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Introdução aos Fundamentos Epistemológicos da Psicologia Socioistórica Lígia Márcia Martins 1 Este texto tem como objetivo central introduzir os estudos acerca dos fundamentos epistemológicos da psicologia socioistórica e, para tanto, procura contemplar questões gerais básicas que favoreçam a compreensão de tais fundamentos. Assim, apresenta aspectos teórico-metodológicos e históricos que permearam seu surgimento bem como as premissas centrais da matriz filosófica que lhe confere sustentação, isto é, do materialismo histórico dialético. As categorias teórico-filosóficas expostas serão objetos específicos de estudos subseqüentes, cujos conteúdos, pelos limites impostos a um texto único, não serão por ora abordados. Portanto, o estudo da temática em pauta não se esgota na presente exposição, outrossim, apenas se inicia; representando o ponto de partida para contínuas reflexões de complexificação progressiva. Principiando a conversa... A Psicologia, ciência datada do século XIX, desde sua origem se fez marcada por um traço muito específico: contemplar uma vasta gama de objetos, métodos e teorias. Esta abrangência epistemológica, a rigor, coloca-nos diante de uma ciência multifacetada, ou, como referem alguns de seus estudiosos, diante de “várias psicologias”. Importante observar que esta abrangência, se por um lado reflete a hegemonia lógico-formal característica do campo científico no século XIX, por outro, reflete as demandas advindas da consolidação histórico-social da classe burguesa no poder. Instituindo- se como ciência no final do século XIX, início do século XX, a psicologia, como bem analisa Tuleski (2004), carregou consigo, desde sua origem... “a marca de dualismos rígidos e insuperáveis, tais como objetividade / subjetividade, normal / patológico, social / individual, orgânico / mental, entre outros” (p. 121). No esteio de tais dualismos, dicotomizando a existência objetiva e, conseqüentemente, psíquica dos indivíduos, a psicologia avançou século XX adentro acumulando pesquisas, sistematizando conhecimentos, formulando leis e teorias. Contudo, 1 Doutora em Educação, professora do curso de Graduação em Psicologia, Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências, UNESP/ Bauru e do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, Faculdade de Ciências e Letras, UNESP/Araraquara. Integrante do Grupo de Pesquisa “Estudos Marxistas em Educação”. 2 não obstante a multiplicidade de fenômenos e métodos de investigação sobre os quais, respectivamente, se debruçou e adotou, não logrou firmar-se na base de preceitos gerais unificadores aptos a conferir-lhe uma identidade epistemológica, ou seja, uma especificidade que nos permita dispensar- lhe um tratamento no singular. Lev SemenovichVigotski, em artigo intitulado “O significado histórico da crise da Psicologia”, datado de 1927, analisou profundamente esta questão destacando quão necessário era (já naquele momento histórico!) a coordenação crítica de tantos dados heterogêneos, a proposição de princípios gerais fundamentais e sobretudo, a construção de coerência teórico- metodológica na ciência psicológica. Nesse artigo, o autor coloca em questão os primeiros marcos referenciais sobre os quais a psicologia encontrava-se edificada (e com poucos avanços encontra-se até os dias de hoje), quais sejam: inconsciente / consciente; normal / patológico, comportamento animal / comportamento humano, explicitando que a centralidade conferida às dimensões parciais do psiquismo humano resulta na formulação de sistemas teóricos com reduzidas chances de contemplar os fundamentos desta ciência. Para Vigotski, o papel diretivo desempenhado por dimensões psicopatológicas e por preceitos advindos da psicologia comparada animal; a exemplo do que se apresenta, respectivamente, no sistema psicanalítico e derivados, bem como na reflexologia pavloviana e no condutivismo; corrobora para a formulação de uma “psicologia” constituída por inúmeras disciplinas particulares (ou abordagens) que, desprovidas de unidade ou de princípios explicativos gerais, arvoram-se uma suposta autonomia, no âmbito da qual se esvai a própria psicologia. Nesta direção, Vigotski (1997) tece uma consideração bastante interessante: Devemos ainda extender a disecção ao próprio nome da psicologia. Porque os processos de divisão que vêm perfilando a crise têm se refletido também no destino da denominação de nossa ciência. Diversos sistemas têm rompido aos poucos com a velha denominação utilizando a sua própria para designar a totalidade da área de investigação. É freqüente, por exemplo, referir-se ao behaviorismo como ciência do comportamento, como sinônimo de toda a psicologia e não de uma de suas correntes. Da mesma maneira pode-se falar da psicanálise ou da reactologia (p. 393). 3 Ou seja, a psicologia, na exata acepção desta palavra, ainda não existe, dado que não deve ser considerado de menor importância mais o maior desafio desta ciência. Ao lançar a pergunta: afinal, o que é a psicologia? Vigotski (1997) afirma claramente: “uma considerável divergência de opiniões”! (p. 265) Diante do exposto, é possível que nos interroguemos em que medida esta configuração representa um problema. Apreendendo superficialmente o fato, nenhum. Entretanto, em se tratando de ciência, as questões não podem ser abordadas superficialmente, mas sim, do ponto de vista metodológico. E é sob este prisma que as lacunas da psicologia se desnudam, expondo divergências que revelam a inexistência de sua unidade teórico-metodológica. Aquilo que Willian James constatava em 1911, ao afirmar... “não existe em psicologia nem uma só lei, no sentido em que utilizamos esta palavra no campo dos fenômenos físicos, nem um só princípio do qual se possa extrair conseqüências por via dedutiva” (apud Vigotski, 1997, p. 396), permanece como um desafio no campo psicológico, determinante de grandes esforços acadêmicos até os dias de hoje. A assunção deste desafio é uma das características da psicologia socioistórica desde seu surgimento e para Vigotski, um passo decisivo nesta direção consistia na formulação de uma psicologia geral. Fundamento que estaria para “as psicologias” tanto quanto a biologia está para a botânica, para a fisiologia, para a zoologia, para a ecologia, etc. Isto é... “para a disciplina geral o objeto de estudo é o geral, o que é próprio de todos os objetos da ciência em questão” (Vigotski, 1997, p. 265). Para este autor, as várias disciplinas constitutivas da psicologia (também denominadas sistemas ou correntes) se firmam independentemente, calcadas num paradoxo interessante: ao se afirmarem, cada uma delas, na base de preceitos gerais próprios, reiteram, por um lado, a inexistência da verdadeira psicologia geral e por outro, a