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A DEMANDA POR MOEDA, A ESCOLHA DE ATIVOS E A PREFERÊNCIA PELA LIQUIDEZ EM KEYNES INTRODUÇÃO Neste capítulo analisa-se a teoria da preferência pela liquidez formulada pelo economista inglês John Maynard Keynes (1883-1946), que trata, segundo o próprio autor, de uma visão alternativa à teoria monetária clássica, dominante na época em que estava escrevendo suas obras. Embora sua teoria tenha sido formulada principalmente em seu clássico livro A Teoria Geral do Emprego do Juro e da Moeda, publicado em 1936, utilizamos outras obras e textos de Keynes, anteriores ou posteriores à publicação de sua Teoria Geral (TG), como o seu Tratado sobre a Moeda, publicado em 1930, pois entendemos ser fundamental incluirmos os desenvolvimentos feitos por ele em outras obras, além da TG, para o melhor entendimento de sua contribuição teórica. Foi no Tratado sobre a Moeda – embora Keynes ainda estivesse a meio caminho da revolução teórica que iria realizar na TG – que o autor desenvol- veu o embrião de sua teoria monetária. No Tratado, o economista inglês iden- tificou dois circuitos de circulação monetária – o industrial e o financeiro. O reconhecimento deste último circuito distinguia claramente a abordagem de Keynes da teoria quantitativa da moeda, ao reconhecer que reter moeda era uma alternativa a acumular outros ativos, e que, portanto, não deveria ser vista somente como uma forma temporária de riqueza. Este insight fundamental de Keynes seria desenvolvido na TG, onde o autor formula explicitamente sua teoria da preferência pela liquidez. Neste livro, Keynes formulou uma aborda- gem mais geral em que procurou enfatizar os motivos (transação, precaução e especulação) pelos quais o público demanda liquidez. Procuramos destacar neste capítulo que, enquanto na maior parte da TG trabalhou-se num mundo dicotômico, com apenas duas classes de ativo (moeda e títulos), no capítulo 17 desse livro Keynes elaborou uma teorização mais elaborada e completa, usan- do uma estrutura mais diversificada de ativos, em que sua teoria da preferência pela liquidez pôde ser generalizada para uma teoria de precificação de ativos. Por fim, acrescenta-se ainda um novo motivo para demandar moeda – o moti- vo financeiro (finance) – que Keynes introduziu logo após a publicação da TG em seu debate com o economista sueco Bertil Ohlin. CAPÍTULO 4 O capítulo está dividido em duas seções, além desta introdução. Na primeira seção, são apresenta- das brevemente algumas ideias básicas da teoria monetária de Keynes, com destaque para o papel da moeda como uma forma específica de riqueza, a não neutralidade da moeda, inclusive no longo perío- do, e uma introdução à sua teoria da preferência pela liquidez. Na seção seguinte são analisados os cir- cuitos monetários formulados no Tratado sobre a Moeda; os motivos para demandar moeda elaborados na TG, acrescentando ainda, como já feito referência, o motivo financeiro, e, ainda, a teoria da precifi- cação de ativos de Keynes, tal como desenvolvida no capítulo 17 da TG. 4.1. ECONOMIA MONETÁRIA DE KEYNES Na economia monetária desenvolvida por Keynes – ao contrário do que preceituava a teoria quantitati- va da moeda – não é possível definir posições de equilíbrio, seja no curto ou no longo períodos, sem se considerar o comportamento da moeda e da política monetária. Isto porque a moeda, nesta concepção, não é apenas um meio de troca, mas também uma reserva de valor, pelo seu atributo de transportar a ri- queza no tempo. Portanto, ela é mais do que uma forma conveniente de estabelecer a ponte entre os flu- xos de entrada e saída de recursos, como estabelecia a teoria clássica. Para Keynes, a moeda desempenha um papel duplo de meio de pagamento e forma de riqueza. Seu retorno vem na forma de um prêmio de liquidez em vez de uma compensação pecuniária, já que possui o maior prêmio de liqui- dez entre os ativos. Neste sentido, o insight fundamental do novo paradigma que Keynes (em relação à teoria clássica vigente na época em que escreveu sua Teoria Geral) procurou desenvolver é o reconheci- mento de que, em uma economia monetária, a moeda torna-se um ativo, ainda que dotada de atributos que lhe são específicos (ver Box 4.1 e também Seção 4.2.3 deste capítulo). Pelo seu atributo de liquidez por excelência, a moeda acalma as inquietações dos agentes diante das incertezas do futuro, que são características de uma economia monetária. Assim, quanto maior a incer- teza percebida pelos agentes, maior tenderá a ser a retenção de moeda por parte dos mesmos, para fazer frente à imprevisibilidade de um futuro que depende das decisões e comportamentos de todos os outros agentes que operam nesta economia. Quando as expectativas dos agentes são pessimistas, eles podem demandar segurança e flexibilidade no presente para enfrentar o futuro, representadas por um ativo se- guro que é a moeda. A posse da moeda permite aos agentes manter opções abertas perante a incerteza do futuro. Logo, coeteris paribus, quanto mais incerto é o futuro, maior é a preferência pela liquidez dos agentes. Note-se que para Keynes incerteza não se confunde com risco probabilístico, pois refe- re-se a determinados fenômenos econômicos para os quais “não existe qualquer base científica para formar cálculos probabilísticos”. Para Keynes, a moeda não é um mero “véu” nas transações feitas com mercadorias, pois ela afeta os próprios motivos e decisões dos agentes. Caso a renda não consumida seja usada para comprar ri- queza não reprodutível – como no caso da moeda e outros ativos líquidos – pode haver deficiência na demanda efetiva na economia. Consequentemente, a não neutralidade da moeda mesmo no longo pe- ríodo, proposta por Keynes, repousa na proposição de que a moeda e ativos não reprodutíveis são for- mas de acumulação de riqueza alternativas à acumulação de bens de capital, e que, portanto, o agente reter moeda (e outros ativos líquidos) como um ativo, em momento de maior incerteza, é um ato ra- cional.1 Keynes, ao elaborar o que ficou conhecido como teoria da preferência pela liquidez, criticou a tra- dição clássica (teoria dos fundos emprestáveis), segundo a qual a taxa de juros é o “preço” que equilibra a demanda por recursos para investir (determinada pela produtividade marginal do investimento) e a propensão de abster-se do consumo imediato. Em outras palavras, a taxa de juros seria o fator equili- 46 A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes ELSEVIER 1. Não neutralidade da moeda no longo período significa que a moeda afeta as posições de equilíbrio da economia no longo pe- ríodo, uma vez que em momentos de maior incerteza o agente pode (e normalmente prefere) aplicar seus recursos em