades lingüfsticas". Fica fa.cil avaliar, portanto, a gravidade que assume -·- - ·.· ... .. ,., ... . . - , 
,. . .. 
36 
Gram6tica Tradicianol e senso comum 
a auto-rejeiçao lingüfstica, a autodepreciaçao por parte do falante da lfngua/ 
variedade que é a sua. Ele rejeita e deprecia, no mesmo movimento, tudo 
aquilo que constitui a sua ù1.."Tltidade mesma de indivfduo. 
1.3.3 Um discurso preso ao passado 
Uma ultima tarefa importante na identificaçao da Gramatica Tradicio­
nal como uma ideologia, parece-me, é mostrar de que.mo.�o as ideologias 
conservadoras :-- entre as qu;i.isjnduo a GT -- privilegiam um discurso 
t�tJmeni� v�l!isf�Ï,_f!f.8 o_passado,.nw:n processo d_e :�s-histori�izqçfüJ desse 
discurso, que passf!_g$1:,.ëssim,.l!l11!1, "grande verdade" atemporal, estatica, 
a�·tônom;;·ëriiii'�.�jmµxavel em reÎaçao .à situaçao hist6rico-social que a 
prodüzîu�·independ�nte das lutas sociais que o conformaram. Explicando o 
cônêêit:o de "amnési�.da g�nese'.' proposto por Boui-dku, escreve Gnene 
(1985: 2ff;°-' ,., . . . 
A curta mem6ria social e histôrica permite um tipo de legitimaçâo que nâo seria 
passive! se a origem das instituiçoes sociais e o scu significado e funçâo fossem 
perfeitamente explicitaspara todos. f: amnésia da gênese, pelo contrario, pernü­
J� __ q_u(ê_��-�!en�.\l .. a _gram�tic:i-norrnativa fora <las _condiçoes politicas de sua ins­
t�<?J:J.��iq�i.a,,_g��ql}�igHid_[!�.<:.!sl�.11�f_essidade_é, llffi tW,ÇÇ> fund_a111ental
do processo de _legiç_imaçâo. ·. 
----·--,,.- ...--··--
Nessa tarefa recorrerei ao fil6sofo italiano Ferruccio Rossi-Landi e a 
sua obra A linguagem coma trabalho e coma mercado ( 1985; 1 • ediçao italiana: 
1968), em cuja pagina 151 podemos 1er: 
Sustentar que num objeto. exi�re. algo de_ e,m:a-hist6rico significa oper.ar .IJ!l;l 
privileg!�lll!n�o.Ï?tÏseâdiû:iop_qss(ldo. Este é O primeiro po�t� essen�i;Ïp�ra a in: 
te'rpretaçâo de qualquer ideologia conservadora ou reacionaria, independente­
mente das modalidades de comportamento segundo as quais ela pode manifestar­
se contingentemente. Corn efeito os objetos que sâo ditos hoje extra-hist6ricos, 
nada mais podem ser senâo objetos construidos pela humanidade em alguma fase 
precedente de seu desenvolvimento social. Sao esses os objetos que se quer de­
fender e conservar - e tanto melhor se o processo hist6rico do momento tiver 
institufdo uma maquina social capaz de conserva-los automaticamente . 
0 apego da GT ao passado é freqüent!:!rneme o ::1ly9 prefrddo_ q�-�-".!-�s 
. crfticos. _A P!§Pçta qua}ifiç,aÇ?_�_,c!� tr�ic/onp(�Y.i�-�.11_ci� .. �s.���P.��- A 
defesa intransigente das opçôes sintaticas dos grandes escritores classicos 
(isto é, do passado), o ataque constante à lfngua "deturpada" e "corrompi­
da" dos <lias de hoje, a perseguiçao aos estrangeirismos, a recusa em aceitar 
a mudança-variaçao da lfngua sâo caracterfsticas dos defensores da GT. 
