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Prisma Jurídico ISSN: 1677-4760 prismajuridico@uninove.br Universidade Nove de Julho Brasil Baptista Pavan, Fernando O direito das minorias na democracia participativa Prisma Jurídico, núm. 2, 2003, pp. 195-205 Universidade Nove de Julho São Paulo, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=93420013 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto O DIREITO DAS MINORIAS NA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA Fernando Pavan Baptista Doutor em Filosofia do Direito e Mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da USP; Coordenador do Curso de Direito da UNINOVE Resumo Trata-se de uma anlise crtica da democracia representativa, estruturada essencialmente na falcia da regra da maioria, apresentando formas alternativas de superao deste modelo pseudodemocrtico, que garantam um grau de participao das minorias nas decises polticas. Unitermos: democracia; representatividade; minorias; opresso; participao. Abstract ItÕs a review analysis about representative democracy essentially structured in misconception of generally rules presenting alternative forms of surmount this democratic pseudo code in order to guarantee a certain degree of participation of minorities groups in politics decision. Uniterms: democracy; representativity; minorities; oppression; participation Em meados do sculo XIX, Lincoln declarou que a democracia o governo do povo, pelo povo e para o povo. No sculo seguinte, Churchill declarava que a democracia a pior forma de governo Ð exceto por todas as outras. PRISMA JURêDICO 195 No decorrer do sculo XX, a prtica da democracia foi aperfeioando vrios de seus elementos fundamentais, como o sufrgio universal, a possibilidade de oposio, a alternncia no poder, a organizao, controle e financiamento dos partidos, a liberdade de reunio e de expresso, a utilizao da mdia e das pesquisas, alm de outras instituies. Porm, a questo da representatividade, em que se apia toda a legitimao do poder, embora tambm tenha evoludo, no alcanou ainda um objetivo bsico do ideal democrtico: exprimir as aspiraes das minorias da sociedade. Esse um dos fatores da deteriorao da democracia. A chamada democracia representativa, cuja legitimidade est calcada na vontade da maioria, pode tornar-se, sob o prisma dos grupos sociais minoritrios, uma verdadeira tirania da maioria, capaz de ignor-los e at reprimi-los, sem violao da lei (o que a torna opresso legal). A vontade da maioria do povo pode estar to longe dos ideais de justia quanto a vontade de um ditador qualquer, ainda que, primeira vista, parea inconcebvel tal afirmao. No h como corresponder propores quantitativas com qualitativas, pois so propriedades distintas e independentes entre si. Portanto, o fato de a maioria estar com a razo (no sentido racional e pragmtico do termo) mera casualidade, nunca uma tendncia. Inmeros exemplos histricos retratam isso, no apenas em guerras e revolues, nas quais maiorias tomam decises que violam at direitos fundamentais das minorias, mas tambm no cotidiano poltico, em que grupos minoritrios so obrigados a assimilar sua vontade, na condio de detentores legtimos do poder. Como evitar esse disparate poltico? Afinal, a essncia da democracia moderna est principalmente na preservao da liberdade individual e no apenas na forma de governo liberal. Se um indivduo da sociedade injustamente oprimido por uma maioria governante, ento a democracia desvirtuada em sua condio primeira, ou seja: no somente garantir o governo da maioria, mas tambm assegurar a sobrevivncia, a liberdade e o bem-estar de todos os indivduos, quer estejam, ou no, representados nas diversas categorias de poder. preciso encontrar instrumentos que protejam as minorias e promovam uma convivncia saudvel entre as diversas faces sociais.1 196 Democracia direta e democracia indireta Assim como a Cidade-Estado foi desaparecendo do cenrio mundial desde a Antiguidade, a democracia direta tambm se tornou objeto de estudo terico, sem aplicao prtica. No Estado-Nao contemporneo, diante de sua dimenso e complexidade, torna-se realmente impossvel ressuscitar a democracia direta