ativos não reprodutíveis, como moeda e outros ativos líquidos – ao invés de ativos reprodutíveis – como ativos de capital. A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes 47 No capítulo 17 de sua Teoria Geral, Keynes desenvolveu alguns atributos característicos e especiais da moeda (e outros ativos líqui- dos) em economias monetárias modernas, que a distinguem de outros ativos. Suas propriedades essenciais são duas: a) A elasticidade de produção da moe- da é zero (ou muito pequena), significan- do elasticidade de produção a resposta do volume de mão de obra dedicado a pro- duzi-la (moeda), diante de um aumento na quantidade de trabalho que se pode obter com uma unidade da mesma. Isto quer dizer que a oferta de moeda não cresce facilmente quando a demanda por moeda aumenta, pois os empresários não podem aplicar à vontade trabalho para produzir dinheiro em quantidades cres- centes, à medida que o seu preço sobe. Ou, em outras palavras, a moeda não cresce em árvores, pois ela não pode ser produzida por empresários privados, con- tratando trabalhadores desempregados para colhê-la nas árvores, sempre que as pessoas demandarem manter ativos líqui- dos adicionaiscomo reserva de valor, em vez de gastarem todas as rendas correntes nos produtos da indústria. b) A elasticidade de substituição entre to- dos os ativos líquidos (incluindo a moeda) com relação aos bens produzíveis é zero, o que significa que quando o valor da moeda sobe não surgirá nenhuma tendência para substituí-la por algum outro fator. Isto de- corre da particularidade da moeda de ter uma utilidade derivada apenas do seu va- lor de troca. Consequentemente, não há substituição bruta significativa entre ativos líquidos não produzíveis e os produtos da indústria. Keynes quer dizer que como a utilidade da moeda é servir para comprar outros bens, seu valor depende do poder de compra da moeda. Quando o preço de um bem qualquer – manteiga, por exemplo – sobe, os consumidores tendem a substi- tuí-la por margarina. Este é o princípio da substituição. No caso da moeda, quando sua demanda aumenta, os preços das mer- cadorias caem (deflação). Se o poder de compra da moeda sobe, porém, os seus detentores são estimulados a guardá-la ainda mais, ao invés de gastá-la. Assim, quando o preço do dinheiro sobe, ele não é substituído por bens e o princípio da substituição não funciona. Quanto mais o valor da moeda subir, mais interessante é guardá-la ao invés de gastá-la. Deflações não são autocorretivas, tanto quanto infla- ções também não são. Concluindo, não somente é impossível empregar mais mão de obra na produção de moeda quando o seu preço sobe em relação à mão de obra, como também a moeda constitui um poço sem fundo para o poder de compra quando a sua deman- da cresce, já que não existe um valor aci- ma do qual esta demanda é desviada para outras coisas. Qualquer acréscimo na de- manda por liquidez (ou seja, por ativos não reproduzíveis a serem mantidos como reserva de valor) que induza um acrésci- mo nos preços dos ativos líquidos não des- viará a demanda por liquidez para uma demanda por bens ou serviços. Mas por que a moeda tem de ter essas características em uma economia moder- na? Para Keynes, a resposta é porque elas são responsáveis pela liquidez da moeda. A moeda tem máxima liquidez porque ela está sempre sendo demandada. Há sem- pre alguém disposto a dar alguma coisa em troca dela. Se as quantidades de moe- da pudessem variar livremente, sua oferta poderia saturar a economia, reduzindo sempre sua demanda e, portanto, sua li- quidez. Algo que pudesse ser produzido sem limites, poderia ter também seu valor reduzido sempre que houvesse excesso de produção. Se isso acontecesse com a moe- da, ninguém confiaria nela, não haveria contratos em dinheiro e modernas econo- mias de mercado entrariam em colapso. Uma vez que moeda não pode ser pro- duzida livremente pelo setor privado, para preservar seu valor e sua liquidez, quando sua demanda aumenta, reduz-se a de- manda por outras coisas na economia. Este é o princípio da demanda efetiva pro- posto por Keynes: é a possibilidade de acumulação de riqueza sob forma mone- tária que subtrai a demanda por outros meios de acumulação, como bens de capi- tal, cuja produção, se realizada, geraria empregos. Os empregos perdidos porque bens de capital são produzidos em menor quantidade não são compensados pelo aumento do emprego na produção de di- nheiro. Assim, a demanda por moeda re- duz a demanda por bens e serviços e cau- sa o desemprego que Keynes chamava de “involuntário”. ALGUNS ATRIBUTOS ESPECÍFICOS DA MOEDA, SEGUNDO KEYNES B O X 4 . 1 brante que determina a igualdade entre a demanda de poupança, resultante do investimento novo que pode ser realizado a uma determinada taxa de juros, e a oferta de poupança, estabelecida a partir da pro- pensão da comunidade a poupar. Para Keynes, em contraste, a taxa de juros é definida como uma re- compensa por abrir-se mão da liquidez e, portanto, da riqueza na forma monetária, uma vez que a moe- da é o ativo com o maior prêmio de liquidez dentre todos os ativos. Deste modo, é o preço mediante o qual o desejo de manter a riqueza em forma líquida se concilia com a quantidade de moeda disponível. A taxa de juros, portanto, ao invés de ser a recompensa pela “espera”, pelo adiamento do consumo, é, segundo Keynes, a recompensa por não entesourar; ou seja, a taxa de juros é o que se ganha não porque se poupa, mas porque se aplica esta poupança em outros ativos (como, por exemplo, ativos financeiros) que não a moeda. Neste sentido, a determinação da taxa de juros é tomada como um fenômeno eminen- temente monetário – determinado pela preferência pela liquidez dos agentes e pela política das autori- dades monetárias (enquanto gestoras da política monetária) – ao invés de ser explicada por fatores reais (tais como as preferências intertemporais dos agentes e a produtividade do capital), como estabelecia a teoria clássica. A preferência pela liquidez, portanto, determina a quantidade de moeda que o público desejará re- ter quando a taxa de juros for dada. Como veremos nas seções seguintes, as expectativas quanto ao futu- ro da taxa de juros, fixadas pela psicologia dos agentes, têm reflexos na preferência pela liquidez. A condição necessária para a existência de preferência pela liquidez por parte dos agentes é a existência da incerteza quanto ao futuro da própria taxa de juros. Mudanças na preferência pela liquidez, devidas, por exemplo, a uma alteração nas informações disponíveis, que ocasionem uma revisão nas expectati- vas dos agentes, são frequentemente descontínuas, causando, consequentemente, mudanças também descontínuas na taxa de juros. Assim, a cada conjunto de circunstâncias e de expectativas corresponde- rá uma taxa de juros apropriada. Em síntese, a moeda, para Keynes, é uma forma de riqueza e a taxa de juros o preço que guia a esco- lha entre as formas líquida e ilíquida de riqueza, ao invés da escolha entre consumo presente e consumo futuro, concebida pelo teoria clássica. Dado que a taxa de juros – a qual, como vimos, é o que se recebe quando se adquire títulos financeiros ao invés de acumular moeda – nunca é negativa, “por que alguém preferiria guardar sua riqueza de forma que rende pouco, ou nenhum juro, ao invés de conservá-la de outra forma que renda algo?” (TG, p. 138). Foi procurando responder esta pergunta que Keynes desen- volveu sua teoria monetária. 