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Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 1 Curso Online de Filosofia OLAVO DE CARVALHO Resumos de Aulas Vol. V Elaborado por Mário Chainho Índice Pag. Aula 21 – 29/08/2009 2 Aula 22 – 05/09/2009 9 Aula 23 – 12/09/2009 18 Aula 24 – 19/09/2009 25 Aula 25 – 26/09/2009 36 Notas: 1) Este material é para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia. Estes devem sempre recorrer às gravações e transcrições das aulas, como fontes primárias, para limitar a propagação dos erros involuntários aqui contidos e colmatar as lacunas. 2) Os resumos foram escritos em português de Portugal. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 2 Aula 21 – 29/08/2009 Sinopse: A ânsia de obter uma rápida erudição conduz a uma análise crítica prematura que não tomar posse da mensagem real contida nos textos. A consciência autobiográfica depende da unificação que a imaginação faz das partes reunidas na memória, mas não devemos nos apegar a uma auto-imagem que nos encerra sobre nós mesmos e assim nos tornar vulneráveis às manipulações exteriores. A imaginação possui diversas funções, começando logo por completar a percepção sensível em consonância com as propriedades dos objectos de modo a vê-los tal como eles são. É também a imaginação que nos dá o senso da unidade do real, porque a percepção apenas fornece dados fragmentados e em sucessão temporal. A imaginação tem ainda uma função na capacidade de antecipação que temos em relação a tudo, até em relação a nós mesmos, já que não nos vemos como um corpo estático mas como um conjunto de potencialidades. A doença materialista consiste em conceber, por abstracção do mundo real, um mundo de meras presenças físicas e depois achar que as potencialidades do mundo real são mera projecção da mente humana. Para combater esta doença temos de ter a capacidade de ficarmos sozinhos mas também desenvolver uma transparência para com nós mesmos. O problema da erudição rápida Quando se tenta obter erudição muito rapidamente, e essa avidez de conhecimento é normal no começo de uma vida de estudos, há a tendência em saltar por cima de uma fase de absorção imaginativa e começar logo a fazer análise crítica. Dessa forma, rapidamente se desliza para fora do assunto que o texto realmente aborda e a análise debruçar-se-á sobre um texto inventado. Isto configura a doença do ensino universitário moderno. Antes de termos um olhar crítico e distanciado sobre o texto temos que garantir a posse da mensagem ali presente. O verdadeiro esforço da vida intelectual é um esforço de auto-domínio, onde tentamos controlar a nossa mente emissiva de forma a nos abrirmos para o que o outro, a percepção e a realidade estão dizendo. É uma absorção passiva apenas no sentido em que, num primeiro momento, vamos refrear a nossa mente construtiva de elaborar raciocínios. Estes podem-nos parecer muito evoluídos, mas o mecanismo do raciocínio silogístico é algo mecanizável e até um animal consegue efectuar, e um computador fará muito melhor que nós. O que caracteriza a inteligência humana é a substantividade e organização na memória do material sobre o qual se raciocina. Para evoluirmos nesse sentido vamos abdicar, numa primeira fase, de obter uma grande erudição, que é algo que virá muito rápido quando tivermos os instrumentos mentais necessários e a atitude correcta. Vamos ganhar hábitos de estudo apropriados. Todos os dias teremos de estudar um pouco, sabendo que não podem render mais de três horas de estudo efectivo por dia, embora possamos fazer outras actividades de ordem intelectual. Só vamos pegar num livro se tivermos a intenção de guardá-lo na memória, não num esforço normal de Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 3 memorização mas fazendo um teatro mental a partir do material ali contido. Será o dramatismo da situação que fará com que recordemos aquilo sem esforço. Consciência autobiográfica A existência de uma consciência autobiográfica depende não apenas da memória mas da imaginação pois é ela que unificará as partes para compor uma personagem. Mas nunca nos devemos apegar à nossa auto-imagem e tentar mantê-la intacta, porque vamos esquecer quem somos e em lugar de falarmos de nós mesmos falaremos de uma personagem imaginária, que não admite receber influências de fora e considera-se autora de tudo. Mas é neste estado que nos tornamos mais influenciáveis a partir de fora, porque a nossa vida altera-se e mudamos de opiniões sem nem nos apercebermos de uma coisa ou de outra. Para obtermos autodomínio temos de conhecer os nossos pontos vulneráveis, saber onde somos facilmente enganados e manipulados, e para isso temos de abandonar a defesa orgulhosa na nossa auto-imagem e nos abrirmos para as influências subtis que recebemos, sobretudo dos meios de comunicações de massas, que não têm apenas um conteúdo positivo, no sentido de serem imagens ou ideias que se impuseram a nós, mas trabalham de forma mais decisiva na supressão de dados. O que jamais entra em consideração condiciona de forma preponderante o nosso pensamento. Ninguém está imune aos símbolos, palavras, termos e ideias que circulam sem parar por todo o lugar e que providenciam o repertório dos nossos pensamentos. Aquilo que não nos foi ensinado pelos nossos pais teve proveniência do meio familiar mais alargado e do dos amigos, ou então dos meios de comunicação de massa e só em última instância da alta cultura. Temos de nos lembrar que não fomos nós que inventamos as palavras que usamos e até para expressar aquilo que nos é mais íntimo usamos palavras que vieram de fora. Nunca estamos isolados do meio cultural e sem o constante fluxo de símbolos e palavras que este fornece nem poderíamos usar a palavra “eu” em consciência. Então, ao invés do nosso “eu”, da nossa identidade e da nossa personalidade serem coisas isoladas no nosso interior, elas fazem parte do meio cultural. Toda a nossa personalidade e a nossa individualidade não são ilusões; têm uma forma mais ou menos descritível e reconhecível por outras pessoas. Mas podemos ter muitas ilusões a seu respeito e ficarmos apegados à nossa auto-imagem. As funções da imaginação A imaginação é fundamental para a filosofia porque sem ela não conseguimos nos estabelecer no real. Uma visão puramente materialista em última instância levará o indivíduo a duvidar da sua própria existência, como alertou Giordano Bruno. A imaginação completa a percepção sensível mas não inventa propriamente o conteúdo em falta, como se supunha no Idealismo. Pensemos na tridimensionalidade dos objectos. Apenas podemos ver um objecto por um lado, mas o nosso olhar instintivamente sabe que há algo mais porque temos visão tridimensional e daqui surge uma expectativa imediata de tridimensionalidade. A imaginação completa esta imagem e nós vemos os objectos como eles são, com tridimensionalidade e densidade. A imaginação não completa a percepção de acordo com a sua inventividade, muito Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 4 menos de acordo com a estrutura do pensamento, mas sim em consonância com as propriedades reais que permitem a existência e presença dos corpos. Dá-se então um ajuste entre as propriedades dos objectos, as capacidades do olho e a função da imaginação. Na realidade, é o bidimensional que só pode ser concebido por abstracção mental, pois mesmo algo desenhado numa folha de papel só pode ser visto porque é tridimensional ou então não existiria. O bidimensional é uma propriedade que pode ser concebida isoladamente mas não pode existir como tal. Também o senso de unidade do real nos é dado pela imaginação. A percepção dá-nos apenas uma sucessão temporal de elementosmas nós sabemos que eles existem simultaneamente. É o aporte imaginário que mais uma vez completa os dados dos sentidos para conferir um senso de realidade. Contudo, a ideia corrente afirma que a realidade é constituída de estimulações sensíveis e tudo o resto é criação humana subjectiva. Mas todos os estímulos que recebemos ao longo de uma vida não compõem um mundo. Esses estímulos acontecem no nosso corpo, tal como acontecem para uma ameba, e se nos atermos a eles ficamos apenas com um mundo inteiramente subjectivo. Trata-se do domínio da estimulidade, como dirá Xavier Zubiri, onde não existe o conhecimento da existência do mundo mas apenas das sensações corporais, pois mesmo os estímulos vindos de fora são sentidos como alterações corporais. A percepção sensível no ser humano não existe isolada, de forma atomística. Podemos apenas conceber percepções sensíveis isoladas por abstracção, já que estas só existem efectivamente numa percepção total constituída em grande parte pela imaginação. Ao invés de nos retirar do real, a imaginação existe precisamente para nos instalar nele usando para isso elementos vindos tanto da percepção sensível como da memória, realizando com eles uma estrutura imediata. O mundo real vai ser a totalidade do percebido, do imaginado e do antecipado, sempre de acordo com as propriedades dos objectos reais. É porque temos imaginação que não ficamos presos à subjectividade das sensações próprias e podemos saber que vivemos num mundo real, de objectos que têm propriedades, presença e se articulam entre si formando a unidade da presença do ser. A imaginação tem ainda uma função importantíssima ao nos ajudar a captar um conjunto de potências presentes em tudo o que vemos e mesmo em relação ao nosso próprio corpo, que também só é percebido como potência e não como simples presença tridimensional. Quando vemos um cachorro sabemos logo que ele poderá ladrar, morder, abanar o rabo mas de certo não sairá voando ou nos cumprimentará em alemão. Captamos um conjunto enorme de