experimentada na polis grega de vinte e cinco sculos atrs. Hoje em dia, no se pode conceber que seja possvel convocar todos os cidados de uma nao para, em praa pblica e por voto direto, opinarem sobre todas as decises da vida pblica.2 Seria operacionalmente impossvel, mesmo com os recursos atuais da tecnologia e da informtica. A democracia, portanto, foi evoluindo atravs dos sculos para uma forma representativa, em que alguns poucos representam outros muitos na esfera decisional do poder. Segundo Bobbio (1997, p.44), Òa expresso democracia representativa significa genericamente que as deliberaes coletivas, isto , as deliberaes que dizem respeito coletividade inteira, so tomadas no diretamente por aqueles que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para esta finalidadeÓ. Portanto, o cidado se encontra na dimenso menos ostensiva do poder pblico, ou seja, seu poder de deciso se limita ao voto,3 quando PRISMA JURêDICO 197 1 Richard Wolheim assim analisa: “A sociedade pode saber o que deseja, expressá-lo inequivocamente mediante o procedimento eleitoral e, em seguida uma maioria assim estabelecida pode aplicar sua orientação política com completo desprezo pelos desejos, interesses ou direitos da minoria. Os temores da ‘tirania da maioria’ foram tema constante no século XIX, a grande era do pensamento democrático. No século XX, a grande era da prática democrática, esses temores em grande parte não se realizaram – embora, significativamente, nos lugares em que se realizaram, o tenham sido numa escala grandemente superior ao pior que se poderia supor. Pareceria que o problema aqui seja mais sociológico do que político, no sentido de que o condicionamento social provavelmente fosse um remédio mais eficaz do que um sistema de freios e contrapesos constitucionais” (In: CRESPIGNY; CRONIN, 1975, p. 103-104). 2 “Para que exista democracia direta no sentido próprio da palavra, isto é, no sentido em que direto quer dizer que o indivíduo participa ele mesmo nas deliberações que lhe dizem respeito, é preciso que entre os indivíduos deliberantes e a deliberação que lhes diz respeito não exista nenhum intermediário” (BOBBIO, 1997, p.51). Continua, nas páginas 52 e 53: “que a democracia direta não seja suficiente torna-se claro quando se considera que os institutos de democracia direta no sentido próprio da palavra são dois: a assembléia dos cidadãos deliberantes sem intermediários e o referendum. Nenhum sistema complexo como é o estado moderno pode funcionar apenas com um ou com outro, e nem mesmo com ambos conjuntamente”. 3 “Num grande Estado moderno, mesmo em se tratando de uma democracia, o cidadão comum tem pouquíssimo senso de poder político; não é ele quem decide quais devem ser os problemas numa eleição; estes por sua vez se referem a coisas distantes da sua vida cotidiana e estão quase inteiramente fora da sua experiência, e o seu voto é uma contribuição tão pequena para o total que lhe parece insignificante. Na antiga Cidade-Estado esses males eram muito menores, tais como o são hoje nos governos locais” (RUSSELL, 1979, p. 173). lhe permitido escolher um representante que, se eleito por maioria de votos, tomar, em princpio, decises polticas em consonncia com sua vontade, que passam a obrigar todos os demais cidados, mesmo aqueles com opinies divergentes e que no escolheram o representante eleito.Esse mecanismo indireto, adaptado da democracia antiga para as modernas, conhecido como Ôregra da maioriaÕ. Importante observar que o poder pblico fica, indiretamente, nas mos de uma maioria de cidados, que escolheram seus representantes para decidir segundo seus interesses. Ocorre que, no sistema representativo, uma vez eleito, o representante se desvincula totalmente de seus eleitores/representados e passa a ter autonomia para decidir segundo a prpria conscincia, sem qualquer compromisso formal com sua base eleitoral. A espcie de procurao que lhe outorgada pelos cidados lhe garante liberdade decisria at o fim do mandato. Assim, a prpria maioria no v concretizadas todas as suas aspiraes com a atuao delegada a seus representantes.4 Agravante o fato de que no existe uma vontade nica e homognea