impossibilidade da investigação científica em detrimento dela. Portanto, para Vigotski, as lacunas ou incompletudes da psicologia não seriam superadas por proposições intermináveis de outros e novos sistemas teóricos e, nesse sentido, foi enfático ao afirmar que seus esforços não apontavam na direção da proposição de uma “nova abordagem” psicológica ou de uma “psicologia marxista”, outrossim, na luta pela sistemalização das bases gerais sobre as quais pudesse ser edificada a psicologia científica. Referindo-se à tarefa por ele assumida, Vigotski (1997) afirma: 4 Porque esta não consiste em criar uma escola junto a outras escolas. Nem delimita uma parte ou faceta determinada, nem um problema, nem um procedimento de interpretação da psicologia, junto com outras partes, escolas, etc, análogas.Se trata de toda a psicologia em toda sua dimensão: de uma psicologia única, que não admite nenhuma outra. Se trata de realizar a psicologia como ciência {grifos do autor} (p.405). Tais considerações significam, então, que Vigotski estaria negando os demais estudos em prol da consolidação da denominada ciência psicológica? De maneira alguma e pelo contrário. Mas para a correta interpretação desta assertiva, duas observações são fundamentais. A primeira delas refere-se à compreensão de Vigotski acerca da propriedade dos objetos assumidos pela psicologia. Ou seja, indubitavelmente esta ciência deve debruçar-se sobre uma vasta gama de fenômenos, tais como o psíquico e suas propriedades, o inconsciente, o comportamento, etc. O problema presente na crise da psicologia não advém dos fatos, ou fenômenos, aos quais tem dedicado seus intentos explicativos e, assim sendo, o significado histórico desta crise não é de objeto. Ocorre porém, que tais fatos são sobejamente distintos e as explicações tecidas nos limites de suas especificidades particulares não conterão outra coisa senão, conceitos e explicações também particulares e unitárias. A superação das interpretações fracionárias que têm caracterizado a psicologia desde seu surgimento e ao longo de todo seu desenvolvimento demanda mudanças radicais em sua trajetória metodológica. Segundo Vigotski (1997) na configuração multifacetada da psicologia, qualquer fato psicológico expresso em cada um de seus sistemas teóricos independentes assumirá formas totalmente distintas, convertendo-se em fatos distintos! Daí que: À medida que a ciência avance, à medida que se acumulem os fatos, obteremos sucessivamente (...) generalizações distintas, (...) classificações distintas, (...) sistemas distintos, (...) ciências distintas, que se tornarão tanto mais distantes do fato comum que as unia e tanto mais distantes uma das outras, quanto maior seja o êxito com que se desenvolvam (p. 266/267). 5 Esta citação remete-nos à segunda observação concernente à proposição vigotskiana acerca da necessidade de constituição da psicologia científica, qual seja: a questão do método. Podemos afirmar, ainda que de modo bastante geral, que toda ciência se estrutura na base da delimitação de seu objeto e método. Conforme expresso anteriormente, se o nó górgio da psicologia não é da alçada do objeto, resta-nos então, identificá-lo em sua expressão metodológica. Este foi o raciocínio seguido por Vigotski ao dissecar a referida crise da psicologia. Vejamos, mais uma vez, o que nos ensina este autor. A possibilidade da psicologia como ciência é, antes de tudo, um problema metodológico. Em nenhuma ciência existem tantas dificuldades, controvérsias irresolúveis, uniões de questões diversas, como em psicologia. O objeto da psicologia é o mais difícil que existe no mundo, o que menos se deixa estudar; sua maneira de conhecer há de estar repleta de subterfúgios e precauções especiais para proporcionar o que dela se espera (1997, p. 387). Com esta consideração, dentre outras, o autor amplia sua análise sobre a psicologia apontando que à ela descortinavam-se duas possibilidades: ou como ciência ou como conhecimento de visões fragmentárias, e neste caso, impossível como uma ciência. Nesta direção, propõe e defende a tese segundo a qual a psicologia, como ciência dos fenômenos psíquicos reais, precisava ultrapassar-se a si mesma, superando a abstração e a atomização lógico formal sobre a qual se edificava. Para tanto, Vigotski advoga um novo enfoque metodológico para a psicologia, encontrando no materialismo histórico dialético o estofo epistemológico de suas formulações teóricas. Para ele... “a dialética abarca a natureza, o pensamento, a história: é a ciência mais geral, universal até o máximo. Essa teoria do materialismo psicológico ou dialética da psicologia é o que eu considero psicologia geral” (1997, p. 389). A formulação desta teoria foi perseguida por este autor em toda a sua breve existência 2 , e a ele se uniram para essa empreitada outros proeminentes psicólogos, dentre os quais, primeiramente, Alexis N. Leontiev e Alexander Romamovich Luria. Vigotski, Luria e Leontiev, integrantes da denominada “troika” (que em russo significa trio) encabeçaram a elaboração da Psicologia Científica; que não obstante os árduos esforços de seus proponentes 2 L.S. Vigotski nasceu em 1896 e faleceu em 1934. 6 na recusa de que se firmasse como mais uma matriz do pensamento psicológico; consagrou-se como Psicologia Histórico-Cultural ou Psicologia Sócio-Histórica. Mas, para a efetiva compreensão da análise tecida por Vigotski acerca das expressões da psicologia nos primórdios do século XX, bem como das bases sobre as quais se edifica a Psicologia Socioistórica, outros fatores revelam-se fundamentais. Ou seja, como fatos historicamente datados tais produções só podem ser verdadeiramente compreendidas em suas relações mais amplas, em seus vínculos com o momento histórico que lhes confere sustentação. Não se trata apenas de identificar, superficialmente, sob quais circunstâncias esta ciência se desenvolveu mas, sobretudo, apreender os nexos existentes entre as esferas das relações políticas, econômicas e sociais e o referido desenvolvimento. A Revolução de Outubro ocorrida no ano de 1917 na Rússia é um marco referencial de análise fundamental para a psicologia socioistórica. A conjuntura pós-revolucionária, profundamente marcada pela necessidade de (re)construção de toda uma sociedade, se instituiu como um grande movimento de transformações, em relação ao qual nenhuma ciência pôde isentar-se, em especial, as ciências humanas. Referindo-se especificamente aos rumos seguidos pela psicologia neste contexto, a psicóloga Martha Shuare (1990) afirma: A necessidade de resolver tarefas práticas na dimensão de toda uma sociedade retira a psicologia dos marcos acadêmicos tradicionais e esta deixa de ser uma ciência mais ou menos “neutra” no sentido de suas investigações de laboratório e deve não só verificar seus esquemas explicativos em situações reais, como deve dar respostas a problemas de significação vital para toda a sociedade (p. 25). Ainda segundo esta autora, aos debates presentes na psicologia russa na transição entre os séculos XIX e XX somaram-se outros, que traziam consigo as demandas pela construção de uma nova psicologia, requerida pelas circunstâncias históricas e consoante com a superação da sociedade burguesa em prol de uma outra ordem social. Tais debates, especialmente voltados para o problema da natureza dos fenômenos psíquicos e para a delimitação do objeto e métodos da psicologia, assumiram suas mais contundentes expressões nos congressos nacionais de Psiconeurologia ocorridos nos anos de 1923 e 1924, respectivamente em Moscou e Petrogrado. 