possibilidades de acção que podem ser realizadas no instante seguinte e é esse conjunto que faz dele um cachorro e não a sua forma externa. Apenas com esta capacidade de antecipação podemos distinguir um cachorro real de um empalhado. Não se trata de uma expectativa existente apenas na nossa mente pois ela tem de corresponder a potencialidades que estão no próprio cachorro ou não se daria o reconhecimento. Não é uma antecipação criativa mas uma percepção, portanto. Daí decorre que aquilo que chamamos de realidade jamais poderá resumir-se à presença estática dos corpos mas é antes um sistema imenso de dinamismos e possibilidades latentes que se podem efectivar no instante seguinte. Sem a percepção destas potências estaríamos totalmente fora da realidade. A imaginação é o que nos permite captar este conjunto das potencialidades, nunca inteiro, através do Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 5 ajuste da consciência à estrutura da realidade. O nosso recurso mais poderoso para conhecer a realidade é a imaginação, que trabalha sempre solidária com a percepção e cria em cima uma teia de relações que nos dão uma capacidade de antecipação. Sem isso não conseguiríamos falar ou agir. O processo imaginativo funciona aí de forma proporcionada à realidade e em geral não falha desde que não tentemos controlá-lo com a nossa vontade. Numa primeira fase não devemos fazer um trabalho analítico de averiguar se o que se passa na imaginação é verdade ou mentira. Isto envolve interpretação e decomposição em camadas de significado, e em cada uma delas a imaginação, tal como a poesia, diz umas coisas verdadeiras e outras falsas. A verdade de um poema está nele transmitir uma experiência efectiva do poeta que pode ser reconhecida por nós. Antes disso importa dar realce à sinceridade e transparência que o conteúdo imaginativo tem para nós e perceber como funciona a imaginação em conjunção com a percepção. A educação é hoje em dia largamente um processo de desimaginação, destruindo não apenas a inteligência mas também a alma humana. Certas coisas deixam de ser imaginadas para não “parecer mal” e então fazemos de conta que não vemos. As próprias normas de polidez são utilizadas para limitar a imaginação. Neste ponto a linguagem é um elemento crítico, indispensável para a nossa expressão pessoal e para conquistarmos a nossa identidade e autenticidade. Ela é também o nosso ponto de contacto com o mundo, onde partilhamos a língua com toda a gente, pelo que para cumprir com eficácia a sua função tem de estar num permanente fluxo entre o nosso interior e o exterior. Esse fluxo fica perturbado se existir uma pressão para não dizermos certas coisas ou para não as dizermos de certa maneira, e nunca como hoje existiu uma pressão tão controladora sobre a linguagem. O resultado é deixar de perceber aquilo que não conseguimos dizer. A doença materialista Nós não conseguimos perceber seja o que for a partir de meras presenças físicas. Mas o próprio mundo físico de que tanto se fala, se fosse só mera presença material destituída do seu potencial, não poderia existir de forma alguma. Esse é um mundo que apenas pode existir como conceito, um produto mental fruto da abstracção. Como conseguimos fazer esta operação racionalmente, retroactivamente achamos que numa percepção real os elementos de sensação, antecipação e imaginação se encontram separados. Esta é a doença materialista, uma doença do intelecto, uma falta de inteligência que não percebe que os vários elementos que compõem uma percepção podem ser distinguíveis mas nunca separáveis, e o mesmo decorre para o “mundo material”. Será inconcebível para um materialista reconhecer que efectivamente vivemos num mundo “imaginário”, pois é só pela imaginação que conseguimos reconhecer o enorme conjunto de tensões, possibilidades e dinamismos presentes na realidade. A primeira etapa do curso destina-se a fugir disto e a tomar posse da capacidade de perceber o mundo como coisa real, presente, viva e actuante, e que além dos dados actuais contém um conjunto de dinamismos, tensões e potências que marcam a nossa verdadeira presença. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 6 Se queremos conhecimento real, este vai ter de ser obtido a partir da percepção real e não de hipóteses artificiosas, onde se faz uma selecção abstractiva de certas propriedades dentre inúmeras que percebemos. Mesmo a experiência científica vai ter que ser inserida dentro do campo da experiência real para ter algum significado. Nunca podemos superar a percepção real, porque afinal teríamos de o fazer isso num mundo real, retornando à percepção real, e não num mundo hipotético. O mundo real era o que Husserl timidamente chamava o mundo da vida, mas este é na verdade o único mundo que existe, e a experiência científica só existe como uma parte do mundo da vida que decidimos olhar separadamente, sendo uma distinção mental e são uma separação de facto. As ciências vão retirar o seu valor a uma ontologia e a uma epistemologia baseadas num exame desse mundo real. Esse senso de orientação e de valores é dado pela filosofia e é fundamental para algo poder se tornar conhecimento mas que Jean Piaget, no livro Sabedoria e Ilusões da Filosofia, acabou por desvalorizar como se fosse mero enfeite. O conhecimento da realidade, ao invés de ser algo reservado para uns poucos eleitos, é o que há de mais próprio ao ser humano. A essência das coisas não é algo que se acha após um longo exame crítico. Pelo contrário, só podemos fazer um exame crítico de algo sobre o qual já conhecemos a essência ou nem sequer conseguiríamos seleccionar os aspectos que vamos analisar. A essência é na verdade a primeira coisa que conhecemos. Quem se deixa influenciar por ideias materialistas e dá primazia à análise crítica,a primeira coisa que lhe acontece é um corte com a percepção do mundo real, seguindo o processo cognitivo por um caminho independente. A pessoa perde a capacidade de examinar a experiência real e acha que tudo são aparências e que não é possível ter mais do que opiniões. Este é um processo incentivado pelo sistema escolar, que faz o indivíduo perder confiança na sua inteligência. Daqui emerge o relativismo e a proclamação de que não existem verdades absolutas, sendo tudo relativo. Mas as opiniões dos relativistas são sagradas para este e ficam furiosos se as questionamos. Este é o raciocínio dominante hoje em dia em todas as discussões públicas, a abolição da possibilidade de conhecimento objectivo e a instauração de autoridades absolutas ditadas pelo professor ou pelo grupo. É este o resultado do Iluminismo que, proclamando a primazia da razão, acabou por instaurar a mais dogmática e inquestionável das autoridades, que sacralizou a opinião dominante tornando-a opaca a qualquer exame racional e questioná-la é tomado como sintoma de doença mental. Esta é uma destruição da inteligência humana que pode ser irreversível e que configura uma crise de dimensões antropológicas. A descoberta colectiva é impossível; é sempre uma descoberta individual de alguém que percebeu algo que os outros não percebiam. Esta capacidade de diferenciação está sendo negada porque há uma terrível pressão sobre quem quer que se atreva a contestar a opinião dominante, o que leva as pessoas a temerem a loucura se pensarem de forma diferente. A mídia tem o terrível poder de associar um nome a uma coisa ridícula, onde a repetição é constante mas a discussão é mínima. Numa época em que tudo é feito em segredo, em que o segredo é oficial e tentar furá-lo chega a ser considerado crime em algumas sociedades democráticas ocidentais, o rótulo “teoria da conspiração” adquiriu uma conotação ridícula. Especular sobre os factos escondidos é Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 7 essencial para compreender alguma coisa, mas ao fazê-lo somos logo tomados como loucos que acreditam em “teorias da conspiração”. Vivemos hoje no império da opinião, sem as mínimas condições para compreender e investigar as coisas e rapidamente as pessoas vão mesmo desistir de vez de tentar saber o que está acontecendo. Então, as pessoas irão substituir a atitude de submissão aos mistérios de Deus pela submissão aos ditames de instituições como a Reserva Federal Americana. Esta abdicação geral de capacidades e de direitos fundamentais configura uma crise antropológica. Elites globalistas tentam controlar o mundo mas fazem-no mentindo uns aos outros, pelo que é uma política oculta até de si mesma. O antídoto para a doença A formação que se pretende dar no COF é a que fará de nós uns pequenos pontos de luz que servirão para orientar os outros na escuridão, algo que até os próprios fabricadores de obscuridade necessitam. Não é por orgulho, mas não podemos nos deixar guiar por mais ninguém porque o número de pessoas sinceras é mínimo, e mesmo escutando pessoas sinceras temos de verificar se o que dizem bate com a nossa experiência. O modelo da nossa civilização é o Cristo sozinho na cruz, achando que até Deus pai o tinha abandonado. Sem esta capacidade de ficar absolutamente sozinho até deixamos de ver o amparo que realmente nunca se extingue, não é possível desenvolver a coragem intelectual, que é algo mais importante que o volume de conhecimentos obtido. A erudição é uma coisa fácil e rápida de obter se permanecermos próximos da fonte de onde tudo brota, que é aquilo que está vivo e é real em nós. Isso vai nos obrigar a largar muitas auto-imagens, sabendo que o centro da nossa consciência tem algo que não é para ser conhecido mas para ser realizado. Cada um de nós tem o dever de fazer florescer a sua inteligência sem medo de descobrir a verdade. Não nos é dada aqui uma verdade pronta mas apenas algumas