Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
ANTROPOLOGIA CULTURAL 1 ANTROPOLOGIA CULTURAL Graduação ANTROPOLOGIA CULTURAL 13 U N ID A D E 1 CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO Caro(a) Aluno(a), É com enorme satisfação que recebemos você para cursar a disciplina Antropologia Cultural. Nessa unidade, iniciaremos nossos estudos abordando o problema da variabilidade das culturas humanas no tempo e no espaço. Em seguida, buscaremos mapear os diversos sentidos associados ao conceito de cultura, mostrando seus antecedentes históricos e suas correlações com o desenvolvimento da concepção antropológica. Estamos certos de que a partir de agora e no decorrer das outras unidades, você desenvolverá uma nova perspectiva para perceber e analisar a intensa diversidade das formas de comportamentos, crenças, valores e estilos de vida que marcam as relações humanas em contextos sociais historicamente configurados. OBJETIVOS DA UNIDADE: • Reconhecer a variação cultural como dado constitutivo das diferentes sociedades humanas; • Perceber que as culturas humanas variam em ritmos e modalidades diversas no tempo e no espaço; • Compreender o caráter polissêmico e dinâmico do conceito de cultura; • Correlacionar o conceito de cultura e diversidade no contexto das sociedades contemporâneas; • Conhecer os antecedentes históricos do conceito de cultura e sua importância para a gênese do campo antropológico; • Compreender a posição antropológica diante das teorias deterministas. PLANO DA UNIDADE: • Cultura e Diversidade: uma temática antropológica e contemporânea • Cultura: dos sentidos comuns à concepção antropológica. • Duas concepções básicas de cultura e as relações entre elas. • Antecedentes históricos do conceito de cultura. • As noções de “Kultur” e “Civilization”. • O conceito de cultura de Tylor: a reunião de todas as possibilidades de realização humana. • A gênese da Antropologia como campo de saber • Cultura: aquisição ou inatismo? Seja bem-vindo à primeira unidade de estudo! Desejamos a você sucesso em sua aprendizagem! UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO 14 CULTURA E DIVERSIDADE: UMA TEMÁTICA ANTROPOLÓGICA E CONTEMPORÂNEA A variedade das manifestações culturais é um dado que parece acompanhar o desenvolvimento da história da humanidade. Em diferentes épocas, tempos e lugares o homem nunca deixou de se questionar sobre o mundo que o envolve e de organizar, de formas diversas, a vida em sociedade. Esta diversidade de formas não se restringe apenas ao plano das relações sociais que os homens mantém entre si quando em interação. Ela possui um espectro bem mais amplo, englobando diferentes modos de ocupar o espaço geográfico e territorial; de explorar e de transformar os recursos naturais; de organizar o plano de suas ações presentes e de criar visões projetivas do futuro; de conceber a vida e de expressar a realidade. Se lançarmos o olhar para cada uma destas formas, perceberemos com facilidade a multiplicidade de exemplos que a história registra. De uma perspectiva que considere uma temporalidade mais distante e remota, é significativo à curiosidade que os antigos sítios arqueológicos de civilizações passadas ainda exercem sobre nós. Olhamos com espanto e admiração criações como as pirâmides do Egito, os hieróglifos encontrados nas tumbas dos faraós, a fabricação de utensílios domésticos, de instrumentos de caça e pesca, a confecção de esculturas, objetos de adornos e a arte rupestre desenvolvida por povos que habitaram diferentes partes do mundo como a Península Ibérica e o continente sul-americano. Em todos esses casos, trata- se de testemunhos estéticos que revelam como estes povos utilizaram a forma e o grafismo como um instrumento de linguagem capaz de representar seu pensamento, suas crenças e seus modos de vida traduzindo uma relação direta entre o homem, a natureza e o universo. De uma perspectiva que leve em conta uma temporalidade mais próxima e presente, a constatação desta diversidade de manifestações culturais nas formas de organização da vida social não se coloca como um dado excludente. Pelo contrário, ela se impõe com força e sugere uma enorme riqueza de traços, formas e nuances em suas variações. Se tomarmos como foco de observação à família brasileira verificaremos, sem muitas dificuldades, mudanças pontuais quanto ao padrão de atitudes que informam as maneiras de pensar e agir dos nossos antepassados quando confrontado com àquelas que adotamos no cenário da vida contemporânea. O ingresso da mulher no mundo do trabalho é exemplo ilustrativo dessa mudança, na medida em que alterou a posição que ela tradicionalmente ocupou no seio de uma sociedade que, durante muito tempo, esteve marcada pelo regime patriarcal como foi o caso da oligarquia rural brasileira. Atualmente, convivendo lado a lado, com a posição de mãe e esposa que tradicionalmente ocupou, a inserção da mulher no mundo do trabalho, ampliou sua esfera de atuação na sociedade, diversificando não apenas os papéis sociais a serem desempenhados, mas também, sua rede de relações sociais. Correlativamente, alteraram-se também as normas e os critérios utilizados para a escolha e a definição do cônjuge visando o estabelecimento Arte Rupestre: rupestre – termo que se origina do latim rupes, - “rocha”, tendo entrado no vernáculo através do francês, com a significação de “gravado na rocha”. A arte rupestre representada nas pinturas gravadas em rocha, nas paredes das cavernas, constitui assim, um testemunho vivo que atesta ao mundo contemporâneo, não apenas, a existência de várias civilizações desaparecidas, como também, ilustra a existência do passado longínquo do homem no tempo. ANTROPOLOGIA CULTURAL 15 das relações matrimoniais. No mundo contemporâneo, esta escolha deixou de ser uma prerrogativa dos pais, alicerçada à época em relações de compadrio que determinavam um conjunto de obrigações recíprocas e trocas mútuas entre redes familiares diversas, como também, em esforços conjugados visando à manutenção de interesses econômicos e políticos; e, passou a constituir um atributo que embora sujeito à interferência de inúmeros fatores, funda-se prioritariamente no desejo pessoal e na vontade individual de cada parceiro. A variedade das manifestações culturais não se reduz apenas a uma questão de temporalidade como procuramos mostrar até aqui. É preciso que ampliemos o foco da nossa visão no sentido de perceber que a diversidade das formas culturais se estende também no espaço. Assim, quando lançamos nosso olhar para povos e grupos humanos situados em outros continentes ou em regiões do mundo afastadas e distantes da nossa própria sociedade, uma enorme multiplicidade de práticas, hábitos, comportamentos, crenças e costumes entram em cena provocando, muitas vezes, em nós, um sentimento de estranhamento e perplexidade. Se esta diversidade é, por um lado, facilmente constatada por nós quando observamos, por exemplo, as variedades lingüísticas que caracterizam os diferentes povos do mundo, por outro lado; não podemos deixar de considerar que de modo semelhante, o mesmo ocorre quanto às formas pelas quais estes mesmos povos expressam suas visões de mundo e seus valores culturais. É no centro desta perspectiva, que podemos situar algumas variações de atitudes diante de fatos existenciais aparentemente comuns. As práticas e as interdições alimentares das diferentes sociedades humanas demonstram bem esta colocação. Assim, enquanto rãs e escargots são considerados iguarias preciosas na culinária francesa, para os hindus o consumo da carne de vaca constitui uma proibição, o mesmo se dando entre os muçulmanos no que diz respeito à ingestão da carne de porco. Ritose práticas corporais constituem outro conjunto de dados que, quando comparados, reforçam esta diferenciação. Se em algumas praias de países europeus o nudismo é uma prática socialmente aceita e tolerada entre banhistas, o mesmo não acontece em países islâmicos, nos quais, muitas vezes, é vedado à mulher a liberdade de expor o próprio rosto em locais públicos. Como você pode notar, poderíamos estender nossa lista elencando uma imensa quantidade de exemplos que não nos deixam negar, mas que pelo contrário, corroboram a constatação quanto à permanência da diversidade cultural quando olhamos comparativamente para diferentes povos, grupos e sociedades humanas situadas em espaços geográficos e territoriais distintos. Entretanto, é necessário que, novamente, redirecionemos o nosso olhar em busca de um outro tipo de percepção. Neste sentido, o convite que fazemos é para