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O papalagui

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Prévia do material em texto

O Papalagui 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Jamais Tuiávii pretendeu editar para a Europa estas falas ou discursos; nem mandar imprimi-los de forma 
alguma, porque se destinavam, exclusivamente, aos seus compatriotas polinésios. Se, contudo, sem que 
ele o saiba e, decerto, contra a sua vontade, comunicaremos ao mundo europeu que lê as falas deste 
nativo, é porque estamos convencidos de que para nós, brancos instruídos, pode ser útil conhecer a 
forma como nos vê, a nós e a nossa cultura, um indivíduo estreitamente ligado à natureza. Com os olhos 
dele ficamos sabendo como nós mesmos somos, de um ponto de vista que nos é impossível assumir. 
Podemos, principalmente os fanáticos da civilização, achar que é ingênua a maneira como ele pensa; 
talvez pueril, ou mesmo tola. Mas aqueles que forem sensatos e humildes terão, ao refletir, de concordar 
com muito do que diz.Tuiávii; e terão de auto-criticar-se porque a sua sabedoria não provem da erudição 
mas da simplicidade que é divina. 
 
 Estas falas representam, por si, nada mais nada menos do que um apelo a todos os povos 
primitivos dos mares do Sul para que se libertem dos povos civilizados da Europa. Tuiávii, que despreza 
esta última, viveu na mais profunda certeza de que os seus antepassados indígenas haviam cometido o 
maior dos erros quando acolheram amávelmente as luzes da Europa. Tal qual aquela virgem de Fagasa 
que, do alto de um rochedo, repeliu com o leque o primeiro missionário branco, dizendo: "Vai, demônio 
malfazejo", também ele viu na Europa o demônio sombrio, o princípio que destrói, aquele do qual deve 
fugir quem quiser conservar-se puro. 
 
 Quando o conheci, Tuiávii vivia pacatamente, segregado do mundo europeu, na pequena e 
longínqua ilha de Upolu, que faz parte do arquipélago de Samoa, na aldeia de Tiavéa, da qual era senhor 
e chefe mais importante. À primeira vista, parecia um gigante maciço, simpático, com dois metros de 
altura, de estrutura particularmente robusta. A voz, em contraste, era suave, branda, quase feminina. Os 
olhos grandes, profundos, sombreados por espessas sobrancelhas, tinham algo de fantástico, fixo. Mas, 
quando de repente falava, mostravam-se calorosos, revelando disposição clara e benévola. 
 
 Nada havia, quanto ao mais, que distinguisse Tuiávii dos outros nativos. Bebia a sua Kava 
(bebida popular samoana, feita com as raízes do arbusto chamado Kava); pela manhã e à noite, ia ao loto 
(serviço religioso), comia bananas, taro e inhame, observava todos os usos e costumes de sua terra. 
Eram só os mais íntimos que sabiam quanto incessantemente seu espírito fervilhava, à busca de 
esclarecimento, nos momentos em que, como se sonhasse, os olhos semicerrados, ficava deitado na 
grande esteira que tinha em casa. 
 
 Ao passo que os indígenas, em geral, viviam tal qual crianças, apenas e exclusivamente no 
reino dos sentidos, totalmente e só no presente, sem perqüirir coisa alguma de si mesmos, nem do 
ambiente mais próximo ou mais distante, Tuiávii era de natureza excepcional, pois excedia de muito os 
seus semelhantes: isto é, tinha consciência, essa força íntima que nos distingue, mais do que qualquer 
coisa, de todos os povos primitivos. 
 
 Talvez fosse desta singularidade que se originara o seu desejo de conhecer a Europa 
longínqua; aspiração ardente que já sentia quando ainda freqüentava a escola dos missionários maristas 
mas que só realizou quando adulto. Juntando-se a um grupo teatral popular que viajava pelo continente, 
visitou, faminto de experiência, sucessivamente todos os países europeus, ganhando, assim, um 
conhecimento exato das respectivas características e culturas. Mais de uma vez me espantou a precisão 
com que estes conhecimentos atingiam minúcias aparentemente insignificantes. Tuiávii possuía, no mais 
alto grau, o dom da imparcialidade que marca a observação acurada. Nada havia que o ofuscasse, 
palavra alguma que o desviasse de uma verdade. Ele via, por assim dizer, a coisa em si, se bem que 
jamais se arredasse do seu próprio ponto de vista, por mais que refletisse. 
 
 Embora eu tenha vivido mais de um ano muito próximo a ele — eu era membro da sua 
comunidade —, Tuiávii só se abriu comigo quando nos tornamos amigos, depois que ele havia de todo 
superado, ou mesmo esquecido, o europeu em mim; depois que se convenceu de que eu amadurecera 
para a singeleza da sua sabedoria e de que dela não zombaria de maneira alguma (o que jamais fiz). Foi 
só então que me permitiu escutar trechos dos seus apontamentos. Leu-os para mim sem paixão, sem 
esforço oratório, como se aquilo que tinha para dizer fosse, por assim dizer, histórico; mas foi 
precisamente pela forma com que falava que tanto mais nítida e claramente me impressionou o que disse 
e me despertou o desejo de registrar o que ouvira. 
 
 Foi só muito mais tarde que Tuiávii me entregou os seus apontamentos e me permitiu traduzi-los 
para o alemão. Segundo pretendia, a tradução devia servir, unicamente, para fins de comentários de 
minha parte, jamais seria um fim em si mesma. Todas estas falas são esboços, nenhuma está concluída; 
nem Tuiávii jamais as considerou de outra forma. Depois da completa ordenação da matéria em sua 
mente, depois de reduzi-la à clareza derradeira é que tencionava iniciar o seu "trabalho missionário", 
conforme chamava, na Polinésia. Tive de deixar a Oceania antes que ele partisse nesta viagem. 
 
 Por mais que haja ambicionado permanecer fiel ao máximo ao original, sem me permitir interferir 
em absoluto na ordenação da matéria, tenho, no entanto, consciência do quanto me escapou da natureza 
intuitiva de sua fala, do sopro de sua intensidade. Hão de me perdoar de bom grado aqueles que sabem 
quanto é difícil traduzir para o alemão uma língua primitiva, ou exprimir o que nela soa pueril sem dar 
impressão de banalidade ou insipidez. 
 
 Todas as conquistas culturais européias são engano paraTuiávii.o insulano sem cultura; são 
becos sem saída. Isso poderia parecer arrogância, se tudo não fosse exposto com simplicidade 
maravilhosa, se não revelasse humildade. Sim, ele adverte aos seus compatriotas que se libertem do 
fascínio do Branco, mas o faz com melancolia, mostrando que o seu zelo missionário emana do amor 
humano e não do ódio. "Acreditais trazer-nos a luz", disse-me em nosso último encontro, "mas, na 
verdade, quereis é arrastar-nos para a vossa obscurida-de". Tuiávii vê as coisas e os fenômenos da vida 
com a honestidade e o amor à verdade de uma criança; esbarra em contradições, descobre deficiências 
morais profundas e, enumerando-as, recordando-as, transforma-as em experiência. Ele não consegue 
reconhecer em que reside o alto valor da cultura européia, se ela aliena o homem de si mesmo, o torna 
inautêntico, mais o desnatura, o piora. Ao enumerar nossas conquistas e começar, por assim dizer, pela 
epiderme, pela exterioridade, designando-as de modo absolutamente não-europeu e desapiedado, sem 
nenhum respeito, Tuiávii nos revela o espetáculo, embora limitado, de nós mesmos; espetáculo ante o 
qual não sabemos se é do autor ou do seu objetivo que devemos rir. 
 
 A meu ver, reside nesta franqueza pueril, nesta falta de respeito o valor que têm para nós, 
europeus, as falas de Tuiávii e a razão para que sejam publicadas. A Guerra Mundial fez-nos cépticos em 
relação a nós mesmos; começamos nós também a questionar as coisas no seu verdadeiro conteúdo; 
começamos a duvidar de que sejamos capazes de realizar o ideal que temos de nós mesmos dentro de 
nossa cultura. Daí por que não nos devemos julgar demasiado eruditos. Desçamos, por uma vez, das 
alturas de nosso espírito até a maneira singela de pensar e ver deste homem dos mares do Sul que, 
ainda livre do fardo da instrução e ainda primitivo no modo de sentir e de pensar, nos ajuda a descobrirem que nós perdemos o sentido sagrado do homem, criando, em compensação, ídolos sem vida. 
 
 Hom in Baden 
 Erich Scheurmann 
______________________________________________________________ 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
I 
 Como o Papalagui cobre a sua carne 
 com muitas tangas e esteiras 
 
 
 O Papalagui está sempre precupado em cobrir bem a sua carne. "O corpo e os membros são 
carne; só aquilo que está acima do pescoço é que é o homem, realmente": assim me falava um Branco, 
muito respeitado e tido como muito sábio. Queria ele dizer que só se devia considerar aquelas partes em 
que reside o espírito, com todos os pensamentos, bons e maus: a cabeça. A cabeça, sim, e se necessário 
também as mãos, o Branco permite que fiquem descobertas, embora a cabeça e a mão não sejam mais 
do que carne e osso. Aquele que, quanto ao mais, deixa que se lhe veja a carne não pode pretender à 
verdadeira moralidade. 
 
 Quando faz de uma moça sua esposa, nunca o rapaz sabe se foi enganado, porque jamais lhe viu, 
até então, o corpo(1). A moça, por mais bela que seja, tanto quanto a mais bela taopu (2) de Samoa, 
cobre o corpo para que ninguém o veja, nem tenha prazer em vê-lo. A carne é um pecado, segundo diz o 
Papalagui, porque o seu espírito é grande, é o que ele pensa. O braço que se ergue, à luz do sol, para 
atirar, é flecha do pecado; o peito, sobre o qual palpitam as ondas do respirar, é habitação do pecado; os 
membros com que a moça convida para a siva (3) são pecadores. E também os membros que se tocam 
para fazer seres humanos, alegrando a vasta terra, são pecaminosos. Tudo que é carne é pecado. Um 
veneno existe em todos os tendões, malicioso, que salta de um homem para outro. O espetáculo da 
carne, por si só, é suficiente para envenenar quem a contempla, intoxicá-lo, corrompê-lo e torná-lo tão 
abjeto quanto aquele que se deixa ver. É o que proclama a moral sagrada do homem branco. 
 