7 Esses eventos foram decisivos para as mudanças nos rumos teórico-metodológicos trilhados pelos psicólogos soviéticos. Foi no Congresso de 1923 que se formulou pela primeira vez a necessidade de se fundamentar a psicologia nos pressupostos do materialismo dialético, dado que se fez acompanhado pela mudança, ainda no mesmo ano, na direção do Instituto de Psicologia da Universidade de Moscou, que sob a condução de K. N. Kornilov passou a congregar os esforços acadêmicos em prol das aproximações entre a psicologia e o marxismo. No centro dos debates travados neste período estavam a questão da dialética como método de investigação e a delimitação do objeto da psicologia, ainda fortemente marcada por duas posições: a definição de psiquismo como produto do cérebro e a concepçãosocial da natureza da consciência e da personalidade humana. No segundo Congresso ainda imperaram as discussões acerca do método e objeto da psicologia tendo em vista a construção de uma psicologia verdadeiramente científica. Não obstante os esforços, em especial de K. N. Kornilov, as aproximações entre o marxismo e a psicologia revelavam-se bastante incipientes, representando pouco além de uma transposição linear do primeiro sobre a segunda. Neste congresso Vigotski fez sua primeira apresentação de âmbito acadêmico nacional. Graças à notória repercussão de sua exposição foi convidado para trabalhar no Instituto de Psicologia da Universidade de Moscou, somando-se a outros jovens pesquisadores comprometidos com a elaboração efetiva de novos enfoques no campo da psicologia. Assim surgia a “troika”, a quem concede-se o mérito histórico de, pioneiramente, utilizar de modo criativo os princípios do materialismo histórico dialético nas investigações dos fenômenos psicológicos. Mas afinal, o que é materialismo histórico dialético... Até o presente, procuramos evidenciar que a psicologia socioistórica representa esforços em prol da formulação e consolidação de uma nova psicologia, que busca numa concepção filosófica determinada, o materialismo histórico dialético, os princípios metodológicos que lhe conferem sustentação. Portanto, a epistemologia marxiana, formulação filosófica cujos proponentes formam Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), é o esteio sobre o qual a psicologia socioistórica se desenvolve aliando-se aos ideais de superação do sistema político-econômico capitalista. 8 Sabidamente, toda formulação filosófica contempla uma concepção de homem, de sociedade, da relação entre esses pólos e, sobretudo, acerca das possibilidades de construção do conhecimento. Neste sentido, qualquer elaboração teórica, em especial nas ciências humanas, traz em seu bojo preceitos filosóficos. Entretanto, nem todas teorias evidenciam-nos e, muitas vezes, apenas pela via analítica podemos desvelar suas concepções ocultas. Diferentemente, a psicologia socioistórica não se omite de um claro posicionamento político- filosófico, tendo a compreensão do mesmo como requisito para seu efetivo domínio. Com esta assertiva procuramos alertar para a impossibilidade de divórcio entre esta matriz do pensamento psicológico e o sistema filosófico que medeia suas proposições. Tecidas estas considerações, dediquemo-nos ao estudo do materialismo histórico dialético que, por finalidades meramente didáticas, será apresentado em dois sub-ítens: materialismo histórico e materialismo dialético. 1 Materialismo Histórico... Por materialismo histórico devemos conceber o núcleo teórico-filosófico da epistemologia marxiana, produzido pela decodificação materialista dialética dos fenômenos da realidade, no que se inclui a natureza, a história, a vida social e o próprio homem. Preliminarmente é importante destacar o significado conferindo às expressões materialismo e histórico. Marx e Engels partem do princípio de que a realidade; e todos os fenômenos que a constituem; é material. Ou seja, existe objetiva e independentemente da consciência. 3 A matéria é, portanto, o dado primário da existência e dela tudo depende, inclusive a consciência e o próprio pensamento humano. As sensações, as idéias, os conceitos, etc. não emergem da consciência a partir de si mesma mas originam-se na materialidade do real. O mundo objetivo é que será captado pelos sentidos e representado pela consciência, a quem competirá torná-lo cognoscível. A realidade objetiva por sua vez, não é estática e idêntica a si mesma, pelo contrário, ela é uma miríade de fenômenos que resultam da matéria em movimento, de processos naturais e sociais que se transformam continuamente, do que se conclui: a realidade objetiva é a história de suas mudanças. Mudanças que não se processam de modo casual ou fortuito, mas 3 Para a correta interpretação desta tese é necessária uma brevíssima consideração sobre a posição filosófica idealista, à qual Marx e Engels se contrapõem. Para o idealismo a consciência é o a priori da existência e a realidade, a encarnação das idéias. Assim, apenas a consciência existe realmente e tudo o mais é por ela condicionado. 9 que são produzidas na e pela relação ativa homem-natureza e como expressa Shuare (1990) ... “o tempo humano é história tanto na vida individual como social; e nesta última, como história do desenvolvimento da sociedade, a atividade produtiva (transformadora) dos homens é o ponto nodal na compreensão do processo” (p.60). Nesta concepção, a história é o produto dos modos pelos quais os homens organizam sua existência ao longo do tempo e diz respeito ao movimento e as contradições do mundo, dos homens e de suas relações. Inclui o processo de evolução dos seres vivos, o processo de complexificação pelo qual passa esse ser, que, superando-se como ser biológico firma-se como ser social e histórico. Portanto, se todo existente é movimento, a dialética se apresenta no pensamento de Marx como a lógica pela qual ele deva ser compreendido. A lógica dialética fornece o caminho (método) para o conhecimento e interpretação da realidade em seu caráter material e histórico, e sobre esta questão discorreremos no item Materialismo Dialético. Tecidas estas considerações preliminares vejamos, então, as premissas centrais do materialismo histórico. 