dicas sobre como alcançá-la. Não vamos ter medo de errar, porque isso já é um medo da verdade, alertava Hegel. À nossa volta há pessoas loucas que se encerraram na mentira e querem impedir todos os outros de descobrir a verdade, acusando-os de loucura. Temos de nos preocupar com o nosso nível moral porque só podemos apresentar algum trabalho de valia ao público se já tivermos esclarecido as nossas relações com as pessoas em redor. Temos de procurar a transparência para com nós mesmos, algo que nunca dá para obter integralmente. Temos de nos conformar a uma consciência cíclica, com altos e baixos, mas nunca nos podemos conformar com um estado de mentira confortável. Todas as verdades exteriores que descobrirmos serão falsas enquanto não aceitarmos a verdade sobre nós mesmos. Perceberemos, então, que nunca teremos uma perfeição quantitativa total e que Deus apenas espera de nós um equilíbrio entre vícios e virtudes, onde o que importa é o conjunto. Os vícios são feitos da mesma matéria das virtudes, dizia Santo Agostinho, o que quer dizer que ao invés de tentarmos obter uma perfeição quantitativa, a partir de uma lista de pecados, temos antes de usar os pecados para melhorar o conjunto, meditando sobre as situações. O pecado não nos deve dar remorso mas sim um pouco de alegria porque, depois de confessado, Deus nos perdoará, o que quer dizer que nos completará mais um pouco os Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 8 dons que nos deu incompletos. Sem esta transferência de controlo para Deus nunca teremos auto-controlo. As atitudes fundamentais que temos em relação à vida irão converter-se depois naturalmente em técnicas filosóficas, que não são mais do que artifícios para nos mantermos próximos da nossa consciência e não deixarmos que os conceitos se “coisifiquem”. O estado de confissão permanente é condição indispensável para o exercício da técnica filosófica. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 9 Aula 22 – 05/09/2009 Sinopse: A actividade pública dos alunos do COF só deve começar daqui a 5 ou 6 anos, quando já existir uma opinião diferenciada pelo peso da obra intelectual realizada ou em realização, pois só assim é possível produzir algo que se sobreponha ao material em circulação dos indigentes que destruíram a cultura superior. Precisamos conhecer alguns elementos fundamentais do ambiente histórico e cultural onde nos inserimos, sendo abordados nesta aula factores que pesam sobre o ambiente mundial. Esses factores chegam a ser atemorizantes, mas não se pretende constranger ninguém mas sim mapear o terreno para poder traçar estratégias de acção. A situação actual é definida pela existência de uma elite mundial internacional que trabalha para a construção de um governo mundial, onde a grandes banqueiros se juntam intelectuais, escritores, historiadores, cientistas, etc., que concebem planos de uma complexidade e nível intelectual tais que os tornam inapreensíveis para o cidadão comum. O movimento globalista engloba o movimento marxista e para propor algo mais defensável é preciso enxergar pelo menos o mesmo que os grandes historiadores partidários deste movimento, como Carrol Quigley e Arnold Toynbee, enxergaram. O movimento globalista começou com o reconhecimento de um processo de integração mundial em curso, que depois passou a ser um processo voluntário e planeado. Os dirigentes do movimento globalista não agem para obter dinheiro mas poder. Uma análise séria ao fenómeno do poder tem de partir da premissa da existência de diferença de poder entre os indivíduos da espécie humana, que não é algo acidental mas estrutural, causando uma concomitante diferenciação no horizonte de consciência temporal dos indivíduos. A ideologia científica moderna desempenha um papel substancial nos esforços da nova ordem mundial, prometendo a realização das promessas bíblicas por viasinversas, onde se preconiza a espiritualização da matéria através da acção da ciência. A ciência assume-se como a autoridade suprema sobre todos os domínios humanos, mas ela possui uma linguagem que só pode ser entendida completamente pelos próprios cientistas, pelo que o maior controlo do homem sobre a natureza conduz a um maior controlo de que quem domina a linguagem científica sobre quem não a domina. A ciência moderna pretende controlar o futuro e ordenar a natureza, mas a actividade intelectual proficiente repousa no senso de ordem que a própria natureza possui, misturada com um certo nível de caos, que são englobados pela ordem eterna revelada pelos milagres. A situação mundial actual A situação mundial actual é definida pela existência de uma elite mundial internacional, muito rica e poderosa, que integrou as suas actividades e trabalha em prol de um plano unificado de governo mundial. Já no século XII ou XIII os banqueiros internacionais associavam-se para pressionar os governos e levá-los ao endividamento, controlando-os assim. A novidade neste elemento é a proporção e extensão tomada, não havendo nação que escape a este processo, e também a inclusão, a partir de meados do século XIX, de intelectuais, escritores e cientistas a trabalhar Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 10 para este projecto. Esta elite financeira está por trás de quase todos os projectos políticos de alcance mundial ocorridos no século XX, ainda que nenhum deles traduza os objectivos e planos desta elite exactamente. Não se trata isto de uma mão oculta ou de um poder secreto, estando tudo muito bem documentado. O processo torna-se inapreensível para o cidadão comum devido à complexidade dos planos e ao altíssimo nível intelectual das discussões envolvidas. Quase toda a bibliografia produzida a este respeito veio de pessoas que estão dentro deste esquema de nova ordem mundial (Carrol Quigley, Arnold Toynbee, H. G. Wells, Aldous Huxley, etc.) ou então de pessoal militante que se escandaliza com a situação e faz denúncias. Alguns desses movimentos de denúncia são criação da própria elite, como os protestos marxista contra a globalização, ou então são movimentos anteriores que reagem apenas de acordo com a sua orientação, não tendo a amplitude de visão necessária para compreender o processo. Para obter esta compreensão precisamos de formação intelectual que nos permita compreender o processo desde fora, sem estar comprometido com o movimento nem ter necessariamente uma atitude militante contra, adquirindo assim a escala certa e a perspectiva adequada. A mídia esquerdista vê o processo apenas numa escala micro e não percebe quando, em outra escala macro, o acontecimento micro é absorvido e desmentido, como acontece com os protestos de Joseph Bové contra a multinacional Monsanto, que é, por sua vez, um dos pilares da nova ordem mundial patrocinada pela ONU. O intelectual sério tem, pelo contrário, de avaliar a situação face a uma escala de valores mais permanentes, saber o significado dos acontecimentos dentro da História humana até onde a podemos enxergar, não sendo necessário para isso conceber uma unidade integral da História. Não podemos conceber o movimento globalista à luz do movimento socialista, porque se dá precisamente o inverso; é o movimento socialista que faz parte do movimento globalista, foi por ele criado e desempenha ali uma função. Precisamos, então, de uma perspectiva mais ampla e, pelo menos, enxergar o mesmo que os grandes historiadores do movimento globalista enxergaram, em especial Carrol Quigley e Arnold Toynbee. Sem estudar as obras deles e perceber os princípios de interpretação e avaliação que eles usam, não podemos ambicionar a produzir algo que seja mais defensável que as suas propostas. A génese da globalização No livro Main Springs of Civilization, Ellsworth Huntington realça algumas constantes da História, e ele menciona o crescimento das populações e o maior contacto entre culturas, o que provocou um processo de integração em que as culturas menores são absorvidas pelas maiores. Mas tão logo este processo tornou-se consciente, ele tornou- se voluntário e planeado nas mãos de uma elite altamente qualificada e com meios para isso. O movimento de globalização é, então, a tentativa de conduzir por meios deliberados o processo de integração que já vinha ocorrendo, tendo por base a crença de que a História dirige-se no sentido de uma maior controlo da natureza pelo homem e também no sentido da maior concentração de poder. É inevitável que todas as correntes dentro do movimento de globalização tenham alguma visão de futuro Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 11 associada, onde está sempre presente o maior controlo sobre a natureza. Mas sobre isto existe a crença de que este controlo pode, por sua vez, ser controlado e daí emergiu a ideia do controlo total do processo histórico. Todos os movimentos políticos em actuação não possuem os meios para lidar com um fenómenos como a globalização, que necessita de uma escala mais global. Cada movimento só vê aquela parte que corresponde à sua escala de prioridades. Os marxistas analisam a globalização à luz de um processo de crescimento capitalista que se opõe aos movimentos populares e aos direitos humanos. Eles mesmos não têm a visão suficientemente ampla para perceber o papel que desempenham na globalização. Por outro lado, a postura dos liberais clássicos em relação à globalização é ambígua. Se a ideia de um planeamento central lhes causa natural repulsa, eles acabam por ser favoráveis ao livre mercado internacional, porque só o analisam em termos económicos e não como o fenómeno geral que ele é, tendo outras vertentes jurídicas e geopolíticas, por exemplo. Dessa forma, acabam por favorecer uma transferência de soberania dos governos nacionais para