que possamos, conjuntamente, ajustar o foco da nossa visão para um campo de observação mais estreito e mais próximo que leve em conta uma única e mesma sociedade. Feito isso, a questão fundamental que nos motiva e que tentaremos responder UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO 16 consiste em saber se a diversidade das formas culturais é um dado que se mantém no interior de uma mesma sociedade quando vista a partir de sua singularidade. Ou seja, se olharmos para o interior de uma determinada sociedade qualquer, é possível perceber e detectar formas diferenciadas no seu modo de organizar internamente as relações entre os homens e o mundo ou estão as mesmas pautadas em um todo homogêneo e uniforme? Para discutirmos esta questão e facilitarmos a sua compreensão, tomemos como ponto de observação a nossa própria sociedade, isto é, a sociedade brasileira vista em sua totalidade. Considerando o caráter estreito e íntimo que marca a relação que mantemos com a mesma, procuremos mapear os sentidos das nossas percepções. De um ponto de vista mais abrangente, nos salta aos olhos sem grandes dificuldades, diferenças significativas que envolvem, por exemplo, o estilo de vida de um homem que mora e trabalha no meio rural, em contraposição com aquele adotado por um habitante que vive nas grandes metrópoles dos centros urbanos brasileiros. Vistos assim, campo e cidade parecem constituir pelo menos aparentemente, pólos opostos de uma mesma realidade quando se trata de comparar as relações que os homens estabelecessem entre si e o contexto que os envolvem conforme habitem um ou outro destes espaços sociais tão distintos. Embora compartilhem de algumas características em comum, como a língua, uma complexa e diferenciada rede de significados pode ser percebida demarcando limites fronteiriços nos padrões identitários constituídos. Estes limites apontam para formas extremamente diferenciadas de se conceber e exprimir trajetórias e biografias pessoais, de desenvolver as atividades de produção e lazer, de se relacionar com as tradições religiosas, com os fenômenos da natureza e com o desconhecido. Desta forma, há um estilo de vida marcado por um ritmo de trabalho acelerado, regulado por uma intensa diversificação de tarefas e por pressões econômicas que estabelecem para o indivíduo, metas rígidas a serem cumpridas como critério base de avaliação do desempenho profissional em um mercado de trabalho altamente concorrido e competitivo, no qual as relações de produção parecem constituir o eixo que sustenta e define os padrões de consumo, as expectativas de crescimento e os projetos para o futuro, se contrapõe um outro estilo, fundado em critérios bastante diferentes. Assim, contrariamente ao que ocorre nas grandes metrópoles onde a vida, na maioria das vezes, se desenrola de forma distanciada do contato direto com a natureza, a vida no campo parece eleger justamente a natureza, como sua âncora e referência básica. É em torno dela que se estruturam, não apenas as relações de produção, mas todo um outro conjunto de práticas e ações por meio das quais a sociedade simbolicamente expressa sua visão de mundo e externaliza seus valores culturais. Da relação com a terra deriva uma nova maneira do grupo perceber e se relacionar com o tempo e com o espaço. As estações do ano são marcadores temporais fundamentais para a definição do ritmo das atividades laborais, na medida em que estabelecem a época propícia para o plantio, para a ANTROPOLOGIA CULTURAL 17 procriação do gado e para a colheita, como contribuem também, para a criação de um outro calendário que reorganiza a vida social estabelecendo os períodos de festa e celebração aos santos padroeiros, a temporada das chuvas, a chegada da estiagem, ao fim da seca e a fartura da colheita, cada um deles envolvendo musicalidades, oralidades, práticas corporais e gestualidades diferenciadas. Ao tempo cronológico une-se, assim, um outro tempo: um tempo cósmico, religioso e humano que carrega o espaço de outras dimensões de significado. Se ao prosseguir em nosso esforço comparativo, reduzirmos o espectro da nossa abordagem para um ponto de vista mais localizado que considere somente os centros urbanos brasileiros como foco de observação, ainda assim, a diferenciação das formas culturais no interior de uma mesma sociedade parece se evidenciar. Assim, quando observamos a geografia urbana das grandes metrópoles brasileiras, como é o caso das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, a divisão do espaço habitável em “centro” e “periferia” se apresenta como um dado representativo para se pensar esta diferenciação. Traduzidas pelo senso comum englobante através de pares de oposição como “morro” versus “asfalto” ou “moradores de cima” versus “moradores de baixo” esta divisão, muito mais do que uma mera distribuição diferenciada da população no espaço geográfico e arquitetônico da cidade, indica um outro tipo de separação. Se nos questionarmos a respeito dos critérios utilizados para classificar e dividir os moradores que habitam estas duas áreas distintas não é difícil constatar que por detrás dos mesmos, reside toda uma outra série de marcadores sociais que em conjunto concorrem para legitimar esta separação entre ambos. Eles sinalizam, na verdade, para a profunda desigualdade social existente em um país cingido pela divisão de classes sociais cuja ordem econômica vigente impõe limites estruturais, ao posicionamento das mesmas no interior do sistema capitalista, constituindo assim, um campo de forças no qual o conflito de interesses parece ser a regra e não a exceção. Em outras palavras, a oposição “morro” versus “asfalto” indica não apenas a forma pela qual a população está geograficamente distribuída no cenário urbano das cidades contemporâneas. Ela também revela as desigualdades sociais que subjazem a esta distribuição no que diz respeito ao poder econômico dos diferentes grupos sociais que, a depender da renda familiar, da condição financeira, do capital político e cultural que cada um detém, definirão formas mais ou menos diretas de acesso às políticas públicas e institucionais destinadas às áreas da saúde, educação, habitação, transporte, segurança, cultura e lazer, dentre outras. Como, no exemplo anterior, é importante que você observe que também neste caso, a distribuição diferenciada dos grupos sociais no interior do espaço urbano não ocorre sem que, simultaneamente, as práticas e as ações humanas sejam revestidas de novas significações e dimensões de sentido que demarcam os sinais distintivos de suas identidades específicas e dos estilos de vida que a partir delas se configuram. Fato ilustrativo desta UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO 18 colocação refere-se à importância dos bailes “funks”, que em sua organização e efetividade, mobilizamtodo um repertório simbólico no qual música, ritmos, compassos, melodias, letras, danças e oralidades compõem um todo unificado que parece traduzir a oposição “morro” versus “asfalto” de que falávamos anteriormente. Por meio deles, os “moradores de cima” ritualizam a experiência subjetiva da desigualdade estrutural vivenciada face aos “moradores de baixo” e fortalecem em ritmo de festa e celebração, os vínculos que dão unidade aos fragmentos existenciais. Neste processo, no qual o figurativo funciona mais do que o conceitual, parece haver uma estreita e íntima correlação entre o deslocamento geográfico a que são compelidos a exercitar cotidianamente ao descer o “morro” e, um outro tipo de deslocamento social em torno do qual associam a idéia de ascensão e projeção social ao chegar no “asfalto” que inverte estas oposições, resignificando a aparente contradição entre “pobreza material” versus “riqueza simbólica”. Diante do exposto e independentemente do espaço social considerado – campo ou cidade – a resposta a nossa pergunta inicial parece caminhar, portanto, no sentido de uma posição que toma como legítima a seguinte afirmativa: as culturas humanas não constituem totalidades homogêneas e nem realidades estanques e isoladas. Muito pelo contrário, relações marcadas por diferenças sociais fundadas em critérios como classe social, faixa etária, grau de escolaridade, relações de gênero e parentesco entre outros, situam os homens de forma desigual no tecido social e contribuem para tornar as culturas humanas um mecanismo simbólico que expressa tais diferenciações, ao mesmo tempo em que constitui, o terreno firme sob o qual estas mesmas diferenciações se apóiam e ganham força. Deste modo é importante que você fique