37 
I}-
1 
Dromético do Hngua portuguesa 
Por isso nâ.o vamos estranhar que o mesmo tom empregado por Cândido 
de Figueiredo no final do século XIX para lamentar a "degradaçao" da 
lîngua portuguesa esteja presente, por exemplo, num artigo de Arnaldo 
Niskier publicado no final do século XX. Ero Figueiredo (1929: 13) lemos: 
Quanta mais progressiva é a civilizaçao de um povo, mais sujeita é a sua lfngua 
a deturpaçôes e vicias, sob a variada influência das relaçôes intemacionais, dos 
novas inventas, das travancas da ignorância, e até dos caprichos da moda. [ ... ] 
Sabios e romancistas, poetas e prosadores, e nomeadamente a imprensa peri6dica, 
parece haverem conspirado para dar curso às mais extraordinarias invençoes e 
enxertos de linguagem. 
Os termos invençoes e enxertos - que se referem a inovaçoes, mudanças,
transformaçoes na lîngua - dao bem a prova do apego do autor a uma nor­
ma lingüfstica ideal enraizada no passado. Quase cem anos depois, é a vez 
do entâ.o presidente da Academia Brasileira de Letras lamentar: 
A classe dita cuita mostra-se displicente em relaçao à lîngua nacional, e a indigên­
cia vocabular tomou conta da juventude e dos nao tao jovens assim, quase coma 
se aqueles se orgulhassem de sua pr6pria ignorância e estes quisessem voltar atras 
no tempo (Arnaldo Niskier, Folha de S. Paulo, 15/1/1998). 
0 mesmo ataque feito por Figueiredo à imprensa peri6dica é retomado 
obsessivamente por Sacconi (1998) em diversos trechos de seu livro: 
• Os brasileiros, por exemplo, vivem male parcamente num pais onde os jornalis­
tas escrevem muito male parcamente ... (p. 77).
• Essa gente [os jornalistas] ainda vai um dia inventar uma nova lfngua, inteli­
gfvel s6 para si mesmos (p. 82).
• A qualidade de nossos jamais piora (É preciso acrescentar ainda mais?) (p. 94).
0 temor de que surja uma "nova !fngua" é revelador da ilusâ.o conser­
vadora que guia o autor, incapaz de olhar pelo telesc6pio � ver que a lfngua 
portuguesa do Brasil esta mudando porque isso faz parte da natureza de 
qualquer lfngua viva. Mas o verdadeiro temor embutido nessa ideologia é 
outro: o temor da transformaçao social. É como analisa Rey (1972: 22): 
38 
Uma das constantes do purismo é a recusa da mudança hist6rica. [ ... ] A recusa se 
dirige aos imprevis(veis da hist6ria, e a recusa do tempo hist6rico recobre de fato 
a recusa do tempo social, da evoluçao social. A indignaçao <liante de uma onda 
de empréstimos, abertamente justificada pela temor de uma desestruturaçao da 
lfngua (assimilada ao léxico) corresponde sobretudo, parece, a uma reaçâo <lian­
te de uma mudança social [ ... ]. Por vezes, a rejeiçao de determinado eleme!_lto de 
uso é conscientemente motivado pela recusa de aceitar na norma ideal o_c_ompor­
tamento de uma classe de falantes. 
Gram6tica Tradicional e senso comum 
A noçao de que a doutrina gramatical veiculada hoje pelas gramaticas 
normativas é um dos "objetos construîdos pela humanidade em alguma 
fase precedente de seu desenvolvimento social", como diz Rossi-Landi, 
escapa totalmente aos defensores da GT. Comp J;L�rgumentei em trabalho 
anterior (Bagno 1999: 63 ), o que aconieff.YfQi µrnai;;;;:;W>�d�"r�;fü�e
.hist6rica, que é, como vimos, �ma_ëarac�erîstiç:.a.:_c,Ia_s idÇ,ol9gis1s,l\�grama-
ti�àtfôrârrï"ésêritas "i:,rf�t�ifil�Bt�:,PJ!f.i:dé;�'r�ver. e fi�ar CÇ)ffiO "regn1i: e 
"RJld!°§d' �§a?jf�s�as:§e,s)ing(iîstip�.s lls.adas e�pontaneamente_Relps es­
critores consider;i_qo.s,)1J,1ma deteJr.µjn,;:içla época, dig11qs de admiraçao, mo­
deiô;tâs�� i�it�do;. Ou seja, a gramatica normativa é decorrê�cia tfu usa da­
l(�gua, é s�b��dl;ada a ele, dependente dele. Corno a GN, porém, passou a 
ser um mecanismo ideol6gico·de poder e de controle de uma classe social domi­
nante sobre as demais, su,rgiu essa "falsa consciência!I, esse "senso comum0, 
essa "base real de poni:à��abeça" dè-qüe Ôs falâni:ës'e e���it6res da lf;;gua é 
·qu'é' -predsam cl�. ià:�rii�tlc.tii�imâJiY�t �omo. s�·:eli fo§;e. �u�;���pé�ie· -de
tont:è7îffsti�::Ïjµ�isJ,v,eLdaq�aliro.auitaJfngu,�_'.'hgµit�", '' correta0 e "pur�;
,.
