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Urgência e Emergência em Saúde Mental

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URGÊNCIA E EMERGÊNCIA 
EM SAÚDE MENTAL
5. Outro olhar para a “crise” na Saúde Mental
 
 Diana Malito
OBJETIVOS DA AULA:
A crise, no amplo sentido que o termo comporta, acontece em diversas instâncias da vida: na economia, nos relacionamentos, entre a transição de idades, na evolução do conhecimento científico, etc. 
No sofrimento psíquico, contudo, não é tolerada. As atitudes para sua contenção são imediatas. Mas, o que a crise tem a mostrar sobre o sujeito e seu sofrimento? Propomos:
 Compreender a crise enquanto um fenômeno com múltiplos sentidos;
 Conhecer estratégias para auxiliar o paciente e orientar a família nessas situações.
O QUE É A CRISE?
Em diferentes contextos históricos os sentidos da loucura, e da crise, foram entendidos como manifestação de sabedoria, possessão demoníaca, bruxaria, etc. 
No séc. XVIII, a loucura e suas produções são inseridas no discurso da medicina.
Suas formas de abordagem também são transformadas: exorcismo, fogueira, confinamento, tratamento moral, eletrochoque, até as atuais estratégias de tratamento. 
Na aula anterior, diferenciamos situações de urgência e emergência em saúde mental. As crises são situações de emergência que associam alguns dos seguintes elementos:
 Grave sintomatologia psiquiátrica;
 Ruptura no plano familiar e/ou social;
 Ausência de noção de morbidade;
 Recusa obstinada de contato; 
Ocorre que no atendimento dessas situações, o contexto é simplificado, e a crise é reduzida à sintomatologia. Isto é: trata-se exclusivamente o sintoma. Não se questiona a conjuntura da crise, nem o papel dos serviços de saúde. 
A Reforma Psiquiátrica trouxe para a população, o desafio de conviver com as diferenças. Fora dos muros do manicômio, as crises ficam visíveis, e são o que mais incomodam o pacto social de normalidade, gerando demandas normativas.
A medicação passa a ser indispensável para uma “pseudo-convivência” em sociedade, visto que o louco não é acolhido por ela, mas sobrevive a sua margem. 
Quando não cumpre sua função apaziguadora, os serviço de urgência psiquiátrica e suas medidas corretivas são acionados, com a finalidade de devolver o paciente à “normalidade”. O paciente em crise deve ser estabilizado - na linguagem médica, contido e medicado. 
 Recortes de um texto do Jornal do Brasil em 2015, defendendo a Eletroconvulsoterapia (“eletrochoque”):
O eletrochoque vem sendo aperfeiçoado, e a imagem do paciente sendo contido por quatro a cinco enfermeiros e com um chumaço de gaze na boca, é coisa do passado. Os “filmes de Hollywood” e a “imprensa sensacionalista” maldizem e colocam o eletrochoque como procedimento de tortura, gerando grande preconceito, mas atualmente o procedimento seria seguro e eficaz para o paciente. Inclusive, o tratamento mais eficaz para depressão grave: supera todos os antidepressivos e suas potencializações. 
Apresenta-se um levantamento de suas aplicações realizadas de 2005 a 2007 no Instituto de Psiquiatria da UFRJ, único hospital público no RJ a oferecer este tratamento. 
“A Associação Brasileira de Psiquiatria, em 2005, considerou o eletrochoque (eletroconvulsoterapia) como tratamento seguro e eficaz. Apresenta uma taxa de resposta de 80% a 90% como primeiro tratamento e de 50% a 60% em pacientes refratários aos medicamentos. Afirmou ainda que é o tratamento mais seguro e eficaz para a depressão em mulheres grávidas e em pacientes cardiopatas, condições em que os medicamentos estão muitas vezes contraindicados”. 
(Jornal do Brasil, 2015)
Seria, segundo a apresentação, eficaz em mais de 50% dos pacientes refratários à farmacoterapia. E a primeira escolha em alguns casos: depressão grave com sintomas psicóticos; estupor catatônico; risco de suicídio; recusa alimentar com grave desnutrição; depressão grave durante a gravidez.
 Um importante contraponto:
“Ainda hoje os livros de psiquiatria trazem capítulos inteiros sobre eletroconvulsoterapia, que é indicada como tratamento para as urgências psiquiátricas. Afirmam que foi descoberto, há muitos anos, que os neurônios que causavam os ataques epiléticos eram incompatíveis com os neurônios responsáveis pela psicose. Assim, era preciso induzir crises epiléticas no louco, pois, depois disso, ele ficaria “milagrosamente sereno”. Nesse caso, sereno quer dizer desacordado, o que, certamente, aconteceria com qualquer ser humano depois de levar descargas elétricas no cérebro. Qualquer atuação é justificada por essa ciência, a fim de esculpir o indivíduo e suas individualidades”. (DIMENSTEIN;JARDIM, 2007, p. 177)
A Reforma Psiquiátrica coloca em cena outros elementos para o entendimento da loucura e da crise, retirando seu forte caráter de “intimização” e “culpabilização” dos indivíduos. Agrega-se elementos relacionais: relações com afetos, com o meio ambiente, o contexto sociopolítico, econômico, etc. 
O paradigma médico centrado é questionado e aborda-se a crise enquanto fenômeno que visibiliza acontecimentos. A matéria do Jornal do Brasil, contudo, aponta a força do paradigma biomédico vigente na atualidade. As mudanças sobre os sentidos da crise na saúde mental são processuais. 
Consolidar a Reforma Psiquiátrica implica em conceber a “loucura” e a “crise” em sua multifatorialidade.
OUTROS SENTIDOS PARA A CRISE:
Do grego: separar, decidir, julgar; momento de decisão, de mudança súbita. 
Na história da Medicina constituía momento decisivo para evolução de uma doença para a cura ou para a morte. 
Para os chineses significa, ao mesmo tempo, risco e oportunidade. 
“O próprio nascimento pode ser considerado como um momento de crise. “A criança, ao nascer passa pela crise mais aguda de sua vida” (Boff, 2002, p.26): a abrupta alteração de temperatura e luminosidade, a forte pressão para ser posta para fora do útero e, principalmente, o abandono existencial de um horizonte vital pequeno e aconchegante para um mundo mais vasto e com novas possibilidades de vida, enfim, toda esta transformação consiste em um momento traumático”.
(FERIGATO; CAMPOS; BALLARIN, 2007, p.31) 
 