atento ao caráter dinâmico que envolve as diferentes formas pelas quais as culturas humanas se manifestam no tempo e no espaço, seja no que tange a abordagem analítica de uma sociedade particular, seja no que toca o estudo comparativo de várias sociedades. Aliás, é sempre bom lembrar que só nos é possível falar em diferenciação exatamente por que os grupos humanos estão em permanente contato e interação. Por outro lado, isto não significa postular que estas interações tenham sempre conduzido as sociedades humanas a relações pacíficas e harmônicas. Como vimos em exemplos anteriores, aqui também uma série de fatores entram em pauta conduzindo muitas vezes a relações marcadas por tensões e conflitos entre interesses econômicos e políticos diversos, cujas conseqüências, na maioria dos casos, resultaram como a própria historiografia demonstra na subjugação de uma cultura aos critérios de uma outra considerada dominante, como teremos a oportunidade de abordar de forma mais detalhada ao longo dos nossos estudos. No entanto, para que você possa visualizar melhor as colocações acima, tomemos para efeito de uma breve ilustração: a situação dos grupos indígenas brasileiros. Por mais isolados e distanciados que estejam e tenham suas próprias particularidades quanto às formas de perceber a realidade e de organizar a vida social, estes grupos não puderam, ao longo da história, ANTROPOLOGIA CULTURAL 19 evitar o contato com a sociedade nacional cujas políticas de expansão produziu não só impactos significativos no modo de utilização e apropriação dos recursos naturais, como introduziu também novas crenças, valores e concepções de mundo que desagregaram a estrutura social destes grupos, colocando muitas vezes sob ameaça a própria sobrevivência, e, conseqüentemente, a possibilidade de continuidade de suas existências concretas. No conjunto, as diferentes constatações que tivemos a oportunidade de observar a partir de todos os exemplos aqui discutidos, nos permite definir alguns pressupostos básicos que devem nortear daqui para frente a nossa reflexão teórica a respeito da variabilidade das culturas humanas. Procure ficar bem atento e vamos a eles: 1. As culturas humanas se desenvolveram no tempo e no espaço em ritmos e modalidades extremamente variáveis, embora seja possível identificar entre as mesmas, pontos de convergência que sinalizam para tendências globais, já que constituem produtos de uma mesma espécie viva, o homo sapiens. 2. A variedade das culturas humanas é um dado constitutivo das diferentes sociedades, seja quando consideradas de uma forma particularizada, seja quando situadas em uma perspectiva comparativa que as coloca em relação. 3. As culturas humanas são resultantes de processos históricos específicos que possibilitaram o seu desenvolvimento. Deste modo, os elementos que compõem internamente seu repertório de valores devem ser analisados de forma situada e relacionalmente aos contextos históricos particulares nos quais se configuraram. 4. As culturas humanas não constituem totalidades homogêneas e nem realidades estanques. Há uma enorme multiplicidade de critérios de diferenciação dos grupos sociais no interior das sociedades humanas que as tornam extremamente heterogêneas e diversificadas. 5. As culturas humanas se desenvolveram de modo dinâmico e variável em decorrência do permanente contato e interação que puderam estabelecer ao longo da história. Destas interações resultaram relações nem sempre pacíficas entre as diferentes sociedades humanas cujas conseqüências merecem estudos mais sistemáticos e detalhados. A partir destes pressupostos, é importante que você perceba como o estudo da variabilidade cultural constitui um aspecto de fundamental relevância para a compreensão das sociedades contemporâneas. Se tomarmos como base das nossas reflexões, a consideração de que as culturas humanas constituem mecanismos simbólicos e de significação, através dos quais as diferentes sociedades externalizam e expressam seus próprios valores e visões de mundo, diversas razões podem ser apontadas para justificar esta relevância. Sugerimos a você que pense, cuidadosamente, a UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO 20 respeito de algumas destas razões a partir das considerações que apresentamos a seguir. Em primeiro lugar, o estudo da variação cultural nos permite compreender um pouco mais a respeito de nós mesmos e da nossa própria sociedade, na medida em que através dele, podemos colocar em discussão os limites das nossas próprias atitudes, posições e valores nos diferentes espaços sociais em que estamos inseridos e com os quais interagimos de forma permanente e contínua. Em segundo lugar, e correlativamente, esta discussão abre espaço para o diálogo com a diferença – uma problemática central da abordagem antropológica – contribuindo para a superação de atitudes preconceituosas que, na maioria das vezes, nos conduzem a posturas marcadas pela rigidez e pela intolerância que nos impedem de reconhecer a humanidade dos outros coletivos sociais com os quais nos relacionamos. Finalmente, esta discussão nos possibilita articular o pensamento através de um duplo movimento. De um lado, ela nos permite identificar as diferentes formas de interação da nossa própria sociedade com outras sociedades que lhe são distintas e, de outro; problematizar contextualmente nossas próprias diferenças internas, contribuindo assim, para a percepção e o conhecimento da nossa própria identidade enquanto nação. Diante destes parâmetros, é fundamental que procuremos não apenas entender ao longo da história do desenvolvimento das sociedades humanas, os vários significados que foram atribuídos ao termo cultura, como também que busquemos identificar as razões e os sentidos de tanta variabilidade. Este é o conteúdo que abordaremos a seguir, no próximo tópico dessa nossa primeira unidade de estudos. CULTURA: DOS SENTIDOS COMUNS À CONCEPÇÃO ANTROPOLÓGICANo domínio do senso comum onde prevalece o uso da linguagem coloquial, a palavra cultura constitui um termo difuso que engloba uma imensa variedade de situações e fatos sociais e remete a uma enorme multiplicidade de sentidos e significados, o que nos permite afirmar, por conseguinte, que ela possui um caráter polissêmico e dinâmico. Vejamos então, alguns dos significados atribuídos ao termo e os diferentes usos que dele são feitos, enquanto instrumento discursivo informalmente utilizado, nos diferentes espaços sociais que compõem as sociedades humanas, tentando localizar nestes usos as situações e/ou fatos que são por ele designados. Cultura pode ser um termo cujo significado remete para a esfera da educação estando, portanto, correlacionado ao estudo, ao conhecimento, ao processo de escolarização e formação acadêmica. Neste sentido, o termo pode ser usado para diferenciar os grupos sociais conforme o grau de instrução e de acesso à formação educacional institucionalizada. Fala-se assim, que “Fulano é muito culto” como uma forma de se referir a alguém que estudou Polissemia: Fenômeno que consiste em reunir, em atribuir vários sentidos a uma mesma palavra. ANTROPOLOGIA CULTURAL 21 muito, cuja escolaridade o diferencia do indivíduo leigo, destituído desta formação. O termo parece assim, envolver gradações entre os indivíduos. Ou seja, a depender do grau de instrução, do conhecimento formal adquirido através do processo de escolarização, o indivíduo é classificado como “mais” ou “menos” culto. Por cultura pode-se também designar uma certa dimensão ou domínio da vida social que comporta formas de expressão artísticas diferenciadas tais como as artes plásticas, a música, a dança, as artes cênicas e a literatura em suas mais diversas modalidades, gêneros e estilos. Neste caso, o termo cultura parece estar associado à idéia de “erudição”, refinamento e sofisticação no gosto. É importante que você observe que aqui também, o termo pode ser utilizado como um instrumento de diferenciação e classificação de indivíduos ou grupos no interior do sistema social conforme ocorra ou não, a possibilidade de acesso a estas formas de expressão artísticas. Pode-se também falar de cultura tomando como referência o conjunto de elementos e manifestações que expressam a tradição coletivamente compartilhada por um determinado grupo social. O termo englobaria assim, todo o repertório de crenças, lendas, hábitos culinários, interdições alimentares, cantigas folclóricas, festas e cerimônias típicas, atitudes religiosas, variedades lingüísticas, formas de vestuário, adotadas e incorporadas no imaginário simbólico e