 É por isto que o corpo do Papalagui se envolve, da cabeça aos pés, em tangas, esteiras e peles, 
tão justas, tão apertadas, que olhar humano algum, raio algum do sol as atravessa; tão justas que o corpo 
se torna lívido, branco, fatigado, assim como as flores que crescem no mais profundo dos bosques. 
 
 Escutai, irmãos mais sensatos das muitas ilhas, que fardo um Papalagui carrega no seu corpo. 
Em primeiro lugar, envolve-o numa delgada pele branca, feita de fibras de certa planta, a chamada pele 
superior, que se atira para o alto e se enfia de cima para baixo, pela cabeça, peito e braços até as coxas. 
Por sobre as pernas e coxas até o umbigo, puxada de baixo para cima, vem a chamada pele de baixo. As 
duas peles são cobertas por uma terceira, mais grossa, tecida com os pelos de certo animal quadrúpede, 
lanoso, criado especialmente para este fim. É esta, propriamente, a tanga, que consiste quase sempre em 
três partes: uma cobre a parte de cima do corpo; a outra cobre a parte do meio; a terceira, as pernas. As 
três partes prendem-se entre si por meio de conchas(4) e tiras, feitas com a seiva ressecada da borracha, 
de tal forma que dão a impressão de ser uma peça só. Esta tanga quase sempre é cinzenta como a lagoa 
quando chove, nunca é realmente colorida; quando muito, a peça do meio, e só para aqueles homens que 
gostam de dar o que falar e de sempre andar atrás das mulheres. 
 
 Por fim, os pés ganham uma pele macia e outra muito dura. A pele macia, na maior parte das 
vezes, pode-se esticar e ajustar bem ao pé, ao passo que a outra quanto mais dura, menos se ajusta. É 
feita com a pele de um bicho forte que se mergulha, durante algum tempo, na água, se raspa com facas, 
se bate e se coloca ao sol até enrijecer de todo. Com isso o Papalagui fabrica uma espécie de canoa de 
bordas altas, justo o suficiente para nele caber um pé; uma canoa para o pé direito, uma canoa para o pé 
esquerdo. Estas canoas são amarradas, são atadas, ao tornozelo de maneira que os pés ficam dentro de 
um estojo rígido, tal qual o corpo do caracol. O Papalagui usa-o do nascer ao pôr do sol, sai nele para 
viajar e com ele dança; mesmo que esteja quente como após a chuva tropical. 
Como isso é muito contrário à natureza — conforme até o Branco percebe —, como os pés ficam como se 
estivessem mortos e começam a cheirar mal, como, de fato, quase todos os pés europeus já não 
conseguem agarrar nem trepar numa palmeira, por tudo isso o Papalagui tenta esconder a sua tolice, 
cobrindo com muita lama a pele do bicho, que é vermelha por natureza, dando-lhe, à custa de muita 
esfregação, um brilho tal que os olhos não suportam o ofuscamento e têm de desviar-se. 
 
 Viveu, em certo tempo, na Europa um Papalagui que ficou célebre e que muitos homens vinham 
procurar porque lhes dizia: "Não é bom que useis peles tãos estreitas e pesadas nos pés; andai descalços 
sob o céu enquanto o orvalho da noite cobre a relva; assim vos curareis de todas as doenças". Muito 
sadio era este homem, e ajuizado, mas riram-se dele e não tardaram a esquecê-lo. 
 
 As mulheres, aliás, tal qual os homens, usam muitas esteiras e tangas, enroladas no tronco e nas 
coxas. Sua pele se mostra sempre coberta de cicatrizes e esfoladuras devido aos cordões. Os seios ficam 
flácidos, sem leite, por causa de uma esteira que os aperta e vai do pescoço até o ventre e se amarra na 
frente e também nas costas; esteira que se enrijece com espinhas de peixe, arame e fios. É por isto que a 
maior parte das mães dão o leite aos filhos num rolo de vidro, fechado em baixo e com uma maminha 
artificial em cima. 
 
 Nem é o leite delas mesmas que dão, mas o de animais vermelhos, feios, chifrados, dos quais o 
arrancam com violência pelas quatro tetas que têm em baixo. 
Aliás, as tangas das mulheres e das moças são mais finas que as dos homens, e também podem ser de 
cor, muito luzidias. É comum o pescoço e os braços aparecerem, mostrando mais carne do que o homem. 
Em todo caso, convém que as moças se cubram muito e se diz com benevolência, então, que são 
pudicas, o que significa: observam os mandamentos da boa moral. 
 
 Daí é que nunca entendi por que, nos fonos (5) nos banquetes, as mulheres e moças deixam que 
se lhes veja a carne do pescoço e das costas, sem daí resultar vergonha. Mas talvez esteja nisso a graça 
da solenidade: é que aí se permite aquilo que não se permite todos os dias. 
 
 Só os homens têm o pescoço e as costas sempre muito cobertos. Do pescoço ao mamilo, o álii, 
isto é, o chefe, usa um pedaço de tanga tratado a cal, do tamanho de uma folha de taro, por cima da qual, 
enrolado no pescoço, descansa um aro mais alto, também branco e também tratado a cal. Através deste 
aro ele passa um pedaço de tanga colorida, fixa-lhe um prego de ouro ou uma conta de vidro, tudo 
pendente do peitoral. Muitos Papalaguis também usam aros tratados a cal no punho; nunca, porém, nos 
tornozelos. 
Este peitoral branco, como os aros brancos de cal, tem muita importância. Jamais um Papalagui fica sem 
estes adornos na presença de uma mulher. Pior ainda é se o aro de cal enegrece, fica sem brilho; e é por 
isto que muitos áliis importantes mudam todos os dias os peitorais e os aros de cal. 
 
 Enquanto as mulheres têm, para as festas, muitas esteiras de cor, com as quais enchem uns 
baús em pé e ocupam muitos de seus pensamentos para saber que tanga gostariam de usar hoje ou 
amanhã, se pode ser curta ou comprida; enquanto elas falam com muito interesse nos adornos com osquais fixá-los, os homens quase sempre têm um só traje para festas, do qual quase nunca falam. É a 
chamada roupa de ave, de um preto muito forte, que desce em ponta pelas costas, feito o rabo de 
papagaio (6). Quando se usa esta roupa de festa, também as mãos levam peles brancas; peles em cada 
dedo, tão estreitas que o sangue arde e corre para o coração. Por isto se permite que os homens 
sensatos apenas segurem estas peles nas mãos, ou as coloquem na tanga abaixo dos mamilos. 
 
 Assim que saem da cabana para a rua, o homem e a mulher envolvem-se noutra tanga mais 
larga, grossa ou fina conforme o sol brilhe mais ou menos. Cobrem, então, a cabeça, os homens com um 
vaso preto, rijo, curvo e oco feito o telhado de uma cabana samoana; as mulheres com grandes malhas 
de vime ou cestos virados para cima, aos quais prendem flores que nunca murcham, penas ornamentais, 
tiras, contas de vidro, todo tipo de enfeites. Parecem-se com a tuiga (7) da taopu durante a dança de 
guerra; só que esta é muito mais bonita, e só que não cai da cabeça durante a tempestade e a dança. Os 
homens sacodem estas casas que levam na cabeça sempre que têm de cumprimentar alguém, enquanto 
as mulheres apenas inclinam para diante a carga que trazem como se fosse uma canoa muito pesada. 
 
 Só à noite, quando vai para a esteira, é que o Papalagui tira todas as tangas, mas se enrola, 
imediatamente, numa outra, uma só, que se abre nos pés e os deixa descobertos. As mulheres e moças 
quase sempre usam esta roupa de noite, ricamente bordada no pescoço, se bem que pouco se veja. 
Assim que o Papalagui se deita na esteira, cobre-se, sem mais tardar, até a cabeça, com as penas que se 
originam de uma grande ave e se juntam numa grande tanga para não se soltarem ou se espalharem 
para todos os lados. 
Estas penas fazem o corpo suar e fazem o Papalagui pensar que está deitado ao sol, mesmo que este 
não brilhe, porque ao próprio sol o Papalagui não dá muita atenção. 
 
 Compreende-se, portanto, que o corpo do Papalagui seja branco e pálido, sem a cor da alegria. 
Mas é assim que o Branco quer. Até as mulheres, principalmente às donzelas, precupam-se muito em 
proteger a pele, evitando que se exponha à luz plena; quando saem para o sol, colocam-se embaixo de 
um grande teto, como se a cor lívida da lua valesse mais que a cor do sol. É que o Papalagui em todas as 
coisas gosta de fazer uma sabedoria e uma lei a sua maneira. O seu próprio nariz, pontudo como o dente 
do tubarão, para ele é bonito, ao passo que o nosso, sempre redondo e mole, ele acha feio e disforme, 
quando nós pensamos exatamente ao contrário. 
 
 É porque o corpo das mulheres e moças se cobre tanto que os homens e rapazes desejam 
ardentemente ver-lhes a carne, o que é natural. Noite e dia, pensam nisso, falam constantemente nas 
formas do corpo das mulheres e moças, como se fosse grande pecado aquilo que é natural e bonito, só 
devendo ocorrer na maior escuridão. Se eles deixassem ver a carne à vontade, poderiam pensar em 
outras coisas; e os olhos não revirariam nem a boca diria palavras impudicas quando encontrassem uma 
moça. 
 
 Mas a carne é pecado, é do aitu*? Existe idéia mais tola, amados irmãos? A crer no que diz o 
Branco, deveríamos querer, como ele, que a nossa carne fosse dura como a rocha do vulcão, sem a bela 
quentura que vem de dentro. No entanto, alegramo-nos porque a nossa carne encontra o sol; as nossas 
pernas mexem-se como o cavalo selvagem, sem tanga que as amarre, nem pele que as contenha e não 
nos preocupamos com que coisa alguma caia da nossa cabeça. Alegramo-nos ao ver a virgem que 
mostra seu corpo bonito ao sol e à lua. Tolo, cego é o Branco, que não sente o prazer verdadeiro, ele que 
precisa cobrir-se tanto para evitar se envergonhar. 
 
 * 
 
Notas: 
 
1. Nota de Tuiávii: mesmo mais tarde, ela só o mostrará raramente, e apenas de noite ou ao crepúsculo. 
2 Moça aldeã, rainha das moças. 
3 Dança nativa. 
4 Tuávii refere-se aos botões e elásticos 
5 Reuniões, deliberações 
6 É do fraque que se trata, certamente. 
7 Enfeite de cabeça. 
 