4.2. DEMANDA POR MOEDA E PREFERÊNCIA PELA LIQUIDEZ 4.2.1. CIRCUITOS INDUSTRIAL E FINANCEIRO Foi visto na Capítulo 3 que, segundo a teoria quantitativa da moeda (TQM), a demanda por moeda em seu conjunto é proporcional ou mantém uma relação determinada com a renda. A quantidade de moeda requerida para desempenhar a função de meio de troca ou depositário temporário de valor dependia da retenção média dos saldos monetários por parte do público, isto é, da velocidade da moeda. No seu livro Tratado sobre a Moeda, publicado em 1930, Keynes começou a desenvolver sua teoria monetária alter- nativa à TQM, dando os primeiros passos para a superação da teoria clássica marshalliana, então preva- lecente. No Tratado sobre a Moeda, Keynes distinguiu dois circuitos de circulação monetária: a) Circulação industrial: Refere-se à quantidade de moeda necessária para dar suporte ao giro de bens e serviços produzidos na economia. Esta quantidade, por sua vez, depende do intervalo médio du- rante o qual a moeda é retida entre transações por parte do público, isto é, da velocidade da moeda. A circulação industrial incorpora uma visão de moeda e suas funções muito próximas às da TQM, ao destacar a necessidade da existência de meios de circulação na economia para permitir que as tran- sações com bens e serviços ocorram. 48 A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes ELSEVIER b) Circulação financeira: Inclui operações com ativos financeiros, isto é, cobre as necessidades de moeda para a realização de compras de ações, títulos de dívida etc., não relacionadas ao giro daren- da corrente. Neste circuito, porém, ao contrário do anterior, a moeda não é apenas um meio de circu- lação, podendo tornar-se ela própria objeto de retenção, como um ativo. Confrontados com a expec- tativa de perdas de capital sobre os ativos financeiros, caso se espere uma alta das taxas de juros no horizonte de decisão, os agentes preferirão reter moeda a títulos, de modo a evitar as perdas espera- das de capital; enquanto aqueles que esperam uma queda nas taxas futuras de juros preferem com- prar títulos agora, ao invés de reter moeda para obter ganhos de capital, mesmo que tenham que se endividar para fazê-lo. Keynes, apropriando-se da linguagem utilizada nos mercados financeiros anglo-saxões, chama o primeiro grupo de agentes de ursos, isto é, aqueles que apostam na alta de ju- ros e, portanto, na baixa dos preços de mercado dos títulos financeiros. O grupo que, ao contrário, aposta na baixa de juros e, assim, na valorização dos títulos, é chamado de touros. Ursos preferem reter moeda e põem os títulos que possuem à venda. Touros demandam títulos e usam seus saldos monetários para comprá-los. As taxas de juros correntes mover-se-ão de acordo com a predominân- cia de um ou outro grupo, até que a demanda por moeda e por títulos iguale-se à disponibilidade de ambos os tipos de ativo. O circuito financeiro não tem lugar na TQM, uma vez que a abordagem clássica ignorava a possibi- lidade de entesouramento ou retenção de saldos inativos por duração indefinida, sendo a moeda vista somente como uma forma temporária de riqueza, uma conveniência, mas não como um ativo. A carac- terística mais distintiva deste circuito é seu descolamento da circulação de bens e serviços, já que os motivos por detrás das operações financeiras têm pouco a ver com as atividades geradoras de renda, quebrando qualquer relação de proporcionalidade entre a quantidade total de moeda em circulação e a renda agregada, que é a pedra angular da TQM. O reconhecimento de que reter moeda é uma alternativa em relação à retenção de outros ativos é a base da teoria monetária que Keynes iria desenvolver em sua A Teoria Geral do Emprego do Juro e da Moeda, publicada em 1936, segundo a qual a moeda não é neutra, mesmo no longo período. É também a hipótese de não neutralidade da moeda que leva Keynes a formular seu princípio da demanda efetiva (ver o Apêndice do Capítulo 7). 4.2.2. MOTIVOS PARA DEMANDAR MOEDA Já na Teoria Geral (TG), Keynes deixou de lado a dicotomia entre circulação industrial e circulação fi- nanceira em favor de uma abordagem mais geral, em que procurou enfatizar os motivos pelos quais o público demanda moeda. No novo enfoque, a circulação industrial dá lugar à demanda transacional por moeda, como demanda por saldos ativos, enquanto que a circulação financeira é transformada nas demandas precaucionária e especulativa por moeda, próximas à noção de saldos inativos. Saldos monetários ativos � Retidos em antecipação da realização de uma transação futura já definida Saldos monetários inativos � Retidos em antecipação de compras futuras possíveis, mas ainda não decididas Motivo Transação Relacionado ao intervalo entre recebimentos e despesas de renda (pagamentos contratuais, como paga- mentos de salários pelas empresas, os juros e aluguéis ou despesas relacionadas à aquisição de bens ou serviços), o motivo transação refere-se à retenção de moeda para realização de um ato definido de com- pra numa data especificada. O volume de moeda demandado para a realização de transações depende do montante da renda e da duração normal do intervalo entre o seu recebimento e o seu desembolso, ou A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes 49 seja, das compras projetadas e dos hábitos de pagamento dos agentes (daí sua natureza rotineira). A fre- quência destas despesas pode variar, mas o padrão global é bastante previsível, podendo ser planejadas sem grandes riscos para serem saldadas com o fluxo monetário de entrada, de acordo com um “período de renda” (intervalo entre recebimentos e despesas). Em termos agregados, estas despesas podem ser aproximadas pelo nível de renda corrente. Por isso, o motivo transação, tal como na circulação indus- trial, incorpora uma visão de moeda e de suas funções muito próxima da TQM, ou seja, de que a moeda é necessária para que se façam compras e vendas de bens e serviços, sendo a demanda por moeda para tais fins uma fração da renda. Motivo Precaução