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Richard Theisen Simanke METAPSICOLOGIA LACANIANA Os anos de formação facebook.com/lacanempdf .... ~ ......... ~j~l~ UFPR90anos Reitor Carlos Augusto Moreira Júnior Vice-reitor Aldair Tarcísio Rizzi ~ UFPR Diretor da Editora da UFPR Luís Gonçales Bueno de Camargo Conselho Editorial Alberto Pio Fiori, André de Macedo Duarte, Fany Reicher, Izaura Hiroko Kuwabara, José Carlos Cifuentes Vasguez, Leilah Santiago Bufrem, Manoel Eduardo A. Camargo e Gomes, Maria Benigna Martinelli de Oliveira, Pedro Ronzelli Júnior, Sérgio Hcrrero de Moraes, Víctor Manoel Pelaez Alvarez discurso editorial Presidente Caetano Ernesto Plastino Vice-Presidente Milton Meira do Nascimento RICHARD THEISEN SIMANKE METAPSICOLOGIA LACANIANA Os anos de formação hl ~ UFPR discurso editorial Copyrig/11 © Discurso Editorial, 2002 Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, arm11zenada em sistemas eletrônicos, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem a autorização prévia da editora. Projl!to l!ditorial: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP Direção l!dítorial: Caetano Ernesto Plastino Coordenação: Floriano Jonas Cesar Projl!IO gráfico e editoração: Logaria Brasil Capa: Camila Mesquita Rl!visão: Maria José Constantino Petri Tiragem: 1.000 exemplares Ficha catalográfica: Sonia Marisa Luche11i CRB/8-4664 S588 Simanke, Richard ~ UFPR Ct:ntro Politécnico -Jardim das Améri<:as S 1531,990 - Curitiba - PR Caixa Postal: 19.029 Tclefux: (41) 361-3380/267-5973 E-m..iil; editora@cce.ufpr.br Metapsicologia lacaniana: os anos de formação I Richard Theiscn Simankc - São Paulo: Discurso Editorial; Curitiba: Editora UFPR, 2002. 537 p. ISBN 8S-86590-3S-S !. Psicologia 2. Metapsicologia 3. Jacques Lacan (1901-1981) I. Título discurso editorial Av. Prof. Luciano Gualbeno, 315 (sala 1.033) 05508-900 - Silo Paulo - SP T•lefone: (11) 3814-S383 T•l•fax: e 11) 3034-2733 E-mail: discur50@or8.U:oi(l.hr Honu:pag.:: www.discurso.t.:mn.br CDD 150 150.19S lfJAPESP Rua Pio XI, ISOO OS446S-901 - São P•ulo - SP Telefone: ( 11) 3838-4000 T•lcfax: (11) 3645-2421 E-m:ail: info®triestc.fur,t:~p.br Homepugij: www.fupe.s.p.br Para Sofia AGRADECIMENTOS Quero expressar o meu reconhecimento, antes de tudo, ao Prof. Paulo Eduardo Arantes, pela orientação paciente e atenta da tese de doutoramento da qual resultou este trabalho; aos professores Franklin Leopoldo e Silva, Carlos Alberto Ribeiro de Moura, Oswaldo Giacóia e Luiz Roberto Monzani pela leitura cuidadosa, pelas valiosas suges- tões e correções e pela atenção dispensad~ quando da defesa da mes- ma no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da USP. À CAPES, que financiou o projeto original, assim como à Universidade Federal de São Carlos, que ofereceu as condições para a sua continuação, após o início de minhas atividades docentes naquele estabelecimento. Gos- taria de mencionar, em conjunto, meus colegas, professores e fun- cionários, do Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências da UFSCar, pelo suporte concedido no mesmo período. Estendo esse reconhecimento a todas as pessoas que contribuí- ram com uma sugestão ou uma crítica para consolidação desse traba~ lho e àquelas que, afetivamente, sustentaram sua realização. Finalmen- te, agradeço a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo auxílio concedido para esta publicação, com especial referência a sua Assessoria Científica, a cuja generosa avaliação real- mente espero que este trabalho esteja à altura. SUMJ\_RIO INTRODUÇÃO: DO CONHECIMENTO PARANÓICO AO "RETORNO A FREUD" 1. DILEMAS DA PSIQUIATRIA 1, 1, UMA MEDICINA AQU~M DO SUJEITO 1.2. ALTERNATIVAS PARA A PSIQUIATRIA 1.3. O PSIQUIATRA E SUA DOENÇA II, A PARANÓIA COMO FENÔMENO DE CONHECIMENTO 11.1. A'PARANÓIA E A PERSONALIDADE 11.2. CONSTITUIÇÃO, REAÇÃO, INTERPRETAÇÃO 11,3, PSICOGtNESE E QUESTÕES DE M~TODO: O CASO AIM~E 11.4, UM ANTEPROJETO DE PSICOLOGIA CIENTfFICA 11.5. INGREDIENTES PSICANALfTICOS Ili. O CONHECIMENTO COMO FENÔMENO PA~NÔICO 111,l. ABSTRAÇÕES DA PSICOLOGIA 111.2. DIRETRIZES POLITZERIANAS 111,3, UM MODELO RELATIVISTA PARA A PSICOLOGIA 111.4. AS NECESSIDADES DA CLfNlCA 111.5, CLINICA E EPISTEMOLOGIA IV. IMAGENS E COMPLEXOS IV.!. A FAMfLIA E SEUS COMPLEXOS IV,2, DUAS FILOSOFIAS DO IMAGINÁRIO JV,3, UMA ANTROPOLOGIA DO IMAGINÁRIO V. ÁNTROPOLOGIAS LACANIANAS V,l. SELVAGENS, LOUCOS E CIVILIZADOS V,2. FATOS SOCIAIS, FATOS TOTAIS V.3. SUJEITO! DESEJO E NEGATIVIDADE V,4, RESUMINDO: LACAN E A ANTROPOLOGIA VI. UM INCONSCIENTE PARA O SUJEITO VI.!. O INCONSCIENTE DAS ESTRUTURAS Vl.2. A NEUROSE COMO MITO INDIVIDUAL Vl,3. UMA METAPSICOLOGIA LACANIANA CONCLUSÃO BIBLIOGRAFIA 11 17 20 32 39 59 60 72 84 102 134 151 153 163 186 212 240 245 247 283 309 341 344 359 398 427 431 432 468 493 525 529 ABREVIATURAS AP: Lacan, J. 'Tagressivité en psychanalyse". CFP: Politzer, G. Critique des fondements de la psychologi,e. CP: Lacan, J. "Propos sur la causalicé psychique". IMM: Lévi-Strauss, C. "Introduction à l'oeuvre de Marcel Mauss". LF: Lacan, J. "La famille". LH: Kojeve, A. lntroduction à la lecture de Hegel. MIN: Lacan, J. "Le mythe individuei du nevrosé". PC: Lacan, J. "Imroduccion théorique aux fonctions de la psychanalyse en criminologie". PP: Lacan, J. De la psychose paranoi'aque dans ses rapports avec la perso- nalité (citada no texto simplesmente como Tese, com maiúscula). PR: Lacan, J. ''.Au-delà du 'Principe de réalité"'. SIR: Lacan, J. Le symbolique, l'imagi,naire et le réel. SM: Lacan, J. "Le stade du miro ir comme formaceur de la fonction duJe". INTRODUÇÃO DO CONHECIMENTO PARANÓICO AO "RETORNO A FREUD" A obra polêmica de Jacques Lacan costuma despertar, com mui- ta freqüência, dois tipos de atitudes opostas: ou a adoração devota do discípulo, que adere à doutrina antes de compreendê-la (ou que re- nuncia à compreensão para melhor adorá,la), ou uma crítica feroz, que rejeita em bloco a produção do autor, em· nome de algum pecado im- perdoável, conceituai ou de caráter1. Ambas as atitudes são francamen- te passionais e nenhuma delas, portanto, se presta a uma apreensão objetiva da teoria. É verdade que a produção lacaniana apresenta uma série de idiossincrasias, decorrentes, em parte, do seu caráter prepon- derantemente oral, pelo menos na origem, o que a deixa exposta às contingências da retórica, mas também de um estilo peculiar cuja obs- curidade tendeu a se agravar com o tempo. Uma abordagem de seu pensamento que se queira ponderada tem, assim, que encontrar ins·-· trumemos para colocar em perspectiva as idiossincrasias do autor, que 1 Um bom exemplo dessa ferocidade crítica que Lacan costuma despertar é o artigo de Cornelius Castoriadis, "A psicanálise, projeto e elucidação", onde se lê, a certa alcura: "Uma coisa é certa: Lacan é um malfeitor. No decorrer da última década, ele se tornou, além disso - mais grave ainda, diria um esteta - enfadonho" {p. 78). A literatura devota, além de se manifestar em certos trabalhos pretensamente teó- ricos, expressa-se cm alguns relatos biográficos francamente apologéticos. 12 RICHARD THE!SEN S!MANKE permitam fazer ressaltar as questões centrais e as linhas de força do projeto teórico que Lacan protagoniza ao longo de sua trajetória. O principal desses instrumentos é a recuperação da perspectiva histórica, freqüentemente escamoteada pelo próprio Lacan2, que pode elucidar a gênese dos problemas com os quais a sua investigação vai-se ocupar, permitindo distinguir a que fim se subordinam os conceitos forjados ao longo do percurso da teoria, assim como o que motiva as eventuais reformulações que estes venham a sofrer. Dessa forma, pode tornar-se possível, na consideração dos estágios mais avançados do tra- balho lacaniano, penetrar através das sucessivas camadas de expedien- tes retóricos que se acumulam sobre os conceitos e, nos casos mais fe- lizes, dispor de um padrão de medida para discriminar entre aquilo que não passa de uma frase de efeito ou de ocasião - cuja presença num ensino fundamentalmente oral não tem nada de muito grave, afinal; o problema é a sacralização indiscriminada da palavra domes- tre, que coloca tudo em pé de igualdade - e aqueles desenvolvimentos que dizem respeito, mais de perto, às questões efetivas que se colocam em cada momento. Foi essa diretriz que se procurou seguir no presente trabalho, que se ocupa do período inicial do percurso de Lacan, justamente a fim de aí identificar a constituição de uma problemática que, por mais que seja reelaborada posteriormente, conserva um alto grau de fideli- dade à sua formulação original, se descontados, é claro, os diferentes modos de expressão invocados pelo autor ao longo do tempo. A cons- tatação desta continuidade entre momentos à primeira vista tão dis- tintos do itinerário intelectual de Lacan - sua tese de doutorado em 2 Essa é a fantasia do "estado final do sistema", analisada por David Macey, que ten- de a dotar o ensino e a produção de Lacan de uma aura atemporal que nivela to- dos os desenvolvimentos de seus diversos períodos, a serviço de uma certa mistifi- cação da teoria. O autor comenta, por exemplo, a mania de muitos lacanianos de citarem somente ''Écrits, página tal", desconhecendo completamente que se trata de uma coletânea heterogênea que cobre um amplo período da produção do au- tor, e não um tratado definitivo da psicanálise lacaniana. Ver Macey, D. Lacan in contexts, principalmente o primeiro capítulo, "The final state", p. 1-25. INTRODUÇÃO 13 psiquiatria em 19323 e a proclamação do "retorno a Freud" em 1953, por exemplo - tornou possível, pelo menos em parte, deslindar um pouco a trama de referências convocadas para instrumentar sua pes- quisa, cuja heterogeneidade - além da irresponsabilidade que muitos detectam no