cognitivo de um povo. Neste sentido, o termo cultura parece estar correlacionado à idéia de “popular”, de tudo aquilo que é usual e corriqueiramente percebido e compreendido facilmente por qualquer membro da sociedade. O termo cultura pode ainda relacionar-se ao conjunto de objetos, instrumentos e utensílios que sobreviveram ao longo do tempo e que constituem vestígios que nos fazem saber a respeito da existência e dos modos de vida de civilizações passadas. Neste caso, cultura refere-se ao conjunto das realizações materiais de sociedades extintas e que compõe atualmente, o acervo dos sítios arqueológicos. Finalmente, pode-se ainda utilizar o termo cultura para definir e caracterizar uma determinada época da história de uma sociedade. Desta forma, fala-se, por exemplo, em “cultura pop”, “cultura hippie”, “cultura de massa”, etc. Neste caso, para cada época considerada, um conjunto de elementos diferenciados é utilizado visando demarcar as concepções e os estilos de vida então adotados pelos grupos sociais. No que diz respeito a esta última, por exemplo, os meios de comunicação englobando desde o rádio, o cinema, até a mídia impressa e televisiva são instrumentos fundamentais não apenas, de divulgação e transmissão de informações, como também, de difusão de valores que estimulam e prescrevem determinados estilos e modos de vida (maneiras de se divertir, de se vestir, de se comunicar, de escrever, de sentir, de morar, de alimentar, etc) que uma vez reproduzidos e compartilhados por um grande contingente populacional parecem legitimar a idéia de uma homogeneidade e padronização da vida e dos modos de conceber o mundo e se posicionar diante da realidade. É neste contexto que falamos com freqüência na “cultura UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO 22 da nossa época”, na “cultura contemporânea” para nos referirmos ao nosso modo atual de viver. Diante de tanta variação é previsível, que num primeiro momento, sejamos tomados por uma sensação de dispersão que mais parece contribuir para confundir o pensamento do que propriamente para esclarecer acerca da especificidade do termo cultura. Assim, para que possamos resolver este impasse inicial e criar condições que possibilitem a continuidade das nossas discussões é preciso que adotemos uma estratégia metodológica capaz de direcionar nossas reflexões no estudo da cultura. Desta forma, propomos que, ao invés de nos determos na análise das variações do termo propriamente dito, concentremos o foco da nossa atenção, primeiramente, no esforço de compreender as razões que motivaram esta variabilidade buscando identificar em seu fluxo e dinamicidade, algumas pistas que possam indicar pontos de aproximação que lhes forneça um certo tipo de unidade. DUAS CONCEPÇÕES DE CULTURA E A RELAÇÕES ENTRE ELAS Se observarmos atentamente as situações antes descritas, veremos que, a despeito dos diferentes significados atribuídos ao termo cultura, todos parecem convergir para um terreno comum alicerçado em torno de dois pressupostos básicos. O primeiro deles, ancora-se no entendimento da cultura como um dado constitutivo da humanidade como um todo. Um dado que acompanhou a história do seu desenvolvimento no tempo e no espaço compondo seu repertório e que, portanto, lhe confere sua marca permanente e distintiva. Deste primeiro postulado deriva uma concepção de cultura que engloba indiscriminadamente todos os aspectos e elementos que compõem uma determinada realidade social. Ou seja, cultura diz respeito a todas as manifestações e realizações materiais que atestam a existência social de diferentes povos e grupos inseridos no interior de uma determinada sociedade, incorporando, inclusive, as diferentes formas de conceber o mundo e de expressar a realidade social. Assim, podemos nos referir às culturas americana, chinesa, italiana, do mesmo modo que, nos referimos às culturas yanomami, apinayé, ou então, a cultura dos antigos maias, incas e astecas. Tanto em um caso como no outro, o que está em jogo é a referência ao conjunto de características que particularizam cada um destes grupos humanos no tempo e no espaço, sejam elas materiais ou não. O segundo postulado, apóia-se na compreensão de que cultura refere- se às particularidades e às singularidades que dão forma e expressão a diferentes realidades sociais. Deste postulado, decorrer uma outra concepção de cultura cuja ênfase pauta-se nas formas abstratas, representacionais e simbólicas que expressam as diferentes maneiras de conceber a realidade social no interior de uma determinada sociedade. Cultura assim, diz respeito a uma esfera, a uma dimensão ou domínio específico da vida social. Nesta acepção, podemos falar da cultura brasileira nos referindo, por exemplo, às ANTROPOLOGIA CULTURAL 23 particularidades da sua literatura, da sua língua, da sua música, enfim, das formas de expressão que dão para os grupos sociais, que nela vivem, significação e sentido à concretude do mundo. Em torno destes dois postulados básicos, a preocupação com o entendimento da variabilidadedas formas culturais foi se intensificando, à medida em que, paralelamente, o contato e a interação entre os grupos, povos e sociedades humanas avançaram ao longo da história indicando uma tendência à formação de uma civilização mundial. Para que possamos compreender como se desencadeou este processo, que forças e tensões impulsionaram sua ocorrência, propomos como segundo critério da nossa orientação metodológica que procuremos mapear as idéias e os contextos históricos que lhe forneceram suporte e que contribuíram para tornar a problemática da cultura, objeto privilegiado de um campo específico do saber, qual seja, a Antropologia. A análise destes contextos constituirá a partir de agora, a pauta das nossas discussões ao longo do terceiro tópico desta unidade de estudos. Procure manter-se concentrado para que você possa compreender, de forma clara e consistente, os conceitos e os elementos em torno dos quais esta discussão se estruturou. ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO CONCEITO DE CULTURA: AS NOÇÕES DE “KULTUR”, “CIVILIZATION” E O CONCEITO DE TYLOR Como temos procurado mostrar a você, a constatação da variabilidade cultural é um dado constitutivo da humanidade. Ela esteve presente de forma permanente e contínua no decorrer do processo de desenvolvimento da história das sociedades humanas representando, portanto, um mecanismo fundamental para a compreensão das suas diferentes formas de expressão tanto no tempo, como também, no espaço. A despeito desta constatação, o termo cultura atravessou uma longa trajetória até que pudesse se tornar objeto de estudos mais sistemáticos e detalhados, que lhe conferissem status teórico dentro de um campo do saber voltado para a análise de sua especificidade, do seu alcance e da sua importância para a compreensão da dinâmica envolvida com o processo de diferenciação das sociedades humanas. Como você pôde perceber no tópico anterior, a polissemia que reveste o uso do termo cultura, não indica apenas a dificuldade de sua apreensão em um sentido único e absoluto. Ela vai além e se coloca como um aspecto que atesta a trajetória polêmica que o termo enfrentou até ocupar um lugar de destaque no âmbito das chamadas Ciências Sociais como um todo, e, especialmente, na Antropologia. Até que este processo se configurasse, o termo cultura esteve marcado pela amplitude conceitual e foi alvo de preocupações diversas estando intimamente correlacionado ao problema das descontinuidades sociais e nacionais que ao longo dos séculos XVII e XVIII assolaram o continente europeu. UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO 24 Dentro deste contexto, sua origem remonta aos esforços dispendidos por intelectuais alemães no sentido de compreender o desenvolvimento da história das sociedades humanas a partir do repertório de crenças, costumes e valores que demarcam suas particularidades e definem suas identidades específicas, considerando-se para tanto, as condições materiais que deram suporte e viabilizaram a sua ocorrência. Trata-se de uma preocupação que vai ao encontro e reflete a situação política da Alemanha à época: uma nação dividida em várias unidades políticas e que carecia, portanto, de uma expressão que pudesse traduzir o “espírito”, a identidade do povo alemão na ausência de uma organização política comum. Desta forma, em fins do século XVIII e no início do século seguinte, o termo germânico “Kultur” foi amplamente utilizado para expressar todos os aspectos espirituais de uma comunidade. Em contraposição, o