 
 
 
 
 
II 
 Dos baús e fendas de pedra 
 e do que entre eles existe 
 
 
 O Papalagui mora, como o marisco, numa casca dura; e vive no meio de pedras, tal qual a 
escalopendra*entre fendas de lava, com pedras em volta, dos lados e por cima. A cabana em que mora 
parece-se com um baú de pedra em pé, com muitos compartimentos e furos. 
 
 A gente desliza para dentro e para fora da casca de pedra apenas por um lugar que o 
Papalagui chama entrada quando vai para dentro, e saída quando vem para fora, embora ambas as 
coisas sejam absolutamente uma só e a mesma. Neste lugar existe uma grande folha de madeira que se 
tem de empurrar com força para entrar na cabana. Mas isto é só para começar: tem-se de empurrar ainda 
outras folhas para estar, de fato, na cabana. 
 
 Quase todas as cabanas são habitadas por mais pessoas do que as que moram numa só aldeia 
samoana; por isto, tem-se de saber exatamente o nome da aiga (1) que se quer visitar. Cada aiga tem 
para si uma parte especial do baú de pedra, ou em cima, ou embaixo, ou no meio, à esquerda, à direita, 
ou mesmo na frente. E cada aiga não sabe nada da outra, nada mesmo, como se entre elas não 
houvesse um muro de pedra mas, sim, Manono, Apolima, Saváii (2) e numerosos mares. 
 
 É muito comum nem saberem o nome umas das outras; e se se encontram no buraco por onde 
entram e saem, cumprimentam-se de má vontade, ou resmungam qualquer coisa, tal qual insetos hostis, 
dando a impressão de estarem zangadas por terem de viver perto umas das outras. 
 
 Se a aiga habita no alto, embaixo do próprio teto da cabana, tem-se de subir por muitos galhos, 
em ziguezague ou em círculo, para chegar ao lugar em que está escrito na parede o nome da família. Vê-
se, então, a imitação graciosa de uma maminha que se aperta até que ressoe um grito e apareça a 
família. Esta olha por um pequeno furo gradeado, redondo, para saber se não é um inimigo, caso em que 
enchendo sempre o ar de fumaça e cinzas, como se fosse a erupção da grande cratera de Saváii. 
Fumaça e cinzas que chovem nas fendas, de modo que os altos baús de pedra parecem o limo dos 
pântanos; as pessoas recebem nos olhos e nos cabelos terra preta, além de areia dura entre os dentes. 
 
 Apesar disso tudo, os homens andam por estas fendas da manhã à noite, muitos até 
contentíssimos. Nota-se que em algumas fendas há uma confusão para a qual as pessoas acorrem feito 
limo grosso. São as ruas onde se construíram enormes caixas de vidro nas quais se mostram todas as 
coisas necessárias à vida do Papalagui: tangas, enfeites para a cabeça, peles para as mãos e os pés, 
coisas de comer, carne, alimentos verdadeiros como frutas, legumes e muitas outras coisas. Tudo está ali 
exposto para atrair os homens. No entanto, ninguém pode tirar coisa alguma, mesmo em caso de 
precisão extrema. Para isso, tem-se de conseguir uma licença especial e fazer uma oferenda. 
 
 Nestas fendas, de todos os lados, há perigos que ameaçam; os homens não somente 
esbarram uns nos outros, mas circulam e galopam a cavalo, cruzando-se e entrecruzando-se, ou se 
fazem carregar em grandes baús de vidro, que deslizam sobre tiras metálicas. É grande o barulho. Os 
ouvidos ficam surdos, porque os cavalos batem com os cascos nas pedras do chão, as pessoas batem 
com as peles duras que lhes cobrem os pés. As crianças berram, os homens gritam de alegria ou medo, 
todos gritam. Ninguém pode entendero que o outro diz senão gritando. É um rugido geral, um ronco, um 
bater de pés, um grunhido, como se a gente estivesse no penhasco de Saváii, com a tempestade 
bramindo; bramido que, no entanto, é mais agradável e não enlouquece como o rugido que se ouve entre 
as fendas de pedra. 
 
 Tudo isso: os baús de pedra com a quantidade de homens, as fendas altas, o ir-e-vir, por assim 
dizer, de muitos rios, as pessoas no meio deles, o barulhos, os rugidos, a areia preta, a fumaça negra, 
principalmente, sem uma árvore, sem azul do céu, sem ar leve, nem nuvens - tudo isso é o que o 
Papalagui chama "cidade", sua criação, de que tem muito orgulho. Aí vivem homens que nunca viram 
uma árvore, um bosque, um céu claro; nunca viram o Grande Espírito face a face. Homens que vivem 
como se fossem répteis na lagoa, como se fossem bichos debaixo dos corais, mas esses no entanto, 
estão cercados pela água límpida do mar e o sol pode chegar até eles com a sua boca quente. O 
Papalagui tem orgulho das pedras que ajunta? Não sei. O Papalagui é um ente humano que pensa de 
modo especial: faz muita coisa que nada significa e que lhe faz mal, mas apesar disso, ele se jacta, gaba-
se do que constrói. 
 
 Portanto, a cidade é isso que falei; mas existem muitas cidades, pequenas e grandes. As 
maiores são aquelas onde moram os chefes mais importantes do país. Todas as cidades estão 
espalhadas como se fossem ilhas no meio do mar: é comum umas estarem à distância de umas tantas 
braçadas pelo mar; mas há outras que se leva um dia de viagem para alcançar. Todas estas ilhas de 
pedra estão ligadas entre si por meio de caminhos marcados. Mas pode-se também ir num navio 
terrestre, fino e comprido feito um verme, que está sempre cuspindo fumaça e que desliza, muito rápido, 
em fios de ferro comprido, mais rápido do que um bote de doze assentos, a toda velocidade. Mas se a 
pessoa apenas quer dizer talofa (4) a um amigo de outra ilha, não precisa ir até à casa dele: sopra o que 
quer dizer em fios metálicos, que vão de uma ilha de pedra a outra, feito compridos cipós. Mais depressa 
do que uma ave voando, o recado chega ao lugar pensado. 
 
 Entre todas as ilhas de pedra está o país que, propriamente, se chama Europa, onde a terra é, 
em parte, bela, e dá frutos como a nossa, com árvores, rios, florestas e também pequenas aldeias de 
verdade. Aí as cabanas são também de pedra e possuem muitas árvores frutíferas, que a chuva lava e o 
vento torna a secar. 
 
 Nestas aldeias vivem outros homens que sentem e pensam diferente dos que vivem na cidade. 
Chamam-se homens do campo e têm as mãos mais grossas do que os homens que vivem nas fendas e 
tangas mais sujas. Mas comem muito mais. A vida deles é muito mais saudável e mais bela do que a dos 
homens das fendas. É raro, no entanto, que acreditem nisso e invejam os outros a quem chamam de 
preguiçosos, porque não cavam a terra e não plantam, nem colhem. Vivem em luta com os da cidades 
porque têm de lhes dar a comida que tiram das suas terras; têm de colher as frutas que o homem das 
fendas come; têm de criar e abrigar o gado até engordá-lo e dar a metade ao homem da cidade. O caso é 
que precisam fazer muita força para dar comida aos homens das fendas e não compreendem por que 
estes se envolvem em tangas mais bonitas; por que têm as mãos mais brancas; por que não suam 
debaixo do sol, nem têm de padecer o frio e a chuva como eles. 
 
 O homem das fendas, no entanto, pouco se importa, convencido de que tem mais direitos do que 
o homem do campo e de que o seu trabalho vale mais do que plantar e colher. Mas esta briga entre as 
duas partes não chega ao ponto de se guerrearem: em geral, o Papalagui acha que tudo está bem, 
conforme está, quer viva entre fendas, quer no campo. O homem do campo admira os domínios do 
homem das fendas quando vai à cidade; e o homem das fendas canta e arruma quando passa pelas 
aldeias. O homem das fendas deixa que o homem do campo engorde seus porcos artificialmente, e este 
deixa o homem das fendas construir e armar os seus baús de pedra. 
 
 Quanto a nós, livres filhos do sol e da luz, o que nós queremos é permanecer fiéis ao Grande 
Espírito e não lhe sobrecarregar com pedras o coração. Só homens loucos, doentes, que já não seguram 
a mão de Deus, podem viver felizes entre fendas, sem sol, sem luz, sem vento. Deixemos ao Papalagui a 
sua felicidade duvidosa, mas vamos obstar-lhe toda tentativa de construir baús de pedras em nossas 
praias ensolaradas e de matar a nossa alegria de viver com pedras, fendas, sujeira, barulho, fumaça e 
areia, conforme ele pensa e quer. 
 
 * 
Notas: 
 
1. Uma espécie de centopéia. 
2. Família 
3.Três ilhas do grupo de Samoa 
4. Cumprimento samoano. Literalmente: "gosto de ti" 
 
 
 
 
III 
 
 Do metal redondo 
 e do papel pesado 
 
 
 Irmãos sensatos, escutai com fé o que vou dizer e sabei como somos felizes por não conhecer 
a angústia e o pavor dos Brancos. Podeis todos testemunhar o que o missionário diz: Deus é amor; um 
cristão de verdade faz bem se tiver sempre diante de si a imagem do amor; só assim é que vale para o 
grande Deus a adoração do Branco. Ele nos enganou, nos mentiu, os Brancos, corromperam os 
missionários para que eles nos enganassem com as palavras do Grande Espírito. Pois o metal redondo e 
o papel pesado, que eles chamam dinheiro, é que são a verdadeira divindade dos Brancos. 
 
 Fale a um Europeu do Deus do amor: ele torce o rosto, sorri. Sorri da simplicidade com que 
pensas. Estenda-lhe, no entanto, um pedaço redondo, brilhante, de metal, ou um papel grande, pesado: 
sem tardar, seus olhos brilham, muita saliva lhe vem aos lábios. O dinheiro é o objeto do seu amor, é a 
sua divindade. Todos os Brancos pensam nele, até dormindo. Muitos há cujas mãos de tanto querer 
agarrar o metal e o papel ficaram tortas e parecidas com as pernas da grande formiga do bosque. Há 
muitos cujos olhos cegaram de tanto contar dinheiro. Muitos que renunciaram à alegria pelo dinheiro; ao 
riso, à honra, à consciência, à felicidade, até à mulher e aos filhos. E quase todos renunciam à saúde pelo 
dinheiro, pelo metal redondo e pelo papel pesado. 
 