Â'îî�'gu;·pa��ou a ser subordinada e dependent� da gramatica-��;�ati;;,
0 que nao esta na GN "nâ.o é português".
Quanto a uma "maquina social" capaz de defender e conservar automa­
ticamente, como diz Rossi-Landi, a ideologia dominante, a "supergramatica"
imperante, sabemos muito bem que ela existe no Brasil. A persistência de
um preconceito lingüfstico tâ.o poderoso em nossa cultura demonstra isso
claramente. Nossa "maquina social", que se caracteriza por ser simplesmente
a sociedade cqgi.i,pJ;r �jii:x(bµjçâ� �i.'xindadt: tocl� 0 pJa�et;7, serve per­
fêit�m�nte a9§ p�qpqsttos <:le defesa e co�s�r;açâ.o da -icle·;1�già'( è'.dô-poder)
.das da;;�s d�minant;s·.A �i�içi�-'{i994J êrèe!ftfç§o ( i998) à Presidênéia·
da Republica de um obediente cumpridor das imposiçôes da comunidade \,.
financeira intemacional, aliado às forças polfticas mais retr6gradas e a bordo
de um projeto econômico que visa declaradamente aprofundar o abismo )
entre as classes sociais do paîs, comprova isso cabalmente. ---
7. Dadas de um relat6rio do Unicef publicados pela revista Veja (22/12/1999, pp. 36-37)
revelam que ha 21 -milhêies de crianças e adolescentes no Brasil vivendo abaixo do nfvel da 
pobreza; numa lista de 191 pafses, o Brasil ocupa o 108° [ugar em mortalidade infanril; na 
distribuiçîio de renda, s6 perde para Serra Leoa, considerado o pafs mais pobre do mundo, em 
guerra civil ha dez anos. No Brasil, os 40% mais pobres ganham o equivalente a 8% da renda 
nacional, enquanto os 20% mais ricos ganham 64%. 0 ensino médio brasileiro s6 atende 50% 
da populaçiio entre 15 e 18 anos, deixando o pais em 94° lugar numa lista de 165 pafses. Tudo 
isso num pafs que tem a décima maior economia do planeta. 
39 
9-
Dramética da lingue porluguesa 
0 que Rossi-Landi (1985: 152) diz acerca do "planejamento social" ou 
do "projeta" que toda ideologia comporta é um retrato fiel do pensamento 
gramatical conservador: 
0 planejamento social às vezes declarado e às vezes ocultado pelo discurso pri­
vilegiado extra-historicamente consiste, entao, em se contrapor ao presente o 
passado como mais forte e, sobretudo, em fazer corn que o futuro se pareça corn 
ele. 0 que se quer impedir é que do presente surja um futuro radicalmente dife­
rente. 0 pedaço de passado a ser conservadoé en tao imobilizado,· estaticizado, 
des-dialetizado, justamente porque se quer subtraf-lo à mudança. 