termo francês “Civilization” era então utilizado para expressar principalmente todas as realizações materiais de uma sociedade. Nesta segunda acepção, o termo ganha um duplo contorno. De um lado, servia para designar uma cultura dominante no processo de desenvolvimento da história da humanidade como um todo, opondo-se assim, à selvageria e à barbárie, traduzindo, portanto, a própria marca da civilização então representada pelas conquistas e avanços tecnológicos do mundo ocidental. Nesta perspectiva, a discussão sobre cultura se insere no contexto do expansionismo colonial europeu e aponta para a idéia de progresso. De outro lado, o termo servia para demarcar e diferenciar o estilo de vida das camadas dominantes de uma sociedade expressando polidez, refinamento e sofisticação nos modos de conduta adotados por elas – a corte francesa, mais especificamente – em oposição ao restante da população então excluída do acesso à educação formal, à arte, à religião e à ciência. Neste caso, a discussão sobre cultura refere-se a uma espécie de “civilização dos costumes” (Elias, 1994) e sinaliza para a idéia de tradição como forma de expressão que dá singularidade e particulariza os diferentes povos. Na passagem do século XIX para o século XX, estes dois termos – “Kultur” e “Civilization” – foram sintetizados por Edward Tylor (1832-1917) em uma obra clássica da Antropologia intitulada “Primitive Culture” (1871) a partir da seguinte definição: “Cultura ou civilização tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade” (Tylor, 1871:1). Com esta definição, Tylor englobava simultaneamente todas as possibilidades de realização humana – materiais e não-materiais – abrindo assim, uma nova perspectiva para se pensar a problemática da cultura, cujas conseqüências serão decisivas para a delimitação do campo antropológico. Vejamos a seguir como historicamente esta situação se configurou. ANTROPOLOGIA CULTURAL 25 A GÊNESE DA ANTROPOLOGIA COMO CAMPO DE SABER Do ponto de vista histórico, a passagem do século XIX para o XX, retrata um momento em que, como decorrência do expansionismo colonial europeu, o contato entre diferentes povos, grupos e sociedades humanas se intensifica, ao mesmo tempo, em que ainda sob a tutela do primeiro, reforça-se o poderio das nações industrializadas da Europa sobre sociedades antes isoladas e que foram, gradativamente, subjugadas e incorporadas ao âmbito de influência da visão de mundo européia. Trata-se, portanto, de um momento em que o expansionismo colonial europeu muda de sentido. Ou seja, passado o período inicial da descoberta dos chamados “povos exóticos” um novo desafio se impõe: adequar estes povos não mais como mão de obra escrava a serviço do sistema capitalista, mas como consumidores em potencial de um grande mercado internacional em expansão. Como decorrência das dificuldades impostas por este desafio, a preocupação com o problema da variabilidade cultural ganha novos impulsos e passa a ser tratado como uma questão científica. É neste contexto que a cultura emerge como categoria teórica e passa a ser sistematicamente estudada pelas recém criadas Ciências Sociais e, mais diretamente, pela Antropologia. Diversos fatores contribuíram para que isto se tornasse possível. O primeiro deles, diz respeito à ruptura com a visão religiosa que, fortemente alicerçada no Cristianismo, constituía a fonte de explicação do mundo e fornecia à Europa o modelo básico para a interpretação da realidade e para a compreensão das relações sociais. O rompimento com esta visão a favor da adoção de uma atitude laica se deu em associação com um outro conjunto de preocupações, que podem ser sintetizadas pelo esforço de compreensão da origem da sociedade e de suas transformações. A tentativa de entender o homem não mais como produto da criação divina, aproximou as Ciências Sociais, e tambéma Antropologia, do campo de estudos desenvolvidos pelas Ciências Naturais, em especial, a Biologia. Em conseqüência, o estudo do mundo social se aliou às teorias biológicas de cunhoevolucionista – Teoria da Evolução das Espécies – culminando com o predomínio de uma visão sobre a humanidade, na qual a mesma é considerada como uma espécie animal que se originou a partir de outras formas de vida e que se encontra, portanto, imersa em um processo de evolução passível de ser estudado tal qual o mundo natural desde que em observância às condições materiais sob os quais se assenta. Nesta perspectiva, a cultura passa a ser concebida como o mecanismo diferenciador básico do homem face às outras espécies vivas e, também, como o instrumento que permite distinguir as populações do mundo entre si. Apesar de em ambos os casos, o termo cultura ainda permanecer marcado pela amplitude conceitual, é importante ressaltar a sua vinculação com a produção científica do conhecimento no século XIX em função de duas razões correlatas. UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO 26 Embora a percepção da variedade das formas de vida seja um dado antigo na história da humanidade, será no século XIX que esta questão vai ser tomada como objeto de análise de um campo específico do saber – a Antropologia – e que se pretendeu fundado em bases científicas. Trata-se assim, de um período no qual se discute, pela primeira vez, a possibilidade de se aplicar ao estudo do homem os mesmos métodos até então empregados nas ciências da natureza. Esta situação provocará uma profunda alteração epistemológica nos modelos que serviam de base para se pensar o homem e a sociedade. De sujeito do conhecimento o homem passa ao status de objeto da ciência, o que implicará em uma mudança de olhar que abre a possibilidade de se questionar sobre os limites e os fundamentos de suas atitudes e valores diante do mundo no plano de sua existência empírica e concreta e, não mais, em uma ordem divina e transcendente, na qual parece mover-se através de forças e determinações sobre as quais não possui nenhum controle. O segundo fator que merece destaque na consolidação da moderna concepção de cultura refere-se, como já assinalamos anteriormente, ao avanço do Ocidente em direção aos outros povos do mundo. Desta forma, se de um lado, o expansionismo colonial propiciou ao mundo ocidental a ampliação de seu poderio político e econômico através da conquista de novos territórios colocados sob o seu julgo; de outro lado, ele impôs uma problemática central para o estudo das sociedades humanas: o acirramento do contato com a diferença. Da perplexidade inicial diante daqueles que acabavam de ser descobertos forja-se assim, uma questão fundamental: como explicar o “nativo”? Como se relacionar com ele e garantir, a um só tempo, a sua incorporação e sua adequação aos novos mercados econômicos em expansão? A resposta que o Ocidente deu a esta questão, embora tenha inicialmente, legitimado sua posição dominante nas relações internacionais de poder, através da imposição de suas concepções de mundo aos povos então subjugados ao seu controle, traz em si o germe daquilo que posteriormente, já no século XX, possibilitará o desenvolvimento de sua autoconsciência em face da finitude e da relatividade de sua própria existência. No conjunto, estas duas questões explicam, em parte, o porquê do termo cultura e não civilização ter sido tomado pela Antropologia como objeto privilegiado de investigação. Enquanto a idéia de civilização parece pressupor, aprioristicamente, uma continuidade territorial e espacial dada; a noção de cultura caminha em uma direção que parece sugerir a existência de uma espécie de ligação “espiritual” entre os homens que independe de limites territoriais e de fronteiras geográficas previamente estabelecidas. Esta ligação parece unir a condição particular que singulariza e individualiza a existência de cada ser humano no plano de suas vidas concretas a um mundo coletivo que se funda em um universo social cingido por valores que podem ser compartilhados. Ou seja, através desta ligação, o homem extrapola os limites impostos pelo plano de sua condição natural, biologicamente herdada enquanto espécie viva, e se insere em um universo Epistemologia: Do grego, epistéme, ciência. Estudo crítico dos princípios, hipóteses e resultados das ciências já constituídas, e que visa a determinar os fundamentos lógicos, o valor e o alcance delas; teoria da ciência, estudo do grau de certeza do conhecimento científico em seus diversos ramos. ANTROPOLOGIA CULTURAL 27 artificial pautado em regras de conduta e valores abstratos por ele mesmo construído “enquanto membro da sociedade” como nos coloca