organismos internacionais e, assim, a criação de um grande Leviatã inerente à existência de um comércio internacional. A natureza do poder Não podemos ver um fenómeno como a globalização como sendo motivado pelo objectivo de obter ganhar dinheiro porque as pessoas envolvidas já têm todo o dinheiro que querem e, ainda mais relevante, controlam o poder do dinheiro. Trata-se de uma questão de poder, de uma vontade que se sobrepõe às outras. Mas não podemos analisar o fenómeno do poder sem estabelecer uma premissa que tem sido ignorada por toda a ciência política contemporânea ou tida como uma anormalidade. Essa premissa afirma que a diferença de poder entre os seres humanos é uma das características mais constantes e estruturais da presença humana no cosmos. Em nenhuma outra espécie animal a diferença de poder entre indivíduos varia tanto como no ser humano, que pode chegar à diferença entre o tudo e o nada. Além disso, a diferença de poder entre indivíduos tem vindo a aumentar ao longo da História, como relatou Bertrand de Jouvenel no livro Du Pouvoir. No século XX, Mao ou Stalin podiam decidir a vida de milhões de pessoas com um golpe de caneta sem haver ali qualquer discussão ou oposição. Mesmos os empreendimentos criados para diminuir o poder dos governos sobre os cidadãos acabaram por aumentar a diferença de poder porque sempre alimentaram o crescimento do Estado. A diferenciação de poder acarreta inevitavelmente uma diferenciação do horizonte de consciência temporal. Quem tem o poder possui uma capacidade de previsão muito superior aos outros, que frequentemente ignoram totalmente o que está sendo planeado para eles. A diferenciação do horizonte temporal também foi algo que aumentou ao longo dos tempos, em especial a partir do século XIX. No limite temos o marxismo que já tem uma ideia de um destino final a ser alcançado inevitavelmente, e então eles sentem-se no direito de convocar todas as pessoas a trabalhar para esse fim,onde se prevê a total colectivização dos meios de produção e a abolição do Estado porque este se torna desnecessário porque tudo é Estado. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 12 A ciência moderna como paradigma da salvação A ideia do controlo da natureza pelo “homem” e do controlo das condições que determinam a vida humana apareceu imbricada na concepção da ciência moderna, ainda antes dos movimentos ideológicos modernos. Quando a ciência prometia o controlo do ambiente físico, na prática isso implicava o aumento do poder de uns homens sobre outros. Da década de 30 do século XX as utopias científicas e marxista fundem-se e entram num processo de identificação, que é exemplificado nas palavras J. D. Bernal: Na prática da ciência já temos o protótipo para toda a acção humana. Os métodos pelos quais esta tarefa é realizada, por mais imperfeita que seja a sua realização, são os métodos pelos quais a humanidade mais provavelmente assegurará o seu próprio futuro. No seu esforço a ciência é comunismo. No mesmo sentido, C. H. Waddington avançou: A ciência por si mesma é capaz de fornecer à humanidade um modo de vida que é, em primeiro lugar, auto-consistente e harmonioso e, em segundo lugar, livre para o exercício daquela razão objectiva da qual depende o nosso progresso material. Até onde posso entender, a atitude científica da mente é a única que no presente é adequada a esses dois objectivos. O que ele quer dizer é que a ciência não deve apenas estender-se apenas a todos os domínios da acção humana como é a única forma de fazer a articulações das acções humanas com vista a obter um modo de vida que seja harmonioso, auto-consciente e racional. Daqui foi um passo para se considerar que a ciência deve arbitrar as discussões públicas, como veio a ocorrer no século XX. A base da responsabilidade intelectual passou a ser personificada pela mentalidade científica e quando se concebem outras atitudes baseadas na religião, na estética, na tradição, nas preferências pessoais, etc., sempre estas ficam submetidas à aprovação da ciência, porque se considera que a ciência tem o controlo racional do processo cognitivo ao passo que os outros controlos são “irracionais”. A ciência transforma-se não só no grande árbitro das discussões públicas e assim é a provedora dos valores morais, culturais, religiosos, etc. À medida que a ciência se especializa, o seu conteúdo deixa de ser comunicável em termos de linguagem geral, como acontece na física, onde muita coisa só se expressa matematicamente. Então, a elite científica possui um conhecimento incomunicável para a restante humanidade e é em nome desse conhecimento que pretende arbitrar as discussões públicas. Acaba por ser uma autoridade que não é de ordem racional já que pretende presidir a todas questões culturais, às finalidades da vida e a uma selecção de Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 13 valores mas que não se consegue pronunciar nos termos destes valores gerais. Richard Dawkins, Stephen J. Gould, Stephen Hawkins, o que fazem é traduzir para a linguagem geral da cultura superior as ideias e conceitos da ciência teoricamente intraduzíveis. Ao longo do século XX tornou-se uma constante a tentativa de legislar em nome do incomunicável mas como se este fosse comunicável. A elite financeira e a elite científica são forçadas a trabalhar juntas, porque a primeira necessita da inspiração e planos delineados pela primeira, e a segunda das verbas da primeira, que não são apenas estatais mas surgem também de fundações privadas. Sobre o cidadão comum pesa, então, “todo o dinheiro do mundo” somado a “toda a ciência do mundo”. Quando a estes se junta um movimento ideológico como o marxismo obtemos as seguintes fantasias de John D. Barrow e Frank J. Tipler: Toda a evolução do universo está feita para chegar a um ponto ómega. [Como diz Teilhard de Chardin, numa linha do modernismo católico.] No instante em que o ponto ómega for atingido, a vida terá conquistado o controlo sobre toda a matéria e sobre todas as forças, não apenas num universo singular mas em todos os universos cuja existência seja logicamente possível. A vida [o ser humano] terá se expandido em todas as regiões espaciais de todos os universos que possam logicamente existir. J. D. Bernal foi uma das fontes principais deste projecto, e em 1929 escreveu: Uma vez aclimatado à vida no espaço, é improvável que o homem pare até que ele tenha alcançado e colonizado a maior parte do universo sideral. E é mesmo improvável que isso seja o fim. O homem, em última análise, não ficará contente de ser um parasita das estrelas mas vai invadi-las e organizá-las para os seus próprios propósitos. Não se deve permitir que as estrelas continuem a viver à sua maneira antiga mas elas têm de ser transformadas em eficientes produtores de energia. Pela organização inteligente, a vida do universo poderia provavelmente ser prolongada muitos milhões de vezes em relação àquilo que ela seria sem organização. Isto não é dito por um escritor de ficção científica mas por um cientista e milhares de outros pensam como ele e propõem-se a enfrentar a segunda lei da termodinâmica que diz que a produção de energia declina com a igualização das coisas. Freeman Dyson, que considerava Bernal um pioneiro, conjectura no mesmo sentido: Supondo-se que nós descubramos que o universo seja naturalmente fechado e condenado ao colapso, é concebível que, por intervenção Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 14 inteligente, convertendo a matéria em radiação e fazendo a energia fluir de maneira propositada em escala cósmica, possamos quebrar o universo fechado e mudar a topologia do espaço-tempo? John D. Barrow e Frank J. Tipler partem do princípio que a finalidade da vida humana é impedir que o universo termine: Se a vida inteligente estivesse já em operação em escala cósmica, antes que os buracos negros se aproximassem do seu estado explosivo, esses seres poderiam intervir para impedir que os buracos negros explodissem. De forma ainda mais delirante por Paul Davies: Nós somos convocados a examinar como a vida inteligente pode ser apta a guiar o desenvolvimento físico do universo para os nossos próprios propósitos e possamos conseguir obter sucesso e moldar o universo. Podemos mesmo ser aptos a manipular as dimensões do espaço criando bizarros universos artificiais com propriedades inimagináveis e então seremos realmente senhores do universo. Mary Midgley, que escreveu o livro Science as Salvation (*) de onde são retiradas as citações apresentadas nesta aula, comenta: (*) O livro pode ser lido em: http://www.giffordlectures.org/Browse.asp?PubID=TPSASV&Cover=TRUE Esta perspectiva tem naturalmente o seu preço. Para isso as pessoas precisam de transferir a sua consciência desde corpos orgânicos para máquinas. E então para matérias cada vez mais subtilizadas como poeira estelar e talvez luz. De qualquer maneira, como explica Barrow: “Nessa era os nossos corpos já terão sido deixados para trás há muito tempo.” Não se coloca isto como hipótese de ficção científica mas como a decorrência lógica do tipo de humanidade existente hoje. Freeman Dyson esclarece melhor o futuro que se pretende para a humanidade: É concebível que em 10 elevado a 10 anos, a vida poderia se desenvolver Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 15 para longe da carne e do sangue e tornar-se incorporada num bloco de nuvens inter-estelares [teoria também aceite por Fred Hoyle] ou num computador senciente. John B. Haldane: Se é verdade, como ensinam as grandes religiões, que o indivíduo só pode alcançar uma vida boa conformando-se a umplano maior que ele próprio, é nosso dever perceber a magnitude desse plano, seja ele de Deus ou do homem. Ou a mente