Os agentes podem reter moeda por precaução para atender às contingências inesperadas e às oportuni- dades imprevistas na realização de negócios vantajosos, já que a moeda é um ativo seguro que serve para atravessar um futuro incerto e nebuloso. Em livros-texto, os saldos para estes fins têm sido associ- ados exclusivamente a gastos inesperados, como contas de hospital, embora Keynes tenha claramente também enfatizado que os agentes podem desejar reter moeda para aproveitar barganhas futuras. Pode-se argumentar que é em relação a essa demanda por moeda que a especificidade da visão de Keynes sobre a moeda como um ativo deve ser ressaltada. Quando Keynes sugeriu que a moeda é uma defesa contra a incerteza que domina os agentes quando simplesmente nós não sabemos o que pode vir à frente e que a moeda acalma nossa inquietude, ele estava certamente se referindo ao sentimento de se- gurança que a moeda confere ao seu possuidor diante das dificuldades imprevistas no futuro. A deman- da precaucionária relaciona-se ao grau de ignorância sobre o futuro, com a moeda sendo o ativo que permite aos agentes refazerem rapidamente suas estratégias, caso desejem ou julguem necessário. Keynes, contudo, simplificou a função demanda precaucionária, estabelecendo que a quantia média de gastos inesperados estava correlacionada com a renda, permitindo, assim, que os saldos por precaução pudessem ser adicionados aos saldos para transação num mesmo período de renda. O pres- suposto é que, embora o padrão de pagamentos seja irregular num único período de renda, ele é previ- sível durante vários períodos seguidos de renda. Enquanto todos os saldos mantidos para o motivo transação são gastos dentro do período em que a renda é recebida e, por isso, não são considerados poupança, a característica distintiva dos saldos por precaução é que eles não são gastos no mesmo período de renda em que são acumulados. Em outras palavras, a intenção de acumular saldos mone- tários por motivo precaução é uma intenção de transportar a moeda de um período de renda para ou- tro.2 Neste sentido, o mecanismo de agrupar as demandas por precaução e transação num mesmo pe- ríodo de renda apresenta, do ponto de vista técnico, problemas. Ao se fundir a demanda transacional com a demanda precaucionária, sendo ambas função da renda, as mudanças imprevistas na preferên- cia pela liquidez decorrentes das mudanças no grau de incerteza percebido pelos agentes foram colo- cadas de lado, levando muitos analistas à simplificação de postular funções demanda por moeda está- veis, similares à proposta na teoria quantitativa da moeda. Para evitar tais problemas, seguidores de Keynes, tais como Richard Kahn, explicitamente afirmaram que a quantidade de moeda demandada para o motivo-transação depende da renda nominal, enquanto aquela relativa ao motivo precaução depende das incertezas em relação ao futuro. Motivo Especulação Este motivo – que segundo Keynes é um dos menos compreendido e de grande importância entre os motivos para demandar moeda, porque é o canal por onde agirá a política monetária – está relaciona- do à incerteza quanto ao comportamento futuro da taxa de juros. Deste modo, a demanda por moeda para satisfazer o motivo especulação varia de modo mais ou menos contínuo sob o efeito de alterações graduais na taxa de juros de mercado. 50 A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes ELSEVIER 2. Chick, V. Macroeconomics after Keynes.Cambridge (Mass): MIT, 1983. Como uma primeira aproximação ao motivo especulação, tracemos no Gráfico 4.1 uma curva rela- cionando as variações na demanda por moeda para satisfazer o motivo especulação com aquelas que ocorrem na taxa de juros, devidas às variações no preço dos títulos e nas dívidas de vencimento diver- sos. A curva de preferência pela liquidez mostra que a demanda por moeda aumenta à medida que a taxa de juros se reduz. Note-se, contudo, que a curva de preferência pela liquidez, a partir de um determina- do ponto, torna-se horizontal, ou seja, a demanda por moeda torna-se infinitamente elástica a algum pa- tamar baixo da taxa de juros, fenômeno que ficou conhecido como armadilha da liquidez. Isto pode ocorrer porque há a possibilidade de que tão logo a taxa de juros tenha baixado a certo nível, a preferên- cia pela liquidez dos agentes se torne absoluta, no sentido de que os mesmos provavelmente irão prefe- rir manter recursos líquidos a conservar uma dívida que rende uma taxa de juros tão baixa. Segundo Keynes, há diversas causas que explicam por que a taxa de juros vai decrescendo à medi- da que a oferta de moeda aumenta: a) Em primeiro lugar, se o nível de renda é dado, e, a partir dele, é estabelecida a demanda transacional por moeda, um aumento na oferta de moeda contribui para satisfazer a demanda por moeda dos ur- sos, sem que estes tenham que colocar títulos à venda, evitando pressionar os preços dos títulos para baixo e elevar a taxa de juros. b) Em segundo lugar, cada redução da taxa de juros pode aumentar a quantidade de moeda que certos indivíduos desejam conservar, porque seus pontos de vista quanto à taxa de juros diferem das ava- liações do mercado (este ponto é desenvolvido na exposição que se segue). A incerteza quanto às variações futuras na taxa de juros é o fator determinante que explica a deman- da especulativa por moeda e, consequentemente, justifica a conservação de recursos líquidos. Para Keynes, o que importa não é o nível absoluto da taxa de juros, mas o seu grau de divergência quanto ao que se considera um nível razoavelmente seguro dos juros. O valor observado deste, por sua vez, depen- de em boa medida do valor futuro que se lhe prevê. Neste contexto, os agentes formam expectativas es- pecíficas a respeito do futuro da taxa de juros, mas que não são necessariamente corretas. Todo agente que opera com ativos no mercado financeiro tem uma avaliação subjetiva, dada sua própria experiência e seu acesso à informação, do que constitui uma taxa normal de juros, que ele espera que prevaleça de- pois que se descontem as flutuações observadas nessa variável no curto prazo. Essa taxa funciona como uma âncora para suas expectativas com relação aos movimentos futuros da taxa de juros de mercado (ou corrente). Ela define se o agente será urso ou touro, diante das taxas de juros correntes e, portanto, se demandará moeda ou títulos. A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes 51 M (moeda) r L (r) Ta xa de ju ro s GRÁFICO 4.1 A Função Demanda por Moeda Motivo Especulação Considere um agente que tenha dois ativos a escolher para aplicar seus recursos: moeda, que é um ativo seguro, e títulos, que não são tão seguros, mas rendem juros. Conforme a taxa de juros corrente es- teja