 Carregam-no em suas tangas, dentro de peles duras dobradas. À noite colocam-no debaixo do 
rolo onde pousam a cabeça para que ninguém o tire. Pensam todos os dias, todas as horas, em todos os 
momentos no dinheiro. Todos, todos! Até as crianças têm de pensar nele, devem nele pensar! É o que 
aprendem com a mãe, é o que vêem o pai fazer. Todos os europeus! Se fores às fendas de pedra de 
Siamani (1) a todo momento ouvirás um brado: marco! E sem parar: marco! Ouves este brado em toda 
parte: o nome que dão ao metal brilhante e ao papel pesado em Falani (2) é franco; em Peletânia (3) 
xelim; na Itália, lira. Lira, marco, franco, xelim, é tudo a mesma coisa. Tudo isto quer dizer dinheiro, 
dinheiro, dinheiro. O dinheiro, e mais nada, é o verdadeiro Deus do Papalagui, se Deus é aquilo que mais 
adoramos, que mais veneramos. 
 
 É necessário dizer que não é possível, na terra dos Brancos, ficar sem dinheiro, em momento 
algum, desde que o sol se levanta até que se deita. Se estás inteiramente sem dinheiro, não acalmas a 
fome nem a sede, não encontras esteira para dormir. Te mandarão para o fale pui pui (4) falarão de ti nos 
muitos papéis (5) se não tiveres dinheiro. Tens de pagar, quer dizer, tens de dar dinheiro pelo chão em 
que andas, pelo lugar em que ergues tua cabana, pela esteira em que passas a noite, pela luz que aclara 
tua cabana. Tens de pagar se quiseres atirar num pombo,se quiseres banhar teu corpo no rio. Se 
quiseres ir aos lugares em que as pessoas se alegram, em que cantam ou dançam, se quiseres pedir 
conselho ao teu irmão, tens de dar muito metal redondo, muito papel pesado. Tens de pagar por tudo. 
 
 Onde quer que vás hás de ver teu irmão com a mão estendida, pronto a desprezar-te, a 
enfurecer-se contigo se nela nada puseres. Nem servirá de nada a humildade do teu sorriso, a simpatia 
do teu olhar para abrandar-lhe o coração. Ele abrirá a goela e berrará: "Miserável! Vagabundo! Ladrão!" 
Tudo isso quer dizer a mesma coisa: a maior vergonha que se pode inflingir a um homem. Até para 
nascer tens de pagar; e quando morreres, a tua aiga tem de pagar por ti, por teres morrido e também para 
o teu corpo baixar à terra; e pela pedra que rolarem sobre a sepultura em tua memória. 
 
 Só vi uma coisa pela qual, na Europa, ainda não se exige dinheiro, da qual todos podem 
participar quanto queiram: a respiração do ar. Mas acho que apenas se esqueceram disso; e não hesito 
em declarar que, se ouvissem o que digo na Europa, imediatamente também exigiriam pelo ar que se 
respira o metal redondo e o papel pesado. Pois todos os europeus estão sempre à procura de novos 
motivos para exigir dinheiro. 
Na Europa, sem dinheiro, és um homem sem cabeça, sem membros; és nada. Precisas ter dinheiro, 
precisas dele para comer, beber, dormir. 
 
 Quanto mais dinheiro tens, melhor te será a vida porque, tendo-o, podes ter com ele tabaco, 
anéis, tangas bonitas. Podes ter tanto tabaco, tantos anéis e tangas quanto for o dinheiro que tenhas. Se 
tiveres muito dinheiro, podes ter muitas coisas. Não há quem não queira ter muitas coisas e por isto todos 
querem ter muito dinheiro; e cada um mais do que o outro. Daí a ânsia por consegui-lo, a atenção com 
que os olhos o buscam a todo momento. Jogue um metal redondo na areia e verás que as crianças se 
atiram em cima, brigam por ele; aquela que o agarra e guarda é a vencedora e fica contente. Mas é muito 
raro alguém jogar dinheiro na areia. 
 
 De onde vem o dinheiro? Como é que se pode ganhar muito dinheiro? Oh! De muitas formas, 
com facilidade ou com dificuldade. Se cortas o cabelo do teu irmão, se tiras a sujeira da frente da cabana 
dele, se levas uma canoa na água, se tens uma boa idéia. Diga-se, por amor à justiça, que se tudo exige 
muito papel pesado e metal redondo, é no entanto, fácil ganhá-los em troca de qualquer coisa. Basta 
fazeres o que chama na Europa "trabalhar". "Se trabalhares, terás dinheiro", é o que diz uma regra moral 
dos europeus. 
Existe aí uma grande injustiça que o Papalagui não nota, nem quer pensar sobre isto para não ser 
obrigado a reconhecer que ela existe. Nem todos que têm muito dinheiro trabalham muito. (Por sinal, 
todos gostariam de ter muito dinheiro sem trabalhar). É assim: quando um Branco ganha tanto dinheiro 
que dá para comer, para ter sua cabana e sua esteira e mais algumas coisas, imediatamente, com o 
dinheiro que tem a mais, faz seu irmão trabalhar para ele. 
 
 Dá-lhe, primeiro, o trabalho que lhe sujou e endureceu as mãos; faz que limpe os excrementos 
que ele próprio expeliu. Se é mulher, arranja uma moça que trabalhe para ela, mandando-a limpar a 
esteira suja, lavar a louça e as peles em que coloca os pés, consertar as tangas que se rasgaram, sem ter 
o direito de fazer nada que não seja bom para seu amo. Homem ou mulher, quem assim procede fica com 
tempo para o trabalho mais importante, mais divertido, que não suja as mãos, não cansa e dá mais 
dinheiro. Se ele é construtor de barcos, o outro deverá ajudá-lo a construir os barcos. Do dinheiro que 
este produz, ajudando, e que devia, portanto, ficar todo para ele, o amo tira-lhe uma parte, a maior e, 
assim que pode, põe mais dois irmãos trabalhando para ele, depois três, e mais, e mais, em número cada 
vez maior, até cem ou mais, seus irmãos constróem os barcos para ele. Enfim, o amo já não faz coisa 
alguma senão deitar-se na esteira, bebendo kava européia, queimando rolos de fumaça, vendendo os 
barcos quando estes estão prontos e recebendo o metal e o papel que os outros, trabalhando, ganharam 
para ele. Dizem, então: ele é rico. Invejam-no, adulam-no muito e lhe falam com palavras sonoras, porque 
a importância de um homem, no mundo branco, não é dada por sua nobreza, coragem, o brilho das suas 
idéias, mas pela quantidade de dinheiro que tem, quanto dinheiro é capaz de ganhar por dia, quanto 
guarda no seu forte baú de ferro que terremoto algum pode destruir. 
 
 Há muitos Brancos que amontoam o dinheiro que outros fizeram para eles; levam-no para um 
lugar muito bem guardado e vão trazendo cada vez mais até que, certo dia, já não precisam fazer os 
outros trabalharem para eles. Agora é o próprio dinheiro que trabalha no lugar deles. Como é possível 
isso acontecer sem qualquer feitiçaria brava, nunca pude saber, mas a verdade é que o dinheiro se 
multiplica como as folhas de uma árvore; e o homem vai ficando mais rico, mesmo quando dorme. 
 
 Mesmo quando um homem tem muito dinheiro, muito mais do que a maior parte dos outros, 
tanto dinheiro que daria para aliviar o trabalho de cem, até mil pessoas, nem assim lhes dá coisa alguma; 
pega no metal redondo e senta-se em cima do papel pesado com avidez e volúpia brilhando nos olhos. 
Se lhe perguntares: "Que vais fa-,zer com todo esse dinheiro? Não podes ter mais na terra do que roupa,* 
comida, água para beber". Ele não sabe o que responder, ou diz: "Quero ter cada vez mais dinheiro; mais 
e mais". E tu vês logo que o dinheiro o pôs doente, que sua mente está inteiramente possuída pelo 
dinheiro. 
 
 Está doente, obcecado, porque a alma lhe pende do metal redondo e do papel pesado; porque 
jamais terá o bastante, jamais deixará de apoderar-se do mais que puder. Ele não pensa desta forma: 
"Irei deste mundo tal qual a ele vim, sem provocar enfermidades e nem injustiça, pois o Grande Espírito 
me mandou à terra sem metal redondo e papel pesado". São poucos os que assim pensam. A maior parte 
continua doente, sem recuperar jamais a saúde do coração, se regozijando com o poder que a grande 
quantidade de dinheiro lhe dá. Ficam inchados de orgulho, como as frutas podres quando cai a chuva 
tropical. Com volúpia mandam muitos dos seus irmãos para o trabalho pesado a fim de poderem engordar 
e prosperar. Fazem isso sem que a consciência lhes doa. Alegram-se porque têm os dedos bonitos, 
dedos limpos, que nunca se sujam. Não os atormenta, não lhes tira o sono saber que estão roubando, a 
todo momento, a força dos outros, força que tornam sua. Nem sonham em dar aos outros parte do 
dinheiro que têm para lhes facilitar o trabalho. 
 
 Assim é que existe, na Europa, metade que tem de trabalhar muito e se sujando enquanto a 
outra metade pouco ou coisa alguma faz. Aquela metade não tem tempo para deitar-se ao sol; a outra 
tem demais. Diz o Papalagui: "Todos os homens não podem ter a mesma quantidade de dinheiro, nem 
todos podem deitar-se ao sol ao mesmo tempo!" Com esta doutrina ele assume o direito de ser cruel, por 
amor ao dinheiro. Tem o coração duro, o sangue frio. Finge até, mente, é sempre desonesto, sempre 
ameaça, quando quer botar a mão no dinheiro. É comum um Papalagui matar outro por causa do 
dinheiro. Mata-o com o veneno das palavras, atordoa-o para despojá-lo e é por isso que quase ninguém 
confia no outro, porque todos conhecem a fraqueza comum. Jamais sabes se aquele que tem muito 
dinheiro tem bom coração; é bem possível que ele seja mau. Nunca se sabe de que maneira e de onde o 
outro tirou a sua riqueza. 
 
 Em compensação, o rico nunca sabe se as honras que lhe prestam são para ele mesmo ou 
para o seu dinheiro.Na maior parte dos casos, são por causa do dinheiro. É por isto que não compreendo 
porque se envergonham tanto os que não têm muito metal redondo nem papel pesado e porque invejam o 
rico em vez de se sentirem invejáveis. Não convém, nem é bonito pendurar no pescoço muitos colares de 
conchas; assim também, não convém sobrecarregar-se com o peso do dinheiro que tira o fôlego do 
homem e a liberdade de movimento necessária a seus membros. 
 
