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1 O Debate Sobre Federação e Centralização na Constituinte de 1823 Bruno Gabriel Witzel de Souza Ivo Coser 1. Definições de Federalismo e Centralização. O termo federalismo assumiu caracteres novos a partir da organização constitucional que se imprimiu nos EUA após seu processo de independência. Ali, pela primeira vez, estabeleceu-se uma forma de organização do poder do Estado que reunia poderes soberanos subordinados ao poder de uma União, diferentemente da simples ligação confederativa (embora à época a diferenciação entre os termos confederação e federação não existisse). A federação pode ser entendida como estados que dispõem de autonomia, mas que não são entidades soberanas, já que se subordinam a um poder central que tem a capacidade de chegar até o indivíduo componente de um daqueles estados. A noção de centralização, diferentemente da federação, sofreu pouca ou nenhuma alteração entre os séculos XIX e XX, estando associada a uma “[...] concentração de atribuições que confere maior unidade ao Estado”. 2. As Cortes Constituintes de Lisboa: o Reino do Brasil versus os povos do Brasil. Em 1798, em um projeto de modernização do império português, D. Rodrigo de Souza buscava implementar um caráter federativo às parcelas constituintes daquele império, afirmando em 1799 que “o sistema federativo é o mais análogo à situação física de Portugal no globo”. Isto implicaria, necessariamente, a elevação do status brasileiro, colocando-o no patamar de Província do Reino. A vinda da Corte para o Brasil alteraria significativamente a discussão, chegando-se a elevar o Brasil à categoria de Reino Unido pelas contingências conjunturais que se foram impondo a D. João. A situação da forma constituinte do Império voltaria à tona com as Cortes de Lisboa e seu objetivo de reaver a política colonial sobre o Brasil. De um lado, temos os portugueses defendendo claramente um Estado unitário, em que Portugal surge como centro ao qual se deveriam subordinar as demais partes constituintes do Império. A justificativa para a centralização seria a de que o império não era formado por povos autônomos, mas por portugueses que se encontravam espalhados ao redor do globo. De outro, temos duas perspectivas brasileiras: a dos paulistas (e cariocas) e a dos baianos (e pernambucanos). Os paulistas defendiam que o Reino do Brasil e o Reino de Portugal possuíam características próprias que deveriam ser respeitadas, e que isto seria possível apenas em um sistema federativo; a forma organizacional basear-se-ia unidades federativas subordinadas ao poder do centro político do Rio de Janeiro, o qual se encontraria federativamente ligado à Portugal. A vertente baiana afirmava a inexistência de um reino propriamente do Brasil, já que cada uma das províncias possuía interesses autônomos e não desejavam subordinar-se ao controle do Rio de Janeiro; assim, objetivavam alcançar a autonomia para as províncias que formavam o Império Português na América. 3. Federalismo versus Centralismo na Constituinte de 1823. A questão da forma que o Estado brasileiro deveria assumir tomou matizes ainda mais fortes e urgentes quando da Independência. Surgia como premente definir-se as bases organizacionais do poder da nova nação. É neste contexto que as formas de organização federalista e centralista voltam à pauta na Assembléia Constituinte de 1823. O principal argumento dos centralistas era a de que, definida uma monarquia constitucional, tornava-se incompatível a adoção de uma forma federativa. Os federalistas contrapunham o argumento que distinguia entre a forma de governo e o arranjo institucional: Estados republicanos não necessariamente adotavam estruturas federativas enquanto Estados monárquicos assumiam necessariamente unidades centralizadas. Assim, não era uma necessidade do sistema monárquico ter uma base centralista, mas tal forma de organização política podia coadunar-se perfeitamente com a organização federativa dos poderes. Assim, o grande objetivo dos federalistas era manter conservados os interesses das províncias, as quais possuiriam o poder de mando em última instância, com capacidade, inclusive, para aceitar ou refutar uma Constituição promulgada por um poder central. É interessante notar nos debates da época que os federalistas estavam profundamente mergulhados nas idéias do jusnaturalismo: a província era encarada como um “indivíduo” natural, que aceitaria participar do pacto (ou seja, aceitaria a Constituição) apenas na medida em que esta garantisse seus interesses: as províncias, tais quais os indivíduos naturais na concepção jusnaturalista, “[...] abrem mão de sua soberania ilimitada, situação característica do estado de natureza, para ingressarem na sociedade política. Entretanto, concordam em renunciar a essa soberania ilimitada tendo em vista seus interesses individuais”. Para garantir que os interesses provinciais seriam respeitados no todo social, os federalistas buscavam tanto a criação de Assembléias Provinciais quanto a eleição local dos funcionários públicos. No primeiro caso, competia criar 1 assembléias que julgariam a compatibilidade das leis promulgadas centralmente, as quais deveriam ser adaptadas às realidades locais por magistrados que tivessem intimidade com tais localidades. No segundo caso, afirmava-se que apenas os habitantes de determinada região estavam efetivamente interessados em defender os interesses daquela localidade, estando, inclusive, mais apto a fazê-lo: “para os federalistas, o bom desempenho do funcionário não provém do seu treinamento, nem do seu vinculo para o poder central, mas da sua ligação com a localidade”. Tratemos agora dos centralistas. Esta abordagem afirmava a impossibilidade de adoção do sistema federalista porque este fora experimentado na América apenas nos EUA, que se encontravam, quando de sua independência, em condições muito diversas daquelas que vigiam no Brasil. Aqui, a permanência de D. Pedro e sua participação no processo de Independência haviam fornecido às diversas parcelas constituintes do Império Português na América um centro comum que não poderia ser desprezado em prol de uma forma federalista. Um de seus argumentos mais fortes era o de que a introdução do federalismo não poderia causar senão a quebra da unidade nacional, o que ficava muito evidente na prática quando se invocava o exemplo da América espanhola. Além disso, para os centralistas, os interesses particulares de cada uma das províncias não eram capazes de gerar um interesse comum, mas possuíam um caráter inegavelmente sectário: desta livre manifestação de interesses, apenas aqueles defendidos pelas províncias mais fortes surtiriam efeito, a expensas das demais. Por fim, salientavam que em momentos politicamente efervescentes como aqueles, não era raro surgirem nas diversas localidades personalidades que desejavam apenas o poder e não hesitariam em estabelecer governos despóticos nas províncias, emergindo “[...] chefes políticos clânicos que se utilizavam dos cargos públicos para serem déspotas locais”. O autor concluirá afirmando que tanto os federalistas quanto os centralistas reconheciam uma perfeita compatibilidade entre monarquia e federação, separando com clareza a forma de organização política da forma pela qual o poder era distribuído. Ao final, a outorga da Constituição por D. Pedro colocaria em primeiro plano os objetivos centralistas, mas os debates entre federalistas e centralistas ainda prosseguiria adiante durante boa parte da primeira metade do século XIX.