humana provará que o seu destino é a eternidade e a infinitude, ou chegará um tempo em que o homem e todas as suas obras perecerão eternamente. Enquanto o cristianismo fala de um sentido para a vida humana no presente, mesmo que essa vida dure apenas alguns minutos pois a nossa vida tem um sentido eterno porque nós não podemos viver fora da eternidade e a aquilo que aconteceu não pode ir para o “nada”, Haldane faz depender esse sentido daquilo que a humanidade vier a fazer no futuro, e um sentido apenas válido para quem viver esses tempos, onde os homens serão anjos e deuses ao passo que agora somos todos bichinhos. Esta piada macabra é vendida como um esquema de sentido da vida. Haldane concebe a eternidade como algo temporal e a ser criado no futuro. Apesar de conceder importância a um plano maior, para ele tanto faz ser um plano de Deus ou do homem, o que nos coloca na mão de outro sujeito que também não é eterno. Ciência e comunismo equivalem-se neste ponto, já que Trotsky e Marx também achavam que no mundo comunista o varredor de rua seria, consoante a hora do dia, um Aristóteles, um Miguel Ângelo ou um Napoleão. Esta ideia de que o universo existe para espiritualizar a humanidade, que o destino desta é alcançar uma super-humanidade ou trans-humanidade através da libertação da forma física passando a existência para uma poeira inter-estelar inteligente ou para um computador senciente, está na mente de muitas pessoas que trabalham para formar um governo mundial. Eles são materialistas mas pretendem transcender a matéria, procurando assim cumprir as promessas bíblicas por vias inversas. Querem fabricar a imortalidade e essa ideia inspira pesquisas de valor incalculável. Contudo, se o poder intelectual não é pessoal e necessita de verbas para se materializar, a longo prazo vai ser ele que formar a cabeça dos banqueiros. A nossa vida intelectual vai iniciar-se neste ambiente onde reina a cultura da modernidade científica que tenta estabelecer um novo clero que deve legislar sobre a humanidade baseado num conhecimento intransmissível. Não se tratam de ideias típicas de escritores de ficção científica, que utilizam imagens do futuro em geral como metáforas de algo presente e não como previsões. Estas ideias, da ciência como salvação, são pensadas por cientistas que se julgam profetas e orientam-se a partir disso. Eles pensam controlar o futuro, mas esquecem a duração da vida humana e que não estarão mais presentes, pelo que o auge do controlo significará um perfeito Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 16 descontrolo. E quando se fala que o ser humano controlará a natureza, cabe perguntar quem exactamente fará isso. Uma vez que o conhecimento científico não pode ser transposto para linguagem corrente, necessariamente serão aqueles com o domínio da linguagem científica a ter o poder sobre os restantes. O controlo do homem sobre a natureza é muito precário, mas o controlo de uns homens sobre outros é muito eficaz e só aumentará com o anseio de controlar a natureza. Acresce ainda que a tentativa de controlar o futuro, além de ser irresponsável por vir a exercer-se quando os responsáveis pelo seu lançamento não estarão mais presentes, tem sobretudo uma natureza de interferência com um efeito caótico e não ordenador. A postura do intelectual O nosso posicionamento na actual situação terá de ser considerado não apenas na sua vertente intelectual mas também na vertente social. Todo o aparato universitário está encaixado nesta nova ordem mundial, e é ela que determina as verbas e o prestígio intelectual, mas não tem um poder absoluto e existem rombos imensos. Não podemos ter a ilusão de podermos usar o aparato universitário com finalidades distintas daquelas pelas quais este se orienta hoje. Devemos antes procurar uma vida intelectual independente, criando novas formas de subsistência e desenvolvendo até os próprios meios de divulgação. Isso implica uma grande coragem moral e física, e se nos deixarmos impressionar pelo aparato universitário e mediático ficaremos burros na mesma hora. Em termos intelectuais, não vamos ceder a estas ilusões de ordem, com origem científica e ideológica, mas nos conscientizar para a ordem real que existe no universo, que coexiste com um certo nível de caos. Essa ordem não depende do ser humano, e nem precisamos de a conhecer, basta saber que ela existe. Sabemos isso a partir da experiência da presença do ser, e que é essa ordem que ordena a nossa mente e não é a mente que ordena os dados do mundo exterior. A fidelidade a esta ordem vai revelar- nos parcelas do ser na medida das nossas necessidades. É reconfortante a ordem do real não depender de nós, e o nosso reconforto deve antes residir no senso da eternidade do ser, pois o universo será rasgado como uma folha de papel sem que isso altere a ordem do ser. A alternativa, conceber a nossa mente como ordenadora de um universo caótico, é insana. Se nós fazemos parte desse universo caótico, como pode essa parte ordenar o todo? A relação do ser humano com a ordem universal só é verdadeira se for permeada de confiança, paciência e modéstia. Contudo, há uma ambição psicótica e irrealizável de obter o conhecimento total do universo, como acontece com Stephen Hawking, ou de obter a resposta às questões sobre a finalidade da existência através da biologia, na visão de Richard Dawkins. Eles desconhecem que a ignorância de partes da realidade faz parte da estrutura da realidade. Quando estas pessoas não conseguem acompanhar um raciocínio de S. Tomás de Aquino mas têm a pretensão de obter uma descrição completa do universo ou saber qual é a finalidade da vida, elas revelam um nível de barbarismo que não era aceite em outras épocas. A absolutização do espaço-tempo que pretende realizar a comunidade científica é desmentida pela existência dos milagres. O milagre mostra que a ordem do universo é apenas um aspecto da ordem do ser, que é a Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 17 própria eternidade. O milagre não é uma violação de leis naturais, que na realidade são apenas generalizações parciais e temporárias feitas por cientistas, mas antes a presença de leis eternas supra-universais. A ideia da descrição completa do universo parte do esquecimento de que só o que terminou ficou fechado, completo, já que apenas o infinito pode ser perfeito sem ter fim, mas o finito não. Por isso, o diálogo com o real é incompleto, não só porque a nossa mente é limitada mas porque a ordem do real é incompleta. Platão e Aristóteles já sabiam que a ordem da realidade não é plana, tem vários níveis, e aquilo que parece organizado numa escala será caótico noutra. A imperfeição da ordem real existente só pode traduzir-se num conhecimento inadequado, pelo que a compreensão dessa ordem tem ser feita através de analogias e recorrendo a figuras de linguagem, a que a própria ciência não deixa de recorrer, por exemplo, quando fala em matéria, algo utilizado como metáfora e que nunca ninguém conseguiu definir concretamente. Uma lei física não é mais expressiva do que um verso de Camões, o cientista apenas se ilude de que tudo o que diz ser literal e mais próximo da realidade porque não percebe que as medições e os procedimentos matemáticos continuam a ter por base ainda uma figura de linguagem. A passagem entre os vários discursos é fluida e problemática e não há uma linguagem que se encaixe perfeitamente num dos quatro discursos. É inexacto falar em “ciências” exactas porque elas só podem ser exactas nas suas medições, incluindo a estimativa dos erros, mas não nos seus conceitos. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 18 Aula 23 – 12/09/2009 Sinopse:Esta aula é baseada em algumas passagens do livro L’imposture, de George Bernanos, enviadas por Luciana Amato. Bernanos fala de um homem lírico, cujo expoente máximo é Victor Hugo, que é incapaz de perceber a presença do ser e vê a natureza apenas como eco das suas paixões. Também Karl Marx via a natureza como cenário da acção humana e fornecedora de matéria-prima para a indústria e, apesar de colocar a História como centro de tudo, considerava-se um materialista objectivo. Noutra passagem, Bernanos fala da fragilidade da auto-imagem, algo criado para responder a necessidades sociais e que apaga com frequência a noção intuitiva que as pessoas têm de si mesmas. O conhecimento do coração, aquele que provém da nossa parte mais substancial, fica assim abafado. O homem passa a viver abaixo do potencial da sua espécie e torna-se incapaz de viver a tensão entre a sua pequenez física e a sua capacidade de experimentar a presença do ser. Todo o conhecimento provém, em primeira mão, dessa experiência, mas como podemos fazer apreensões a partir de registos e o conhecimento se consolida em nós através do pensamento e da imaginação, podemos nos iludir que o universo é composto de objectos de pensamento e imaginação, e entramos assim no delírio de omnipotência. O verdadeiro conhecimento é, pelo contrário, uma abertura para o desconhecido e para o incontrolável que existe na coisa conhecida, pois só assim as coisas podem ter uma existência real não restringida ao nosso pensamento. A abertura que temos para as várias dimensões do ser deve-se em larga medida a experiências do ser que outras pessoas tiveram e nos alertaram para elas. Isto faz parte da nossa experiência do ser e não pode ser concebido dentro de um universo puramente físico, que não é o universo real onde vivemos mas uma abstracção. A imensidão do cosmos provoca espanto, que é o princípio do conhecimento, como dizia Aristóteles, mas se tentamos resolver a tensão fundamental da nossa existência acabamos na ignorância. A teologia católica foi a primeira ciência