da maioria, tal qual a expresso Ôvontade do povoÕ, usada indiscriminadamente por polticos e analistas, possa sugerir. A vontade do povo significa uma coleo de vontades individuais que se aglutinam em um mesmo discurso poltico, de contedo contraditrio e sem referncia na realidade, mas com fora persuasiva sobre as massas. O que no dizer, ento, das aspiraes das minorias na democracia representativa? Tirania da maioria A idia de que a razo est sempre com a maioria fundamenta- se em um pressuposto filosfico transcendental, ao aceitar como 198 4 Bobbio esclarece: “as democracias representativas que conhecemos são democracias nas quais por representante entende-se uma pessoa que tem duas características bem estabelecidas: a) na medida em que goza da confiança do corpo eleitoral, uma vez eleito não é mais responsável perante os próprios eleitores e seu mandato, portanto, não é revogável; b) não é responsável diretamente perante os seus eleitores exatamente porque convocado a tutelar os interesses gerais da sociedade civil e não os interesses particulares desta ou daquela categoria” (BOBBIO, 1997, p. 47). dogma a existncia de uma conscincia coletiva que se identifica com o Bem e a Justia. Por mais que se racionalize essa posio, no h como evitar o elemento metafsico que, em outros tempos, tambm anunciava que o monarca tinha sabedoria e poderes divinos, no passveis de contestao por seus sditos. A opinio da maioria, em todos os nveis de deciso, e no somente na esfera pblica, pode ser prudente ou imprudente, justa ou injusta,5 de acordo com juzos de valor subjetivos. Estatsticas histricas e argumentos lgicos no podem dar um fundamento de verdade suposta infalibilidade moral da maioria. Se na democracia representativa, o poder delegado pela maioria obriga a todos, inclusive as minorias excludas do polo decisional, ento a vontade da maioria prevalece sobre a das minorias, independentemente de ser justa ou injusta, boa ou m. Pode-se ir mais a fundo: se o desejo da maioria for exterminar uma minoria qualquer da comunidade social, ter poderes legtimos para executar essa ao, sem violar a lei positiva, porque a prpria maioria, na democracia indireta, por meio de seus representantes eleitos, que elabora e altera essas leis e a prpria Constituio.6 Na prtica, no entanto, raro (mas no impossvel) ocorrerem tais radicalismos,7 mas, como j foi dito, se observarmos em um nvel mais sutil, no qual o disparate no seja to flagrante, no h dvida de que as minorias so ÔdemocraticamenteÕ desprezadas nas decises que envolvem interesses em confito e, se simplesmente no existissem, isso no faria diferena alguma, pois seu papel poltico se resume em legitimar o poder exercido pelos Ôrepresentantes do PRISMA JURêDICO 199 5 É claro que o próprio conceito de Justiça, como entidade, também é metafísico, mas podemos falar de justiça pragmática, isto é, um conceito mutante e evolutivo através dos tempos e que se aproxima do senso comum (o que não deixa de ser uma espécie de consciência transcendental). 6 Fatos como o extermínio dos judeus pelo regime nazista podem ser concebidos também na democracia representativa, desde que amparados por leis elaboradas pela maioria. Estudos recentes demonstram que a maioria do povo alemão na época apoiava a guerra e a perseguição contra os judeus. 7 Bertrand Russell (1979, p.172) exemplifica: “É possível, numa democracia, que a maioria exerça uma tirania brutal e inteiramente desnecessária sobre uma minoria. Entre 1885 e 1922, o governo do Reino Unido era democrático (exceto quanto à exclusão do voto feminino), mas isso não impediu a opressão da Irlanda. Não só uma minoria nacional, mas também uma minoria religiosa ou política pode ser perseguida. A salvaguarda das minorias, na medida em que compatível com o governo organizado, é parte essencial da domesticação do poder”. povoÕ (o povo significando aqui sinnimo de maioria da populao, como se as minorias no fizessem parte dele). Podemos concluir, ento, que a democracia representativa assemelha-se, na sua essncia, a uma Ôditadura da maioriaÕ?8 Princípios da democracia A trilogia libert, galit, fraternit, propagada na Revoluo Francesa, mantm-se