emprego de noções extra-psicanalíticas - é uma das pe- culiaridades do estilo lacaniano que motiva uma boa parte das reações aversivas. É possível verificar que muitos personagens insistentemente citados cumprem um papel muito menos efetivo na composição do corpus lacaniano do que outros, mais discretos. Freqüentemente, cer- tos nomes pr6prios e o vocabulário que eles trazem consigo prestam- se tão somente a expressar, metaforicamente, noções emergentes de uma reflexão que parte de premissas diversas, em contextos muitas vezes longínquos. Aliás, uma hipótese que norteou, embora indiretamente, a lei- tura que se tentou aqui, é a de que, se há alguma consistência teórica por trás da multiformidade do pensamento de Lacan, ela só pode se sustentar no âmbito de uma concepção 17Jetafórica da teoria, que pode, então, justificar o uso bastante livre que o· autor faz das referências mais díspares. Essa concepção elabora-se paulatinamente no decorrer desse período inicial da obra, mas define seus contornos mais precisamente no Lacan dos anos 50 que em virtude do âmbito desse trabalho, não será aqui tratado4• O que se pretendeu aqui foi resgatar, na origem, as questões que serão trabalhadas dessa forma na fase mais típica da in- vestigação lacaniana, ao mesmo tempo em que se formulam as pre- missas que exigirão que se conceba deste modo a teoria adequada às necessidades da psicanálise. Se a teoria, assim concebida, não deve de~ generar, efetivamente, numa pseudo-literatura - de gosto, aliás, duvi- doso-, ela tem que se exercer sobre um conjunto de fatos muito pre- cisamente identificados, cuja natureza requeira esse tipo de tratamento te_órico. Esse conjunto de fatos é exatamente aquilo que se designa, 3 Doravante designada no texto apenas como é'Tese", com maiúscula. 4 Um primeiro desenvolvimento em torno dessa idéia pode ser encontrado em meu trabalho ''.A letra e o sentido do 'retorno a Freud' de Lacan: a teoria como metáfora". 14 RICHARD THEISEN S!MANKE tanto em psicanálise quanto em psiquiatria, como clínica, no sentido da prática a que essas disciplinas se propõem, assim como dos fenô- menos sobre os quais essa prática se aplica. O que se constata é que um compromisso com essa dimensão clínica - com uma certa con- cepção dessa dimensão, cujo sentido é preciso explicitar - é essencial para a saúde do empreendimento lacaniano. Sempre que a teoria per- der de vista essa dimensão, de fato, se arriscará a cair naquele estilo pseudo-literário que se mencionou acima. Uma concepção da teoria como um sistema de metdforas, acoplada a uma concepção dessa teoria como metdfora da clínica: esses os dois componentes de uma espécie de "metaceorià' lacaniana, que só será tematizada e, ainda assim, de forma dispersa, bem mais tarde, mas que se revelam, embrionaria- men te, nos temas abordados e nas opções teóricas efetuadas pelo pri- meiro Lacan, desde as origens estritamente médicas de sua investiga- ção. A compreensão das condições que presidem essa estréia - que passam, diga-se logo, muito longe da psicanálise freudiana - é o pri- meiro dos requisitos para uma apreensão adequada do processo de constituição de seus conceitos. Trata-se, aqui, por tudo isso, de um trabalho sobre Lacan, e não de um trabalho lacaniano, na medida em que o que se tentou fazer foi elucidar o sentido de um projeto e, de forma alguma, identificar-se com ele. Se o estilo de Lacan vai evoluir, cada vez mais, na direção de uma concepção da teoria como metáfora, não é menos verdade, con- tudo, que o primeiro movimento de seu pensamento está animado de uma sincera intenção científica. Trata-se do período que se estende das investigações iniciais sobre a paranóia até a primeira formulação ex- plícita da teoria dos "três registros", contemporânea ao lançamento do programa do "retorno a Freud", do qual talvez se possa dizer que de- sencadeia o processo de apropriação metafórica do texto freudiano. Esses três registros (o simbólico, o imaginário e o real) vão conformar as categorias fundamentais daquilo que se pode chamar a metapsico- logia !acaniana, claro que guardando a devida distância com o sentido que o termo tem em Freud. É verdade que já se manifesta aqui um uso bastante livre de uma série de referências teóricas um tanto sur- preendentes num psiquiatra - e, depois, psicanalista - em formação, INTRODUÇÃO 15 mas o projeto manifesto de Lacan é colocá-las a serviço de uma refle- xão epistemológica que ·-,isa propor uma cientificidade apropriada aos fenômenos psicológicos. Este trabalho antecipa, assim, algumas idiossincrasias que vão se tornar mais evidentes no período posterior, e dá o tom particular do tipo de teoria que defende, neste estágio, para a psicandlise. Se esta não é o ponto de partida, nem o foco imediato de suas preocupações, vai, contudo, rapidamente concentrar seus esfor- ços de dar uma formulação adequada ao campo da clínica das pertur- bações mentais. É sobre o terreno psicanalítico que Lacan vai trans- portar os problemas e orientações que lhe foram sugeridos - ou que se lhe impuseram- quer pela tradição com a qual debate, quer pelas par- ticularidades do objeto clínico com que se defronta: a paranóia e, num sentido mais amplo, a psicose. Os modelos assimilados por Lacan, neste primeiro período, con- vergem para o que se pode chamar de uma teoria do imagi,ndrio (cujo sentido antropológico será explicitado a seu tempo). É ela que aglutina e tenta dar coerência - assim como um horizonte e uma finalidade explicativa comum - às referências extra-psicanalíticas (e extra-psiquiá- tricas, ainda na Tese) que começam a multiplicar-se. Ao mesmo tem- po, a percepção dos limites dessa teoria, concomitante a uma renova- ção dos modelos antropológicos nos quais Lacan se inspira, dão margem à introdução do que ele denomina o registro do simbólico, em cujo contexto se proporá o retorno a Freud. O percurso dessa reconstituição do movimento inicial da obra lacaniana parte, assim, de uma recapitulação de certas questões relativas às ciências médicas como um todo (Capítulo I), a fim de nelas situar o passo teórico inicial de Lacan, em seu doutorado em psiquiatria (Capítulo II). A partir do programa que é aí formulado, passa-se para o debate epistêmico em torno da psicologia em que o autor se envolve nos anos que se seguem à Tese, onde a definição da paranóia como fenômeno de conhecimen- to lá proposta vai ser revertida numa concepção sobre a "estrutura pa- ranóica do conhecimento humano", cujo sentido dá o tom da episte- mologia lacaniana (Capítulo III). Essa reflexão epistemológica subsidia a proposição, então, de uma teoria do imaginário- centrada na noção de estágio do espelho - que se oferece como uma alternativa ao proje- 16 RICHARD THEISEN SIMANKE to de uma psicologia científica e concreta (Capítulo IV). O caráter antropológico dessa teoria - condição para o cumprimento das exi- gências de rigor científico requeridas para essa nova psicologia - dá ocasião para a recapitulação das relações de Lacan com diversos mo- delos antropológicos, que comparecem de uma forma ou de outra em seus trabalhos {Capítulo V), a qual conduz à figura decisiva de Lévi- Strauss, através do qual Lacan se introduz no estruturalismo, assimi- lando conceitos antropológicos - acima de todos, o de inconsciente - que vão-lhe permitir, finalmente, definir seu programa em termos es- tritamente freudianos {Capítulo VI), ainda que o retorno a Freud que propõe nesse momento tenha como preço uma reformulação em am- pla escala do sentido dos conceitos freudianos, na qual, justamente, as suas concepções sobre a natureza do saber psicanalítico vão-se fazer sentir mais nitidamente. I. DILEMAS DA PSIQUIATRIA Não se trata aqui de fazer uma história das influências que con- cretamente atuaram sobre o jovem Lacan (o que pode muito bem ser rastreado no material biográfico sobre o mesmo, que começa já ator- nar-se volumoso), mas de propor uma pergunta sobre que tipo de pro- blemas se apresentam a um investigador médico, com pretensões de originalidade teórica, dentro do panorama das discussões que lhe eram contemporâneas; em outras palavras, de pensar os dilemas inerentes à medicina, constiruídos ao longo de sua formação histórica, dilemas que Lacan não poderia deixar de herdar e com os quais não poderia deixar de se debater. Certamente, não nos está vedado utilizar alguns nomes próprios como balizas para este percurso lacaniano inicial, mas o mais importante é compor um quadro teórico, por breve e resumi- do que seja, que permita tornar inteligíveis as opções que o autor faz neste momento, quais as questões específicas que busca responder e o que pode haver de novo, canto na formulação destas questões, quant~J nas respostas oferecidas. Este esforço preliminar se justifica pelo fato de que estas escolhas, perfeitamente inaugurais na pesquisa de nosso autor, vão determinar ou, pelo menos, influir decisivamente em boa parte do conteúdo e do estilo de seu trabalho posterior. Inversamente, traços característicos - e que vão fazer escola - de seu perfil teórico mais tardio podem já ser percebidos em germe nessas primeiras obras. Pode parecer óbvio, mas vale a pena insistir sobre o caráter es- tritamente médico da investigação que Lacan empreende em sua tese de doutorado. Em um autor tão identificado com a psicanálise e com um trabalho intensivo sobre os textos de Freud - e, em menor grau, 18 RICHARD THEISE.N SiMANKE. com uma série de disciplinas e correntes intelectuais com as quais fler- tou ou às quais aderiu realmente nos anos subseqüentes-, muitos de seus discípulos ou comentadores sucumbem às tentações da ilusão re- trospectiva e procuram ver na Tese um compromisso muito maior com as idéias freudianas1• Especulação, neste caso, não só