1.1 Centralidade do Trabalho Social Marx coloca o trabalho no cerne de suas formulações filosóficas. Porém, para compreendermos esta proposição é imprescindível o entendimento do trabalho em seu sentido ontológico. Na acepção marxiana ele não é sinônimo de emprego (ou ocupação), outrossim, representa a atividade vital do homem, pela qual ele se relaciona com a natureza e com os outros homens criando as condições necessárias de produção e reprodução da humanidade. Se o que caracteriza uma espécie, para além de sua organização biológica, é a atividade que ela executa para garantir sua vida e de seus descendentes, no caso do homem essa atividade é o trabalho social, doravante denominado também por atividade vital humana. Vejamos o que nos diz Marx (1989) sobre esta questão: Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma 10 para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica ao mesmo tempo sua própria natureza (p. 149). Ou seja, o homem, como parte da natureza, só pode sobreviver por seu constante metabolismo com ela. Esse metabolismo é garantido por sua atividade vital, o que o torna um ser natural ativo. Pertencendo à uma espécie animal e contando com determinado nível de estruturação biológica, por meio do trabalho supera sua condição primária como ser hominizado (que dispõe de dadas particularidades estruturais orgânicas) em direção à condição de ser humanizado (que dispõe de particularidades histórico-socialmente desenvolvidas). Referindo-se a este movimento de superação Leontiev (1978, p. 262) destaca três grandes estágios evolutivos. O primeiro compreende o estágio da evolução exclusivamente biológica, acentuadamente marcada pelas relações naturais e adaptativas do ser à natureza. Este estágio é seguidopor aquele no qual, graças a um determinado nível de desenvolvimento biológico já alcançado, principia um desenvolvimento embrionário de vida social. Este segundo é preparatório para o surgimento da espécie Homo sapiens, quando o desenvolvimento humano já não é condicionado ou determinado pela evolução biológica, mas sim, pelo estabelecimento de funções novas, próprias da vida em sociedade. Assim, a partir do terceiro estágio, o desenvolvimento humano passa a pressupor a superação de um sistema de vida dominado por uma natureza dada (plano biológico) em direção a um sistema de vida criador de uma natureza adquirida (plano histórico-social). Este processo ocorre por meio da atividade vital humana que, para tanto, não pode ser determinada casualmente. As conquistas do desenvolvimento referido só se verificaram na medida em que encerraram ações intencionais. É esta dimensão teleológica que distingue a atividade especificamente humana das demais formas vivas de atividade. Toda ação verdadeiramente humana pressupõe a consciência de uma finalidade que precede a transformação concreta da realidade natural ou social e, desse modo, a atividade vital humana é ação material consciente e objetiva, ou seja: é práxis. A práxis compreende a dimensão autocriativa do homem, sintetizando a dimensão objetiva (“prática”) e a dimensão subjetiva (“teórica”) de seu ser, que se realiza na contínua transformação da realidade e de si mesmo. Este processo formativo já não mais será garantido por relações naturais, biológicas mas sim pela estruturação da consciência. Ao superar as barreiras biológicas de sua espécie o homem rompeu, também, a fusão necessidade/objeto 11 (que permanece própria dos demais animais), e na base deste salto qualitativo se desenvolveram novas propriedades, dentre as quais se destacam as funções cognitivas e afetivas. O animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É a sua própria atividade. Mas o homem faz da atividade vital o objeto da vontade e da consciência. Possui uma atividade vital consciente. Ela não é uma determinação com a qual imediatamente coincide. A atividade vital consciente distingue o homem da atividade vital dos animais. Só por esta razão é que ele é um ser consciente (...) (Marx, 1989, p. 164/165). Fica assim evidente que o trabalho engendra a estruturação da consciência e essa, por sua vez, o regula. Apenas o homem pode fazer de sua atividade objeto de suas intenções e análises, pode dela distanciar-se, ampliando possibilidades e promovendo a autodeterminação de suas ações. Marx rompe decisivamente com qualquer concepção idealista, supra histórica de consciência, evidenciando a impossibilidade de sua compreensão se não, na relação ativa que vincula o homem às suas condições objetivas de existência. Tais condições objetivas não podem ser simplesmente identificadas como meio externo em que vive o homem. É fundamental sabê-las produzidas pelas relações históricas e expressas sob a forma de objetivações humanas . Tendo em vista melhor explicitação desta idéia, recorramos à Duarte (1993, p. 133/135) ao caracterizar a dinâmica própria da atividade vital pela relação entre apropriação e objetivação. Conforme exposto anteriormente o trabalho social operou, e continua operando, decisivamente para a humanização do homem. Dentre suas inúmeras propriedades duas, em especial, se destacam: o trabalho demanda meios e resulta em produções, isto é, sintetiza apropriações e objetivações. Segundo Duarte (1993): A dinâmica própria da atividade vital humana, a relação entre objetivação e apropriação, se realiza, portanto, sempre em condições determinadas pela atividade passada de outros seres humanos. A relação entre objetivação e apropriação não se realiza sem a apropriação das objetivações existentes. “Os homens fazem as circunstâncias”, isto é, se objetivam, mas as fazem a partir de suas possibilidades 12 objetivas e subjetivas resultantes do processo de apropriação das circunstâncias existentes, isto é, “as circunstâncias fazem os homens”. {grifos do autor} (p. 40). As objetivações representam o resultado de uma ampla prática social efetivada pela produção e utilização de instrumentos, da linguagem, da ciência, da arte, da moral, etc; fixando-se como produtos da história passada e esteio da história futura. As apropriações na direção das aquisições desse patrimônio humano-genérico e por esta via, promovem a formação em cada indivíduo particular das características, possibilidades e condições objetivas de desenvolvimento alicerçadas pelas objetivações já efetivadas. Também referindo-se à importância da dinâmica entre apropriação e objetivação, Leontiev (1978) afirma: A principal característica do processo de apropriação ou de “aquisição” que descrevemos é, portanto, criar no homem aptidões novas, funções psíquicas novas. É nisto que se diferencia do processo de aprendizagem dos animais. Enquanto esse último é o resultado de uma adaptação individual do comportamento genérico a condições de existência complexas e mutantes, a assimilação no homem é um processo de reprodução, nas propriedades do indivíduo, das propriedades e aptidões historicamente formadas pela espécie humana {grifos do autor} (p. 270). Com estas considerações procuramos demonstrar a essência da socialidade humana, isto é, que as condições objetivas de vida de cada homem encerram as apropriações das objetivações que lhe são acessíveis, ou, socialmente disponibilizadas. É no processo ativo que vincula o homem à realidade objetiva que ele desenvolve suas potencialidades e capacidades, apropriando-se do patrimônio humano-genérico e objetivando-se nos seus atos, enfim, que ele conquista a condição de e para ser humano. 