atual e abriga todos os demais elementos da democracia. O liberalismo , por muitos, at confundido com a prpria democracia, apesar de uma anlise menos apaixonada demonstrar que as liberdades pblicas so, sim, as principais garantias para exercitar uma democracia, em que os direitos individuais se sobrepem aos do Estado, portanto, condio sine qua non para o regime democrtico9 Ð necessria, porm no suficiente. O liberalismo, nesse ponto, especificamente poltico e assegura as liberdades fundamentais consagradas pela Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado.10 Para Bobbio (1997, p. 20): estado liberal e estado democrtico so interdependentes em dois modos: na direo que vai do liberalismo democracia, no sentido de que so necessrias certas liberdades para o exerccio correto do poder democrtico, e na direo oposta que vai da democracia ao liberalismo, no sentido de que necessrio o poder democrtico para garantir a existncia e a persistncia das liberdades fundamentais. 200 8 Alain Touraine (1996, p. 119) cita esta reflexão de Tocqueville: “como impedir que, após a destruição das hierarquias tradicionais, a tirania da maioria venha a criar uma ordem social em contradição com a razão?” Tocqueville teria concluído: “A própria maioria não é onipotente. Acima dela, no mundo moral, encontram-se a humanidade, a justiça e a razão; no mundo político, os direitos adquiridos”. 9 Sartori (1994, p. 64) explica que a liberdade política é, tipicamente, liberdade em relação a, não liberdade para. Conclui: “Hoje em dia costumamos chamá-la de liberdade negativa”. Na página seguinte, continua: “O que esperamos da liberdade política é proteção contra um poder arbitrário e ilimitado (absoluto)”. 10 José Eduardo Faria (1989, p. 24) afirma que o princípio da legalidade é o elemento básico do Estado liberal, mas alerta: “Graças a ele, a liberdade formal tem um caráter negativo e defensivo, na medida em que é transformada pelo Estado de Direito em certeza jurídica e garantia individual – dois instrumentos retóricos cuja finalidade prática é garantir as condições de reprodução do padrão de dominação vigente e, ao mesmo tempo, ocultar esse papel mediante a pretensa autonomia e exterioridade do direito”. Por outro lado, podemos identificar democracias nas quais a igualdade est em segundo plano, mas trata-se de um erro de concepo.11 A igualdade envolve, obviamente, o fator econmico e social e no apenas o poltico, como a liberdade citada.12 As naes contemporneas so compostas de uma enorme diversidade de camadas sociais, econmicas, raciais, religiosas e outras tantas. No se pode conceber o direito de liberdade sem que haja um mnimo de condies bsicas que atenuem as desigualdades presentes, sejam elas naturais ou socioeconmicas,pois, para poder exercer plenamente o direito de voto, garantido pelo liberalismo, necessrio, antes, que o cidado seja provido pelo Estado de certas condies: 1. meios de sobrevivncia digna (incluindo todas as necessidades bsicas do ser humano, tais como alimentao, sade, abrigo e transporte); 2. educao e cultura; e 3. acesso s informaes e meios de comunicao. Portanto, o Estado-Providncia ainda se faz necessrio para compensar as desigualdades sociais e propiciar um nvel de igualdade compatvel com o regime democrtico, na falta do que as massas ficam vulnerveis condio de objeto de manipulao, e a democracia torna-se um conceito vazio. O conceito de democracia deve evoluir da noo singela de regime poltico para a noo mais abrangente de um Estado social liberal. Tratar desigualmente os desiguais indica um caminho para o ideal igualitrio.13 A fraternidade, por sua vez, representa, alm do fator humanista, o respeito pelo prximo, o que, na teoria da democracia, traduz-se como o princpio da tolerncia e da abertura. aqui que se pode antever Ôa luz do fim do tnelÕ para as faces minoritrias da sociedade. Na medida em que a maioria aceita a existncia das minorias, diverge, mas respeita suas vontades e propicia uma abertura poltica para elas se manifestarem e participarem do poder PRISMA JURêDICO 201 11 Para Sartori (op. cit., p. 112), a igualdade é um ideal moral. 