desencaminha- dora, como vazia, já que Lacan, como veremos, presta contas com bas- tante detalhe, na conclusão de sua tese, daquilo que julgou apropria- do extrair das doutrinas psicanalíticas, ao mesmo tempo em que fornece a justa medida da distância que o separa destas doutrinas. Por outro lado, fica claro que esta incorporação de elementos freudianos está subordinada a um projeto teórico bastante preciso, cujas linhas de força, contudo, emanam de outro lugar. A escolha ou a recusa des- tes elementos está determinada por este projeto, que é tão psiquiátri- co quanto deve ser uma tese acadêmica nessa área. Este modo de compreender as origens do pensamento lacani;mo, assim como a validade de tomá-lo como·ponto de partida, foram-nos inicialmente sugeridos pelo livro de Bertrand Ogilvie, Lacan: la for- mation du concept de sujet2, cuja lição adotamos em linhas gerais. Duas diferenças, contudo, merecem ser destacadas. Em primeiro lugar, o presente trabalho pretende reconstituir o percurso de Lacan, senão até 1 Elisabeth Roudinesco, por exemplo, em sua biografia de Lacan, não hesita em ir contra o testemunho do próprio biografado para afirmar o caráter freudiano da Tese: "Que Lacan não seja freudiano do mesmo modo nos anos 30 e nos anos 70 não implica, como ele acredita, que não tenha sido conscientemente freudiano em 1932" (Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamen- to, p. 83). No entanto, é justamente essa consciência que Lacan possuía do teor das idéias psicanalíticas e da distância que as separavam de suas próprias elabora- ções que impede que sua obra inaugural possa ser considerada "freudiana", ou que ele assim a concebesse, a não ser nos segmentos restritos e subordinados que ele deliberadamente concedeu à psicanálise. 2 Diz Ogilvie: "( ... ) parece, ao contrário, que Jacques Lacan, médico psiquiatra fran- cês de formação tradicional, começa por se colocar uma série de questões teóricas novas, não a partir da psicanálise, mas a partir da própria psiquiatria, assim como da filosofia" (op. cit., p. 7). DILEMAS DA PSIQUIATRIA 19 seus textos e seminários mais tardios, pelo menos até aquele momento em que tomam forma as categorias fundamentais da metapsicologia lacaniana - o simbólico, o imaginário e o real - e no qual, portanto, se arremata a elaboração de seu programa de pesquisa mais caracterís- tico e que é reconhecido como tal. Ogilvie restringe-se ao período 1932-49, pois pretende reconstimir a história inicial da trajetória lacaniana, para deixar entrever algumas implicações filosóficas de suas teses - o que se revela no próprio eixo escolhido para sua análise: o conceito de sujeito. Aqui optou-se, porém - e esta é a segunda diferen- ça a ser assinalada -, por privilegiar as discussões médicas das quais parte Lacan. Antes de tudo, para contornar a armadilha de se ler Lacan como um filósofo3, coisa que ele certamente não é. Além disso, estas discussões, mesmo que internas ao campo da medicina, trazem em- butidas em si as questões filosóficas que atravessam o texto de Lacan. Vale dizer: as questões efetivas, para além da profusão de refe- rências, cuja função na teoria ainda está por ser precisada. A medicina ou, mais precisamente, o processo de formação, os traços distintivos, assim como a posteridade do discurso médzco tornaram-se, tanto quan- to a psicanálise, objeto de uma série de interpretações filosóficas, hoje consagradas (Foucault, Canguilhem, entre outros), às quais se recor- rerá na continuidade. É justamente pelo fato de Lacan não ser um fi- lósofo - mas, a princípio, médico psiquiatra e, a seguir, psicanalista - que a referência à clínica é indispensável para a compreensão de sua 3 O exemplo mais impressionante desta via de abordagem é o livro de Alain Juranville, Lacan e a filosofia. Parece-nos, contudo, que o lugar da filosofia na obra de Lacan (isto é, o papel que desempenham suas reiteradas citações e referências à hist6ria da filosofia) s6 pode ser corretamente avaliado tendo em vista suas posi- ções muito particulares diante da psicanálise, entendida como uma disciplina de vocação essencialmente clínica. Do modo como Juranville expõe suas idéias, pare- ce que Lacan dedicou-se apenas a um insistente debate filosófico com Freud e com metade do panteão da filosofia ocidental. Trata-se, aqui, em suma, de tentar ler Lacan como ttm psicanalista - mais precisamente, como um teórico da psicandlise - e não como fil6sofo, lingüista, ou o que quer que seja. 20 RICHARD THEISEN S!MANKE evolução teórica, assim como do estilo de sua teoria. Além disso, é atra- vés de sua dimensão clínica que a medicina vai estabelecer pontos de contato com as ciências humanas4, com as quais Lacan vai querer ali- nhar a psicanálise, opondo-se às tendências psicobiologizantes que detectava no campo psicanalítico. Comecemos, assim, nos perguntando que lugar a psiquiatria ocupa no quadro das ciências médicas, a fim de identificar que opções se abrem diante do doutorando Jacques Lacan, cujo próprio estilo nos informa que ele já não se toma por qualquer um e que, portanto, quer deixar a marca de sua contribuição pessoal na evolução destas ciências. 1.1. UMA MEDICINA AQUÉM DO SUJEITO Em épocas posteriores, Lacan vai atribuir à ciência em geral o desmerecimento da dimensão subjetiva do conhecimento. Esta cen- sura se torna mais compreensível, se levamos em conta o seu progra- ma inicial de formulação de uma ciência da subjetividade, com o qual se situava na contracorrente do processo histórico que elevou a inves- tigação médica à categoria de ciência e que trouxe como conseqüência - talvez, como condição sine qua non - a recusa de tudo que concerne à subjetividade do paciente; em outras palavras, sua redução à condi- ção de objeto. Talvez a recapitulação dos passos desse processo permi- ta compreender melhor a situação das ciências médicas - e, em parti- 4 Este ponto de vista é exposto por Foucault, em O nascimento da clinica, onde a medicina clínica, primeiro momento no pensamento ocidental em que o indiví- duo humano concreto é feito objeto de um saber positivo, é, por isso, situada na origem das chamadas ciências do homem. Além dele, Granger, em Pensée formei/e et sciences de l'homme, fala do "pólo clínico" comum a todas as ciências humanas - o fato de que o conhecimento produzido por elas aponta sempre para uma prática ou uma intervenção possível. DILEMAS DA PSIQUIATRIA 21 cular, da psiquiatria - que emoldura a formação de Lacan e contra que aspectos desse quadro ele precisou se insurgir na elaboração de sua pri- meira aventura teórica na Tese. Sintetizemos rapidamente, para tanto, a análise foucaultiana em O nascimento da clínica, a fim de deixar mais claro como a realização das ambições científicas da medicina condu- ziu a uma concepção de doença que traria obstáculos incontornáveis à formulação de um conceito de psicose; mais especificamente, das afecções de tipo paranóico, que Lacan elegeu como objeto de sua re- flexão inicial5. Assim, num primeiro momento - inventário preliminar, prévio à constituição de uma ciência-, a medicina teria tomado como mo- delo a História Natural que, na euforia classificatória que passou do século XVII para o XVIII, tinha empreendido o levantamento da pro- fusão de espécies botânicas e animais tornadas conhecidas pela explo- ração dos novos continentes, a qual revelara um mundo muito mais complexo e multiforme aos olhos habituados apenas à Europa. Nas- cia, assim, uma medicina das classificaçõ,es, que concebia seus objetos, as doenças, como espécies naturais passíveis de serem ordenadas ao modo dos seres vivos. Se essa orientação trazia consigo uma emiti.cação da doença - que habitaria o organismo de uma maneira mais ou me- nos misteriosa, mas sem confundir-se com ele -, ela teve o mérito, segundo Foucault, de, pela primeira vez, fazer da observação (ou seja, do "olhar médico", cuja arqueologia ele pretende traçar nessa obra), o método das disciplinas médicas, em oposição aos procedimentos especulativos da medicina dos sistemas. Isso porque a classificação de- via buscar seus critérios nos sinais visíveis que as entidades mórbidas ocasionam na superfície dos órgãos afetados. Mas a contradição que 5 É preciso esclarecer que se faz aqui um aproveitamento particular da análise de Foucault, com ênfase na constituição de um conceito de doença, crucial para as tentativas de propor a medicina como uma ciência de pleno direito. O objetivo de Foucault é muito mais descrever a formação do discurso médico, referido às práti- cas institucionais que lhe deram origem, passando bem ao largo da discussão so- bre a ciencificidade ou não desse discurso. 