 Mas não há Papalagui que renuncie ao dinheiro; não há mesmo. Quem não ama o dinheiro é 
ridicularizado, é "valea", quer dizer, estúpido. "A riqueza (ter muito dinheiro) dá a felicidade", diz o 
Papalagui. "O país que mais dinheiro tem é mais feliz". 
Nós todos, luminosos irmãos, somos pobres; e a nossa terra é a mais pobre que há debaixo do sol. Não 
temos tanto metal redondo, nem tanto papel pesado que dê para encher um baú. Somos uns mendigos, 
uns miseráveis aos olhos do Papalagui. Mas quando vos vejo os olhos e os comparo com os dos ricos 
áliis, vejo que os deles são sem brilho, abatidos, cansados, ao passo que os vossos, tal qual a grande luz, 
irradiam alegria, força, vida, saúde! Olhos como os vossos, só os vi nas crianças do Papalagui, quando 
ainda não sabem falar, porque até então nada sabem do dinheiro. Como nos favoreceu o Grande Espírito 
preservando-nos do aitu, pois o dinheiro é um aitu; porque todos que tratam com ele são maus e fazem 
mal. Quem apenas toca no dinheiro é tomado pelo seu feitiço; quem o ama tem de servi-lo e dar-lhe todas 
as forças, todas as alegrias, enquanto viver. Amemos os nossos nobres costumes que nos ensinam a 
desprezar aquele que exige alguma coisa pela sua hospitalidade; que reclama um alofa (7) pelo fruto que 
dá. Amemos os nossos usos que não nos permitem suportar que alguém tenha muito mais do que o 
outro, nem que alguém tenha muito e o outro nada. Não sejamos de coração como o Papalagui, que pode 
sentir-se feliz e contente mesmo se o irmão junto dele está triste e infeliz. 
 
 Livremo-nos, porém, antes de mais nada, do dinheiro. O Papalagui oferece-nos o metal 
redondo e o papel pesado para nos dar o seu gosto. Eles querem nos convencer de que o dinheiro nos 
fará mais ricos e felizes. Já são muitos dentre nós os que se deixaram deslumbrar e se contagiaram com 
essa grave doença. Mas se acreditardes no que vos diz o vosso humilde irmão; se perceberdes que vos 
falo a verdade quando vos digo que o dinheiro jamais dá alegria e felicidade mas, pelo contrário, confunde 
e angustia completamente o coração, a alma toda do homem; quando vos digo que com dinheiro, jamais 
se ajudou realmente homem algum a ser mais alegre, mais forte, mais feliz; então havereis de detestar o 
metal redondo e o papel pesado como o vosso pior inimigo. 
 
 * 
Notas: 
 
1 Alemanha 
2 França 
4 Inglaterra 
5 Prisão 
6 Jornais 
7 Presente, retribuição. 
 
 
 
 
IV 
 As coisas em quantidade 
 empobrecem o Papalagui 
 
 
 Reconhecereis também o Papalagui por seu desejo de nos convencer de que somos pobres, 
miseráveis e precisamos de muita ajuda e compaixão porque não temos as "coisas". Vou contar-vos, 
amados irmãos das muitas ilhas, o que é uma coisa. O coco é uma coisa; o apanha-moscas, a tanga, a 
concha, o anel, o prato que se come, o enfeite que se põe na cabeça, tudo isso são coisas. Mas há duas 
espécies de coisas. Há coisas que o Grande Espírito é que faz, sem ninguém, que não custam esforço 
nem trabalho algum, como o coco, a concha e a banana. E há coisas que são os homens que fazem, que 
custam muito trabalho e esforço: o anel, o prato, o apanha-moscas. 
 
 O álii, então, acha que nos faltam as coisas que ele próprio faz com as mãos, as coisas dos 
homens, pois nas coisas do Grande Espírito ele não pensa. Ora, quem é mais rico, quem mais do que 
nós tem as coisas do Grande Espírito? Olhai em volta, olhai longe, longe, até onde a borda da terra 
sustenta a abóbada azul. Tudo está cheio de grandes coisas: a floresta virgem com seus pombos 
selvagens, os colibris e papagaios, a lagoa com suas holotúrias, conchas, lagostas, e outros bichos 
aquáticos, a praia com seu claro semblante e a pele macia da areia, a grande água, capaz de enfurecer-
se como um guerreiro e sorrir como uma taopu; a imensa abóbada azul, que a toda hora se transforma, 
carregada de grandes flores que nos dão luz dourada e prateada. Por que é que havemos de ser loucos a 
ponto de querer mais coisas além das belas coisas do Grande Espírito? 
 
 Jamais poderemos criar como ele cria porque o nosso espírito é por demais pequeno e fraco em 
comparação com o poder do Grande Espírito. A nossa mão é fraca demais comparada com a sua grande 
e poderosa mão. Tudo quanto fizermos será medíocre; nem vale a pena falar disso. Podemos alongar 
com um pau o nosso braço, aumentar o oco da nossa mão com uma tanoa (1). mas não há Samoano 
nem Papalagui capaz de fazer uma palmeira nem o tronco de uma kava. 
 
 O Papalagui acredita, decerto, que pode fazer coisas assim porque se julga tão forte quanto o 
Grande Espírito. É por isto que milhares e milhares de mãos, da manhã à noite, não fazem mais do que 
fabricar coisas: coisas humanas que não sabemos para que servem e cuja beleza não percebemos. E o 
Papalagui está sempre procurando inventar mais coisas novas. Com as mãos febris, o rosto cor de cinza, 
as costas curvas, seu olhar se ilumina de alegria quando consegue fazer uma coisa nova. E todos logo 
querem ter a nova coisa; adoram-na, contemplam-na, cantam-na em sua língua. 
 
 Ó irmãos, acreditai no que vos digo: ocultei-me atrás dos pensamentos do Papalagui e vi o que 
ele quer, como se o iluminasse o sol do meio-dia. Destruindo, onde quer que vá as coisas do Grande 
Espírito, o Papalagui com sua própria força pretende dar vida, novamente, àquilo que matou, 
convencendo-se assim de que é o Grande Espírito porque faz muitas coisas. 
 
 Irmãos, imaginai que de repente venha a grande tempestade, arrancando a floresta virgem com as 
suas montanhas, com toda a folhagem e todas as árvores, levando todos os animais da lagoa, não 
deixando sequer uma flor de hibisco para que nossas moças enfeitem seus cabelos. Que tudo quanto 
vemos desapareça, mais nada reste além da areia: que a terra fique parecendo uma mão chata, 
estendida, ou um morro pelo qual escorreu a lava ardente -todos nós teremos saudades da palmeira, da 
concha, da floresta, de tudo teremos saudades. Lá onde estão as cabanas dos Papalaguis, os lugares 
que chamam cidades, lá, no entanto, a terra está deserta tal qual uma mão vazia e, por isto, o Papalagui 
fica louco, imagina ser o Grande Espírito, a fim de esquecer o que não tem. Porque está muito pobre, 
porque a sua terra está muito triste, o Papalagui pega nas coisas, ajunta-as, feito o doido que ajunta 
folhas murchas e com elas enche a sua cabana. Mas é também por isto que nos inveja e deseja que 
fiquemos tão pobres quanto ele. 
 
 Mostra que é muito pobre aquele que precisa de coisas em quantidade porque, assim, prova que 
lhe faltam as coisas do Grande Espírito. O Papalagui é pobre porque é obcecado pelas coisas, sem as 
quais já não consegue viver. Quando do dorso da tartaruga faz uma ferramenta com que alisa os cabelos, 
depois de neles passar óleo, o Papalagui ainda faz uma pele para a ferramenta e para esta pele faz um 
pequeno baú e para o pequeno baú faz outro grande; tudo ele coloca em peles e baús. Tem baús para as 
tangas, para as roupas de cima e de baixo, para os panos com que se enxuga, com que limpa a boca, e 
outros panos mais; baús para aspeles que põe nas mãos e para as peles que põe nos pés, para o metal 
redondo e o papel pesado, para as provisões de boca e para o livro sagrado, para tudo, para tudo 
mesmo. Ele faz muitas coisas quando apenas uma é suficiente, ele faz inumeráveis coisas. Se fores à 
cozinha do europeu, verás uma quantidade de pratos, tijelas, potes que nunca serão usados. E para cada 
comida há uma tanoa diferente, e mais outra para a água, para a kava européia, para o coco, para os 
pombos. 
 
 As cabanas européias têm tantas coisas que, mesmo se cada habitante de uma aldeia samoana 
enchesse suas mãos e seu braços, a aldeia inteira não bastaria para levá-las todas. Numa só cabana 
existem tantas coisas que a maioria dos chefes brancos precisam de muitos homens e mulheres que 
nada fazem senão pôr todas estas coisas nos lugares em que devem estar e limpá-las da areia que as 
cobre. E mesmo a taopu mais importante passa muito do seu tempo contando as muitas coisas que tem, 
arrumando-as, limpando-as. 
Sabeis, irmãos, que não minto, que vos digo o que, em verdade vi, sem tirar, nem pôr. Podeis acreditar 
que existem, na Europa, homens que levam à própria fronte o cano de fogo para se matarem porque 
acham melhor morrer do que viver sem as coisas. Pois o Papalagui embriaga de todas as formas o seu 
espírito e se convence de que não pode viver sem as coisas, tal qual o homem não vive sem comida. 
 
 Foi por isto que jamais vi cabana na Europa onde pudesse deitar-me na esteira; onde alguma 
coisa não me impedisse de esticar os membros. Todas as coisas brilhavam como relâmpagos, todas 
berravam com a boca das suas cores, de tal forma que não conseguia fechar os olhos. Jamais consegui 
encontrar a verdadeira tranqüilidade, jamais fiquei tão desejoso de minha cabana de Samoa, onde nada 
mais tenho do que minhas esteiras e o rolo em que ponho a cabeça para dormir; onde nada me atinge 
senão o brando vento alísio do mar. 
 