1.2 As bases das relações sociais são as relações sociais de produção Pelo exposto, depreendemos que o homem se constitui como tal graças às peculiaridades de sua atividade vital, isto é, graças ao trabalho social. Dentre tais peculiaridades destacamos o processo dinâmico que se estabelece entre apropriações e objetivações como um de seus elementos centrais. Graças a este processo o homem, 13 historicamente, tem consolidado os modos pelos quais garante sua sobrevivência, ou, na condição de ser social ativo, produz as suas condições de vida. Ocorre porém, que esta produção não é um ato solitário, os homens não produzem individualmente os meios de sua sobrevivência, pelo contrário, produzem em comum, interdependentemente. Por mais reduzidas que pudessem ser as objetivações necessárias à vida de um indivíduo, seria impossível pensá-lo criando-as e produzindo-as por si mesmo. E é por isso que, sejam quais forem as condições, a produção humana é sempre uma produção social. Nela e por meio dela os homens estabelecem relações que não são imediatas e nem circunscritas à produção de bens materiais, outrossim, edificam o modo de ser da sociedade. Portanto, na base de todas as relações sociais estão as relações sociais de produção. Ou seja, o trabalho por sua natureza é uma atividade coletiva e assim sendo, os homens organizam-se em sociedade para produzirem suas condições de vida. E é exatamente no bojo dessas relações de produção que os homens constroem não apenas os meios para sua sobrevivência mas, sobretudo, edificam a si mesmos. Neste sentido, o aspecto essencial em toda e qualquer sociedade é o modo de produção sobre o qual se erige. A história de seu desenvolvimento se revela na história do desenvolvimento das forças produtivas - modos e meios pelos quais o homem produz - e das relações que, para tanto, estabeleceram entre si. São as mudanças nosmodos de produção que provocam as transformações dos modelos organizativos da sociedade, ou seja, do sistema político e econômico que lhe dá sustentação. Por isso, o elemento central na caracterização de uma sociedade não reside nas idéias que os homens tecem sobre ela, mas no tipo de relação de produção que nela se pratica. Em face destas idéias torna-se necessária a distinção entre o que Marx e Engels caracterizam como forças produtivas e relações de produção. As forças produtivas indicam os instrumentos (objetivos e subjetivos) por meio dos quais os homens produzem os bens materiais que lhes são necessários, as relações de produção mostram na posse ou a serviço de quem se encontram os meios de produção. Grosso modo, o desenvolvimento das forças produtivas desde os primórdios da humanidade até os nossos dias pode ser assim representado: transição dos utensílios de pedra aos de metal; passagem à agricultura; aprimoramento dos utensílios de metal e aparecimento da olaria; surgimento de ocupações artesanais e separação destas da agricultura; desenvolvimento da manufatura; transição dos instrumentos de produção artesanal à maquina e transformação da produção artesanal-manufaturada em indústria mecanizada; complexificação do sistema de 14 máquinas e expansão da mecanização moderna seguida da automação do trabalho pelas sofisticadas conquistas tecnológicas. É na base destas transformações que se desenvolvem, também, as relações de produção, isto é, as bases econômicas da sociedade. Marx (1986, p. 84/86) em análise da história das relações de produção destaca a existência de dois grandes estágios, dos quais infere a existência de um terceiro. O primeiro compreende as sociedades pré-capitalistas (comunidades primitivas, escravatura e regime feudal); o segundo, a sociedade capitalista e o terceiro, postula a superação da sociedade burguesa. Tendo em vista os objetivos deste texto, vamos nos ater às considerações por ele tecidas em relação ao segundo estágio. O capitalismo se institui superando a unidade imediata entre os homens e suas condições de existência que caracteriza as formas de organização pré-capitalistas. Nelas, o objetivo econômico era a produção de valores de uso e as relações estabelecidas pelos homens em face de suas condições sociais de existência não se diferenciavam, substancialmente, daquelas estabelecidas entre eles e suas condições naturais e contingentes de existência. Diferentemente, no sistema capitalista a produção de valores de uso cede espaço (e importância) para a produção de valores de troca e as condições de existência dos homens já não lhes serão naturalmente dadas mas sim, condicionadas pelas relações sociais das quais participam. Marx (1986) afirma que no capitalismo... “a produção aparece como objetivo do homem e a riqueza como objetivo da produção” (p. 447), e assim sendo, absolutizando o valor de troca esse sistema confere primazia total à produção de mercadorias. A propriedade privada dos meios de produção (primitivamente instituída nos regimes escravocrata e feudal) sofistica-se a passos largos, consolidando-se como substrato, como base, das relações de produção. Portanto, no capitalismo co-existem aqueles que detêm a posse dos meios de produção e aqueles que delas são desprovidos, a quem resta apenas a venda da força de trabalho. Assim, se instituem como características inerentes a ele (capitalismo) a luta de classes e a alienação, que são geradoras de contradições insolúveis na ausência de transformações na relação capital-trabalho. Na sociedade burguesa passam a imperar as condições para o trabalho alienado (que não é o verdadeiro trabalho, em seu significado marxiano filosófico) e por isso Marx deixa claro em toda sua obra que a condição para conquista do terceiro estágio na história da humanidade é a abolição-superação do trabalho alienado fundado na propriedade privada dos meios de produção. Em análises que realiza acerca do não-trabalho, este autor destaca a 15 alienação na relação entre o indivíduo e o produto de seu trabalho, na relação entre o indivíduo e o processo de produção e na relação entre o