22 RICHARD THEISEN SIMANKE se instala entre um método observacional e um objeto eminentemen- te invisível acaba por levar à superação deste paradigma médico (se é lícito usar aqui esta expressão) e propicia o surgimento da medicina clínica, que demarca como objeto da observação o próprio paciente, ou seja, o indivíduo concreto e a evolução de seus sintomas. É aí que Foucault assinala como o homem se torna, pela primeira vez, objeto de um saber que se pretende positivo. Mas o indivíduo doente não é a doença, e a medicina se priva, assim, de seu objeto específico. A solu- ção só viria com a anatomia patológica, cujo surgimento é mais ou menos precisamente datado pela publicação do Tratado das membra- nas (1802), de Xavier Bichar. A doença é, então, identificada com um processo real de alteração dos tecidos; o olhar passa a ser um instru- mento perfeitamente adequado à investigação da transparência deste objeto bidimensional (o tecido ou membrana tem a natureza de uma superfície), em contraste com a opacidade do órgão, cuja espessura escondia a essência da doença "ontologizada", visada pela medicina classificatória. O método anátomo-clínico preconizado por Bichar pro- cede retroativamente: a dissecação de cadáveres revela as alterações tissulares que explicam os sintomas observados in vivo. Segue-se, qua- se que naturalmente, uma desqualificação do método clínico isolado: a prática de "tomar notas à cabeceira dos doentes" só pode produzir confusão, já que não permite vincular os sintomas a um substrato real que os justifique. A fala do paciente, queixa subjetiva e desencami- nhadora, é preterida em benefício do silêncio do cadáver. A medicina se dá um objeto adequado ao seu instrumento, às custas da subjetivi- dade do paciente, considerado, a partir daí, como uma espécie de ca- dáver em potencial e, assim, potencialmente inerte, em sua objetivi- dade ideal. A concepção de doença que decorre das posições de Bichat con- segue, deste modo, integrar e conservar as conquistas da evolução que a precede: a medicina continua sendo uma ciência da observação6, e o 6 Com Claude Bernard, vai ser atribuída à medicina a possibilidade de adquirir também um caráter experimental. Mas Bernard era o primeiro a reconhecer que a DILEMAS DA PSIQUIATRIA 23 novo mundo de conhecimento que se abre à investigação anatômica ocasiona, inclusive, uma reativação do pensamento classificatório que caracterizara o século anterior, com os resultados de um método reno- vado fornecendo as bases para as novas nosografias. A doença conti- nua sendo entendida como um processo, assim como ocorria na me- dicina clínica. Mas lá tratava-se de um processo ideal, inferido a partir da história concreta do paciente, que era, enquanto tal, o único obje- to imediatamente acessível à observação. Com Bichat, as alterações observadas nos órgãos decompostos em diferentes tipos e camadas de tecido são a doença. Na verdade, "órgão" torna-se aí um conceito abs- trato, quase um construto: o que existe de real são os tecidos, que se espessam, desdobram, enrolam-se, superpõem-se, etc., formando o que a análise anatômica mais grosseira dos primeiros dissecadores - Morgagni, o pioneiro, por exemplo - recortava como órgãos. São os tecidos, portanto, que passam a constituir os elementos de composi- ção efetivos e as unidades funcionais do organismo. São eles que se tornam então, legitimamente, os verdadeiros objetos, tanto da anato- mia quanto da fisiologia, objetos que tê~ a vantagem de não oferecer distinção entre observação e experimentação não é absoluta: a experimentação pode ser considerada como uma observação induzida ou como a criação de certos dis- positivos que permitam uma observação mais acurada. No sentido inverso, os pró- prios processos patológicos observáveis chegaram a ser defendidos como uma es- pécie de experimentos espontâneos do organismo {Com te é um dos que se expressa assim). Embora privilegie a fisiologia à anatomia {ele chega à falar de autópsias fisiológicas, para designar aquelas que se destinam a verificar os determinantes de certos processos vitais, e não apenas a existência ou não de alterações materiais nos tecidos), Bernard não chega a divergir realmente da revolução instaurada por Bichar: ele mais a completa do que se opõe a ela. Ambos, inclusive, vão-se inserir no movimento que propõe uma definição apenas quantitativa para o patológico e para sua distinção do normal. Ver, por exemplo, o primeiro capítulo de Introdu- ção à medicina experimental ("Da observação.e da experiência", p. 19-50). A ques- tão das relações quantitativas entre o normal e o patológico é uma parte impor- tante do livro de Georges Canguilhem, Le normal et le pathologique, ao qual retornaremos a seguir. 24 RICHARD THEISEN S!MANKE nenhuma espessura a ocultar a verdade do fato patol6gico - a lesão -, de serem totalmente permeáveis ao olhar. Malgrado alguns reveses na abordagem de distúrbios que transcorrem sem deixar lesões visíveis (o problema das febres; depois, todo tipo de perturbação funcional, endócrina, alérgica, etc. - isto para não abandonar o terreno da medi- cina orgânica}, este paradigma teve uma carreira vitoriosa nas ciências médicas, e só bastante recentemente estas ouderam tomar um certo . distanciamento, de modo a poder lançar sobre este momento crucial de sua formação um olhar mais crítico. Não é difícil perceber o quanto este desenvolvimento leva a prá- tica médica para longe da psicanálise que, no entanto, dela emerge. Aqui não é o lugar de se estender sobre as inversões e reorientações que Freud teve que empreender para tornar viável uma concepção do psiquismo tal como ele veio a propor. Haverá oportunidade para tan- to quando da discussão imprescindível que terá que ser feita, compa- rando os projetos originais de Freud e Lacan, a fim de medir o grau de reinterpretação do texto freudiano exigido pela diretriz do "retorno a Freud"7• Basta assinalar que estes projetos divergem profundamente quanto a pontos essenciais, nem que seja apenas pelo fato de Freud partir da investigação neurol6gica e Lacan da prática psiquiátrica. É preciso, por isso, conduzir a presente discussão das condições que vi- goraram ao longo do processo de formação das ciências médicas em geral para o campo, mais restrito, da psiquiatria, tentando, assim, cir- cunscrever mais de perto o horizonte doutrinário diante do qual se colocou o jovem Lacan em seu debate com a tradição. Uma primeira conseqüência, que, desde já, chama atenção, é que, a partir da revolução anátomo-patológica, impôs-se, como mo- delo explicativo para todas as especialidades médicas, existentes e por existir, o mais estrito organicismo. Não é apenas uma relação de causa 7 O sentido desta diretriz, que começa a ser lançada em corno de 1953, principal- mente na conferência sobre Le symbolique, l'imaginaire et /e réei - mas também em "Le myche individuei du nevrosé" - será discutido à luz dos desenvolvimentos que a precedem, quase que a título de conclusão do presente trabalho. DILEMAS DA PSIQUIATRIA 25 e efeito que se estabelece entre lesão e doença, mas de identidade: a lesão é a doença, é tudo o que pode haver de real e verdadeiramente objetivo na doença. Os sintomas manifestos não passam de efeitos, sinais que traduzem a essência da doença no nível clínico e, por isso mesmo, expostos às vicissitudes da subjetividade (tanto do paciente, quanto do médico, diga-se de passagem), cujos descaminhos a análise anatômica tem por função corrigir. É verdade que este organicismo generalizado não tardará a sofrer restrições aqui e ali, mas ele perma- necerá longamente, senão como padrão efetivo e imediatamente reali- zável para a explicação médica, ao menos como ideal a ser alcançado. Certamente, é à psiquiatria que este organicismo vai colocar as maio- res dificuldades, ora negando a realidade de seu objeto próprio - a doença mental -, ora assimilando-o às patologias de origem orgânica, deixando esta especialidade no incômodo lugar de uma medicina das aparências8• Mas, antes de passar às atribulações da psiquiatria, há um outro aspecto, que decorre das inovações de B!chat e concerne ao conjunto das disciplinas médicas, que merece ser discutido. Sua concepção da doença como processo, que prolonga e aperfeiçoa aquela que era a da clínica, permite que a anatomia patológica escape à entificação da doença, que caracterizava as classificações. Aquelas, de fato, compu- nham sistemas de entidades abstratas, quase metafísicas, em nada consonantes com a atual identificação da doença com um processo orgânico real. Mas, se a doença não se destaca mais da realidade do corpo, surge a questão sobre o que distingue um processo orgânico 8 Esclareçamos, desde logo, que o organicismo só vai adquirir uma conotação nega- tiva (reducionista), como a que lhe atribui Lacan, quando da sua aplicação à pato- logia mental. Em Bichar, ao contrário, ele opõe-se a um reducionismo fisicalisra e trabalha no sentido da preservação da especificidade do fato orgânico e vital. O caráter vitalista das reses de Bichar é apontado por Canguilhem, que dedica-se ain- da, em Le normal ef le pathologique e outros textos volcados para os problemas gerais da biologia, a uma reabilitação filosófica do vitalismo, entendendo-o no sen- tido da preservação dessa especificidade acima referida. 26 RICHARD THEISEN S!MANKE qualquer e um processo patológico. Trata-se, em outras palavras, de uma pergunta sobre as fronteiras entre a fisiologia e a patologia. O próprio Bichat vai insinuar a idéia - que será desenvolvida, populari- zada e, mesmo, elevada à categoria de dogma por nomes como Broussais, Comte e Bernard - de que os fenômenos fisiológicos e pa- tológicos não se distinguem senão por sua intensidade. Sigamos, en- tão, em linhas gerais, o estabelecimento e as conseqüências desta con- cepção quantitativa das relações entre o normal e o patológico, adotando como guia a análise efetuada por Georges Canguilhem. Curiosamente, é uma necessidade clínica que vai impulsionar esta concepção. O conhecimento médico, sejam quais forem as bases em que se funde, está subordinado às exigências de uma prática. Canguilhem fala de uma espécie de "otimismo médico" que condicio- na a investigação, ou seja, a crença na possibilidade de uma interven- ção eficaz. As representações ontológicas da doença caminham neste sen- tido: o que pode ser localizado pode, ao menos em princípio, ser objeto de uma ação eficiente. Quer esta representação tenha um caráter posi- tivo - o mal, de alguma forma, habita o corpo, como nas teorias da infecção e nas parasitoses em geral - ou negativo - algo falta para o pleno exercício das funções orgânicas, como nas doenças carenciais, raquitismo, avitaminoses, anemia, etc. - esta condição se verifica: o que entrou pode ser expulso, o que saiu pode ser reposto. É na ação do médico que se depositam