 Quem poucas coisas tem julga-se pobre, sente-se triste. Não há Papalagui que cante, que seja 
alegre, se só tiver, como cada um de nós, apenas uma esteira e um prato. Os homens e as mulheres do 
mundo dos Brancos sofreriam em nossas cabanas e correriam a buscar madeira do bosque, carapaças 
de tartaruga, vidro, arame, pedras coloridas e muitas outras coisas; e poriam suas mãos em movimento, 
da manhã à noite, até que as suas casas se enchessem de coisas pequenas e grandes; coisas que se 
estragam com facilidade, que qualquer fogo, qualquer grande chuva tropical destrói, sempre obrigando a 
fazer outras novas. 
 
 Quanto mais se é europeu de verdade, de mais coisas se precisa. É por isto que as mãos do 
Papalagui estão sempre fazendo coisas. £ por isto que o rosto de muitos Brancos se mostra cansado e 
triste; é por isto que pouquíssimos dentre eles têm tempo para ver as coisas do Grande Espírito, para 
brincar na praça da aldeia, inventar e cantar canções alegres, dançar à claridade do sol e dar aos corpos 
a alegria para a qual todos fomos feitos (2). 
 
 Os Papalaguis precisam fazer coisas, precisam guardá-las. Elas se prendem e se agarram a eles 
como formiguinhas de areia. Os Papalaguis cometem crimes a sangue-frio para se apossarem das 
coisas. Guerreiam entre si, mas não é pela honra, nem para medir a sua força verdadeira; é só para ter as 
coisas. 
 
 No entanto, eles sabem quanto é pobre a vida deles; senão, não haveria tantos Papalaguis que 
são muito estimados porque passam a vida inteira mergulhando pêlos em líquidos de várias cores e com 
eles jogando belas imagens em esteiras brancas; copiando todas as bonitas coisas de Deus, com todas 
as nuances das cores, com toda a alegria sincera de que são capazes. Modelam também criaturas de 
barro mole, sem tanga, moças tão bonitas, com movimentos livres e tão belos quanto a taopu de Matautu 
ou formas de homens que brandem a clava, retesam o arco e perseguem o pombo selvagem na floresta: 
homens de barro para os quais o Papalagui constrói cabanas alegres, e vem gente de longe para visitá-
los e apreciar sua divina beleza. Ficam todos parados olhando, embrulhados nas suas muitas tangas. Vi 
Papalaguis chorando de emoção ao contemplar tanta beleza, a beleza que eles mesmos perderam. 
 
 Os homens brancos gostariam de trazer para nós os seus tesouros, suas coisas, para que nós 
também fôssemos ricos. Estas coisas, no entanto, não são mais do que flechas envenenadas que matam 
aqueles em cujo peito se penduram. "Precisamos obrigá-los a ter necessidades", ouvi da boca de certo 
homem que conhece a nossa terra. Necessidades, quer dizer, coisas. "Pois só assim eles terão 
verdadeiro gosto pelo trabalho", disse então o homem inteligente. Queria dizer que nós também devemos 
pôr as nossas mãos a trabalhar, fazendo coisas; coisas para nós, sim, mas em primeiro lugar coisas para 
o Papalagui. Nós também devemos ficar cansados, cinzentos, curvados. 
 
 Irmãos das muitas ilhas, precisamos velar e ter juízo porque as palavras do Papalagui são doces 
como a banana, mas cheias de dardos escondidos, capazes de nos privar de toda luz e de toda alegria. 
Jamais nos esqueçamos de que só precisamos de poucas coisas além daquelas que são do Grande 
Espírito. Ele nos deu os olhos para ver as suas coisas; e para vê-las todas é preciso mais do que uma 
vida de homem. A boca do homem branco nunca disse maior inverdade do que esta: "As coisas do 
Grande Espírito não valem". As coisas deles é que valem muito, é que valem mais. No entanto, as coisas 
dele que são tantas e tão relampejantes e cintilantes,que atraem e seduzem tanto e de tantas formas, até 
hoje não fizeram mais bonito o corpo do Papalagui, não lhe deram mais brilho aos olhos, não lhe 
fortaleceram o juízo. 
 
 Portanto, essas coisas de nada servem; o que o Papalagui diz, o que nos quer impor, é animado 
pelo espírito mau e seu pensamento é carregado de veneno. 
 
 
 
Notas: 
1. Recipiente de pau, com vários pés, onde se fabrica a bebida nacional. 
2. As comunidades samoanas reúnem-se com muita freqüência para brincar e dançar. A dança pratica-se desde a 
adolescência. Cada aldeia tem suas canções e seu poeta. À tarde e à noite canta-se em todas as cabanas. É muito 
agradável tanto pela riqueza da língua em vogais quanto pela sensibilidade musical muito apurada dos insulares. 
 
 
 
V 
 O Papalagui não tem tempo 
 
 
 O Papalagui gosta do metal redondo e do papel pesado; gosta de meter para dentro da barriga 
muitos líquidos que saem das frutas mortas, além da carne do porco e da vaca, e de outros animais 
horríveis; mas ele gosta, principalmente, daquilo que não se pode pegar e que, no entanto, existe: o 
tempo. Fala muito no tempo, diz muita tolice a respeito do tempo. Nunca existe mais tempo do que aquele 
que vai do nascer ao pôr do sol e, no entanto, isto nunca é suficiente para o Papalagui. O Papalagui 
nunca está satisfeito com o tempo que tem;e acusa o grande Espírito por não lhe ter dado mais. Chega a 
blasfemar contra Deus, contra a sua grande sabedoria, dividindo e subdividindo em pedaços cada dia que 
se levanta de acordo com um plano muito exato. Divide o dia tal qual um homem partiria um coco mole 
com uma faca em pedaços cada vez menores. Todos os pedaços têm nome: segundo, minuto, hora. O 
segundo é menor do que o minuto, este é menor do que a hora; juntos, minutos e segundos formam a 
hora e são precisos sessenta minutos e uma quantidade maior de segundos para fazer o que se chama 
hora. 
É uma coisa complicada que nunca entendi porque me faz mal estar pensando mais do que é necessário 
em coisas assim pueris. Mas o Papalagui disso faz uma ciência importante: os homens, as mulheres, até 
as crianças que mal se têm nas pernas usamna tanga, presa a correntes grossas de metal, ou 
pendurada no pescoço, ou atada com tiras de couro ao pulso, certa pequena máquina, redonda, na qual 
lêem o tempo, leitura que não é fácil, que se ensina às crianças, aproximando-lhes do ouvido a máquina 
para diverti-las. 
Esta máquina, fácil de carregar em dois dedos, parece-se por dentro com as máquinas que existem 
dentro dos grandes navios, que todos vós conheceis. Mas também existem máquinas do tempo grandes e 
pesadas, que se colocam dentro das cabanas, ou se suspendem bem alto para serem vistas de longe. 
Para indicar que passou uma parte do tempo, há do lado de fora da máquina uns pequenos dedos; ao 
mesmo tempo, a máquina grita e um espírito bate no ferro que está do lado de dentro. Sim, produz-se 
mesmo muito barulho, um grande estrondo nas cidades européias quando uma parte do tempo passa. 
 
 Ao escutar este barulho, o Papalagui queixa-se: "Que tristeza que mais uma hora tenha se 
passado". O Papalagui faz, então, uma cara feia, como um homem que sofre muito; e no entanto logo 
depois vem outra hora novinha. 
Só consigo entender isso pensando que se trata de doença grave. "O tempo voa!"; "O tempo corre feito 
um corcel!"; "Dêem um pouco mais de tempo": são as queixas do Branco. 
 
 Digo que deve ser uma espécie de doença porque, supondo que o Branco queira fazer alguma 
coisa, que seu coração queime de desejo, por exemplo, de sair para o sol, ou passear de canoa no rio, ou 
namorar sua mulher, o que acontece? Ele quase sempre estraga boa parte do seu prazer pensando, 
obstinado: "Não tenho tempo de me divertir". O tempo que ele tanto quer está ali, mas ele não consegue 
vê-lo. Fala em uma quantidade de coisas que lhe tomam o tempo, agarra-se, taciturno, queixoso, ao 
trabalho que não lhe dá alegria, que não o diverte, ao qual ninguém o obriga senão ele próprio. Mas, se 
de repente vê que tem tempo, que o tempo está ali mesmo, ou quando alguém lhe dá um tempo — os 
Papalaguis estão sempre dando tempo uns aos outros, é uma das ações que mais se aprecia — aí não 
se sente feliz, ou porque lhe falta o desejo, ou está cansado do trabalho sem alegria. E está sempre 
querendo fazer amanhã o que tem tempo para fazer hoje. 
 
 Certos Papalaguis dizem que nunca têm tempo: correm feito loucos de um lado para outro, 
como se estivessem possuídos pelo aitu; e por onde passam levam a desgraça e o pavor por terem 
perdido o seu tempo. É um estado horrível, esta possessão que não há médico que cure, que contagia 
muitos homens e os faz desgraçados. 
 
 Todo Papalagui é possuído pelo medo de perder o seu tempo. Por isso todos sabem 
exatamente (e não só os homens, mas as mulheres e as criancinhas), quantas vezes a lua e o sol saíram 
desde que, pela primeira vez, viram a grande luz. De fato, isso é tão sério que, a certos intervalos de 
tempo, se fazem festas com flores e comes e bebes. Muitas vezes percebi que achavam esquisito eu 
dizer, rindo, quando me perguntavam quantos anos tinha: "Não sei..." "Mas devias saber". Calava-me e 
pensava que era melhor não saber. 
 
 Ter tantos anos significa ter vivido um número preciso de luas. É perigoso esta maneira de 
indagar e contar o número das luas porque assim se chega a saber quantas luas dura a vida da maior 
parte dos homens. Todos prestam muita atenção nisso e, passando um número muito grande de luas, 
dizem: "Agora, não vou demorar a morrer". E então essas pessoas perdem a alegria e morrem mesmo 
dentro de pouco tempo. 
 
 Pouca gente há na Europa que tenha tempo, de fato; talvez ninguém mesmo. É por isto que 
quase todos levam a vida correndo com a velocidade de pedras atiradas por alguém. Quase todos andam 
olhando para o chão e balançando com os braços para caminhar o mais depressa possível. Se alguém os 
faz parar, dizem, mal-humorados: "Não me aborreças, não tenho tempo, vê se aproveitas melhor o teu." 
Dá a impressão de que aquele que anda depressa vale mais e é mais valente do que aquele que anda 
devagar. 
Vi um homem com a cabeça estourando, os olhos virados, a boca aberta feito a de um peixe agonizante, 
a cara passando de vermelha a verde, batendo com as mãos e os pés, porque um criado tinha chegado 
um pouquinho mais tarde do que prometera. Esse pouquinho era para ele um grande prejuízo, prejuízo 
irreparável. O criado teve de ir-se embora, o Papalagui expulsou-o e recriminou-o: "Roubaste-me tempo 
demais! Quem não presta atenção ao tempo não merece o tempo que tem!" 
 