situada acima ou abaixo da taxa normal, os agentes procurarão vender ou comprar títulos: eles com- pram títulos quando esperam que seu preço suba (e os juros caiam) e os vendem, obtendo dinheiro em contrapartida, quando esperam que o seu preço caia (os juros subam). Assim, sendo rc a taxa (corrente) de juros de mercado, rn a taxa normal de juros e E (dr/dt), a expectativa em relação à taxa de juros, po- de-se estabelecer as seguintes regras de decisão para a demanda especulativa (Ms): Ursos: rc – rn < 0 e E (dr/dt) > 0 � Ms > 0 (agentes preferem reter moeda) neste caso, se os agentes têm expectativas de que a taxa de juros suba no horizonte de decisão, eles po- dem preferir moeda a aplicar em títulos. Se a taxa normal de juros (rn) for maior que a taxa de juros de mercado (rc) – e assim, rn > rc – o agente reterá moeda ao invés de comprar títulos. Logo, a demanda por moeda por motivo especulativo é uma demanda de ursos; Touros: rc – rn > 0 e E (dr/dt) < 0� Ms = 0 (a moeda é usada para comprar títulos) neste caso, se os agentes esperam uma queda nas taxas futuras de juros, tenderão a comprar títulos a re- ter moeda. Se a taxa normal de juros (rn) for menor que a taxa de juros de mercado (rc) – e assim, rn < rc – o agente usará dinheiro para comprar títulos. Combinando-se os motivos especulativo e precaucionário, observa-se que, enquanto a demanda especulativa está relacionada com as expectativas específicas com respeito ao comportamento futuro da taxa de juros, o motivo precaucionário vincula-se ao grau de confiança nessas expectativas. Pode-se dizer que tanto a demanda precaucionária quanto a especulativa se definem por causa de incerteza quanto ao futuro e, neste sentido, a demanda precaucionária seria a demanda gêmea da demanda espe- culativa e não da demanda transacional. Para estabelecer uma função demanda por moeda, Keynes simplificou o problema usando o nível corrente da taxa de juros – o que chamamos de taxa de juros de mercado – como um indicador das mu- danças esperadas da taxa, o que é válido, evidentemente, enquanto as avaliações a respeito de qual seja a taxa normal mantiverem-se inalteradas. Por outro lado, como visto, ele estabeleceu que a demanda precaucionária depende da incerteza dos agentes quanto ao futuro. Portanto, sejam M1 o montante de re- cursos líquidos conservado para satisfazer o motivo transação, M2 o montante conservado para satisfa- zer o motivo especulação e M3 o montante para satisfazer o motivo precaução, correspondente a três funções de liquidez L1, L2 e L3, em que a primeira depende principalmente do nível da renda, a segunda da relação entre a taxa corrente de juros (e o estado de expectativas quanto ao comportamento futuro da taxa de juros), e a terceira das incerteza quanto ao futuro. Assim, temos que: Md = M1 + M2 + M3 = L1 (Y) + L2 (r) + L3 (•) Onde L1 (demanda por moeda para fins de transação) é a função de liquidez correspondente à renda Y, que determina M1; L2 (demanda por moeda para fins especulativos) a função de liquidez referente à taxa de juros r, que determina M2; e L3 (demanda de moeda para fins precaucionais) a função de liqui- dez relacionada diretamente à incerteza quanto ao futuro, aqui representada por (�), que determina M3. Motivo Financeiro Este motivo foi introduzido por Keynes após a publicação da Teoria Geral, em resposta a uma crítica feita por Bertil Ohlin à TG, ambos publicados na revista The Economic Journal em 1937.3 O motivo 52 A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes ELSEVIER 3. Parte deste debate foi publicada em português. Ver Keynes, J.M. “Teorias alternativas da taxa de juros” e “A teoria ex-ante da taxa de juros”; Ohlin, B. “Teorias alternativas da taxa de juro – réplica.” In Clássicos da Literatura Econômica. Rio de Janeiro, IPEA/INPES, 1988. financeiro (finance motive) refere-se à demanda por moeda antecipada a alguma despesa discricioná- ria planejada, sendo o gasto deste tipo mais vultoso e menos rotineiro – o investimento em bens de ca- pital. Neste caso, saldos monetários são mantidos em antecipação à compra de bens de investimento. Esta demanda pode ser satisfeita pela venda de bens e serviços ou de ativos líquidos por parte do em- presário ou com dinheiro tomado emprestado junto aos bancos. O pressuposto é que o investimento planejado (ex-ante) pode precisar garantir sua provisão financeira antes que ocorra o investimento, gerando uma demanda temporária e antecipada de moeda para uma despesa excepcional. Consequen- temente, a demanda por moeda pelo motivo financeiro resulta – ao nívelagregado – da taxa de inves- timento. A retenção de fundos por parte das empresas, contudo, é provisória, uma vez que o dinheiro retorna à circulação monetária logo que a máquina ou equipamento são comprados, voltando parte dele aos bancos, formando um fundo rotativo, onde, em sua maior parte, o fluxo de novos recursos requeridos para o investimento ex-ante é suprido pelo financiamento liberado pelo investimento ex-post. Caso o investimento esteja se processando a uma taxa constante, o financiamento pode ser provido por um fun- do rotativo de quantidade mais ou menos constante, com o empresário tendo o seu financiamento resta- belecido para fins de um investimento projetado, enquanto que um outro empresário está pagando pelo investimento que completou. Contudo, se as decisões de investimento estiverem crescendo, o financia- mento adicional envolvido constituirá uma nova demanda por moeda. O motivo financeiro tem um elemento de demanda transacional – uma vez que, tal como esta, rela- ciona-se a um gasto planejado, um plano definido de gastos – mas com um comportamento diferente, dada a natureza não rotineira das despesas. É neste sentido que Keynes afirmou que a demanda finan- ceira fica a meio caminho entre os saldos ativos, tal como a demanda transacional por moeda, e os sal- dos inativos, tais como as demandas precaucional e especulativa. A demanda financeira por moeda cresce quando os gastos discricionários prospectivos (como bens de capital) aumentam, e não a renda corrente, como no caso da demanda transacional. A introdução do motivo financeiro (função do investimento I) não altera a proposição fundamental da teoria da preferência pela liquidez de que a taxa de juros é um fenômeno monetário, sendo determinada pela interação entre demanda e oferta de moeda. Agora a demanda por moeda é descrita pela equação Md = M1 + M2 + M3 + M4 = L1 (Y) + L2 (r) + L3 (•) + L4 (I) O equilíbrio no mercado monetário é dado por Ms = Md Se Ms é fixada pela autoridade monetária, o nível de renda é determinado pela demanda agregada esperada pelos empresários, e os planos de investimento são dados, então pode-se resolver a equação acima para o valor de r de equilíbrio. 