indivíduo e o gênero humano. Vejamos, ainda que brevemente, o que nos diz. Todo trabalho implica objetivações, isto é, a objetivação é a fixação do trabalho em objeto. O processo de objetivação do trabalho parte dos homens, expressa capacidades humanas que ao se materializarem sob a forma de objeto já não são mais elas mesmas, tornam-se objetivadas. As objetivações, por sua vez, colocam-se como conteúdos das apropriações para o atendimento dos carecimentos humanos. Entretanto, se por conta de determinado modo de organização social as objetivações do trabalhador não se constituem em objetos de suas apropriações, o produto do trabalho deixa de ser o engrandecimento de todos os homens, ou seja, o produto do trabalho deixa de pertencer ao trabalhador tornando-se dele independente, alienado. Eis o cerne da alienação entre o indivíduo e o produto de seu trabalho. Considerando-se que não existe produto sem um processo que lhe possibilite, sob condições de alienação o curso trilhado na produção também apartar-se do trabalhador, convertendo-se em ações que não lhe pertencem. O processo de produção existe fora dos homens, ainda que como manifestação de sua própria vitalidade. Esta exteriorização é, portanto, a objetivação das capacidades humanas e ao mesmo tempo a efetivação das possibilidades de seu desenvolvimento. Porém, quando a exteriorização se converte em alheiamento, quando o processo de produção demanda meramente ações conformadoras da força de trabalho comprada pelo proprietário dos meios de produção, o trabalho se empobrece, deixando de ser a condição fundante das capacidades, das aptidões e habilidades humanas. Desta forma, na medida em que a alienação se expressa tanto na relação do indivíduo com o produto do seu trabalho quanto no processo de produção ela promove, também, a ruptura, o distanciamento entre o indivíduo e o gênero humano. Pelo trabalho alienado o trabalhador enriquece o gênero humano (a totalidade social) na mesma medida em que empobrece sua existência individual, cuja finalidade última deveria ser a objetivação do sujeito como ser genérico. Diante do exposto fica claro que para Marx, sob dadas condições que são histórico- sociais (e não naturais), o homem deixa de ser sujeito de sua atividade vital convertendo-se em objeto dela. Nestas condições não são mais os autores do desenvolvimento de suas 16 capacidades e de seu crescimento como pessoas, convertendo-se em mercadorias de um tipo especial, aptas à produção de outras mercadorias. Portanto, o esvaziamento da existência humana em condições de alienação abarca tanto sua expressão no âmbito do trabalho social quanto no âmbito da vida pessoal, uma vez que a ordem das relações políticas e econômicas subordina a si o próprio desenvolvimento da consciência dos homens. Enfim, como afirma Lucien Sève (1979, p. 279), a economia doméstica reflete a economia política! Em suma, o materialismo histórico postula que apenas pela apropriação das objetivações humano genéricas foi e continua a ser possível a transformação do ser orgânico, do ser meramente biológico, em ser social, devendo-se a Marx e Engels a originalidade desse pressuposto; para quem o trabalho representa a gênese do ser social, o fenômeno central e decisivo da humanização. Na base deste pressuposto anunciam o trabalho em sua dimensão ontológica, meio pelo qual o homem estabelece um intercâmbio com a natureza definido intencionalmente, fundamento do salto qualitativo que se processa do animal ao homem. Este processo de transformação resulta daatividade vital humana, condição imprescindível para a plena realização da humanização dos homens. Entretanto, a efetivação da atividade objetivadora, social e consciente só é possível pelo trabalho realizado ontologicamente, a demandar a superação das relações determinadas pela alienação, cujo fundamento reside na propriedade privada dos meios de produção, no sistema do dinheiro - no capital. 2 Materialismo Dialético ... Conforme afirmamos anteriormente, denomina-se materialismo histórico dialético à epistemologia marxiana. Até o presente, dedicamo-nos aos preceitos centrais que constituem o materialismo histórico, procurando explicitar quais são os fatores que convertem as relações sociais de produção em bases das relações sociais e a realidade numa totalidade objetiva em contínuo movimento. É exatamente na busca de decodificação da realidade no trânsito metabólico homem-natureza que a lógica dialética desponta no pensamento marxiano como método, ou, como instrumento gnosiológico para a apreensão do real em sua historicidade. Segundo Kopnin (1978) 17 A dialética materialista reflete, deste modo, as leis do movimento dos objetos e processos do mundo objetivo, incluindo o homem e sua sociedade, que atuam como princípios e formas de atividade do pensamento. E neste sentido a dialética marxista desempenha, em nova base filosófica, as funções quer de ontologia, quer de gnosiologia, lógica e antropologia filosófica, sem reduzir-se a qualquer uma delas separadamente ou a soma de todas (p. 65). O materialismo dialético como método, sistematiza princípios que orientam a construção do conhecimento de todos os aspectos de um fenômeno, da realidade e sobretudo, das relações mútuas, das interdependências que entre eles existem e por isso prima por ser um método de compreensão do real como totalidade. Mas para a efetiva compreensão desta assertiva torna-se necessária uma breve digressão acerca da relação sujeito-objeto na construção do conhecimento. Conforme expusemos em outro texto (Abrantes e Martins, 2007) a referida relação sintetiza as formas pelas quais o homem se relaciona com os fenômenos da realidade construindo os conhecimentos imprescindíveis a essa relação. O sujeito cognoscitivo é o ser humano, entendido como ser social e histórico, o objeto a ser conhecido é a realidade, entendida como produto da ação humana. Ocorre porém, que inexiste sujeito sem apropriação do real, da mesma forma que inexiste realidade humana independente das objetivações dos sujeitos. Portanto: (...) a unidade sujeito-objeto reitera o papel do pensamento no processo de conhecer a realidade, ao mesmo tempo em que afirma a primariedade da realidade em relação ao pensamento. O conhecimento não emana nem do pólo concreto, representado pelo objeto (realidade), nem do pólo abstrato, representado pelo sujeito (pensamento), concentrando-se no movimento entre esses pólos, na relação entre a realidade e a consciência sobre ela (Abrantes e Martins, 2007, p. 315). Estas considerações visaram favorecer a compreensão de que a dialética é adotada por Marx como possibilidade de superação da dicotomia, da separação sujeito-objeto, ou, em última instância, dos dualimos lógico formais que imperaram durante séculos no campo científico. 