12 Sartori (op. cit., p. 117) analisa a progressão histórica do conceito de igualdade em quatro classes: a) igualdade jurídico-política; b) igualdade social; c) igualdade de oportunidade; d) igualdade econômica. 13 Para Bobbio (op. cit., p. 112), “a passagem do estado liberal para o estado social é assinalada pela passagem de um direito com função predominantemente protetora- repressiva para um direito cada vez sempre mais promocional”. Conclui a seguir: “para que uma sociedade qualquer permaneça reunida é preciso que se introduza também algum critério de justiça distributiva”. decisional. Essas minorias saem do ostracismo e passam a influenciar os rumos da nao e a ter defendidos seus interesses. Touraine (1996, p. 191) considera apropriadamente que a definio da democracia passa pela compreenso do outro, pelo reconhecimento institucional da maior diversidade e da maior criatividade possvel, demonstrando como unidade e diversidade so interdependentes. Na democracia indireta representativa, dos trs princpios democrticos citados, apenas o da liberdade permanece sempre evidente, o que torna esse regime imperfeito e distante do ideal democrtico. Democracia participativa As democracias representativas, seguindo a tendncia humanista deste sculo, buscam adaptar-se s sociedades pluralistas, aprendendo a conviver com os contrrios e a admitir a inevitabilidade da dissenso,14 por meio do suporte da opinio pblica. No entanto, ainda que seja um avano, o respeito aos direitos das minorias no implica sua participao efetiva em todos os nveis do poder, ainda que de forma proporcional. Sistemas de freios e contrapesos constitucionais tm amenizado o problema, mas a soluo parece ser mais cultural do que poltica, porque se todas as decises, por princpio, so tomadas por maioria de votos, de nada adianta o voto das minorias, de nada adianta o direito de oposio, pois sero sempre votos vencidos. Sua oportunidade de triunfo somente se realizar quando acompanhar a vontade da maioria, ou das maiorias, j que nem sempre h uma maioria monoltica,15 abdicando de suas aspiraes para coligar-se, em troca de algumas reivindicaes.16 Qual a sada para esse 202 14 Robert Dahl (1997, p. 46) afirma que “em qualquer país, quanto maiores as oportunidades de expressar, organizar, e representar preferências políticas, maior a variedade de preferências e interesses passíveis de representação na política”. 15 O sistema político majoritário tende a ignorar as minorias, que no seu todo, freqüentemente, formam uma maioria. Dessa forma, os governantes são, na verdade, representantes de uma minoria da sociedade. 16 Diz Burdeau (1970, p. 109): “Incapaz de se congregar num consenso sólido, a opinião já não se manifesta senão pelo seu fraccionamento entre as tendências partidárias. Cada partido, valendo-se da sua força eleitoral, pode então perfeitamente reivindicar uma parcela do Poder. Mas este Poder é aferente a um programa que esbarra no programa dos outros partidos. Para superar o impasse, é indispensável recorrer ao Poder de Estado, por hipótese global”. impasse, uma vez que no possvel atender ao mesmo tempo a aspiraes divergentes? John Randolph Lucas (1975, p. 113) afirma que a participao a melhor garantia contra a tirania.17 A participao poltica no deve limitar-se a uma atuao passiva de controle sobre o poder, mas a uma ao ativa de ingerncia direta no poder. Quanto mais elementos da democracia direta forem incorporados democracia indireta, maiores sero os canais de participao disponveis para a manifestao de todas as camadas da comunidade. Surge, assim, uma democracia semidireta, ou participativa. Ento o plebiscito, o referendum, instrumentos jurdicos como a Ao Popular, a Ao Civil Pblica e o Mandado de Injuno, assim como o livre acesso tutela jurisdicional, propiciam uma participao direta do cidado e das minorias excludas na gerncia do poder pblico, se no na tomada de decises, pelo menos no seu controle. Por outro lado, no procedimento parlamentar democrtico existem vrias etapas decisrias que vo compondo o exerccio do poder, funcionando, ao mesmo tempo, como filtros dos excessos e absorventes dos anseios da sociedade, abrindo-se um canal para expresso das minorias excludas, e