A ânsia desenfreada de "preservar" a lfngua em sua "pureza" faz parte, 
indubitavelmente, desse "planejamento social". Nesse planejamento de­
sempenharam ( e desempenham) papel importante as academias de lfngua, 
institufdas como autoridade unica, absoluta e infalf vel na definiçao do voca­
bulârio oficial das lfnguas e nos usas leg{timos dos seus mecanismos fono­
morfossintâticos e de sua semântica. Seu mais importante modela foi, sem 
duvida, a Academia Francesa. Analisando-a à luz da preservaçao do ideal 
clâssico de "pureza" da lfngua, escreve Lyons (1995: 17-18): 
Nao se poderia encontrar prova mais admiravel da resistência da tradiçao clas­
sica no estudo da linguagem do que as definiçoes encontradas nas mais recentes 
ediçôes do dicionario e da gramatica da Academia Francesa que, desde sua fun­
daçao por Richelieu (em 16:37), tem sido encarregada da tarefa de estabelecer 
autoritariamente o vocabulario e a gramatica do francês. A gramatica é definida 
como "a arte de falar e escrever corretamente"; seu objetivo é descobrir as rela­
çôes existentes entre os elementos da lfngua, sejam essas relaçôes "naturais" ou 
"convencionais"; a tarefa do gramatico é descrever o "bom uso", isto é, a lfngua 
das pessoas educadas e dos escritores que escrevem francês "puro", e defender 
esse "bom uso" dè "todas as causas de corrupçao, tais como a invasao do vocabu­
lario por palavras estrangeiras, termos técnicos, gfria e pelas express6es barba-
ras que estao sendo constantemente criadas para satisfazer as necessidades duvi­
dosas do comércio, da industria, do esporte, da publicidade, etc."; quanto às re­
gras da gramatica, elas nao sao arbitra.rias, -mas "derivam das tendências naturais 
da mente humana". 
Segundo Lyons, embora nao exista um 6rgao oficial que tenha autori­
dade legislativa sobre o uso do inglês, os preconceitos litera.rios e fllos6ficos 
embutidos nas definiçô�s de gramatica da Academia Francesa (cuja origem 
podemos remontar à Accademia della Crusca, de Florença, fundada em 
1583) nao deixam de predominar nos pafses angl6fonos, tanto quanta na 
40 
Gramolico Trodicional e 5enso cornum 
França8• Na Espanha, a Real Academia, fundada pelo rei Filipe V em 1714,
à imitaçao da francesa, tem coma objetivos "la propiedad, elegancia y pureza
de las voces del idioma castellano", objetivos resumidos em seu lema:
"Limpia, fija y da esplendor". Seu dicionario e sua gramatica têm força de lei
nâ.o s6 na Espanha, mas em todos os pafses de lfngua espanhola. Em Portu­
gal, sob os auspfcios de D. Maria 1, foi fundada em 1783 a Academia de
Ciências de Lisboa, interessada nao apenas nas questoes lingüfsticas e litera­
rias como também em ciências naturais, ciências exatas e belas-artes. Ao
contrario de suas congêneres francesa e espanhola, a academia portuguesa
nao levou a cabo a tarefa de publicar seu dicionario oficial, cujo unico
volume, publicado em 1793, d�teve-se no verbete azurrar, o que deu margem
a mais de uma pilhéria. No Brasil, a Acade�ia Brasileira de Letras, outro
êmulo da francesa, fundada em 1896, tem por fim alegado "a cultura da
lfngua e da literatura ·nacional". É responsavel pela publicaçao e revisao
peri6dica do Vocabulario Ortografico da Ungua Portuguesa.
Os gramaticos tradicionalihas parecem querer nos convencer de que 
s6 eles po'dem impedir a mudança da lfngua, salva-la da "decadência léxica 
e sintatica dos nossos dias" (Almeida, 1994: 525). A insistência na descriçao 
de uma realidade lingüfstica ultrapassada, tida como a ideal, é que leva eles, 
por exemplo, a reproduzir, inalterados, os quadros dos "pronomes pessoais 
do caso reto" que ainda incluem t�_ey_6s e deixam de fora você que é, real­
mente, o pronome-sujeito de segunda pessoa mais amplamente Ùsado no 
Brasil. Ou em continuar presqevendo uma preposiçao a para reger verbos 
de movimento como ir. e çhegar, -�mbora-a ime;sa maioria:dos hrâ�il�hoiîde 
tod�s as cjgsses SOCÜlÎ�! inclusiv_e_�s_ cJ:iaf!_lf:l.das "cultas",us�!11 <?ll_tras prepo;i, 
çôës"éomo em e para (v�i: Çapfü116 .. 1t
. _,_. ___ . . .• 
---A repetiçao ad nauseam dos bordôes que denunciam c deploram a "de­
cadência" da lfngua é que gera, nutre e sustenta o preconceito lingüfstico. 