 Perder referenciais que mantém o mundo subjetivo de pé, esgarçar a insegurança e o medo ao máximo, ficar dolorosamente dividido, “partido em pedaços”, não confiar nos próprios sentidos... A crise faz parte da condição humana. 
Nos transtornos mentais é acrescida de delírios, alucinações e/ou comportamentos estereotipados, prejudiciais ao sujeito e ao meio no qual vive. Por mais angustia que provoque, faz parte da vida de quem lida com elementos que geram desorganização profunda em seu modo de existir.
O desarranjo, o desespero, as vozes, visões ou a eclosão psicótica expressam uma tentativa de cura ou de resolução de problemas e sofrimentos cruciais na vida da pessoa. 
 A crise é imprevisível, não é sempre possível identificar objetivamente um evento concreto como seu desencadeador. Os efeitos subjetivos dos acontecimentos são singulares. 
 Não é uma condição pessoal: é um fenômeno produzido nas relações e contextos de vida. Geralmente em cenários de conflitos, ruptura de consensos, esgarçamento das relações, e busca ineficaz de comunicação.
“A crise é um arranjo providencial que se tem à disposição quando todos os recursos psíquicos do sujeito já foram utilizados. Ela representa a experiência de inconstância subjetiva que se coloca para o sujeito quando este é colocado em questão”. (VIDAL, BRAGA, SODRÉ, 2012)
EFEITOS DA DESINDIVIDUALIZAÇÃO DA CRISE:
 A intervenção terapêutica dirige-se não somente ao usuário, mas à mediação entre ele e seu conjunto de relações, visando à inclusão, à legitimação e à corresponsabilização dos envolvidos na produção de novas pactuações.
As situações de crise apontam as fragilidades e potências dos serviços de saúde no que tange a interdisciplinaridade entre a equipe, a gestão de cada serviço e a gestão maior do município.
 Criar condições de possibilidade para acolher e tratar a crise fora das longas internações é consolidar os pressupostos da Reforma Psiquiátrica.
 