 Só uma vez é que deparei com um homem que tinha muito tempo, que nunca se queixava de 
não tê-lo, mas era pobre, sujo, e desprezado. Os outros passavam longe dele, ninguém lhe dava 
importância. Não compreendi essa atitude porque ele andava sem pressa, com os olhos sorrindo, mansa, 
suavemente. Quando lhe falei, fez uma careta e disse, tristemente: "Nunca soube aproveitar o tempo; por 
isto, sou pobre, sou um bobalhão". Tinha tempo, mas não era feliz. 
 
 O Papalagui emprega todas as forças que tem e todos os seus pensamentos tentando alongar o 
tempo o mais possível. Serve-se da água e do fogo, da tempestade, dos relâmpagos que brilham no céu 
para fazer parar o tempo. Põe rodas de ferro nos pés, dá asas às palavras que diz para ter mais tempo. 
Mas para que todo este esforço? 
 
 O que é que o Papalagui faz com o tempo? Nunca compreendi bem embora pelos seus gestos e 
suas palavras, ele sempre tenha me dado a impressão de alguém a quem o Grande Espirito convidou 
para um fono. 
 
 Acho que o tempo lhe escapa tal qual a cobra na mão molhada, justamente porque o segura com 
força demais. O Papalagui não espera que o tempo venha até ele, mas sai ao seu alcance, sempre, 
sempre, com as mãos estendidas e não lhe dá descanso, não deixa que o tempo descanse ao sol. O 
tempo tem de estar sempre perto dele, cantando, dizendo alguma coisa. Mas o tempo é quieto, pacato, 
gosta de descansar, de deitar-se à vontade na esteira. O Papalagui não sabe perceber onde está o 
tempo, não o entende e é por isto que o maltrata com os seus costumes rudes. 
 
 Ó amados irmãos! Nunca nos queixamos do tempo; amamo-lo conforme vem, nunca corremos 
atrás dele, nunca pensamos em ajuntá-lo nem em parti-lo. Nunca o tempo nos falta, nunca nos enfastia. 
Adiante-se aquele dentre nós que não tem tempo! Cada um de nós tem tempo em quantidade e nos 
contentamos com ele. Não precisamos de mais tempo do que temos e, no entanto, temos tempo que 
chega. Sabemos que no devido tempo havemos de chegar ao nosso fim e que o Grande Espírito nos 
chamará quando for sua vontade, mesmo que não saibamos quantas luas nossas passaram. Devemos 
livrar o pobre Papalagui, tão confuso, da sua loucura! Devemos devolver-lhe o verdadeiro sentido do 
tempo que perdeu. Vamos despedaçar a sua pequena máquina de contar o tempo e lhe ensinar que, do 
nascer ao pôr do sol, o homem tem muito mais tempo do que é capaz de usar. 
 
 
 
 
VI 
 Deus ficou mais pobre 
 por causa do Papalagui 
 
 
 O Papalagui pensa de modo estranho e muito confuso. Está sempre pensando de que maneira 
uma coisa pode lhe ser útil, de que forma lhe dá algum direito. Não pensa quase nunca em todos os 
homens, mas num só, que é ele mesmo. 
 
 Quem diz: "Minha cabeça é minha, não é de mais ninguém", está certo, está realmente certo, 
ninguém pode negar. Ninguém tem mais direito à sua própria mão do que aquele que tem a mão. Até aí 
dou razão ao Papalagui. Mas é que ele também diz: "A palmeira é minha", só porque ela está na frente da 
sua cabana. É como se ele próprio tivesse mandado a palmeira crescer.Mas a palmeira nunca é dele: nunca. A palmeira é a mão que Deus nos estende de sob a terra. 
Deus tem muitas mãos, muitas mesmo. Toda árvore, toda flor, toda grama, o mar, o céu, as nuvens que o 
cobrem, tudo isso são mãos de Deus. Podemos pegá-las e nos alegrar, mas não podemos dizer: "A mão 
de Deus é minha mão". £ o que, no entanto, diz o Papalagui. "Lau" em nossa língua quer dizer "meu" e 
também "teu"; é quase a mesma coisa. Mas na língua do Papalagui quase não existem palavras que 
signifiquem coisas mais diversas do que "meu" e "teu". 
 
 Meu é apenas, e nada mais, o que me pertence; teu é só, e nada mais, o que te pertence. £ 
por isto que o Papalagui diz de tudo quanto existe por perto da sua cabana: "É meu". Ninguém tem direito 
a essas coisas, senão ele. Se fores à terra do Papalagui e alguma coisa vires, uma fruta, uma árvore, 
água, bosque, montinho de terra, hás de ver sempre perto alguém que diz: "Isto é meu! Não pegues no 
que é meu!" Mas se pegares, te chamarão gatuno, o que é uma vergonha muito grande, e só porque 
ousastes tocar num "meu" do teu próximo. Os amigos deles os servos dos chefes mais importantes te 
põem correntes, te levam para o fale pui pui (1) e serás banido pela vida inteira. 
 
 Para ninguém pegar em coisas que o outro declarou como suas, determina-se com exatidão, 
por meio de leis, o que pertence e o que não pertence a certa pessoa. E existem, na Europa, homens que 
mais não fazem do que impedir que estas leis sejam violadas, ou seja, im pedir que se tire do Papalagui 
aquilo que ele pegou para si. Desta forma, o Papalagui quer dar a impressão de que, realmente, garantiu 
um direito, como se fosse Deus quem lhe tivesse definitivamente cedido o que tem; como se, de fato, 
pertencesse a ele e não a Deus, a palmeira, a árvore, a flor, o mar, o céu com as suas nuvens. 
 
 O Papalagui precisa fazer leis assim e precisa ter quem lhe guarde os muitos "meus" que tem, 
para que aqueles que não têm nenhum ou têm pouco "meu" nada lhe tirem do seu "meu". De fato, 
enquanto há muitos pegando muitas coisas para si, há também muitos que nada têm nas mãos. Nem 
todos sabem os segredos, os sinais misteriosos com os quais se consegue ter muitas coisas; é 
necessário que se tenha uma coragem especial, que nem sempre se concilia com o que chamamos 
"honra". Até pode ser que aqueles que pouco têm nas mãos (porque não querem ofender a Deus, porque 
não lhe tiram nada) sejam os melhores de todos os Papalaguis. Mas são poucos, certamente. 
 
 Quase todos furtam de Deus sem sentir vergonha. Nem sabem fazer outra coisa. Nem sabem, 
muitas vezes, que estão fazendo mal porque todos fazem a mesma coisa, e nem pensam nisso, e nem se 
envergonham. Há uns que recebem o seu "meu" (e é muito) das mãos do pai, no momento em que 
nascem. Em todo caso Deus quase nada mais tem, os homens lhe tiraram quase tudo, tudo 
transformaram em "meu" e "teu". Deus já não pode repartir igualmente a todos o seu Sol, que foi feito 
para todos, porque há uns que dele gozam mais do que os outros. 
 
 Muitas vezes, só um pequeno número de Papalaguis aproveita os belos e grandes lugares 
ensolarados, enquanto muitos ficam na sombra e só recebem alguns fracos raios de sol. Deus já não 
pode se alegrar verdadeiramente, pois já não é o mais alto álii sili (2) em sua grande casa. O Papalagui 
renega-o quando diz: "Isto é meu". Mas ele não se dá conta disso, por mais que pense. Pelo contrário, 
declara que o que faz é honesto e justo; mas é desonesto e injusto perante Deus. 
 
 Se pensasse direito, o Papalagui saberia que coisa alguma que não sejamos capazes de segurar 
nos pertence; saberia que, no fundo, nada há que possamos segurar. E também veria que se Deus nos 
deu a sua grande casa é para que todos nela encontrassem lugar e alegria. E ela é bastante grande, tem 
para todos um lugarzinho claro, uma alegriazinha; para todos existe certamente onde ficar debaixo da 
palmeira, um lugar onde colocar os pés, onde parar. Como é que Deus havia de esquecer um dos seus 
filhos! E no entanto há tantos que procuram o lugarzinho que Deus lhes destinou! 
 
 O Papalagui não ouve o mandamento de Deus e se dá o direito de fazer suas próprias leis; por 
isto é que Deus lhe manda muitos inimigos da propriedade. Manda-lhe a umidade e o calor para destruir o 
seu "meu", manda-lhe a velhice, deixa que ele se desfaça, que apodreça. E mais ainda: dá ao fogo e à 
tempestade o poder de destruir-lhe os tesouros. Principalmente, no entanto, põe-lhe na alma o medo, 
medo de perder aquilo de que se apossou. O sono do Papalagui nunca é de fato profundo: precisa estar 
sempre de vigília para que não lhe seja tirado, de noite, o que juntou durante o dia. O Papalagui precisa 
estar sempre com as mãos e o pensamento segurando o que é "meu". E como o "meu" o atormenta, sem 
parar, escarnecendo-o e dizendo-lhe: "Já que me tiraste de Deus, castigo-te, mando-te todos os 
sofrimentos"! 
 
 Mas castigo muito pior do que o medo Deus impôs ao Papalagui. 
 
 Impôs-lhe a luta entre os que só têm um pequeno "meu", ou nenhum, e os que se apossaram de 
um grande "meu". É luta acesa, dura, que persiste dia e noite; luta que todos têm de aturar, que a todos 
corrói a alegria de viver. Os que têm são obrigados a dar, mas coisa alguma dão; os que nada têm 
querem ter, mas coisa alguma ganham. Também estes são raramente animados pelo zelo divino: é que 
chegaram cedo ou tarde demais para roubar, ou foram por demais inábeis, ou não tiveram oportunidade. 
São pouquíssimos os que pensam que Deus é quem foi roubado. E é raro ouvirem a voz do homem justo. 
que manda devolver tudo a Deus. 
 