as esperanças desta correção. Como diz Canguilhem, esta concepção "não espera nada de bom da natureza por ela mesma"9• O caso é diferente para as representações dinâmicas da doença, cujo melhor exemplo é a medicina hipocrática, nas quais a doença resulta de um desequilíbrio interno; e a cura coincide com seu restabelecimento. Aí se concebe a natureza como tendendo para a or- dem e a homeostase. É uma concepção totalizante que percebe o or- ganismo como profundamente integrado ao meio no qual subsiste, de modo que a tendência natural deste meio em direção ao equilíbrio não 9 Le normal et le pathologique, p. 12. DILEMAS DA PSIQUIATRIA 27 pode deixar de repercutir sobre o corpo doente e, na verdade, a pró- pria doença manifesta passa a ser vista como um conjunto de reações que se esforçam pelo seu restabelecimento. Em outras palavras, os fe- nômenos patológicos observáveis já são, em si mesmos, tentativas de cura10• É por esta via que as teorias dinâmicas da doença buscam sa- tisfazer o ideal do otimismo médico. Mas um ponto em comum pode ser detectado entre estas duas representações do mal: ambas concebem a doença como uma "situa- ção polêmica", ou seja, como um conflito entre o organismo e o agen- te invasor (ou faltante) num caso, ou do organismo consigo mesmo, no esforço de retornar ao estado de equilíbrio perdido, no outro caso. Para dizê-lo de uma outra maneira, ambas entendem as relações entre o sadio e o doente, entre o normal e o patológico, como comportando diferenças qualitativas, isto é, como consistindo em dois estados qua- litativamente distintos e que, por isso, estabelecem este ripo de rela- ção antagônica. Ora, a representação dinâmica da doença até pode tolerar este fato, já que deposita suas e,speranças de cura numa ação espontânea da natureza, mas as concepções oncológicas vêem-se dian- te de um impasse: espera-se do médico que ele possa reverter esta dis- tinção qualitativa, converter um estado em outro que dele difere em natureza, quando todos os ditames do empirismo, desde suas origens baconianas, prescrevem que só se pode conhecer a natureza obedecen- do-a, isto é, identificando e descrevendo suas leis e nunca opondo-se a elas. Observe~se que, numa ciência empírica da natureza, toda mu- 10 É interessante observar que esta idéia ressurge, nestes termos, em Freud, quando define o delfrio.psicótico como um esforço para restabelecer os vínculos perdidos com a realidade, rompidos pelo processo propriamente patológico da psicose, que é de feição nardsica. Esta concepção é celebrada como uma das grandes virtudes da teoria freudiana das psicoses, quando comparada com as abordagens psiquiá- tricas (ver, por exemplo, Waelhens, A. de. A psicose: ensaio de interpretação anali- tica e existencial p. 23), e é particularmente apreciada por Lacan, uma vez que concorda plenamente com sua própria tese de que as psicoses não podem ser re- duzidas a fenômenos de déficit. Mas é um ponto de vista que parece ser típico de qualquer concepção dinâmica da doença. 28 RICHARD THE!SEN S!MANKE dança de estado se explica com referência a um fator que pode variar quantitativamente; para dar um exemplo bem trivial, as mudanças no estado físico da matéria (sólido, líquido, gasoso) reduzem-se a uma variável quantitativa especificada, no caso, a energia cinética. O médi- co encontra-se, portanto, numa posição que contraria os princípios fundamentais da ciência, situação complicada para uma medicina que aspira a ser reconhecida como tal. Daí que o ponto de vista quantitativo pareça trazer a solução ideal: ele permite conciliar uma exigência clínica de intervenção com uma ambição científica. Uma vez que se esvazia a diferença de quali- dade entre o estado de saúde e o de doença, o conhecimento da varia- ção em intensidade dos processos fisiológicos pode, concebivelmenre, fornecer os meios para a redução (ou aumento) desta intensidade, que resultará, então, naquilo que, clinicamente, se conhece como cura. Este é o espírito da contribuição de Broussais11 , desenvolvida e elevada à categoria de princípio filosófico por Augusto Comte. Seu ponto de partida é a idéia, bastante difundida, de que o fato vital básico é a excitabilidade da matéria viva. O crescimento da excitação acima de um certo patamar configura a irritação, conceito que funda uma pa- tologia, desde então, "subordinada ao conjunto da biologia" (Comte). Obtém-se, assim, um conceito de doença que escapa à oscilação entre uma representação ontológica e uma representação dinâmica da enfer- midade, um conceito que se opõe a este bloco formado pelas distin- ções qualitativas, propondo uma curva contínua que vai do patológi- co inferior (as diversas formas de astenia, todas as doenças designáveis J>elo prefixo hipo, por exemplo) ao patológico superior (os males co- meçados em hiper, hipertensão, hipertireoidismo, etc.), passando por um estado intermediário ideal, que configura a saúde. Não é difícil perceber que só dentro desta perspectiva esta última se identifica com o conceito matemático e estatístico de norma. Boa parte da argumen- 11 O título da obra magna de Broussais, De l'irritatíon et de la folie, já revela o alcan- ce que pretende dar a este princípio, estendendo-o até o domínio da patologia mental. DILEMAS DA PSIQUIATRIA 29 tação de Canguilhem dedica-se a corrigir esta distorção de considerar "normal" como o contrário de "patol6gico" (com a conseqüente iden- tificação deste último com o anormal), quando seu antônimo eviden- te é o estado de saúde ou de bem-estar orgânico, que não é passível de uma quantificação padronizada, já que alude inevitavelmente a uma norma individual e, mais do que isso, a uma atividade normativa do próprio organismo. Aqui não é o lugar de se estender sobre as sutile- zas desta análise, mas cabe ressaltar como decorre daí que, mesmo no nível da medicina orgânica, não é possível excluir os fatores concernen- tes à individualidade do paciente, que atravessa os conceitos de saúde, cura e doença, sem os quais não faz sequer sentido falar-se em uma medicina. Adiantando um pouco do que se segue, é possível perceber como a proposta lacaniana de "reintrodução do sujeito'' na prática psi- quiátrica - mais que isso: a defesa do papel ativo que este sujeito de- sempenha na construção de um meio circundante vital e social, a par- tir do qual se determinam as estruturas de personalidade mórbida ou normal - está ligada, sim, a um projeto de preservação da psiquiatria como especialidade autônoma, mas, numa perspectiva mais ampla, diz respeito também à própria identidade da medicina como um todo. Porém uma outra ordem de problemas é introduzida, ainda, pela concepção quantitativa. Se garante a sobrevivência do organicismo como um modelo explicativo médico, alinhado com a especificidade das ciências da vida, por outro lado ela põe em risco a autonomia da medicina dentro do quadro destas ciências, já que, no limite, é o pró- prio conceito de doença qu~ se esvazia, assimilado a uma contingên- cia dos processos fisiológicos em geral. A subordinação do patológico ao biol6gico, saudada por Comte como o ingresso da medicina no clu- be seleto das ciências positivas, toma, assim, o aspecto de uma pura e simples dissolução. Pode-se imaginar esta ameaça pairando como uma espécie de espada de Dâmocles sobre a evolução da medicina, o que acaba levando a um recrudescimento das concepções ontológicas e, também, dinâmicas, que preservam a diferença qualitativa do objeto médico (Canguilhem aponta como, mesmo as representações contem- porâneas da doença não deixam de oscilar entre estas duas possibili- dades). Mas é preciso observar que é principalmente no campo da clí- 30 RICHARD Tl-!EISEN S!MANKE nica que isto se dá, e naqueles procedimentos que lhe concernem mais de perto, como a elaboração de nosografias, a semiologia, etc., que praticamente supõem uma entificação da doença ou, ao menos, a de- finição de estruturas mórbidas, que podem ter um caráter dinâmico, quanto mais tenderem a uma apreensão global, totalizante do doente. A investigação médica propriamente dita - uma pesquisa de cunho biológico dos fenômenos que interessam à patologia - permanece to- talmente à vontade com o ponto de vista quantitativo, assumido como uma garantia de científicidade. Como sintoma desta situação, conso- lida-se uma dissociação, digamos, epistemológica entre a clínica (a prá- tica médica) e a pesquisa (o trabalho de laboratório, por exemplo). A clínica tem mais a ganhar com uma concepção qualitativa e, mais ain- da, com uma concepção dinâmica da doença como processo, já que atenta para o indivíduo doente e sua evolução, e pode aplicar sobre ele um conhecimento obtido alhures, por outros métodos, visando a uma cura que, desta forma, não mais contradiz um projeto empírico de conhecimento. A investigação, por sua vez, será tanto mais médica (e não meramente biológica) quanto mais se aproximar do terreno da patologia, podendo até atribuir-se aí, como objeto, uma entidade cha- mada "doença'', que garanta a sua identidade epistêmica. A questão de "obedecer ou não" à natureza já não se coloca, pois este trabalho visa apenas à produção de conhecimento e não aponta - nem imedia- ta, nem necessariamente - para o problema da intervenção. Em suma, quanto mais próximo da pesquisa biológica em geral, menos o médi- co se incomoda com o desvanecimento do objeto "doença''; quanto mais se aproxima deste objeto - que "omologiza" mais ou menos na- turalmente-, menos considera o problema clínico da intervenção efi- caz, que o colocaria diante do paradoxo de converter este objeto no seu contrário. Isso que chamamos "a medicina'' reparte-se, assim, em uma clínica (que não é uma ciência, mas uma técnica, uma arte de curar) e um grupo de autodenominadas "ciências médicas", tributárias das ciências biológicas e produtoras de um conhecimento autônomo, aplicável, mas não votado essencialmente à prática. Tanto Freud quanto Lacan trabalharam contra esta dissociação, primeiro como médicos e, depois, como psicanalistas. Freud foi leva- DILEMAS DA PSIQUIATRIA 31 do quase a afirmar que a situação analítica é o verdadeiro laboratório da psicandlise12, ou seja, que o lugar da produção e da aplicação do conhecimento psicanalítico coincidem. Já Lacan, que vai dar uma ex- tensão inaudita ao conceito de clínica, leva a solidariedade entre téc- nica e teoria ao ponto da identidade, como teremos oportunidade de verificar. Sua definição da paranóia como fenômeno de conhecimen- to (que vai, depois, reverter na tese epistemológica do "conhecimento como fenômeno paranóico") é sua primeira elaboração original que caminha no sentido desta identidade. Daí que a eleição da paranóia como primeiro objeto de reflexão não seja, de modo algum, irrelevante para a elucidação do projeto lacaniano como um todo. Mas, antes de chegarmos à paranóia, é necessário passar, num nível mais genérico, pelo lugar ocupado pela psiquiatria e pela patologia mental neste qua- dro evolutivo das ciências médicas, bem como pelos problemas parti- culares que esta evolução colocou a esta especialidade. 