A força desse preconceito é que assegura aos ide6logos da GT sua sobrevi­
vência, em todos os sentidos, inclusive o econômico. 
Em sua anilise do processo de planejamento social constitufdo pela 
ideologia conservadora, Rossi-Landi (1985: 153) se pergunta o que acon­
tece corn O objeto "apenas-natural" ou "supra-natural", desdialetizado, des­
historicizado, oferecido pela ideologia: 
8. Cf. Haugen (1972: 106): "Quando escritores ingleses do século XVIII debateram se se
deveria estabelecer uma academia inglcsa para regular a Hngua, a idéia desse tipo de instituiçao 
veio da França. A proposta foi amplamente rejeitada porque os ingleses nâo desejavam repro­
duzir o que consideravam ser a 'tirania' francesa". 
41 
g 
Dram6tica da Irngua portugueso 
Sera possfvel, ap6s tê-lo indicado, continuar falando dele? A resposta comumen­
tc é sim, corn certeza. Alias, faz parte de quase todos os projetas conservadores 
que se fale dele o mais possfvel. E justamente por se falar dele, isto é, por se estar 
desenvolvendo uma operaçao hist6rico-social por excelência, é que se precisa 
atribuir a seu isolamento de todo o resta, isolamento esse no quai se deseja man ter 
o objeto, um carater extra-hist6rico; e quanta mais se fala nisso, tanto mais se 
confirma sua fixidez e se evita falar do resta. Constituem-se, assim, os objetos das 
ciências naturais ou naturalizantes, que sao todas ciências particulares, isto é, .
bem separadas uma da outra. Elas sâo solicitadas a estudar o mais detalhadamen­
te possfvel aquilo que "esta parada": nâo necessariamente no sentido d� ser im6-
vel, pois pode também tratar-se de movimentos abstratamente peri6dicos; mas
no sentido de nao estar sujeito ao devir. Essas ciências farâo uso entao de técnicas
l6gico-quantitativas, mecanicistas, mensurativas, enfim, de técnicas da espacia­
lidade enquanto isolada da temporalidade.
A Gramatica Tradicional, como têm revekdo todas as crfticas feitas a 
ela ao longo do século XX, é eminentemente uma "ciência" do que "esta 
parado". A lfngua que ela esmiuça, mensura e prescreve é um objeto atem­
poral, um "monumento" ( termo de predileçao dos gramaticos tradicionalis­
tas), defini tivamente na.o "sujeito ao devir". E as palavras de Rossi-Landi, 
publicadas em 1968, descrevem muito bem a situaçao da GT na cultura bra­
sileira contemporânea: nunca se falou tanto de "lfngua portuguesa" nos meios 
de comunicaçïo como se faz neste momento. Para o ja citado Arnaldo N iskier, 
trata-se de uma "saudavel epidemia". 0 jomalista Sérgio Limolli {IstoÉ, 20/ 
8/1997) fala de "partir para um contra-a taque" contra as "agressêies ao idioma" 
e usa termos como "uma dessas ofensivas", "saiu em defesa do idioma", "a 
radio ... investe no pr�grama". Para Rossi-Landi, 
De um ponto de vista dialético, trata-se de um contfnuo dar voltas em torno da 
tese, sem superar seus limites. Cada tese, historicamente, era uma sfntese. Uma 
vez, porém, que ela foi assumida em sua nova imediatez, ela foi subtrafda ao 
movimento e passou-se a ocupar-se apenas corn ela, fragmentando-a intemamente 
e complicando-a desmedidamente. A mesma operaçao é realizada sobre outras 
novas teses. Desse modo, nunca se chega à antftese; sem se falar de novas sfnteses, 
completamente obliteradas. 
A GT, como toda ideologia, "reluta em acreditar que um dia nasceu, 
pois isso seria o mesmo que reconhecer que pode marrer" (Eagleton, 1997:
61). A denuncia constante, por parte de tantos lingüistas e pedagogos, do 
carater repetitivo e, ao fim e ao cabo, inutil do ensino gramatical é o desnu­
damento desse "contfnuo dar voltas em tomo da tese". Como analisa Gnerre 
(1985: 20): 
42 
·Grom6tico Tradicionol e senso comum 
Uma série de pequenas mudanças caracterizam as

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