18 Assim, antes de avançarmos em direção aos preceitos gerais do método materialista dialético apresentemos, ainda que em linhas bastante gerais, as principais diferenças entre a lógica formal e a lógica dialética. 2.1 Lógica: lógica formal e lógica dialética A lógica, cujo esteio é a filosofia, é definida como ciência dos processos de pensamento (Kopnin, 1978; Novack, 1993). Seu objeto é o processo de pensamento presente na formulação de princípios explicativos, ou seja, é o sistema de pensamento que conduz determinado modo de raciocínio. Os filósofos que se dedicam à lógica investigam como o pensamento se articula internamente ao visar a construção do conhecimento, procurando identificar as premissas presentes na formulação dos juízos acerca dos fenômenos. Podemos afirmar que a lógica é tão antiga quanto a própria filosofia, devendo-se aos trabalhos filosóficos dos antigos gregos as suas primeiras formulações. Foi Aristóteles (384- 322 a.C) quem pioneiramente compilou, classificou e sistematizou-as num sistema único denominado lógica formal. Porém, a proposição do sistema aristotélico não é sinônimo de abrangência absoluta de todas as formulações filosóficas que já existiam, pois ele, para assegurar a coerência interna nesse sistema, descartou a dialética. A palavra dialética advém do grego dialektiké que significa debater ou conversar para se chegar à verdade descobrindo e superando a contraditoriedade presente no raciocínio do interlocutor. Seu proponente foi Heráclito (530-428 a.C.), para quem a divergência era o fator determinante no movimento das idéias e a transformação de todos os fenômenos, a implacável expressão da existência. A este filósofo deve-se a tão conhecida frase acerca do fato que nenhum homem poderá banhar-se duas vezes nas águas do rio, porque nem o homem nem o rio serão mais os mesmos, embora em seu tempo suas idéias não tenham recebido grandes atenções. Foi muito posteriormente, com Hegel (1770-1831) que a dialética ressurgiu na filosofia como importante objeto de estudo, devendo-se a ele a formulação da dialética como método propositivo do princípio da contradição, fundamento do movimento e da transformação das idéias (dialética idealista). Marx e Engels foram discípulos de Hegel mas, na busca por um método de decodificação do real, para a formulação do materialismo dialético, reinterpretaram a dialética hegeliana superando o viés idealista e espiritualista que nela imperava. Marx considerava que 19 Hegel estava correto porém, suas idéias estavam colocadas de cabeça para baixo. Para Hegel, o movimento do pensamento, a Idéia, cria a realidade, ou seja: o real é a manifestação fenomênica do ideal. Diferentemente para Marx, o movimento do pensamento é o reflexo do movimento do mundo real, que existe por anterioridade em relação à consciência. Tecidas estas considerações históricas gerais sobre a lógica formal e a lógica dialética, outra consideração é importante, qual seja: a lógica dialética não descarta ou exclui a lógica formal, mas outrossim, incorpora-na por superação. Referindo-se ao método materialista histórico dialético em suas expressões lógicas, Saviani (1986, p. 11) afirma que a lógica formal e a lógica dialética não se excluem porque possuem, inclusive, objetos diferentes. O objeto da lógica dialética é o processo de construção do concreto pelo pensamento, enquanto o objeto da lógica formal é o processo de construção da forma do pensamento. A primeira é, portanto, lógica concreta, a segunda, lógica abstrata. Como a apreensão do concreto não ocorre sem a mediação do abstrato, a lógica formal integra-se à lógica dialética, tornando-se parte dela. Tal como afirmado por Hegel (apud Novack, 1993, p. 12) ... “nada se conhece realmente até que se conheça seu oposto”. Portanto, o real conhecimento e utilização da lógica dialética demanda o conhecimento e utilização da lógica formal e vice-versa. Nesta direção, vejamos quais são as principais leis da lógica formal e, na seqüência, da lógica dialética. Cabe observar que o tratamento sintético ora dispensado às referidas leis decorre do objetivo introdutório deste texto, uma vez que complexidade das mesmas comportaria, indiscutivelmente, estudos específicos. 2.1.1 – A lógica formal e suas leis básicas Segundo Kopnin (1978, p.71/73), os princípios básicos da lógica formal são:lei da identidade; lei da inadmissibilidade da contradição e lei do terceiro excluído. A lei da identidade, seu princípio central, aponta que qualquer dado é sempre igual a si mesmo. Se A é igual a A, permanecerá como tal sob qualquer circunstância. De acordo com esta lei, nada pode ser e não ser ao mesmo tempo, isto é, ser a si mesmo e a algo distinto concomitantemente. Suas mais significativas expressões na construção do conhecimento residem na classificação e identificação dos fenômenos. Graças ao princípio da identidade os dados podem ser agrupados, categorizados e classificados mediante a identificação, por comparação, de suas semelhanças e diferenças. 20 A lei da inadmissibilidade da contradição afirma a absoluta distinção entre identidade e diferença, operando como corolário da lei da identidade. Se A é igual a A (princípio da identidade), não pode ser Não A, ou seja, nega-se a diferença na essência das coisas. Este princípio, possibilitando o discernimento da diferença, subsidia a análise, auxiliando a parcialização (ou “recorte”) dos distintos aspectos de um fenômeno apreendendo-se cada um deles em sua essencialidade particular. Conforme esta lei, se A é um juízo (proposição do pensamento) verdadeiro, no mesmo sistema dedutivo não pode ser verdadeiro o juízo contrário a A, ou seja, nesta forma de raciocínio subtrai-se um entre vários juízos preterindo-se os outros que o contrariam. A lei do terceiro excluído postula que se dois juízos que se contrariam não podem ser verdadeiros e falsos ao mesmo tempo (inadmissibilidade da contradição), se um deles é verdadeiro o outro é falso e vice-versa. Assim, um juízo é e só pode ser ele mesmo, isto é, não pode ser parte de duas classes opostas ao mesmo tempo. Quando duas proposições opostas se confrontam, ambas não podem ser verdadeiras e falsas concomitantemente. Os princípios da lógica formal como recursos metodológicos para a construção do conhecimento alcançam seu apogeu a partir do século XVII pelas mãos de Francis Bacon (1561-1626) e Renée Descartes, ou, Renato Cartesius, como ele assinava em latim (1596- 1650) que elegeram a veracidade do conhecimento como objeto de suas reflexões filosóficas. Ao primeiro deve-se a proposição pioneira da experimentação como critério de cientificidade e ao segundo, a ênfase na razão e a afirmação do universo constituído por apenas duas substâncias, mente e matéria, a partir da qual instalam-se os inúmeros dualismos característicos do pensamento científico, isto é, a ciência cartesiana. 