ESTRATÉGIAS DE CUIDADO:
Após reconhecer os sentidos da crise, para além de sua sintomatologia, precisamos nos qualificar para receber tais situações limites fora dos hospitais psiquiátricos. 
Isso depende de uma abordagem humanizada, da qualidade dos serviços de saúde e de sua articulação em rede. 
Alguns norteadores são essenciais: 
 Tecnologias leves do cuidado: escuta qualificada, acolhimento, vínculo;
 Articulação intra e intersetorial: saúde mental, atenção básica, rede de emergência, rede socioassistencial;
 Gestão e Planejamento: materialização das diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental. 
TECNOLOGIAS LEVES DO CUIDADO:
 Escuta qualificada: não se refere apenas a linguagem, mas à compreensão da situação conjuntural. Deve-se buscar compreender motivações, tensões, as condições nas quais a ação do usuário se desenvolveu. 
A escuta apoia os envolvidos, auxilia na construção de sentidos e diálogo, mesmo quando o usuário já não acessa a palavra para expressar-se.
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 Acolhimento: manifestar disponibilidade, negociar processualmente a aproximação, é fundamental para o encontro com o usuário. 
Acolher a crise é suportá-la em sua radicalidade, antes de buscar apaziguá-la.
A comunicação deve ser verdadeira e exercida o mais claramente possível, assim como devem ser explicitadas as propostas de intervenção. 
 Vínculo: para que haja reciprocidade nas relações é necessário haver compartilhamento de poder. Historicamente a pessoa em situação de crise tem seu poder de decisão cerceado, seja pela experiência de sofrimento psíquico, seja pelas pessoas e instituições ao redor. Nesse sentido, qualquer tentativa de aproximação deve buscar a negociação com o usuário.
ARTICULAÇÃO INTRA E INTERSETORIAL:
 O serviço de referência do usuário deve acompanhá-lo, e à sua família, durante toda a crise, mesmo que seja necessária a articulação com outros equipamentos. A crise exige a ligação de vários pontos das redes das políticas públicas. A equipe de referência é responsável pelo acolhimento, articulação intra e intersetorial, acompanhamento, visitas e orientação à família.
 A excepcionalidade da internação: a internação é o último recurso para tratar a crise, podendo ser utilizada pontualmente dependendo da justificativa que sustente tal decisão. 
Quando utilizada porque não há disposição dos serviços para lidarem com a crise, o que está em jogo é fragilidade da rede de saúde mental e não a saúde do paciente.
Deve oferecer assistência integral: serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros. É vedada a internação em instituições com características asilares. 
Precisa ser considerada como instrumento do projeto terapêutico, não como resposta única à crise.
A equipe precisa ter acesso ao usuário durante toda a internação, que deve ser o mais curta possível.
 
Deve ser prioritariamente realizada nos CAPS e nos Hospitais Gerais, articulada com a rede.
 CAPS III: funciona 24h, incluindo feriados e finais de semana; oferece acolhimento noturno, com no máximo 05 leitos, para eventual repouso/observação; a permanência do paciente no acolhimento noturno é limitada a 07 dias corridos, ou 10 dias intercalados em um período de 30 dias. 
 Leitos em hospitais gerais: oferta de suporte hospitalar para situações de urgência/emergência da saúde mental.
OBS: Questão dos Hospitais Psiquiátricos e das Clínicas Privadas. 
GESTÃO E PLANEJAMENTO:
Sobre às dificuldades para o manejo da crise nos transtornos mentais, identificamos elementos que extrapolam a individualidade do paciente:
 Falta de preparo dos profissionais dos serviços; 
 Falta de retaguarda de outros equipamentos da saúde; 
 Resistência e rejeição aos usuários nos equipamentos gerais de saúde (mesmo quando acompanhados pelo profissional da saúde mental); 
 Insuficiência institucional para a atenção à crise ou outras situações de urgência e emergência; 
 Dificuldades materiais, sociais e/ou afetivas, por parte das famílias, de suportarem a crise dos seus membros.
A “desresponsabilização” da atenção aos usuários com transtornos mentais em serviços de saúde, as fragilidades na materialização da Política Nacional de Saúde Mental (equipes sem preparo, CAPS sem possibilidade de acolhimento noturno, sem procedimentos técnicos de urgência/emergência) – contribuem com a ideia de que as crises só são resolvidas no hospital psiquiátrico. 
Algumas equipes de CAPS, muitas vezes, recorrem a iniciativas pessoais, como pegar o próprio carro para levar um usuário para a emergência, ou omitir da equipe do SAMU que se tratam de pessoas com transtornos mentais. 
PRÓXIMA AULA:
A medicalização indiscriminada do sofrimento psíquico.
REFERÊNCIAS :
BRASIL, Ministério da Saúde. Cadernos de Atenção Básica, nº34. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde mental/ Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Brasília: Ministério da Saúde, 2013. http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/publicacoes/caderno_34.pdf
DIMENSTEIN, Magda; JARDIM, Katita. Risco e crise: pensando os pilares da urgência psiquiátrica. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 169-190, 2007. 
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/per/v13n1/v13n1a11.pdf
 
FERIGATO, Sabrina Helena; CAMPOS, Rosana T. Onoko; BALLARIN, Maria Luisa G. S. O atendimento à crise em saúde mental: ampliando conceitos. Revista de Psicologia da UNESP, 6(1), 2007, p.31-44.  http://186.217.160.122/revpsico/index.php/revista/article/download/44/84
LIMA, M. et al. Signos, significados e práticas de manejo da crise em Centros de Atenção Psicossocial. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.41, p.423-34, 2012.  http://www.scielo.br/pdf/icse/v16n41/a11v16n41.pdf
REFERÊNCIAS :
MEYER, Gabriela Rinaldi. Algumas considerações sobre o sujeito na psicose. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, v.11 n.2 Rio de Janeiro, 2008. <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982008000200009>
Sites utilizados:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10216.htm
http://www.jb.com.br/ciencia-e-tecnologia/noticias/2015/11/03/eletrochoque-e-desmistificado-na-academia-nacional-de-medicina/
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