Tylor. Diante do exposto, podemos agora, explicitar os postulados básicos que irão compor o projeto antropológico que se esboçou na passagem do século XIX para o século XX, e que, ainda hoje se faz presente, permeando com diferentes ênfases teóricas a discussão em torno da problemática da cultura. Qual seja, um projeto marcado pelo esforço permanente de conciliar a dualidade existente entre a unidade biológica do homem enquanto espécie viva e a diversidade cultural. Um projeto que busca, a partir de diferentes matrizes teóricas, articular a pretensão de construir uma teoria universal das sociedades humanas e que, ao mesmo tempo, possa descrever o que elas possuem de particular. A compreensão deste esforço de articulação, além de se colocar como um dado fundamental para o entendimento do contexto histórico que possibilitou a gênese da Antropologia como campo de saber, se apresenta também, como um aspecto que esclarece e informa sobre o estado atual de sua prática no estudo e abordagem das sociedades contemporâneas, como teremos a oportunidade de ver um pouco mais adiante. Por agora, considerando estes dois postulados e novamente retomando a famosa definição de Tylor exposta nas páginas anteriores, cabe- nos finalmente uma pergunta: deriva a cultura de aptidões inatas transmitidas ao homem por mecanismos biológicos geneticamente herdados ou a cultura refere-se a um atributo adquirido socialmente pelo homem através da aprendizagem? É a esta questão que tentaremos responder no próximo tópico de nossos estudos tomando como referencial básico às perspectivas teóricas construídas pela Antropologia. Entretanto, antes de iniciarmos mais esta etapa, sugerimos a você que procure ler o conteúdo até aqui apresentado com bastante atenção de forma a não deixar nenhuma dúvida pendente. Assim, releia-o quantas vezes julgar necessário, recorra às sugestões de leitura complementar, faça uso de fichamentos e resumos, e, principalmente, interaja conosco através do ambiente virtual de aprendizagem. O importante é que você faça uso de todos os recursos didáticos disponíveis, de forma a garantir que sua compreensão analítica do conteúdo apresentado, e, conseqüentemente, sua aprendizagem, efetivamente se concretize. CULTURA: AQUISIÇÃO OU INATISMO? Desde que a problemática da cultura se legitimou no final do século XIX e no princípio do século XX, como objeto de análise privilegiado da Antropologia, muito já se discutiu e se produziu em termos da literatura especializada, no sentido de explicar a sua origem e de demonstrar a sua forma de atuação na vida social e, em especial, nas atitudes e nos modos de comportamento desenvolvidos pelo homem. Resguardando-se às especificidades próprias que envolvem as diversas posições analíticas erigidas em torno desta temática, todas parecem ter como UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO 28 ponto de partida a questão que mencionamos anteriormente. Qual seja: deriva a cultura de aptidões inatas transmitidas ao homem por mecanismos geneticamente herdados ou constitui a cultura um atributo adquirido pelo homem através da aprendizagem no decurso de suasocialização em um determinado grupo ou sociedade? Acompanhando a história das sociedades humanas desde a Antiguidade, a busca de uma resposta para esta questão é um dado que pode ser confirmado a partir de um rápido exame dos exemplos registrados pela historiografia. Para efeito de uma breve ilustração observemos a afirmação do arquiteto romano Marcus V. Pollio: “Os povos do sul têm uma inteligência aguda, devido à raridade da atmosfera e do calor; enquanto os das nações do Norte, tendo se desenvolvido em uma atmosfera densa e esfriados pelos vapores dos ares carregados têm uma inteligência preguiçosa” (Citado por Laraia, 1989:14). Se não quisermos recuar tanto no tempo, o mesmo esforço de diálogo com esta questão pode ser facilmente constatado se consideramos o processo de formação da nossa própria sociedade, isto é, a sociedade brasileira quando vista em sua totalidade. Na tentativa de explicar os elementos que contribuíram para a formação sócio-histórica da nossa identidade nacional, são antigas as pressuposições que alegam termos herdados a “preguiça” dos índios, a “lascividade” dos negros e a “estupidez” dos portugueses. Nesta mesma linha de raciocínio, são velhas também um conjunto de imagens que circulam no nosso senso comum e que atribuem capacidades ou características inatas a diferentes grupos humanos sejam eles, parte integrante da nossa própria sociedade, sejam eles, oriundos de outros lugares do mundo. Desta forma, fala-se com freqüência que os mineiros são por natureza “desconfiados”, os baianos “lentos” e “preguiçosos”, enquanto que os paulistas são “sérios” e “trabalhadores” ao passo que os cariocas são “brincalhões” e “espertos”. Do mesmo modo, afirma-se com recorrência que os judeus são “negociantes” e “avarentos”, que os americanos são “empreendedores” e “interesseiros”, que os japoneses são “traiçoeiros”, “cruéis” e “disciplinados”, que a raça branca é mais “inteligente” e “desenvolvida” do que a raça negra. Esta mesma lógica de raciocínio parece se fazer presente até mesmo quando procuramos explicar diferenças pontuais em termos das atitudes, comportamentos e escolhas individuais. Com muita regularidade, afirma-se, por exemplo, que “Fulano nasceu com a matemática nas veias” para justificar e explicar as habilidades de um indivíduo em operar com o raciocínio lógico. De modo semelhante, diz-se que “Beltrano tem um dom natural para a pintura, pois herdou esta qualidade do pai” ou que “Cicrano tem sangue azul nas veias” para distinguir a posição social de um indivíduo diante de outro a partir da condição econômica ou cultural, por exemplo. Além disto, frases como “a raça caça”, “tal pai, tal filho”, “graveto não caí longe do pau”, “filho feio não tem pai” são metáforas populares que também ilustram o mesmo modo de se proceder quando se trata de explicar ANTROPOLOGIA CULTURAL 29 modos de conduta, temperamentos e personalidades individuais à luz de características supostamente derivadas da transmissão genética. Nesta direção, são comuns frases do tipo “Meu filho tem este temperamento difícil, pois, herdou a teimosia do avô” ou “Por mais que se tente mudar, fulano continua agindo com a mesma agressividade herdada do pai”. De um modo ou de outro, em todos estes exemplos, o comportamento humano, apesar de sua enorme variedade de formas, parece estar sempre condicionado e determinado, seja por fatores internos a ele impostos por sua própria natureza genética – o chamado determinismo biológico – seja por fatores externos derivados da sua relação com o meio ambiente – o chamado determinismo geográfico. Quando inserida dentro deste contexto, a resposta a nossa questão inicial parece reforçar a perspectiva que tende a conceber a cultura como um produto derivado de aptidões inatas transmitidas ao homem por mecanismos geneticamente herdados, ou então, e correlativamente, como um produto decorrente das respostas dadas pelo homem aos vários desafios colocados pelas intempéries da natureza (vendavais, tempestades, terremotos, secas, glaciações, maremotos, vulcões, etc) à sua sobrevivência. Decorre desta perspectiva uma “visão instrumentalista ou utilitarista da cultura” (Da Matta, 1987:41) segundo a qual o homem teria sido feito aos poucos a partir de uma série de “estratos” que foram se sobrepondo um ao outro, até que finalmente, ele atingisse sua forma definitiva. Assim, num primeiro momento, há o predomínio do plano físico e biológico, onde o homem embora sendo parte da natureza, com ela precisa solitariamente lutar para garantir a sua sobrevivência em um ambiente hostil e ameaçador. Em seguida, há o predomínio do plano social e cultural, no qual o homem enquanto espécie viva aparece como um ser gregário que, dotado de uma inteligência superior em relação aos demais animais consegue, através do exercício de suas capacidades mentais biologicamente herdadas, aprender pela experiência a dominar a natureza se adaptando assim, ao conjunto de desafios que lhe são por ela impostos no meio em que vive. O problema de explicar a diversidade do comportamento humano a partir deste tipo de visão fortemente ancorada em um viéis determinista é que quase sempre ela desemboca em uma espécie de reducionismo naturalista que tende a conceber o homem como um ser meramente instrumental que se fez em oposição à natureza, tendo como único e exclusivo propósito a intenção de dominá-la através do desenvolvimento de recursos tecnológicos, que se supõe