4.2.3. PRECIFICAÇÃO DE ATIVOS E PREFERÊNCIA PELA LIQUIDEZ Na análise feita na seção anterior, tal como desenvolvida na maior parte da TG, trabalhou-se num mundo dicotômico, onde existem apenas duas classes de ativo: moeda e títulos. Neste contexto, há somente uma escolha para quem aceita abrir mão da liquidez, que é o título, remunerado por uma taxa de juros. Consequentemente, dependendo do nível da taxa de juros, o público desejará reter uma dada quantidade de moeda. A taxa de juros é tida como o prêmio cobrado pelos agentes para abrir mão da liquidez. É, portanto, o preço que guia a escolha entre forma líquida e menos líquida de riqueza, sen- do os juros pagos pelos títulos uma compensação pelo seu menor grau de liquidez, comparado com a moeda. A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes 53 54 A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes ELSEVIER No capítulo 13 de seu livro A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, Keynes, critican- do a teoria clássica da taxa de juros (tradição marshalliana), introduz o que ficou conhecido como a teoria da preferência pela liquidez: “Deveria ser óbvio que a taxa de juros não pode ser um rendimento de poupança ou da es- pera como tal (...). Pelo contrário, a simples defi- nição de taxa de juros diz-nos, literalmente, que ela é a recompensa da renúncia à liquidez por um período determinado, pois a taxa de juros não é, em si, outra coisa senão o inverso da rela- ção existente entre uma soma de dinheiro e o que se pode obter desistindo, por um período determinado, do poder de comando da moeda em troca de uma dívida (...). [Ela] é a medida da relutância dos que possuem dinheiro em alienar o seu direito de dispor do mesmo. A taxa de juros não é o “preço” que equilibra a demanda de re- cursos para investir e a propensão de abster-se do consumo imediato. É o “preço” mediante o qual o desejo de manter a riqueza em forma líquida se concilia com a quantidade de moeda disponível. Isto implica que, se a taxa de juros fosse menor, isto é, se a recompensa da renún- cia à liquidez se reduzisse, o montante agregado de moeda que o público desejaria conservar ex- cederia a oferta disponível e que, se a taxa de ju- ros se elevasse, haveria um excedente de moeda que ninguém estaria disposto a reter”. Ainda neste capítulo, o economista inglês pergunta: “Dado que a taxa de juros nunca é negativa, por que alguém preferiria guardar sua riqueza de forma que renda pouco, ou nenhum juro, a con- servá-la de outra que renda algum? (...) Há, to- davia, uma condição necessária sem a qual não poderia existir a preferência pela liquidez como meio de conservação da riqueza. Esta condição necessária é a existência da incerteza quanto ao futuro da taxa de juros, isto é, quanto ao comple- xo de taxas de vencimentos variáveis a prevalecer em datas futuras.(...) Se a taxa corrente for positi- va para as dívidas de qualquer prazo, será sem- pre mais vantajoso adquirir uma dívida do que conservar a riqueza em forma de dinheiro líqui- do. Se, pelo contrário, a taxa futura for incerta (...), há o risco de se incorrer em perda na aquisi- ção de uma dívida de longo prazo ao convertê-la depois em dinheiro, comparativamente a ter con- servado o dinheiro como tal (...). [Portanto], as ex- pectativas quanto ao futuro da taxa de juros, fixa- das pela psicologia de massa, têm seus reflexos na preferência pela liquidez; com o acréscimo, porém, de que o indivíduo, para quem as futuras taxas de juros estarão acima daquelas previstas pelo mercado, tem motivos para conservar em caixa dinheiro líquido, ao passo que quem diver- ge no mercado em sentido oposto terá motivos para pedir dinheiro emprestado a curto prazo, a fim de adquirir débitos a prazo mais longo. O preço do mercado se fixará no nível em que a venda dos ‘baixistas’ (ursos) se equilibrar com as compras dos ‘altistas’ (touros)”. No capítulo 15, quando analisa os incentivos psicológicos e empresariais para a liquidez, Key- nes defende que a determinação da taxa de ju- ros tem um forte componente expectacional e psicológico: “A cada conjunto de circunstâncias e de ex- pectativas corresponderá uma taxa de juros apropriada e nunca se verificará suspeitas de al- guém modificar suas reservas líquidas habituais. De modo geral, entretanto, uma alteração nas circunstâncias ou expectativas provocará um rea- juste nas reservas líquidas individuais – desde que, de fato, uma mudança influa nas ideias dos diferentes indivíduos de modo diverso, devido, em parte, às diferenças de meio ambiente e ao motivo que os levou a guardar dinheiro, e, em parte, às diferenças de conhecimento e interpre- tação da nova situação. Desse modo, a nova si- tuação de equilíbrio da taxa de juros estará as- sociada a uma redistribuição da retenção dos re- cursos líquidos (...). A variação da taxa de juros é, comumente, o efeito mais importante da rea- ção a uma mudança nas informações. O movi- mento nos preços dos títulos e obrigações está, como costumam dizer os jornais, ‘fora de qual- quer proporção com a atividade dos negócios’”. Já no capítulo 17 da TG, generaliza sua teoria da preferência pela liquidez como uma teoria de precificação de ativos. Nesta, a peculiaridade da moeda – em comparação a outros ativos – é as- sim estabelecida: “A característica fundamental do capital ins- trumental (por exemplo, uma máquina) ou do ca- pital de consumo (por exemplo, uma casa) é o fato de que seus rendimentos excedem, em geral, seu custo de manutenção e de que seu prêmio de liquidez é, provavelmente, desprezível (...). A ca- racterística da moeda, enfim, é ter um rendimen- to nulo, um custo de manutençãoinsignificante, porém um prêmio de liquidez substancial (...). É, porém, uma diferença essencial entre a moeda e todos os demais bens (ou a maioria) que, no caso na moeda, o seu prêmio de liquidez exceda em muito o seu custo de manutenção, ao passo que no dos outros bens seu custo de manutenção é muito maior que o prêmio de liquidez”. PREFERÊNCIA PELA LIQUIDEZ, SEGUNDO KEYNES B O X 4 . 