fechando-se, paralelamente, o canal para os abusos da maioria detentora do poder. Na esfera informal, encontramos tambm os grupos de interesse (ONGs), associaes de classe (sindicatos), lobbies e a mdia que, de forma indireta, suprem a falta de representatividade dos partidos, influenciando parlamentares e exercendo presso sobre a opinio pblica, como meio de manifestar suas aspiraes polticas, econmicas, sociais e outros interesses institucionais e difusos, o que constitui um canal eficiente de participao para as minorias.18 Assim, o fluxo do poder se torna cada vez mais ascendente, isto , vai de baixo para cima, e menos descendente (de cima para baixo). Como ltimo recurso, a participao minoritria se manifesta por vias violentas, por intermdio de grupos PRISMA JURêDICO 203 17 Na mesma obra, às páginas 131 e 134, Lucas considera que o voto constitui uma forma de participação mínima e tem um valor simbólico, embora com conseqüências práticas relevantes. 18 Robert Dahl (op. cit., p. 43) conclui que, “na medida em que um sistema torna-se mais competitivo ou mais inclusivo, os políticos buscam o apoio dos grupos que agora podem participar mais facilmente da vida política”. guerrilheiros ou associaes ilcitas, que atuam margem do Estado e das instituies democrticas. A participao institucional, por sua vez, pressupe custos para o Estado e para o cidado, tanto na sua operacionalidade quanto em sua fase anterior de conscientizao da comunidade.19 Essas condies materiais e psicolgicas no ocorrem por um simples decreto, mas necessitam de tempo e vontade poltica, portanto dependem da evoluo econmica e cultural da sociedade. Quando Robert Dahl (op.cit., p. 29) fala em poliarquia, admite a impossibilidade de atingir-se a democracia plena, idealizada,20 mas escalona as democracias possveis segundo um grau de aperfeioamento em Òpelo menos duas dimenses: contestao pblica e direito de participaoÓ.21 Ademais, deve haver uma contnua correspondncia entre a atuao dos governantes e as aspiraes dos governados. A utopia da democracia, portanto, est longe de ser alcanada quandose pensa o direito das minorias. A diminuio das desigualdades e a tolerncia da dissenso, neste caso, so to importantes quanto as garantias das liberdades fundamentais. O caminho passa pelo aperfeioamento das instituies democrticas e pela domesticao do poder. Da democratizao do Estado, deve-se passar democratizao da sociedade (1997, p. 55). No obstante, talvez seja pertinente parafrasearmos Churchill: a regra da maioria a pior das regras da democracia, exceto por todas as outras. 204 19 Vide John Randolph Lucas, op. cit., capítulo XI. 20 Bobbio (op. cit., p. 41) reafirma que Rousseau também estava convencido de que uma verdadeira democracia jamais existiu nem existirá, porque requer muitas condições difíceis de ser reunidas. Isto significa que até mesmo a antiga democracia grega não preenche todas as condições. 21 É ainda Dahl (op.cit., p. 28) que afirma: “Tanto histórica como contemporaneamente, os regimes variam também na proporção da população habilitada a participar, num plano mais ou menos igual, do controle e da contestação à conduta do governo. Uma escala refletindo a amplitude do direito de participação na contestação pública nos permitiria comparar diferentes regimes segundo sua inclusividade”. Referências BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia Ð uma defesa das regras do jogo. So Paulo: Paz e Terra, 1997. BURDEAU, Georges. O Estado. Buenos Aires: Publicaes Europa- Amrica , 1970. CRESPIGNY Anthony de; CRONIN Jeremy (Orgs.). Ideologias polticas. Braslia: EdUnB, 1975. DAHL, Robert. Poliarquia Ð participao e oposio. Edusp : So Paulo, 1997. FARIA, Jos Eduardo. Direito e justia Ð a funo social do judicirio. So Paulo: çtica, 1989. LUCAS, John Randolph. Democracia e participao. Braslia: EdUnB, 1975. SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada. So Paulo: çtica, 1994. RUSSELL, Bertand. O poder Ð uma nova anlise social. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. TOURAINE, Alain. O que a democracia? So Paulo: Vozes, 1996. PRISMA JURêDICO 205
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