conduzi-lo a evolução e ao progresso. Calcado neste tipo de perspectiva, nosso olhar fica obscurecido e deixa de enxergar a diferença como um dado que constitui, inexoravelmente, o humano. Trabalha-se com universalidades e generalidades que, uma vez, focalizando exclusivamente o homem em detrimento das sociedades e das culturas, nos impedem de perceber as particularidades sob as quais se fundam as relações humanas e o caráter singular que define as maneiras pelas quais elas se inscrevem no mundo social em sua totalidade. UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO 30 Assim, desconsidera-se o aspecto dialético que constitui e envolve a dinamicidade destas relações, o que nos possibilitaria perceber como o homem atuando sobre a natureza, transformou também a si mesmo, criando formas diversas de organização social, reelaborando seus esquemas cognitivos e emocionais e resignificando com novos sentidos sua experiência vivida ao se colocar no mundo. Apesar de todos estes equívocos é importante ressaltar que, durante um longo período da história das sociedades humanas, as teorias de cunho deterministas se firmaram como fonte legítima de explicação para a diversidade das formas de comportamento e modos de conduta adotados pelo homem na vida social. Isto conduziu não apenas a atitudes marcadas pela intolerância e pela intransigência no convívio com a diferença, como serviu também, como um instrumento político de dominação cultural de uma sociedade em face de outra. Além disto, por meio delas, as teorias racistas ganharam um forte impulso e por muito tempo, contribuíram para justificar a dominação colonial e legitimar a crença na supremacia de uma raça e/ou cultura tida como superior sobre outra considerada como inferior. Em alguns momentos da história, esta justificativa foi inclusive respaldada pelo próprio campo intelectual como bem ilustra, a teoria desenvolvida pelo criminalista italiano, Cesare Lombroso (1853-1909), ao propor uma correlação de sentido entre a tendência para comportamentos criminosos e desviantes e a aparência física dos indivíduos. Nesta mesma linha de raciocínio, tanto a escravização negra, como a pacificação indígena, quanto o extermínio judeu pelo nazismo, dentre tantos outros fatos da história,constituem exemplos, que nos servem como balizadores deste uso político das teorias deterministas e apontam para as conseqüências trágicas geradas sobre a vida social em decorrência da sua plena propagação e aceitação como fonte de explicação para o problema da diversidade cultural. A partir do século XIX as teorias deterministas e todo o tipo de racismo dela decorrente começaram a ser alvo de uma série de críticas que lhe foram dirigidas pelas então recém estabelecidas Ciências Sociais. Estas críticas entraram na pauta de discussão das várias disciplinas inseridas no âmbito destas ciências, e conduziram a uma nova forma de se conceber a cultura contribuindo para que a mesma efetivamente se legitimasse do ponto de vista teórico como um campo de investigação especialmente tratado pela Antropologia. Relatos etnográficos produzidos pela Antropologia a partir deste período a respeito dos diferentes povos do mundo nos dão conta da inconsistência destas teorias para a explicação do comportamento humano quando se leva em consideração, a dualidade que mencionamos anteriormente entre a unidade biológica da espécie humana e a diversidade cultural. Desta forma, diferentemente de uma perspectiva ancorada no predomínio das teorias deterministas, a posição da moderna Antropologia tem se estruturado em outras bases de reflexão. O seu esforço tem sido no Dialética: Arte do diálogo, da discussão e da argumentação. Refere-se também ao desenvolv imento de processos gerados por oposições que provisor iamente se resolvem em unidades. ANTROPOLOGIA CULTURAL 31 sentido de mostrar que diferenças mesológicas ou somatológicas não explicam por si só a diversidade do comportamento humano. Se assim o fosse, não poderíamos explicar, por exemplo, como a divisão social do trabalho pôde se diferenciar tanto de uma sociedade para outra, como também, no interior de uma mesma sociedade a depender da época histórica considerada. Neste ponto, o que se observa é que o disformismo sexual que caracteriza fisiologicamente a espécie humana, não foi capaz de, por si mesmo, estabelecer critérios rígidos e homogêneos para a divisão das tarefas a serem desempenhadas por homens e mulheres na vida social. Muito pelo contrário, a despeito das diferenças de gênero, o homem distribuiu de forma extremamente heterogênea o conjunto destas tarefas como nos indica, por exemplo, a atual incorporação e participação das mulheres nas forças armadas, nas organizações policiais, no setor de transportes urbanos, na construção civil, dentre tantos outros. É sempre bom lembrar que, em todos estes campos profissionais, a execução das atividades laborais sob o argumento da “natureza pesada” e da “necessidade do uso da força física” constituiu até bem pouco tempo atrás, um domínio da vida social vedado à mulher e restrito, exclusivamente, à atuação masculina. Ao que tudo indica, esta restrição se apoiou por um longo período, na aceitação da crença de que, em função de diferenças biológicas, o desempenho profissional da mulher se daria supostamente em um ritmo insatisfatório quando comparado àquele apresentado pelo homem. Esta situação vem sendo atualmente questionada por dados historiográficos indicando a fragilidade deste tipo de pressuposição. Neste contexto, a posição que a Antropologia advoga funda-se no sentido de mostrar que a cultura, longe de derivar de um conjunto de aptidões inatas transmitidas geneticamente ao homem, é na verdade, resultante de um longo processo de aprendizagem que o envolveu no decurso de sua socialização em um determinado grupo ou sociedade. Vejamos de forma mais detalhada os argumentos construídos, visando fornecer sustentabilidade a esta posição. Para tanto, é preciso que recapitulemos a definição de cultura estabelecida por Edward Tylor e que foi apresentada a você nas páginas anteriores. Através dela, a cultura foi pela primeira vez considerada como todo comportamento socialmente apreendido pelo homem englobando, portanto, tudo aquilo que independe de características inatas a ele transmitidas geneticamente por imposição da sua condição biológica. Como nos coloca o próprio autor: “Cultura ou civilização tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade”. (Tylor, 1871:1). Desta definição podemos observar duas conseqüências basilares para a compreensão do assunto a que estamos tratando. Em primeiro lugar, por Mesológicas: Diferenças que dizem respeito à relação entre os seres e o seu meio ambiente: ecologia. Somatológicas: Diferenças que dizem respeito ao corpo, organicamente falando, com exclusão do psiquismo. UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO 32 seu intermédio, o homem foi colocado dentro da ordem da natureza o que possibilitou que o mesmo fosse concebido como uma espécie viva envolvida no plano de seus condicionamentos fisiológicos e de suas determinações concretas e não mais como um produto da criação divina e sobrenatural. Em seguida, retirado desta ordem sobrenatural inicia-se um processo que propiciará cada vez mais o distanciamento entre o plano natural e o plano cultural. Animal dotado de uma condição biológica superior às demais espécies vivas, o homem pôde dispor de dois mecanismos fundamentais que contribuíram para aperfeiçoar e tornar mais eficiente a sua estrutura orgânica, quais sejam, o desenvolvimento da linguagem, e, mais especificamente, a comunicação oral e a capacidade de criar uma enorme variedade de objetos e instrumentos materiais que foram sistematicamente colocados em uso na sua relação com a natureza. Isto significa dizer que, se para sobreviver enquanto espécie viva o homem precisou lutar, como de fato lutou contra as forças da natureza, ele o fez de uma maneira que o distinguiu radicalmente dos demais seres vivos. Diferentemente de todas as espécies vivas, o homem constitui o único ser que se adaptou a condições ambientais e climáticas extremamente desfavoráveis à sua sobrevivência, sem que para isto precisasse passar por mudanças anatômicas altamente significativas em termos do seu aparato biológico. Ele nasceu sem asas, mas criou os meios para voar. Embora sem nadadeiras inventou os meios necessários para navegar. Construiu sua moradia e se protegeu dos vendavais, das tempestades e do calor. Da própria natureza retirou seu alimento vencendo a fome e a sede, como