2 No capítulo 17 da Teoria Geral, Keynes elaborou uma teoria de precificação de ativos, utilizando uma estrutura mais diversificada de ativos, em que uma dada quantidade de ativos é demandada de acordo com sua taxa própria de juros, calculada segundo o preço corrente (à vista) dos ativos. Sua análi- se parte do mesmo princípio geral da teoria da preferência pela liquidez de que diferentes graus de liqui- dez devem ser compensados por retornos pecuniários que definem a taxa de retorno obtida pela posse dos diferentes ativos, de modo a compensar sua relativa iliquidez comparada a um ativo de referência. Neste sentido, a teoria da preferência pela liquidez não somente pode ser compatibilizada mas também generalizada para uma teoria de precificação de ativos. A taxa própria de juros de cada ativo é uma medida de seu retorno total esperado, medido não so- mente em termos do direito de renda implícito nele, mas também em termos da conveniência de sua posse e dos ganhos de capital que podem ser obtidos com sua venda. Assim, cada ativo oferecerá uma dada taxa própria de juros e os investidores escolherão aqueles que oferecerem as mais altas taxas de re- torno possíveis. A competição entre os possuidores de riqueza para obter os melhores ativos determina- rá os preços destes ativos que, por sua vez, sinalizarão quais ativos são relativamente escassos e quais estão com oferta excedente, determinando, assim, a composição da riqueza total acumulada por uma comunidade em um determinado período. O retorno total esperado oferecido por um ativo – a sua taxa própria de juros – é calculado através dos valores assumidos por quatro atributos: a) Taxa esperada de quase-renda ou, mais simplesmente, taxa de rendimentos que se espera ganhar pela posse ou uso do ativo, como, por exemplo, máquinas dando origem a bens negociáveis que ge- rarão lucros, os juros pagos nos títulos, dividendos de ações etc.; b) Custo de carregamento incorrido na retenção dos ativos, como estocagem, custos de seguro etc., de modo a manter o ativo em seu estado original; c) Prêmio pela liquidez, que mede a facilidade de negociação de um ativo no caso de desejo de mudan- ça da composição do portfólio, já que alguns ativos são mais facilmente negociáveis do que outros, dando ao seu possuidor um retorno importante na forma de flexibilidade diante das mudanças ines- peradas na economia; d) Taxa esperada de apreciação do ativo ao final de um período, uma vez que o possuidor de riqueza pode ganhar (ou perder) com a apreciação (ou depreciação) dos preços de mercado daquele ativo en- tre a compra e o fim do período de retenção do mesmo. A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes 55 Por fim, no capítulo 17, Keynes defende, ain- da, que a noção de liquidez depende de práticas sociais e das instituições: “É claro que não existe um padrão de ‘liqui- dez’ absoluto, mas simplesmente uma escala de liquidez – um prêmio variável que se tem de le- var em conta, além do rendimento do uso e dos custos de manutenção, ao calcular o atrativo de conservar diversas formas de riqueza. A noção do que contribui para a ‘liquidez’ é, em parte, vaga, modificando-se de tempos em tempos e dependendo das práticas sociais e das institui- ções. Existe, entretanto, na ideia dos possuidores de riqueza uma ordem de preferência bem defi- nida, na qual se exprimem em qualquer tempo o que pensam a respeito da liquidez, e não preci- samos de mais nada para a nossa análise do comportamento do sistema econômico. Pode ser que em determinadas circunstâncias históricas os possuidores de riqueza tenham pensado que a posse da terra se caracterizava por um alto prêmio de liquidez; e, visto que a terra participa- va com a moeda da particularidade de ter, em princípio, elasticidades de produção e substitui- ção muito baixas, é concebível que tenha havido na história ocasiões em que o desejo de possuir terra haja desempenhado o mesmo papel que a moeda em tempos recentes, no sentido de man- ter a taxa de juros a um nível demasiado alto”. PREFERÊNCIA PELA LIQUIDEZ, SEGUNDO KEYNES B O X 4 . 2 Partindo, portanto, da hipótese de que cada classe de ativos possui sua taxa própria de juros (ra), o retorno total esperado de um ativo, durante um certo período, pode ser definido, como a soma das se- guintes taxas esperadas: ra = a + q – c + l onde a = apreciação do valor de mercado do ativo (taxa de apreciação); q = rendimento do ativo; c = custo de carregamento incorrido na conservação do ativo; l = prêmio pela liquidez. Nesta abordagem, a preferência pela liquidez é refletida em termos do trade-off entre retornos es- perados (a + q – c) e o prêmio pela liquidez (l), causando substituições na estrutura de demanda por ativos, que se diferenciam de acordo com combinações de retornos esperados e prêmio de liquidez que eles oferecem, sendo a liquidez valorizada quando a incerteza aumenta. A fórmula acima permite a comparação e escolha entre ativos que oferecem algum rendimento (q – c), ganhos de capital (a) ou simplesmente segurança e flexibilidade conferida pela liquidez (l). De fato, o mais original dos atributos identificados acima por Keynes é o prêmio pela liquidez. Li- quidez é um conceito bidimensional, pois se refere simultaneamente à duração de tempo requerido para se negociar um ativo e à capacidade deste ativo de conservar seu valor ao longo do tempo. Portanto, um ativo é líquido quando o tempo requerido para negociá-lo é pequeno e a mudança esperada em seu valor também é pequena. Combinando os atributos acima, pode-se simplificadamente estabelecer a seguinte taxonomia de ativos, tal como está sintetizada no Quadro 4.1. Bens de capital têm nos rendimentos sua principal ca- racterística, mas são em geral ilíquidos e apresentam normalmente uma taxa de apreciação de capital negativa. Moeda tem rendimento nulo (e seu custo de carregamento é insignificante), uma taxa de valo- rização também nula, porém um prêmio de liquidez substancial. Por fim, os títulos e outros ativos fi- nanceiros são retidos por gerarem renda e possibilidade de apreciação de capital (o que não é garanti- do), mas com grau de liquidez variável (dependente da existência de mercados secundários organiza- dos), ainda que maior que a dos bens de capital e menor que o da moeda. A ideia central é que, em equilíbrio, os rendimentos esperados a serem obtidos pelos proprietários dos ativos (não monetários) devem ser iguais à sua liquidez relativa quando comparados à moeda, de modo a igualar as vantagens marginais entre os ativos. Os preços se moverão até que as vantagens rela- tivas de um ativo sobre qualquer outro desapareçam. Em termos da fórmula da taxa própria de juros, para aqueles ativos que oferecem melhores retornos prospectivos, os preços correntes (que são o deno- minador de todos os elementos) aumentarão até que a e q – c sejam então reduzidos de forma que os ga- nhos extras que eram antecipados desapareçam. Naturalmente, o oposto ocorre com ativos de baixo rendimento: os preços caem de forma que os valores de a e q – c se elevem. Em geral, quando as expectativas dos agentes estão otimistas, e a incerteza é baixa, o atributo de li- quidez não é tão importante quanto a possibilidade de ter ganhos monetários. A taxa própria de juros de 56 A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes ELSEVIER QUADRO 4.1 Características dos Ativos Ativos a q – c l Bens de capital Moeda