12 Principalmente no que diz respeito às esperanças de oferecer uma demonstração .. da realidade do inconsciente, permitindo ao conceito que ultrapasse a condição de uma hipótese útil, capaz de introduzir coerência onde a percepção consciente só detecta lacunas e obscuridade. Por exemplo, em Das Unbewume: "Se fica de- monstrado, então, ·que podemos construir sobre a hipótese do inconsciente uma prdtica através da qual possamos influir com êxito sobre o curso dos processos comcien- tes, de modo a atingir cercos fins, teremos obtido, com esse êxito, uma prova in- constestdvel da existência daquilo que foi suposto" (p. 126, grifos nossos). É Juranville que acentua o caráter estritamente experimental desta prova (cj Lacan e a .filoso- fia, p. 27), provavelmente para enfatizar a diferença com a demonstração deduti- va que teria sido empreendida por Lacan, o que constitui um exagero nos dois casos, pois ambas as tentativas se dão dentro dos marcos de um método clinico. 32 RICHARD THEISEN SIMANKE 1.2. ALTERNATIVAS PARA A PSIQUIATRIA A posição da psiquiatria nesta rede de alternativas que se ofere- ce às disciplinas médicas vai-se revelar, com efeito, das mais proble- máticas. E ela se complica justamente na medida em que seu objeto, ao desbordar sobre o domínio indefinido do mental, vai maximizar as dificuldades que cercam a fixação de um conceito de doença que lhe permita subsistir como uma especialidade autônoma. Ela tem mais a perder, por causa disso, com a adesão a um princípio quantitativo de distinção entre o normal e o patológico: se, no caso da medicina orgâ- nica, a continuidade estabelecida por este princípio terminava por apa- gar a fronteira com o fisiológico, no caso da psiquiatria, ela arrisca dis- solver-se numa psicologia geral13, afastando-se mesmo do domínio da biologia, que fundamenta os demais ramos da medicina. Assim, num primeiro momento, o compromisso com um modelo organicista vai significar para a psiquiatria a garantia de seu pertencimento ao campo da medicina. Mas com isso - e dada a natureza "mental' de seu objeto - ela vai entrar em cheio nos dilemas que cercam os dualismos de tipo 13 Canguilhem assinala como os ecos da difusão, operada por Com te, do "princípio de Broussais" repercutem principalmente no domínio da psicologia. Cita, como exemplo, uma passagem de Renan, que dá bem a medida do quanto este princí- pio quantitativo serve à psicologia, mas não à medicina. Vale a pena reproduzi-la: "O sonho, a loucura, o delírio, o sonambulismo, a alucinação oferecem à psico- logia individual um campo de experiência bem mais vantajoso que o estado regu- lar. Pois os fenômenos que, neste estado, estão como que apagados por sua tenui- dade, aparecem nas crises extraordinárias de uma maneira mais sensível por seu exagero. O físico não estuda o galvanismo nas quantidades ínfimas que a nature- za apresenta, mas ele o multiplica pela experimentação, a fim de estudá-lo com mais facilidade, dado aliás que as leis estudadas neste estado exagerado são idênti- cas às do estado natural. Da mesma forma, a psicologia da humanidade deverá se edificar sobretudo pelo escudo das loucuras da humanidade, de seus sonhos, de suas alucinações, que se reencontram à cada página do espírito humano" (Le nor- mal et /e pathologique, p. 15-6). DILEMAS DA PSIQUIATRIA 33 cartesiano, e é possível mostrar como este posicionamento traz, no seu rastro, uma teoria mecanicista da gênese dos distúrbios mentais, retornando, por este caminho, a um modo de conceber·as entidades clínicas que reedita as representações ontológicas da doença 14. De fato, a posição peculiar da psiquiatria no panorama das ciên- cias médicas faz, por si só, que esta não possa prescindir de uma dis- cussão sobre a natureza de seu objeto. Assim, a reflexão psiquiátrica, isto é, qualquer elaboração teórica que concerna às doenças mentais, parece exigir, para toda questão que se coloque, uma discussão prévia de feitio epistemológico, o que, pelo menos, torna mais compreensí- vel que Lacan recheie com elas sua tese, tendência que se prolongará, mais tarde, em suas elaborações a propósito da psicanálise. Desde a obra, neste sentido, inaugural de Cabanis (Rapports du physique et du moral - 1802), o cartesianismo, segundo Ey, habitaria a psiquiatria, importando uma problemática da qual os demais ramos da medicina podem perfeitamente prescindir. Não é ocioso assinalar como esta impregnação introduz a perspectiva reduçionista, que Lacan vai pro- curar demolir: Ogilvie, por exemplo, destaca como; em psiquiatria, qualquer forma de dualismo acaba, mais cedo ou mais tarde, condu- zindo a uma desvalorização da esfera propriamente psicológica dos fe- nômenos clínicos 15. Esta observação também ajuda a compreender por que Lacan - leitor de Espinoza desde a adolescência - vai-se inspirar em sua filosofia monista, inspiração cujo primeiro e mais force indício é a epígrafe da Tese, extraída da Ética. O fio condutor do comentário de Henri Ey, no artigo que acom- panhamos, é a idéia de que o "cartesianismo" - grafado assim, entre - aspas, para designar uma doutrina que o autor remete mais a Male- 14 Sigo aqui, em linhas gerais, os pontos de vista de Henri Ey- aliás, amigo e cola- borador de Lacan nos primeiros tempos - expostos principalmente no artigo "Le développemenc mecanicisce de la psyquiacrie à l'abri du dualisme cartésien". 15 Ele afirma, mais especificamente, que "sobre o plano psiquiátrico [todo dualismo] não pode senão terminar em uma desvalorização das representações" (ÍAcan: la formation du concept de sujet, p. 63). 34 RICHARD THEISEN SIMANKE branche e outros filósofos subseqüentes do que a Descartes16 - cons- titui-se, ao mesmo tempo, em condição e obstáculo para a psiquiatria: ele serviu à causa psiquiátrica ao dar autonomia ontológica ao mental, mas a engajou também, a partir disso, em uma série de impasses. Em primeiro lugar, porque, tal como se encontra formulado, este "men- tal" de forma alguma se presta a uma descrição científica. Opondo-se essencialmente à extensão, a alma é, por isso mesmo, incondicionada: tudo nela é simultâneo, atual, cada ato do espírito o implica como um rodo (deve passar por aí o parentesco que Ey percebe com as aborda- gens fenomenológicas). Nada há, portanto, no âmbito exclusivo da · substância pensante, que se possa demarcar como o domínio das cau- sas, ao qual remeter a explicação. De resto, mesmo saindo do terreno metafísico para o da psicologia objetiva, qualquer tipo de causalidade totalmente interna ao psíquico - isto é, qualquer teoria psicogenética . estrita - vai ter que ser recusada em nome da especificidade do pato- lógico. Ao encerrar-se a explicação apenas no domínio das causas psí- quicas, não se pode mais falar de enfermidade, a não ser num sentido muito metafórico. Os erros da alma podem ser pecados, podem ser uma hybris da vontade, mas nunca doenças mentais. A alternativa para se poder formular uma ciência psicológica, tão indispensável para a psiquiatria quanto a fisiologia o é para a me- 16 Ey considera que as especulações cartesianas nas Meditações podem ser situadas "na origem do movimento fenomenológico, que coloca o pensamento como um modo de existência em si e pa,ra si" (Ey, H. "Le dévéllopement mécaniciste de la psychiatrie à l'abri du dualisme carcésien", p. 53, nota). Merleau-Ponty também faz suas restrições à identificação pura e simples do cartesianismo com a filosofia de Descartes. Inclusive, G. Lébrun, em uma nota à tradução brasileira das Medi- tafóes (p. 136), sobre a passagem da Sexta Meditação em que Descartes reconhe- ce a união de fato entre alma e corpo (ela não está aí apenas "como um piloto em .seu navio", etc.), para além da sua separação de direito, sugere que A Fenomenologia da percepção pode ser encarada como um longo.comentário desta passagem. Toda esta atmosfera que cultiva um Descartes menos cartesiano do que se suspeitava até então talvez ajude a tornar menos estranha a insistência com que Lacan vai procurar aproximar o sujeito cartesiano e o inconsciente. DILEMAS DA PSIQUIATRIA 35 dicina orgânica, é estabelecer relações de causa e efeito entre o orgâni- co e o psíquico, o que, cedo ou tarde, desemboca, ora num materialis- mo estrito, no qual os fenômenos do espírito são relegado!i à condição de aparências (epifenomenismo), ora numa das diversas versões do paralelismo psicofísico, em que esta relação causal é escamoteada