também, confeccionou sua vestimenta enfrentando o frio e a neve. Tudo isto sem alterar substancialmente sua estrutura física original. Desta forma, atuando sobre o plano de suas determinações biológicas geneticamente herdadas, o homem foi além e construiu o seu próprio processo evolutivo. Ele se adaptou ao meio ambiente e criou, ele mesmo, as condições necessárias a esta adaptação o que nos leva a admitir, como nos sugere Geertz (1973), que ao longo do processo evolutivo do organismo do homo sapiens houve uma espécie de “interpenetração histórica” entre suas aptidões inatas e as aquisições culturais, ou seja, “a mão e a ferramenta se co- determinam”. Além disto, uma vez dotado da capacidade de comunicação oral e de simbolização, o homem pôde se desprender da concretude e da materialidade do mundo e representar mentalmente a realidade objetiva fornecendo-lhe sentido e significação. Esta capacidade permitiu que ele criasse um conjunto de regras abstratas que o inseriu em um mundo artificial por ele mesmo construído. Como nos coloca Peter Berger: “O mundo humano é imperfeitamente programado pela sua própria constituição. É um mundo aberto. Ou seja, um mundo que deve sermodelado pela própria atividade do homem. Comparado com os outros mamíferos superiores, o homem está em um mundo que precede o seu aparecimento. Mas a diferença destes, este mundo não é simplesmente dado, pré-fabricado diretamente para ele. O homem precisa então, fazer um mundo para si”. (Berger, 1985:18). ANTROPOLOGIA CULTURAL 33 Esta incompletude e plasticidade que caracterizam a espécie humana de que nos fala Berger, nos permitem compreender como o homem pôde, extrapolar a dimensão “instintual” do seu organismo e à diferença das demais espécies vivas, romper a barreira da mera repetição dos seus atos. Ou seja, através do pensamento analítico ele pôde resignificar as ações e as atitudes dos seus antepassados, submetendo-se a um processo de aprendizagem que sendo coletivamente compartilhado com os seus semelhantes o tornou um animal social cada vez mais marcado e constituído pela cultura. É importante que você observe que o esforço da Antropologia em legitimar a tese que considera o homem como um animal eminentemente cultural, não significa postular em absoluto que aspectos e condicionamentos fisiológicos e/ou ambientais não exerçam influência sobre o comportamento humano. Trata-se apenas de mostrar como o homem pôde, a partir de uma mesma origem biológica, responder de formas absolutamente diversas a necessidades orgânicas e a limites existenciais comuns. Em outras palavras, o esforço da Antropologia tem se caracterizado pela tentativa de mostrar como que, embora compartilhando com as demais espécies vivas de um conjunto de necessidades básicas comuns derivadas da sua condição natural, o homem, à diferença destas, foi dotado de um mecanismo diferenciador básico: a cultura. Este mecanismo não está previamente determinado em suas veias ou no seu código genético. Ele é socialmente adquirido pelo homem através de um longo processo de aprendizagem que se efetiva na convivência com seus semelhantes. Desta forma pode-se afirmar que o homem diferentemente das outras espécies vivas, herdou biologicamente a capacidade de criar um mundo artificial – a cultura – que o permitiu responder e atender a suas necessidades básicas mediante um conjunto de regras abstratas e, portanto, externas ao seu corpo físico e biológico. Pela mediação da cultura podemos entender assim como o homem pôde criar hábitos extremamente diversos para atender às necessidades básicas comuns envolvidas com a sua sobrevivência tais como: a alimentação, o sono, a atividade sexual, etc. Ou seja, se o atendimento a estas necessidades é um dado inexorável a sua sobrevivência, as escolhas do tipo de alimento a ser consumido, por exemplo, assim como as formas de servi-lo à mesa, a adequação do tipo de refeição às diferentes situações sociais (casamento, churrasco, formatura, aniversário, etc), às diferentes faixas etárias, à condição econômica irão variar significativamente de grupo para grupo, de sociedade para sociedade. É do conjunto destas variações que podemos concluir que, se por um lado, a necessidade de se alimentar constitui um dado que é biologicamente herdado pelo homem em função da sua condição natural, tal como ocorre como os demais seres vivos, por outro lado, as formas pelas quais o homem irá suprir e atender a esta necessidade, não estão determinadas em suas veias, em seu código genético, tal como acontece com os outros seres vivos. Elas dependem e se alicerçam em regras abstratas simbolicamente construídas pelo homem na vida social. UNIDADE 1 - CULTURA: UM CONCEITO POLISSÊMICO E DINÂMICO 34 Diante de todas estas considerações podemos sintetizar, finalmente, os postulados básicos adotados pela Antropologia no esforço de explicar a diversidade do comportamento humano quando inserida no âmbito da cultura. Procure não desviar o foco da sua atenção e vamos a eles: 1. A cultura não deriva de aptidões inatas transmitidas ao homem pela herança genética. Ela constitui um atributo adquirido pelo homem através de um longo processo de aprendizagem a que foi submetido no decurso de sua socialização em um determinado grupo ou sociedade. 2. O homem compartilha com as demais espécies vivas de um conjunto de necessidades básicas biologicamente herdadas. No entanto, diferentemente destas espécies, ele respondeu a estas necessidades de forma radicalmente diversa em função mesmo da sua condição biológica, que o tornou capaz de simbolizar e abstrair a concretude do homem. Ou seja, através da palavra, o homem pôde representar mentalmente as coisas do mundo sem precisar para isso, tocá-las, manuseá-las ou manipulá-las. 3. Ao contrário dos demais seres vivos, o homem atuou sobre o seu próprio processo evolutivo na medida em que, pôde se adaptar a condições ambientais e naturais extremamente adversas criando, ele mesmo, os meios necessários a esta adaptação. 4. Diferentemente dos demais seres vivos, o homem mantém com o mundo uma dupla relação. Ele é parte da natureza enquanto espécie viva, mas ao mesmo tempo, pôde se construir de um modo que o permitiu ir além das condições naturais a ele impostas, seja no que diz respeito a sua própria estrutura interna e orgânica, seja no que tange às suas relações com o meio externo no qual se insere. Para a Antropologia se há, portanto, algo de particular nesta espécie única que é o homem, é a sua capacidade infinita de criar modos de vida absolutamente distintos a partir de uma mesma condição natural. Como nos colocam Gilberto Velho e Eduardo Viveiros de Castro: “(...) A cultura ergue-se como a instância humanizadora que dá estabilidade às reações comportamentais e funciona como o mecanismo adaptativo básico da espécie. Mas a humanização do homem se faz de várias maneiras. Literalmente a cultura faz e fez o homem. A variedade dos comportamentos culturais baseia-se em certos mecanismos biológicos. Mas o que distingue o humano é a elaboração particular sobre esta base natural”. (Velho e Viveiros de Castro, 1980:6) ANTROPOLOGIA CULTURAL 35 LEITURA COMPLEMENTAR: Aprofunde seus estudos lendo os seguintes textos: ELIAS, Norbert. Da sociogênese dos conceitos de “civilização” e “cultura”, In: O Processo Civilizador. Uma História dos Costumes. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2ª ed, v. 1, 1994, p.23-64. GEERTZ, Clifford. O impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem. In: A Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1989, p.45-66. VELHO, Gilberto e VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O Conceito de cultura e o estudo das sociedades complexas. Rio de Janeiro, Cadernos de Cultura USU (Universidade Santa Úrsula), ano 2, nº 2, 1980. É HORA DE SE AVALIAR! Lembre-se de realizar as atividades desta unidade de estudo, presentes no caderno de exercício! Elas irão ajudá-lo a fixar o conteúdo, além de proporcionar sua autonomia no processo de ensino-aprendizagem. Caso prefira, redija as respostas no caderno e depois as envie através do nosso ambiente virtual de aprendizagem (AVA). Interaja conosco! Nesta unidade você estudou o problema da variabilidade das culturas humanas no tempo e no espaço e suas correlações com o desenvolvimento da concepção antropológica. Na próxima unidade, estudaremos como a Antropologia sistematizou seus conceitos a partir de diferentes escolas teóricas visando explicar a dualidade existente entre a unidade biológica da espécie humana e a diversidade cultural. Bons estudos e até lá!
Compartilhar