Títulos NegativaZero Positiva ou negativa Positivo Zero Normalmente positivo Baixo Elevado (máximo) Variável, mas normalmente alto ativos líquidos torna-se mais baixa que as taxas próprias daqueles ativos que são esperados render ga- nhos em a ou em q – c, tais como bens de capital. Os agentes econômicos tentarão se livrar de moeda para obter bens de investimento, os preços à vista destes se elevarão e nova produção será estimulada. Alternativamente, se a incerteza é alta, o prêmio de liquidez da moeda será provavelmente mais alto que os rendimentos monetários oferecidos para outros ativos, tais como bens de capital e títulos. Agentes tentarão manter portfólios líquidos, deprimindo os preços dos bens de capital e levando a uma contra- ção no setor produtor deste bem. (Esta seção será desenvolvida no Capítulo 22.) RESUMO 1. Keynes desenvolveu sua teoria da preferência pela liquidez como uma teoria alternativa à tradição clássica, incluindo nesta a teoria dos fundos emprestáveis e a teoria quantitativa da moeda. Para a tradição clássica, a taxa de juros é o preço que equilibra a demanda por recursos para investir (determinada pela produtividade potencial do investimento) e a propensão de abster-se do consumo imediato enquanto para Keynes ela é um fenômeno fundamentalmente monetário, determinado pela preferência pela liquidez dos agentes e pela políti- ca das autoridades monetárias. 2. Para Keynes, a moeda não é um mero veículo temporário das transações que se dão entre mercadorias, mas um ativo com atributos específicos (entre eles o de ter o maior prêmio de liquidez entre os ativos), que lhe per- mite transportar a riqueza no tempo. A moeda é um ativo, uma forma específica de reter riqueza. A teoria da preferência pela liquidez mostra que quando as expectativas dos agentes são pessimistas, eles podem deman- dar segurança e flexibilidade no presente para enfrentar o futuro, representado por um ativo seguro que é a moeda. A posse da moeda permite aos agentes manter opções abertas perante a incerteza sobre o futuro. 3. No seu Tratado sobre a Moeda, Keynes distinguiu dois circuitos de circulação monetária: a circuito indus- trial, relacionado à quantidade de moeda necessária para dar suporte ao giro de bens e serviços produzidos na economia, que incorpora uma visão de moeda e suas funções muito próximas da TQM; circuito financeiro, que inclui operações com ativos financeiros, não sendo relacionado diretamente à renda corrente. Neste cir- cuito a moeda não é apenas um meio de circulação, podendo tornar-se objeto de retenção como um ativo, o que é um primeiro passo para Keynes se diferenciar da TQM, já que esta ignorava a possibilidade de entesou- ramento ou retenção de saldos inativos. 4. Na Teoria Geral, Keynes formulou os motivos para demandar moeda: os motivos transação, precaução e espe- culação. O motivo transação está relacionado ao intervalo entre recebimentos e despesas de renda e depende do montante da renda e da duração normal do intervalo entre o seu recebimento e o seu desembolso, ou seja, das compras projetadas e dos hábitos de pagamento dos agentes. O motivo precaução, por sua vez, refere-se ao fato de que os agentes podem reter moeda por precaução para atender às contingências inesperadas e às oportunidades imprevistas na realização de compras vantajosas, já que a moeda é um ativo seguro que serve para atravessar um futuro incerto e nebuloso. Por fim, o motivo especulação está relacionado à incerteza quan- to ao comportamento futuro da taxa de juros, como resultado de uma mudança nas informações no mercado. A expectativa dos agentes quanto às variações futuras na taxa de juros – que os definem como “ursos” e “tou- ros” – é o fator determinante que explica a preferência pela liquidez dos agentes e, consequentemente, justifi- ca a conservação de recursos líquidos para o motivo especulativo. Em artigo publicado pouco depois da TG, Keynes introduziu um novo motivo para demandar moeda: o motivo financeiro (finance), relacionado à de- manda por moeda antecipada a alguma despesa discricionária planejada, mas não rotineira, como é o caso do investimento em bens de capital. 5. A teoria da preferência pela liquidez pode ser vista como integrante da teoria de precificação de ativos, for- mulada no capítulo 17 da TG. Nesta abordagem, a preferência pela liquidez é refletida em termos do trade-off entre retornos monetários (a + q – c) e o prêmio pela liquidez (l), determinantes da estrutura de demanda por ativos, que se diferenciam de acordo com combinações de retornos monetários e prêmio de liquidez que eles oferecem, sendo a liquidez valorizada quando a incerteza aumenta (e vice-versa). A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes 57 TERMOS-CHAVE � Prêmio de Liquidez � Preferência pela Liquidez � Circulação Financeira � Motivo Precaução � Motivo Financeiro � Touros � Incerteza � Circulação Industrial � Motivo Transações � Motivo Especulação � Ursos � Taxa Própria de Juros BIBLIOGRAFIA COMENTADA Keynes, J.M. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Mac Millan, 1936. Obra clássica da Economia em geral, em que o autor procura romper com a tradição clássica então prevalecen- te, Keynes busca neste livro uma explicação convincente do porquê da existência de equilíbrio com desemprego na economia, atribuindo as crises à insuficiência de demanda efetiva. Na TG a teoria monetária tem um espaço importante, devido à centralidade da proposição de não neutralidade da moeda na macroeconomia de Keynes. Keynes, J.M. Treatise on Money, vol. 1 e 2. London: Macmillan, 1971. Nesta importante obra de Keynes, o autor ainda está a meio caminho da revolução teórica que iria realizar na TG, no sentido em que, se por um lado, ainda está de alguma forma preso à tradição quantitativista, de outro já for- mula vários desenvolvimentos teóricos que superam a TQM e que antecipam vários desenvolvimentos posterio- res. A leitura deste livro, de dois volumes, permite elucidar alguns aspectos importantes da teoria monetária de Keynes, que não foram devidamente expostos na TG. Carvalho, F.C. Mr. Keynes and the Post Keynesians. Aldershot: Edward Elgar, 1992. Chick, V. Macroeconomics after Keynes. Cambridge (Mass): MIT, 1983. 58 A Demanda por Moeda, a Escolha de Ativos e a Preferência pela Liquidez em Keynes ELSEVIER 4 - A demanda por moeda, a escolha de ativos e a preferência pela liquidez em keynes Introdução Economia monetária de keynes Demanda por moeda e preferência pela liquidez Circuitos industrial e financeiro MOtivos para demandar moeda Motivo Transação Motivo Precaução Motivo Especulação Motivo Financeiro Precificação de ativos e preferência pela liquidez
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