pela proposição de uma psicologia que mimetiza o mecanicismo e o atomismo da concepção cartesiana dos organismos. A emergência des- tas psicologias sensualistas e associacionistas, ao fornecer à psiquiatria um modelo psicológico mecanicista, permite, então, em sentido in- verso, o retorno a uma posição reducionista. O emparelhamento de um psiquismo mecânico com um organismo mecânico, apesar da in- terdição formal que o paralelismo institui a qualquer forma de interação entre eles, cria condições para que, aos poucos, se retorne, por diversos rodeios, à afirmação, assumida ou não, de uma relação causal ponto por ponto (principalmente no campo psiquiátrico, já que a psicologia pode ater-se apenas ao seu lado do paralelo): não falta- ram, por exemplo, teorias iatromecânicas .da loucura, em que se ima- ginavam nervos percutidos, enrijecidos, desgastados, rompidos ou não, como as cordas de um piano, e coisas do gênero17• Assim, a inviabili- dade de uma ciência empírica da mente enquanto tal, dentro dos parâmetros do cartesianismo, conduz, quase que inexoravelmente, a uma explicação organicista, onde se conjugam os aspectos do mecanicismo, do atomismo e, como conseqüência, do reducionismo. Segundo Ey, estes traços se repartem, nas teorias psiquiátricas, em uma semiologia atomística (os sinais observados apontam para distúrbios psíquicos parciais que, por sua vez, são correlacionados com d~nos· orgânicos localizados ou localizáveis em princípio), uma etiologia me- cânica ( tese correlata ao pressuposto diagnóstico anterior: são as lesões localizadas e seus efeitos que se compõem, mecanicamente, nas mani- festações mais complexas da doença) e uma nosografia das entidades clínicas (herdada da patologia orgânica, conforme a discussão prece- 17 Um interessante apanhado destas concepções pode ser encontrado no livro de Isaías Pessoti, A loucura e as épocas. Ver, principalmente, p. 131-3. 36 RICHARD THEISEN S!MANKE dente). Pelo que se vê, em acréscimo aos seus impasses específicos, quando a psiquiatria adere ao organicismo, arca com aqueles oriun- dos deste outro domínio. Cabe observar que a Tese lacaniana operará uma revisão de to- dos estes parâmetros instituídos para a psiquiatria por esta concepção que se tornou hegemônica nas últimas décadas do século XIX. Ao atomismo semiológico, Lacan vai opor uma visada da doença como fenômeno total cuja filiação é preciso, ainda, traçar. Esta orientação, por si só, acarretará uma inversão do argumento psiquiátrico, com o privilégio que será atribuído aos fenômenos secundários, reativos e/ou interpretativos das conseqüências diretas do dano primário de nature- za orgânica (os chamados "fenômenos elementares"), por exemplo, na relação entre os delírios e as alucinações. Quanto à gênese mecânica dos sintomas, é o próprio Henri Ey que assinala o quanto esta patogenia não passa de uma tradução em termos psíquicos das lesões supostas pelas teses etiológicas precedentes. Usando, como bom discí- pulo de Hughlings Jackson, o exemplo da afasia, ele qualifica as teorias mecanicistas desta última como meras paráfrases do atomismo semio- lógico subjacente, denundando a atribuição injustificada de realidade aos diagramas empregados para conceber os distúrbios da linguagem, ou seja, a pretensão de localizar átomos de linguagem sobre estes es- quemas construídos para representar a atividade cerebral co.ncomitante à produção da fala e à sua recepção e compreensão18. Em outras pala- vras, trata-se de uma paráfrase, em termos patogênicos. (centros de fala, fibras de condução, lesões, etc.) daquilo que é observado clinicamen- te. Lacan - já na Tese, mas fazendo também disso uma diretriz para suas pesquisas posteriores .,.... critica este realismo dos objetos clínicos, pró- prio do que denomina o "hiperobjetivismo" da visada reducionista dos 18 Lembrando que o primeiro impulso da teorização freudiana consistiu justamente na crítica do localizacionismo mecanicista das teorias da afasia, visando aos ex- cessos dos diagram makers, conforme expressou-se Henry Head, ao resenhar, na abertura de sua obra de síntese, Aphasia and kindred disorders ofspeech, tanto as teorias clássicas quanto as de seus crfticos, entre os quais pode-se incluir Freud. DILEMAS DA PSIQUIATRIA 37 fenômenos de personalidade. Pode-se ver aí, embrionariamente, uma concepção do conhecimento médico como materialização de metdfo~ ras, que vai fazê-lo merecer o epíteto de "paranóico" 19, éstendido de- pois ao conhecimento humano em geral. Forçando um pouco a ima- ginação, é possível chegar perto de captar, ao menos, a inspiração inicial para um itinerário que conduzirá a uma espécie de metafa.rização da teoria, dando o tom peculiar do estilo teórico de Lacan pelos anos seguintes afora. Ou seja, trata-se de propor uma teoria que deve tor- nar-se homogênea ao que descreve; dito de outro modo, uma teoria metafórica que representaria adequadamente o que, no nível clínico (o do sintoma), se produz por uma "causalidade metafórica'', confor- me a formalização do conceito de metáfora, empreendida nos moldes da teoria lacaniana do significante. Esta digressão antecipatória serve, aqui, para insinuar o quanto estes desenvolvimentos mais tardios, que formarão o cerne do lacanismo, estão em continuidade com o anti- . reducionismo e o anti-objetivismo que Lacan professa ainda no inte- rior do campo médico. Por outro lado, '..não é difícil perceber que a tendência a essa "coisificação" dos objetos é perfeitamente solidária com a ontologia da doença que passou a predominar na nosografia psiquiátrica. A posição epistemológica de Lacan contra esta tese - sem- pre lembrada quando se trata de opor psicanálise e medicina20 - tem também suas raízes na discussão tipicamente médica que cerca sua es- tréia como teórico dos novos tempos em psiquiatria. 19 Lacan vai caracterizar, mais tarde, o discurso psicócico por uma ausência de me- táforas, resultado de uma atenção exclusiva à literalidade das palavras, mecanis- mo pelo qual se produzem os sintomas. Por esta via, a psicose perpetua-se na con- dição de paradigma clínico para as teorizações lacanianas, já que traz à tona, por assim dizer, a essência da linguagem, no modo pelo qual Lacan a concebe a partir de sua adesão ao estruturalismo. O sentido inicial da fórmula do "conhecimento paranóico" - que será o foco de nosso terceiro capítulo - designa, contudo, o apego realista às formações imaginárias que constituem, simultaneamente, o eu e o campo dos objetos. 20 Ver, por exemplo, Jean Cravreul, A ordem médica, Cap. 8, p. 121-36. 38 RICHARD TI-JEISEN SIMANKE Resumindo, verifica-se que do cruzamento entre a medicina e o '1ualismo cartesiano que ocorre sobre o campo psiquiátrico, derivado da própria natureza mista do objeto "doença mental" em questão, nas- ce uma doutrina das entidades clínicas, segundo um argumento que se pode expressar mais ou menos assim: a medicina lida com doenças; ora, uma doença não pode, por definição, ser do espírito; portanto, só pode ser do corpo. A doença mental não é, então, verdadeiramente mental, mas sim uma doença orgânica com efeitos aparentes sobre o nível mental (epifenomenismo), importando, por isso, todos os parâ- metros que definem a doença para a patologia orgânica (mecanicismo, atomismo, ontologização). A demência paralítica converte-se no pro- tótipo das entidades psiquiátricas, pois, nela, o modelo explicativo organicista funciona do modo mais satisfatório possível. O modelo da paralisia vai ser, assim, exportado para as outras afecções, concebidas como outras tantas entidades autônomas (já que são "realidades em si"), dando margem às preocupações essencialmente nosográficas da psiquiatria dica "clássica". Contudo, ·a categoria das psicoses vai funcio- nar como uma espécie de peça de resistência contra esta ontologização generalizada dos quadros clínicos: Ey aponta como a noção de psicose é, por si só, contraditória com a idéia de entidade21 • Não é de surpre- ender, então, que Lacan abra sua Tese retomando a distinção clássica entre o grupo das demências e o grupo das psicoses22, nem que privi- legie este segundo domínio, selecionando como alvo de análise sua afecção mais representativa, a psicose paranóica, folie raisonnante por excelência, que se oferece como paradigma para o campo psiquiátrico como um todo, no extremo oposto daquele representado pela demên- cia paralítica. Nosso próximo passo, nessa preparação de terreno para a abor- dagem da obra inaugural de Lacan, deve ser, então, considerar mais 21 Ey, H. "Le dévéllopement mécaniciste de la psychiatrie à !'abri du dualisme car- césien", p. 63. 22 De la psychose paranoi'aque dans ses rapports avec la personalité (doravante PP), p. 13. DILEMAS DA PSIQUIATRIA 39 de perco a noção de doença mental e o modo como a psiquiatria défi- ne suas categorias, a fim de dar uma idéia mais precisa 40 panorama dentro do qual Lacan vai pinçar o objeto específico de sua reflexão23• 1.3. O PSIQUIATRA E SUA DOENÇA Como já foi apontado acima, a natureza peculiar do objeto da psiquiatria tende a colocar em risco, não só a sua autonomia como especialidade médica, mas a sua própria pertença ao campo da medi- cina. Seu objeto sendo a doença mental, se deve ser "mental" em to- dos os sentidos, deixa de ser um problema médico e passa a constituir assunto apenas da psicologia. Se não é mental, só pode ser "orgânica", já que toda essa discussão se crava dentro dos marcos do dualismo. Trata-se, portanto, já que é ''doença'', de. um problema médico, mas surge a questão sobre o que a diferencia dentro do espectro da patolo- gia geral. O dilema da psiquiatria parece oscilar, assim, entre a exclu- são total e a absorção pura e simples na medicina, em sua definição mais ampla. 