que apareceu e deu origem à ciência moderna, mas nenhuma das outras ciências conseguiu alcançar o mesmo grau de organização, solidez e coerência que esta. Bernanos e a sua visão da civilização moderna No livro L’imposture, de Georges Bernanos, existe um parágrafo praticamente intraduzível: Cada rua, atravessada no tumulto e no deslumbramento, tão logo deixada vos segue na sombra com uma queixa horrível, pouco a pouco ensurdecida até ao limite de um outro tumulto e de um outro deslumbramento que logo junta a outra a sua voz dilacerante. E ainda, não é essa palavra «voz» que eu deveria escrever, pois somente a floresta, a colina, o fogo e a água têm vozes, falam uma linguagem. [As ruas não têm voz, somente a floresta, a colina, o fogo e a água.] Nós perdemos o segredo desta linguagem se bem que a lembrança de um Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 19 acordo augusto, da aliança inefável entre a inteligência e as coisas não possa ser totalmente esquecida nem pelo mais vil dos homens. A voz que nós já não compreendemos ainda é amiga, fraterna, apaziguadora, serena. O homem lírico, no grau mais baixo da espécie [a criatura moderna que está no grau mais baixo da espécie], que o mundo moderno honrou como um deus, acreditaria risivelmente tê-la restituído [ter reconquistado esta linguagem das florestas], não tendo libertado a natureza dos silvanos, das dríades e das ninfas fora de moda se não para soltar aí o seu rebanho inteiro fora das suas mornas sensualidades. O mais forte dentre eles [referência a Victor Hugo], já estrangulado pela velhice, preencheria as ruas e as florestas com a sua infatigável lubricidade. Atrás dele, a massa dos discípulos acorreu, como quem come, à solidão sagrada, no sonho abjecto de associá-lo às suas digestões, à sua melancolia, à sua decepção carnal. O contágio pouco a pouco estendeu-se até aos antípodas. A ilha deserta recebeu as confidências deles [dos homens líricos], testemunhou os seus amores, retiniu com os seus grotescos soluços ante a velhice e a morte. Nenhuma pradaria [há], resplendente de luz e de orvalho no candor da aurora, onde você não encontre os traços deles como papéis sórdidos grudados nos postes numa segunda-feira de manhã. Todavia, se está no homem impor a sua presença e os signos da sua baixeza à natureza, nem por isso ele se apodera do ritmo interior dela, da sua profunda ruminação. Ele encobre a voz dela mas a interroga em vão (…) O original pode ser lido no seguinte endereço, página 22: http://www.4shared.com/file/118844032/6f497bbf/Bernanos_Imposture.html Este parágrafo resume toda uma História da civilização moderna, personificada pelo homem lírico, que é aquele poeta romântico que, incapaz de perceber a natureza como presença do ser, vê nela apenas um eco para as suas paixões. Victor Hugo é o expoente máximo desta corrente que vê o mundo inteiro como um megafone para as suas tristezas carnais, por mais banais e idiotas que estas sejam. É como se o mundo material tivesse sido suprimido, sobrevivendo apenas como cenário para as paixões humanas. Na época de Victor Hugo, Karl Marx tinha uma visão da natureza que a fazia apenas como matéria-prima da acção humana, tanto histórica como para ser usada na indústria. Este é o paroxismo do subjectivismo moderno, em que o sujeito se diz materialista e objectivo, mas depois encara-se a si mesmo como se fosse Deus e acha que a natureza é uma função da acção humana, quando o ser humano tem uma influência no universo quase nula. O culminar disto é o princípio antrópico que diz que o universo foi construído tendo o homem como fim, porque nós só somos como somos devido ao universo ter a estrutura que tem. Esta é uma conclusão que coincide com o que diz a Bíblia, mas como agora se exclui Deus, então o homem não é apenas o fim da criação mas também o seu princípio, como se o universo tivesse apenas uma Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 20 existência potencial até o advento do homem, que depois cria o universo retroactivamente. Aqui temos o princípio da inversão moderna, inclusive a inversão revolucionária, a mesma loucura de Victor Hugo em colocar as próprias paixões como centro da realidade e tudo o resto é um cenário que serve esse propósito. O homem moderno fica aterrorizado quando percebe a sua pequenez dentro do conjunto do universo, algo que toda a humanidade anterior encarava com normalidade, porque perdeu a consciência da presença do ser e já não tem Deus como mediador entre si, um infinitésimo, e o universo ilimitado, apesar de não infinito. Com o pavor que isso provoca, tentamos suprimir a presença do universo, tomando-o apenas como fornecedor de matéria-prima e cenário histórico, donde a História passa a ser o centro de todas as coisas, mesmo que a sua unidade exista apenas na cabeça do historiador ou então face a Deus. A fragilidade da auto-imagem Do mesmo livro de Bernanos citado acima, encontramos na página 14: – Meu amigo – disse o abade de Cénabre de repente –, como você se vê? – Como me vejo? – Suspirou o senhor Pernichon. – Eu não compreendo verdadeiramente. Eu não sei muito bem. – Escute – voltou o abade com doçura –, esta questão pode surpreendê-lo tal a sua simplicidade. Cada um tem um julgamento sobre a sua própria pessoa, mas nisso entra pouca sinceridade quer você queira ou não. É uma imagem retocada cem vezes, um compromisso. Pois observar é uma operação dupla ou tripla do espírito, ao passo que ver é um acto simples. O que lhe peço é que abra os olhos com ingenuidade e que você se apreenda com o olhar entre homens, que você se surpreenda tal como você é no próprio curso de realização da vida. A maior parte das pessoas não tem uma noção intuitiva de si mesmas, têm apenas opiniõesou uma auto-imagem que pensam que a sociedade valoriza. Então a comunicação passa a ser entre imagens e não entre pessoas. Não é possível apreender um ser humano na sua totalidade com o pensamento. Dessa forma só obtemos um esquema muito incompleto, mas ainda assim nós conhecemos pessoas. Quanto mais a pessoa se conhece a si mesma, menos ela pensa em si, encarando-se como uma tensão que vai em direcção a alguma coisa, e isso advém da experiência da presença do ser e de se estar diante do ser. Existe um grande descompasso entre aquilo que somos e aquilo que pensamos que somos, essencialmente por três razões. A primeira razão é inerente às próprias limitações do nosso pensamento. O pensamento que temos sobre nós, se quer ser algo mais do que o autoconhecimento mudo inerente à própria existência, vai ter de recorrer a elementos externos, o que inclui imagens do já vimos, que usamos depois como analogias em relação a nós. Usamos também elementos da linguagem. A partir daqui Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 21 obtemos um dicionário imaginário com o qual construímos uma imagem nossa que visa não traduzir aquilo que somos e que apreendemos de forma muda mas antes aquilo que os outros pensam sobre nós, não deixando de ter em vista aquilo que pensamos sobre os outros. Dada a complexidade da operação, ela não pode deixar de ser imperfeita. A segunda razão prende-se também com as limitações do pensamento, agora do ponto de vista da sua descontinuidade e evanescência. O pensamento tem uma natureza fragmentária pouco adaptada a captar a nossa existência que se desenrola em permanência, sem interrupções, conforme uma estrutura análoga a um algoritmo que já comporta todas as nossas possíveis alterações futuras. Uma terceira razão diz respeito ao carácter social de aprendizagem da linguagem. Pesa em nós uma necessidade de adaptação social e facilmente cedemos às exigências daqui inerentes, canalizando a linguagem para este fim e não para expressar o nosso ser efectivo. A convivência social exige que tenhamos uma auto-imagem, que é composta de uma mescla de elementos vindos de várias proveniências e que frequentemente compõem um conjunto falso. O conhecimento que possui a nossa parte substantiva, o que na simbologia antiga era conhecido como o conhecimento do coração, vai sempre existir e há uma arte milenar desenvolvida por sábios, poetas, santos, filósofos, etc., que visa ligar este conhecimento ao nosso conhecimento racional, para que o “coração fale” e aquilo que realmente somos adquira uma linguagem. A experiência da presença do ser é própria do ser humano A voz do coração exprime uma substância que é basicamente a mesma para todas as pessoas. Mas essa voz ficará silenciada com o falatório do mundo, entendido como inimigo da alma, como diz a Bíblia, que para além de enredar as pessoas em banalidades, coloca em segundo plano a identificação entre as substâncias das várias pessoas e revela, através do aprendizado, diferenciações linguísticas, étnicas, de classes sociais, etc. Perdendo a voz do coração, perdemos também o senso da presença do ser, ficando até desadaptados da estrutura física do mundo real, que também é uma componente da estrutura do ser. Perdemos o senso da dimensão e não percebemos o paradoxo entre a pequenez da nossa dimensão física e a possibilidade de nos comunicarmos directamente com a presença do ser. Só o ser humano pode realizar isto, algo que a genética não pode explicar por diferenciação em relação a outros animais, porque esta não capta o infinito mas nós podemos fazê-lo. Para outros animais existe apenas o mundo em torno delas, mas nós temos o senso de todo o universo. Qualquer ciência pode apenas estudar aspectos, não está habilitada para fazer uma comparação entre o homem e outro animal. Cada ciência apenas estuda alguns fenómenos (objecto material, na terminologia escolástica), enfocando-os sob determinado aspecto (objecto formal) com o fim de responder a certas perguntas (objecto formal terminativo). Isto devia ser ensinado ao estudante de biologia na primeira semana. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 22 O homem é o único animal que consegue sobreviver abaixo da capacidade da sua espécie, daqui se originando uma sub-humanidade que tem que ser carregada às costas pelos outros e que pretende ter todos os privilégios mas nenhumas das responsabilidades inerentes à condição humana. Faz parte do potencial do homem a apreensão da tensão entre a sua pequenez física e a capacidade de testemunhar o tamanho do universo, não sendo isto a confirmação do princípio antrópico, porque somos nós que precisamos de saber algo do universo e não o contrário. Pergunta o salmo: “O que é o homem para que Deus preste atenção nele?” Aqui se expressa a verdadeira dimensão do ser humano, do homem que não é nada e consegue dizer “tudo”, e que é capaz de ter a experiência da presença do ser. Quando as pessoas se afastam disto e vivem apenas em função das necessidades de adaptação social, resta- lhes uma existência num delírio colectivo, com personalidades fabricadas a partir de modelos dados por partidos, ideologias e pela cultura de massas que lhes fornecem valores e reacções padronizadas; e se daqui resulta a ilusão de integração, nada mais é do que a sombra de uma verdadeira existência, onde as pessoas não têm consciência de nada mas têm medo de tudo. O conhecimento e a presença do ser Todo o conhecimento, mesmo o conhecimento a respeito de outra pessoa, depende da presença do ser. A forma mais directa de chegar a essa presença é através do «canal do coração». O esforço que foi feito em termos de cultura, religião, filosofia, etc., ao longo dos tempos pretendeu traduzir essa apreensão mais directa que nos conduz a um manancial inesgotável de conhecimento. O conhecimento é uma tradução para a linguagem humana dos objectos reais, mas depois disso é possível obter conhecimento indirecto a partir dos registos, que ajudam a chegar aos objectos reais mas nunca podemos esquecer que estes contêm sempre mais informação do que aquilo que todas as ciências possam reunir alguma vez. O universo objectivo transcende em muito o universo físico, incluindo o mundo espiritual e as hierarquias de anjos e demónios. Como o conhecimento se consolida em nós através do pensamento e da imaginação, nós podemos achar que o universo é composto de objectos de pensamento imaginação, quando estes objectos nunca poderiam existir se não tivéssemos acesso directo à presença do ser. Se não fosse assim teríamos de criar o ser, incluindo as pessoas com quem interagimos, o que é uma perspectiva subjectivista inaceitável mas que a filosofia ocidental perdeu três séculos debatendo-a. Um pensamento verbal nosso nem sequer é totalmente criado por nós porque vai se servir de elementos vindos de fora. Apenas podemos conhecer alguém mediante a convivência da nossa presença real face à presença real do outro. Nessa presença está um aglomerado de forças, tensões, poderes, etc., inesgotável e que nenhum pensamento pode reter a não ser uma ínfima fracção. Mesmo em relação a alguém que nunca vimos, ainda que seja uma personagem histórica como Napoleão, só é possível conhecê-lo desta forma, sempre com a noção da existência de um conjunto ilimitado de elementos naquela pessoa a mais do que aquilo que nos foi oferecido nos registos. Conhecer uma pessoa é justamente esta abertura para o desconhecido nela, que permite que exista um espaço em nós onde o outro exista como criatura real que não esteja totalmente restringida ao Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 23 nosso pensamento. Se fecharmos o outro dentro do nosso esquema de pensamento, vamos bloquear qualquer informação que venha dele e passa a ser uma convivência entre fantasmas que se temem ese vêm forçados a usar esquemas de domínio para evitar olhares e perguntas comprometedoras. Em geral, a apreensão da presença do ser é a apreensão do desconhecido e do incontrolável, sobre o qual não temos qualquer poder. O desconhecido não é necessariamente hostil a nós, contém elementos conflituantes que constituem uma tensão. Se fugirmos a essa tensão para nos protegermos, vamos apenas aprender a mentir melhor e a dar ares de quem sabe tudo. Mas o resultado disso é um terror existencial ainda maior porque impedimos o nosso coração de falar. Mas se a experiência da presença do ser é acessível a cada ser humano, isso não quer dizer que sozinhos vamos conseguir retirar dela todos os elementos e explorar as suas várias dimensões. A riqueza que vamos retirar da experiência da presença do ser é em grande medida devida aos alertas que recebemos de outras consciências e que nos permitem focar outras dimensões que nos passariam despercebidas. Isso acontece quando lemos Platão, Aristóteles, Dante ou São Tomás de Aquino, que nos abrem para outras direcções do ser. A capacidade de apreender experiências que outras pessoas tiveram do ser é algo que faz parte da própria experiência do ser, como mostrou Luis Cencilho no livro Experiência profunda del ser. O universo físico como abstracção A experiência da articulação de consciências como elemento fundamental da experiência da realidade é algo que não cabe dentro da concepção de um universo físico. O universo de que fala a física não é o universo onde realmente existimos mas um universo concebido por abstracção através de uma longa depuração de ideias, depuração, essa sim, feita no universo real. A educação tornou-se numa forma de bloquear a experiência do ser, anulando o conhecimento do coração e colocando em seu lugar uma série de imagens e de discursos inventados com os quais as pessoas se possam identificar e sentir que fazem parte de uma comunidade porque todos partilham da mesma fantasia idiota. Quando se chega a este nível as pessoas ficam mutiladas intelectualmente e ao ler Platão, Aristóteles, Hegel só conseguirão gerar monstruosidades e por isso a vida intelectual não se pode iniciar sem reunir algumas condições espirituais e anímicas. Quando perdemos a ideia da morte e do infinito passamos a acreditar em cada coisa que dizemos. As pessoas até podem acreditar que podem trocar de sexo, sem perceber que podem apenas alterar a sua aparência exterior. Isso quer dizer que se passou a confundir a realidade com um sonho onde tudo é virtualmente possível. Isto parte de um erro mais profundo onde se entra na total desidentificação com o outro sexo e na total identificação com o nosso, quando a própria condição sexual é tensional, o homem tem sempre algo de feminino na sua alma ou não procuraria a mulher. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 24 Defesas contra a presença do ser O senso da imensidão do cosmos provoca espanto, que pode dar origem a conhecimento, como assinalou Aristóteles, mas também pode ser uma fonte de ignorância quando a pessoa sente que tem uma cabeça demasiado pequena para uma realidade tão grande e encerra-se na sua mediocridade, ou então enceta uma fuga para o delírio de omnipotência com vista a obter o domínio racional sobre a realidade. O sujeito faz isso para tentar resolver a tensão que compõe a existência humana, quando ela não pode ser resolvida ou destruirá a própria vida. As seis doenças do espírito contemporâneo, referidas por Constantin Noica, são seis estratégias de fuga da presença do ser, precisamente aquelas que se tornaram mais comuns. A teologia católica como primeira ciência A teologia católica surgiu como uma forma de articular doutrinalmente o cristianismo a partir de relatos dispersos, obrigando a um exame profundo dos textos e depois a um esforço para encontrar ali uma coerência e uma hierarquia. As conclusões tinham de ser provisórias e as questões analisadas sob vários ângulos. Foi a primeira vez que apareceu uma ciência inteiramente organizada, auto-consciente e crítica. A teologia católica é o modelo de ciência, não tendo nenhuma outra alcançado o mesmo grau de organização interna, solidez e coerência. A teologia surgiu precisamente quando se levantavam dúvidas sobre os acontecimentos relatados e todas foram respondidas pelos teólogos, que praticavam uma dúvida metódica incomparavelmente superior ao que Descartes fazia na prática. A ciência moderna originou-se a partir da teologia e tenta seguir idealmente o processo de elaboração colectiva, que é continuado na geração seguinte, sendo a própria sequência histórica o que mantém a coerência lógica, mas nenhuma ciência consegue fazer isso tão bem quanto na teologia. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 25 Aula 24 – 19/09/2009 Sinopse: Esta aula coincide com a última do curso de “Conceitos Fundamentais da Psicologia”, onde se fez um resumo do curso e se apresentaram algumas conclusões. A primeira questão a ser avaliada é: o que é a psique? Não estando os psicólogos de acordo com uma definição, ou até sobre a sua existência, há algo comum no modo como encaram a psique e que permite identificá-la como uma força agente e, logo, uma força causal. A psique é individual, estando ligada a uma única presença física, e tem uma estrutura temporal. As causas psíquicas não podem ser reduzidas a outro tipo de causas, não existindo também impulsos ou instintos incoercíveis. O único método acessível à psicologia é o testemunho dialogal, já que para nos conhecermos precisamos de outras pessoas que se incorporaram em nós, mas também só conhecemos os outros através dos nossos sentimentos, memória, imaginação, etc. O “eu” é uma síntese selectiva da psique correspondente à parte em que esta se reconhece conscientemente. A psicologia, com base nas conclusões avançadas, é o estudo da acção humana consciente. Aquilo que nos aparece como inconsciente, impulso ou instinto é frequentemente o resultado de um processo de camuflagem operado por processos de simbolização. O desenvolvimento da psique dá-se através de um complexo sistema de assimilações e transformações do material exterior a ela. A elaboração dos elementos pela psique dá-se através de funções psíquicas que não necessitam de aprendizagem, à cabeça estando a memória e a imaginação, que são mais ou menos a mesma função, diferenciando-se a memória por tentar criar imagens fiéis à experiência original e a imaginação criando imagens que são, apenas, possíveis de algum modo. A razão é uma busca da unidade subjectiva que simboliza a unidade do ser, a partir da qual podemos construir um “mapa do mundo” que serve para nos posicionar e orientar, e ela está sempre em tensão com o fluxo de percepções, memórias e imaginação que enriquece a psique. O trauma da emergência da razão surge do descompasso entre a nossa capacidade racional efectiva e aquela que a situação nos exige por sermos seres racionais. A psique pode-se identificar com a consciência desde que esta última seja vista não apenas como um foco de luz que lança atenção sobre algo mas incluindo também aquilo que é iluminado. O horizonte de consciência é o conjunto daquilo que é possível saber a cada momento e tem uma relação topológica com o “eu”, porque é o conjunto de possibilidades do “eu” e por isso transcende-o, mas ao mesmo tempo é uma função do “eu”. O amor ao próximo é um requisito constitutivo da psique; tudo o que o bebé apreende é interpretado e transformado pelo mundo humano. A experiência gnóstica decorre do temor que pode ocorrer no confronto com a experiência da presença do ser, que evidencia o desconhecido, e daí pode surgir a ideia salvadora de nos concebermos isolados do ser. As doenças mentais resultam não de uma alteração das funções psíquicas mas da sua diminuição. A meditaçãoconsiste no rastreamento de uma ideia até ao seu fundo de realidade e não deve ser confundida com práticas que visam a concentração em algo ou no “nada”. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 26 O que é a psique? Olavo averiguou sobre o que é a psique sabendo de antemão que na psicologia não se chegou a nenhum consenso sobre o seu significado, ao ponto de Jung considerar que tudo é psique e B. F. Skinner achar que não existe psique alguma. Trata-se de um desacordo teórico e não prático já que todos os psicólogos sabem localizar a psique e oferecem um conjunto de testemunhos onde dizem algo a seu respeito e conseguem distingui-la de outras coisas. Em todos os casos é o mesmo objecto que está em causa, há algo de comum em todos os enfoques e que lhes está subentendido. Não é a busca de um mínimo denominador comum que se pretende mas saber do quê realmente os psicólogos estão falando através da reconstituição do objecto, não pelo conteúdo específico do discurso mas pelo seu modo. Podemos resumir a pergunta ao seguinte: Como podem todos os psicólogos localizar aproximadamente a psique e distinguir a causa psíquica de qualquer outra? Não existe um acordo em relação à definição mas todos os psicólogos encaram a psique como a causa de alguma coisa. A causa psíquica nunca envolve uma necessidade absoluta, como acontece numa necessidade de tipo lógico, que encontramos na aritmética e também acontece em causas metafísicas, como o princípio de identidade. Distintas ainda das causas psíquicas são as causas físicas, que são determinações naturais, por vezes obedecendo a necessidades absolutas mas, na maior parte, envolvendo necessidades probabilísticas, como acontece com muitas das chamadas leis da natureza. A necessidade natural pura, como a necessidade de ingerir alimento, não cria uma conduta psíquica. Qualquer psicólogo sabe distinguir a causa psíquica de outro tipo de causas, mesmo se não saiba defini-la, e o exercício da sua profissão exige isso. Até quando ele tenta derivar a causa psíquica de outra causa, ele parte da identificação da causa psíquica, e só depois, através do raciocínio, ele tenta fazer a redução a outros factores. A identificação entre causa psíquica e outra causa não é, portanto, evidente, só pode ser concebida como teoria, como o faz Skinner, tendo entrado em auto-contradição com o behaviorismo. Quando existe outra causa de forma evidente, como numa infecção bacteriológica, então é a própria causa psíquica que nem é colocada como hipótese. A distinção prática que os psicólogos fazem da causa psíquica de outro tipo de causa leva à identificação da psique como uma força agente e, por isso, uma força causal. Características da psique A primeira característica da psique é a sua individualidade e a sua ligação a apenas uma presença física humana. Contudo, ninguém sabe como se relacionam corpo e psique ou sequer se existe uma fronteira entre ambos. Esta não pode ser uma pergunta fundadora da psicologia e teremos de deixar para mais tarde, se possível, nem é necessário saber como se processa a relação entre corpo e psique para identificar numa determinada conduta uma causa psíquica. Uma segunda característica da psique é a sua historicidade. Uma causa psíquica exige a presença de elementos do passado para se desenrolar, a começar pelo uso da linguagem, mas não é determinada por estes. Tal como o passado está presente na Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 27 estrutura da acção, sem a determinar, algum elemento de expectativa de futuro, remoto ou imediato, também está sempre presente, mesmo no acto mais simples, como abrir uma porta, onde esperamos existir algo do outro lado. A causa psíquica tem um certo depósito do passado e uma expectativa de futuro, e no meio existe uma certa mobilidade, onde o elemento de escolha se evidencia e ele é a própria causa psíquica. A psique é aquilo que nos permite sermos sujeitos agentes, de sermos a causa originária de alguma coisa. Não estamos aqui no plano metafísico do determinismo e livre arbítrio. Poderíamos até, em última análise, remontar a causa psíquica ao sujeito e este como tendo origem em Deus, mas para fins de observação científica isto não altera nada. A psique animal, ao contrário da psique humana, não é agente e sempre vai agir probabilisticamente segundo pautas pré-determinadas, prolongando causas anteriores, que podemos chamar de instintos, reflexos condicionados, etc. Não é necessário colocar o elemento da liberdade na psique porque as características da individualidade e da historicidade já bastam para resolver o problema. Também a característica da irredutibilidade já está dada quando se identificou a causa psíquica como distinta de qualquer outra. Estrutura temporal da psique e os processos de assimilação e simbolização Ao investigar a estrutura da historicidade da psique devemos começar por reconhecer que a psique já está presente desde o nascimento e se desenvolve através de um complexo sistema de assimilações e transformações do material exterior a ela, que consiste em tudo o que não tem na sua origem uma causa psíquica. O corpo, apesar de ser um pressuposto da actividade psíquica, é algo estranho à psique. Por isso a curiosidade que os bebés recém nascidos têm com o seu próprio corpo, em especial mão e pés que são mais fáceis de observar. O corpo tem uma série de necessidades, precisa de ar, comida, de se mexer, mas estas necessidades têm pesos psíquicos diferentes e nenhuma delas determina uma conduta, sendo necessária a interferência de muitos outros factores, que serão simbolizados e pensados para fazer surgir uma acção. As necessidades do corpo são de vária ordem, desde a necessidade de respirar, que não pode ser adiada e é constante, até à necessidade sexual, que pode ser adiada para sempre, passando pela necessidade de alimento, que pode ser protelada por alguns dias. É da natureza da necessidade respiratória ser compatível com todo o tipo de acções. O impulso da fome é uma coisa simples, provoca algum desconforto, mas procurar comer é de uma complexidade de outra ordem, obriga a uma coordenação de vários meios. A psique toma as necessidades do corpo como sendo suas, mas também pode optar por se desidentificar delas. Imediatamente podemos tirar uma conclusão de grande importância em psicologia e que contraria muito do que se tem dito sobre o ser humano. Não existem impulsos incoercíveis no ser humano. Todas as necessidades corporais dependem da simbolização que fizermos delas, e aí intervêm elementos de memória, onde as coisas mais diversas podem aparecer sob uma figura única. Por exemplo, aquilo que aparece simbolizado como desejo sexual pode juntar a necessidade de contacto corporal, o Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 28 desejo de segurança, paz, o apelo da beleza, desejo de prestígio e assim por diante, e quase todas estas coisas em si nada têm de sexual. O impulso natural é fraco, mas as sucessivas camadas de símbolos que lhes acrescentamos vão criar uma constelação de factores que ocupa a nossa mente de tal forma que iremos achar que não conseguimos viver sem aquilo. Grande parte da psicologia do século XX insistiu na importância dos instintos e impulsos na conduta humana, sem perceber a longa e complexa elaboração simbólica ali presente e que precisa de toda uma série de elementos culturais, linguísticos e de aprendizado. Mesmo a agressividade, que Konrad Lorenz dizia ser um dos factores mais potentes da conduta humana, manifesta-se raramente mesmo nos brigões, e em tempo de guerra os soldados pensam principalmente em auto- preservação. Também não é possível reduzir as causas psíquicas a coisas como emoção, sentimento ou desejo. A emoção é uma reacção total psico-física a um estado de coisas tal
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