 Ó irmãos, que é que pensais do homem cuja cabana é tão grande que dá para uma aldeia inteira 
e que não oferece ao viajante o seu teto por uma noite? Que é que pensais do homem que tem um cacho 
de bananas nas mãos e não dá uma só fruta a quem, faminto, ávido, lhe pede? Vejo a zanga nos vossos 
olhos, o maior desprezo nos vossos lábios. E vede que é isso que o Papalagui faz a todo momento. E 
mesmo que tenha cem esteiras nenhuma dá ao que nenhuma tem. Pelo contrário, acusa-o e censura-o 
por não ter. Pode estar com a cabana cheia de mantimentos até o alto, muito mais do que ele e sua aiga 
comem em 100 anos. Não sairá à procura dos que não têm o que comer, dos que estão pálidos de fome. 
E há muitos Papalaguis pálidos de fome. 
 
 A palmeira deixa cair as folhas e frutos que estão maduros. Mas o Papalagui vive como se a 
palmeira quisesse retê-los. "São meus! Não os tereis! Jamais deles comereis!" Mas como faria então a 
palmeira para dar novos frutos? A palmeira é muito mais sábia do que o Papalagui. 
 
 Também entre nós existem muitos que possuem mais do que outros. É certo também que 
honramos o nosso chefe que tem muitas esteiras, muitos porcos, mas é só a ele que honramos, e não às 
esteiras e aos porcos. Estas coisas fomos nós mesmos que lhe demos de presente, como alofa, para 
mostrar-lhe o nosso contentamento, para louvar a sua grande coragem, a sua grande inteligência. Mas o 
Papalagui o que honra são as esteiras e os porcos em quantidade que seu irmão possui; pouco lhe 
importa sua coragem ou sua inteligência. O irmão que não tem esteiras nem porcos poucas honras 
recebe, ou não recebe honra alguma. 
 
 Como as esteiras e os porcos não vão por si mesmos à procura dos pobres e famintos, o 
Papalagui também não vê razão para levá-los aos seus irmãos. O que ele respeita não são os irmãos, 
mas sim, apenas, as esteiras e os porcos; daí porque os guarda para si. Se amasse os irmãos, se os 
honrasse, se não vivesse lutando com eles pelo "meu" e pelo "teu", levar-lhes-ia as esteiras que não 
usasse para queeles participassem desse grande "meu". O Papalagui daria aos irmãos a sua própria 
esteira em lugar de atirá-los à noite escura. 
 
 Mas o Papalagui não sabe que Deus deu a palmeira, a banana, o taro precioso, todas as aves 
do bosque, todos os peixes do mar, para todos nós usufruirmos e sermos felizes; para todos e não 
apenas para uns poucos dentre nós, enquanto outros morrem de fome e passam dificuldades. Se Deus 
colocou muitos bens na mão de um homem foi para que repartisse com seu irmão; senão a fruta 
apodrece em sua mão. Deus estende a todos os homens as muitas mãos que tem e não quer que uns 
tenham mais do que os outros; nem que alguns digam: "O sol é para mim; a sombra, para ti". O sol é para 
todos nós. 
Se tudo estiver na mão justa de Deus, não haverá luta, nem miséria. O Papalagui, este astuto, quer-nos 
convencer de que nada a Deus pertence; pertence a cada um aquilo que consiga segurar na mão. 
Tapemos os ouvidos a quem diz estas sandices e pratiquemos a boa sabedoria: "A Deus tudo pertence!" 
 
 * * * 
 
Notas: 
1 Prisão 
2 Senhor 
Nota do Autor: Quem sabe que os indígenas de Samoa vivem na mais completa comunidade compreenderá o 
desprezo com que Tuiávii fala de nossa concepção de propriedade. Não existe em Samoa, realmente, o conceito de 
meu e teu no sentido em que o adotamos. Em todas as viagens que fiz, os nativos sempre partilhavam comigo, de 
modo absolutamente natural, o teto, as esteiras, a comida: tudo. Não foram raros os casos em que ouvi de um chefe 
estas palavras com que logo de início me saudava: "O que é meu é também teu." Os insulares não conhecem a noção 
de furto, roubo, porque tudo pertence a todos; e tudo pertence a Deus. 
 
 
 
 
 
VII 
 O Grande Espírito é mais 
 forte que o Papalagui 
 
 
 O Papalagui faz muitas coisas que não sabemos fazer, que jamais entenderemos, que para a 
nossa mente mais não são do que pedras pesadas. São coisas das quais não sentimos falta; coisas que 
aos fracos dentre nós podem até causar espanto e falsamente humilhar. Vamos pois, sem temor, 
observar quais são essas artes singulares do Papalagui. 
 
 O Papalagui sabe fazer de tudo um dardo, uma clava. Apossa-se do relâmpago bravo, do fogo 
quente, da água veloz e deles dispõe à sua vontade. Tranca-os e dá-lhes ordens, às quais eles 
obedecem; são os seus guerreiros mais valorosos, porque o Papalagui tem o segredo de fazer o fogo 
quente ainda mais quente, a água veloz mais veloz ainda. 
 
 O Papalagui parece ser realmente aquele que furou o céu, o enviado de Deus, porque domina o 
céu e a terra como quer. É peixe e ave ao mesmo tempo; ao mesmo tempo é verme e cavalo. Penetra na 
terra, através da terra; e se enfia nos mais largos rios de água doce. Desliza pelas montanhas, pelo 
rochedos. Ata rodas de ferro aos pés e galopa mais rápido do que o mais rápido dos cavalos. Sobe aos 
ares: sabe voar e eu o vi deslizar pelo céu como se fosse a gaivota. Tem um grande barco para andar 
pela água e outro para andar por baixo do mar. Anda de barco de uma nuvem para outra. 
 
 Irmãos amados, dou com as minhas palavras testemunho da verdade; e deveis crer no vosso 
servo, ainda que vosso bom senso vos faça duvidar do que narro. Porque grandes e dignas de muito 
admirar são as coisas do Papalagui. Temo até que muitos dentre vós percam a confiança em si mesmos 
ante semelhante força. E se eu vos contar tudo quanto os meus olhos espantados viram, por onde devo 
começar? 
 
 Todos vós conheceis aquele grande barco que o Branco chama navio. Não é tal qual um grande 
peixe, um enorme peixe? Não sei como ele consegue ir, de ilha a ilha, mais depressa que o mais forte 
dos nossos jovens remando numa canoa. Vistes a grande nadadeira que ele leva no rabo, quando se 
move? Que bate e se mexe tal qual os peixes da lagoa? É esta grande nadadeira que empurra o grande 
barco para diante. Como isso é possível, só o Papalagui sabe: é um segredo que está dentro do grande 
peixe. Ali é que está a máquina que dá tanta força à grande nadadeira. E é a máquina que encerra a 
grande força. O que é uma máquina, minha inteligência não é capaz de explicar. Só sei que ela come 
pedras negras e dá em troca a sua força, força que jamais homem algum terá. 
 
 A máquina é a clava mais forte que o Papalagui tem. Dêem-lhe o mais forte ifi da floresta virgem: a 
mão da máquina despedaça o tronco, feito a mãe que parte o fruto do taro para os filhos. A máquina é o 
grande mago da Europa, de mãos fortes, mãos que nunca se cansam; querendo, corta cem, até mil 
tanoas num só dia. Eu a vi tecendo tangas tão finas, tão graciosas que nem as mãos mais delicadas de 
uma moça seriam capazes de tecer; e vai tecendo da manhã à noite, cuspindo montes e montes de 
tangas. Mesquinha, miserável é a nossa força diante da força imensa da máquina. 
 
 O Papalagui é um mago, um feiticeiro. Se cantares uma canção, ele a captura e a devolve quando 
quiseres. Põe na tua frente uma chapa de vidro e captura nela a tua imagem, tantas vezes quantas 
quiseres. 
 
 Mas vi prodígios maiores ainda. Já vos disse que o Papalagui agarra os relâmpagos do céu; e é 
mesmo verdade. Agarra-os e os coloca na máquina que deve comê-los, devorá-los, e cuspi-los de noite 
em milhares de estrelinhas, vagalumes, pequenas luas. Com a maior facilidade o Papalagui será capaz 
de iluminar as nossas ilhas à noite, tornando-as tão claras, tão luminosas quanto o dia. 
 
 É comum ele fazer os relâmpagos das máquinas trabalharem para ele, indicando-lhes um 
caminho por onde devem ir para levar mensagens para os irmãos que moram longe. Os relâmpagos 
obedecem e levam o recado. 
 
 O Papalagui soube aumentar a força de todos os seus membros: com as mãos passa por cima 
dos mares e atinge as estrelas; com os pés, vence ondas e ventos. Os ouvidos do Papalagui percebem 
qualquer sussuro em Saváii e a sua voz tem asas feito as aves. Com os olhos vê mesmo durante a noite; 
vê através de si mesmo, como se sua carne fosse tão clara quanto a água; e vê qualquer sujeira que na 
água exista. 
 
 Tudo isso que presenciei e vos narro é apenas pequena parte do que meus olhos viram com 
espanto. Crede, irmãos, que a ambição do Branco é grande: está sempre querendo realizar milagres 
novos e mais imponentes; milhares dentre eles ficam pensando, à noite, na maneira de ganhar vitórias 
sobre Deus, porque é certo que o Papalagui se esforça por ser igual a Deus. Por seu gosto, destruiria 
Deus e se apoderaria da sua força, mas Deus é mais forte ainda, maior ainda do que o grande Papalagui. 
Deus é mais forte do que a máquina do Papalagui, e é ele que determina quem dentre nós deve morrer e 
quando. É a Deus, em primeiro lugar, que o sol, a água, o fogo servem; e não houve jamais Branco que à 
sua vontade conseguisse determinar quando a lua se levanta ou em que direção os ventos sopram. 
 
 E já que assim é, pouca importância têm os prodígios que o Papalagui faz. E fraco é aquele 
dentre nós, irmãos amados, que se impressiona com eles, que adora o Branco pelas suas obras e se 
julga pobre e indigno porque nem a sua mão, nem o seu espírito é capaz de fazer o mesmo. Pois mesmo 
se os prodígios e habilidades do Papalagui parecem espantosos aos nossos olhos, vistos à mais clara luz 
do sol, não têm mais importância do que talhar uma clava, ou tecer uma esteira; no fundo, tudo quanto o 
Papalagui faz nada mais é do que brincadeira de criança na areia. Coisa alguma que o Branco tenha feito 
se compara, nem de longe, aos prodígios do Grande Espírito. 
 
 Magníficas, imponentes e enfeitadas

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