23 Caberia aqui uma palavra, omitida por razões externas ao presente desenvolvi_-. mento, sobre as relações de Lacan com os dois nomes mais representativos das tendências que ele procurará conciliar: Jaspers e Clérambau!c. A doutrina de Clérambault é citada - e combatida - pelos mais diversos autores (Ey, Dalbiez, Claude, entre outros), como típica da orientação mecanicista, sendo alvo igual- mente das críticas lacanianas em sua Tese. Mas o seu interesse maior para a com- preensão do desenvolvimento da obra de Lacan é o seu posterior reaproveitame~to quando nosso autor decidir, a partir da sua versão particular das teses psicanalíti- cas, tomar disd.ncia com relação às abordagens fenomenológicas e "compreensi- vas" da psicose, que ele assimilara já com reservas à época do seu doutoramento. Ê evidente que Lacan nunca vai subscrever o organicismo intransigente de Clérambault, mas sim aproximar o seu automatisme menta/e ao automatisme de répltition, com que se traduz o Wiederholungszwang (compulsão à repetição) 40 RICHARD THEISEN S!MANKE Todo o problema parece consistir, portanto, em definir o lugar e a função dos fatores psicológicos na produção e no desenvolvimento das doenças mentais. As tentativas de equacionar este problema vão- se estender, então, do mais puro epifenomenismo, que caracteriza as versões extremas do organicismo, até as teses psicogeneticistas (ou psicogênicas, como Lacan prefere se expressar na Tese), que atingem o seu ponto máximo nas psiquiatrias compreensivas ou fenomeno- lógicas. Numa ponta, aproximamo-nos da dissolução da psiquiatria na psicologia; na outra,. de sua incorporação à medicina geral, às cus- tas de sua especificidade "mental". Mas este problema é incontornável, devido à própria natureza dos fenômenos envolvidos e, além desta for- mulação genérica, ele se reparte numa série de tópicos menores que reeditam a cada vez o dilema fundamental- o que Henri Ey, em um outro artigo que também acompanhamos aqui, chama de "dilema psiquiatricidà'24. Cabe detalhá-los um pouco mais, antes de verificar de que maneira estes problemas subsidiários se manifestam ·ao longo do processo de definição das entidades psiquiátricas. freudiano, já convenientemente relido à luz de uma mecânica combinatória do significante, herdada do estruturalismo. As idéias de Clérambault, portanto, não só se destacam pelo valor paradigmático com respeito ao organicismo, mas tam- bém por fornecerem uma medida do grau de ressignificação de que Lacan é ca· paz, quando resolve reabilitá-las mais tarde. Em suma, Lacan inspira-se aberta· mente, de início, na psiquiatria fenomenológica de Jaspers, para rebater, na Tese, o organicismo, abandonando-a depois que o estruturalismo lhe ensina a renún- cia ao primado do sentido; simultaneamente, ele~a à condição de seu "único mes- tre em psiquiatria" o mesmo Clérambault repudiado anteriormente com toda a facção organogênica e mecanicista. No entanto, o interesse pela obra de Cléram· bault tendo-se reacendido mais recentemente - o que se manifesta numa expres- siva publicação e republicação de trabalhos de e sobre o autor - e sendo a obra de Jaspers extensa e ultrapassando em muito as fronteiras da psiquiatria, seria inviável abordá-las aqui com o cuidado a que fazem jus. Esse comentário será objeto de um trabalho à parte, atualmente em fase de elaboração. 24 Ey, H. "La position de la psychiatrie dans le cadre des sciences médicales (la no- tion de maladie mencale)", p. 69. DILEMAS DA PSIQUIATRIA 41 Um aspecto diz respeito à dependência em que a psiquiatria se coloca em relação à psicologia, mesmo em suas versões mais organicis- tas, pois, ainda aí, é necessário, pelo menos, descrever estes epife- nômenos que sinalizam, no nível clínico, o diagn6stico e a interven- ção. Esta dependência é simétrica àquela em que a patologia orgânica se encontra com relação à fisiologia e, da mesma forma que a psiquia- tria importa os impasses deste domínio quando segue o organicismo, ela se sobrecarrega aqui com uma nova série de problemas que cercam a pr6pria psicologia. Não é necessário relembrar, neste momento, a longa série de percalços que a psicologia enfrentou em suas tentativas de afirmação científica- teremos oportunidade de fazê-lo quando da abordagem dos esforços lacanianos de reforma da psicologia -, mas, de qualquer maneira, é fácil compreender por que esta última, imersa · em seus pr6prios impasses, nunca conseguiu fornecer à psiquiatria a mesma base relativamente segura que a fisiologia empresta à patologia orgânica25, fator que não deixou de levar água ao moinho do organicismo. É evidente que as deficiências da· psicologia revelam-se tanto mais prejudiciais, quanto mais nos aproximamos daquele extremo em que passam a vigorar as teses psicogeneticistas. É perfeitamente coe- rente, portanto, que Lacan, após enaltecer, ao longo da Tese, as vanta- gens da psicogênese, tenha concluído com o anteprojeto de uma "ciên- cia da personalidade", que nada mais é do que uma psicologia renovada ,:e suficientemente "concreta'' para estar à altura das necessidades mé- ' dicas e psiquiátricas. O problema é que a hipótese psicogenética, leva- da às suas últimas conseqüências, mina a base do pr6prio modelo explicativo médico, centrado no conceito de doença que, como já vi- mos, não pode, uma vez restrito a um domínio exclusivamente psico- 25 Cf. Foucault, M. Doenra mental e psicologia, p. 17: "Ora, a psicologia nunca pôde oferecer à psiquiatria o que a fisiologia deu à medicina: o instrumento de análise que, ·delimitando o distúrbio, permitisse encarar a relação funcional desce dano ao conjunto da personalidade". 42 RICHARD THEISEN SrMANKE lógico, ter um sentido mais do que metafórico. Essa é uma das razões pelas quais, mais tarde, Lacan tornar-se-á um dos maiores empreen- dedores da desmedicalização cabal da psicanálise, despojando as enti- dades clínicas de sua significação patológica, ao redefini-las em ter- mos de estruturas da subjetividade, da mesma forma que afasta da prática psicanalítica sua intenção terapêutica, caracterizando em ter- mos de um "ganho ético" os resultados da análise. O problema é que, na verdade, uma psicogênese estrita abandona qualquer ambição explicativa em geral: uma vez limitada aos fenômenos psíquicos, cuja definição mesma passa pela significação que adquirem para o sujeito em questão, a análise psicopatológica passa a identificar explicação com compreensão e, no final das contas, a contentar-se com esta última. Fazendo isso, no entanto, ela curiosamente perpetua o abismo dualista que tantos obstáculos interpôs à psiquiatria: é evidente que, aí, se con- tinua a conceber a causa como orgânica - a não ser nos casos em que o espiritualismo latente a certas abordagens fenomenológicas surge mais à tona -, cuja inacessibilidade a um método psicológico de in- vestigação conduz à renúncia à explicação e à elevação da compreen- são à dignidade de objetivo último da análise. A alternativa, assim, para uma fundamentação psicológica dos fenômenos mórbidos com que a psiquiatria tem que se haver dá-se entre um associacionismo atomís- tico, que não passa de uma paráfrase do organicismo, e uma psicolo- gia com tendências espiritualistas, resultado da transposição das teses fenomenológicas para o território da psicologia clínica. Renovam-se, desta maneira, sobre este ponto específico, os velhos impasses do dualismo, dos quais a psiquiatria parece incapaz de se livrar. Não é para causar surpresa, então, que as tentativas de revitalizar a psiquia- tria, entre elas a de Lacan, vão obrigatoriamente ter que passar por uma crítica epistemológica da psicologia. O fato de que Lacan venha a propor, explicitamente, uma espécie de terceira via para a resolução do problema- que se manifesta, por exemplo, nos esforços de estabe- lecer uma verdadeira causalidade psíquica, na utilização da noção de formações reacionais, típicas do psicogeneticismo, para a formulação de um determinismo concreto e científico, etc. - indica, pelo menos, um certo grau de consciência desta situação. DILEMAS DA PSIQUIATRIA 43 É claro que as hipóteses psicogenéticas só podem, sensatamen- te, reivindicar validade com relação às psicoses, ou seja, aquelas afecções em que a determinação orgânica não é direta e imediata. Mesmo aí, contudo, a maioria dos autores procedeu com prudência na tarefa de delimitar o papel complementar dos fatores orgânicos e psicológicos, ao longo do processo histórico de constituição dos di- versos quadros de psicose. Este processo mesmo pode ser descrito como a progressiva consciência da necessidade de inclusão dos fatores psíquicos na explicação destes quadros, já que, antecipemos, se o dano orgânico podia verossimilmente explicar os aspectos degenerativos, confusionais, deficitários, numa palavra, os aspectos negativos da fenomenologia clínica dos quadros, seus aspectos positivos - os fenô- menos característicos da doença - permaneciam relegados ao acaso. É, pois, este caráter parcial da explicação estritamente organicista, ao menos nessa classe de afecções, que engaja os pesquisadores na elucidação dos processos psicológicos que levam à constituição de es- truturas meneais patológicas, renovando passo a passo o problemático conceito de doença mental. Um olhar de relance sobre alguns momen- tos cruciais que ilustram a evolução destas concepções pode servir para mostrar como a tese lacaniana insere-se harmoniosamente neste pro- cesso: as rupturas que ela instaura, se as há, são perfeitamente internas ao domínio psiquiátrico, e uma série de reorientações será ainda ne- cessária para que as diretrizes aí articuladas possam vir a ser aclimatadas à psicanálise26• 26 Lacan, na Tese, não percebe ainda o quanto
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