2.1.2 A lógica dialética e suas leis básicas Nas formulações epistemológicas modernas, a lógica formal conserva seu significado como fundamento do conhecimento dedutivo, não obstante promover a apreensão da realidade como dado estático e parcial. Entretanto, o real, aquilo que existe de fato, não se institui em alternativas excludentes (lógica do ou isso ou aquilo), mas sim, na alternância entre, que se efetiva pelas contradições que encerra. Diferentemente da lógica formal, a lógica dialética volta-se para o estudo do movimento, da contradição e das mudanças que elas promovem. Dentre suas leis básicas destacam-se: a lei da totalidade; a lei da contradição e a lei do movimento. 21 Ao apreender os fenômenos em sua totalidade a dialética os afirma como sínteses de múltiplas determinações, ou seja, a realidade congrega fenômenos que são essencialmente intervinculados e interdependentes e, assim sendo, é impossível construir qualquer conhecimento objetivo, explicar de fato o real, levando-se em conta as partes ou os aspectos isolados que lhe constituem. Por esta razão, o método dialético abarca o existente como um todo único no qual os fenômenos articulam-se organicamente. Postula que para serem compreendidos objetivamente os dados precisam ser reconhecidos sob o ângulo dos condicionantes que os cercam. A lei da contradição parte do princípio que todos os objetos e fenômenos da natureza encerram contradições internas. Ao contrário do pressuposto formal da identidade, postula que tudo é e não é ao mesmo tempo. Entretanto, não se trata de reconhecer opostos confrontados exteriormente, mas tê-los como interiores um ao outro, no que reside a denominada identidade dos contrários. Trata-se da afirmação da unidade indissolúvel dos opostos que contrapondo-se a si mesmos, transformam-se continuamente. Tomemos, a título de exemplo, uma dada afirmação A: como tal, a afirmação A se sustenta na unidade com seu oposto, na unidade com a afirmação B. Na tensão entre seus opostos as afirmações A e B se transformam. Negando-se mutuamente revelam-se em outra positividade, afirmação C, que conterá igualmente o germe de sua negação e assim, sucessivamente. Dai que todo e qualquer desenvolvimento não é outra coisa, senão, o movimento sintetizado pela luta dos contrários. A lei do movimento reflete a constatação da realidade como incessante transformação e renovação. Por isso, o método dialético, além de pressupor sua apreensão como totalidade e luta de opostos, exige seu reconhecimento do ponto de vista de seu movimento e desenvolvimento. Cada fenômeno, cada objeto, deve ser captado em seu trânsito, naquilo que congrega não apenas em seu estado atual mas, especialmente, como chegou a ser o que é e como poderá ser diferente. Assim, o desenvolvimento revela-se como resultado da acumulação de mudanças quantitativas expressas em mudanças qualitativas. Toda transformação é uma passagem da quantidade à qualidade, é um movimento progressivo, ascendente, que perpassa do simples ao complexo. Em suma, a lógica formal e a lógica dialética apresentam enfoques distintos no estudo científico dos fenômenos e para se expressarem em suas máximas possibilidades devem operar em unidade. A lógica dialética como lógica da totalidade não prescinde da lógica formal mas revela os limites nela presentes ao se pretender como metodologia 22 universal para a elaboração do conhecimento científico, e é neste sentido que a incorpora por superação. 2.2 Premissas gerais do método materialista histórico dialético Uma vez apresentadas as premissas que balizam a epistemologia marxiana, vejamos agora quais são as suas formulações metodológicas gerais. Para o materialismo histórico dialético a construção do conhecimento objetivo demanda a superação da apreensão aparente em direção à apreensão essencial do fenômeno. Postula que o mundo empírico representa apenas a manifestação fenomênica da realidade em suas definibilidades exteriores, isto é, os fenômenos imediatamente perceptíveis desenvolvem-se à superfície da essência do próprio fenômeno. Fundamentando-se neste princípio marxiano, Kosik (1976, p.168) afirma que a essência do fenômeno não está posta explicitamente em sua pseudoconcreticidade (concretude aparente) e não se revela de modo imediato, mas sim, pelo desvelamento de suas mediações e de suas contradições internas fundamentais. A construção do conhecimento demanda então, a apreensão do conteúdo do fenômeno, prenhe de mediações históricas concretas que só podem ser reconhecidas à luz das abstrações do pensamento, isto é, do pensamento teórico. Portanto, o conhecimento calcado na superação da aparência em direção à essência requer a descoberta das tensões imanentes nas intervinculações entre forma e conteúdo. Desse modo, se queremos descobrir a essência de um dado objeto, precisamos caminhar das representações primárias e das significações evidentes em sua imediatez sensível em direção à descoberta das suas múltiplas determinações ontológicas do real. Assim, não nos basta o que é visível aos olhos pois o conhecimento da realidadeem sua objetividade requer a visibilidade promovida pela máxima inteligência dos homens. Uma outra exigência para o estudo dos fenômenos em sua essencialidade concreta diz respeito à sua decodificação à luz da dialeticidade singular-particular-universal. Segundo Lukács (1970) nos nexos existentes nessa dialeticidade residem os fundamentos para a autêntica compreensão da realidade. Em sua expressão singular, o fenômeno revela o que é em sua imediaticidade e, em sua expressão universal revela sua complexidade, suas conexões internas, as leis de seu desenvolvimento e evolução, enfim, a sua totalidade histórico-social. Ocorre que nenhum fenômeno se expressa apenas em sua singularidade ou universalidade. Como opostos, se identificam, e a contínua tensão entre eles se manifesta na 23 configuração particular do fenômeno. É apenas na particularidade que ele (fenômeno) assume as especificidades pelas quais a singularidade se constitui em dada realidade e de modo determinado, porém, não completo, não universal. Em suma, a implementação do método marxiano pressupõe como ponto de partida a apreensão do real empírico, imediato, que convertido em objeto de análise por meio dos processos de abstração resulta numa apreensão de tipo superior, expressa-se como concreto pensado. Porém, esta não é a etapa final do processo, uma vez que as categorias interpretativas, as estruturas analíticas constitutivas do concreto pensado serão contrapostas em face do objeto inicial, agora captado não mais em sua imediatez mas, em sua totalidade concreta. Este processo pode ser assim sintetizado: parte-se do real aparente (empírico), procede-se à sua exegese analítica (mediações do pensamento), retorna-se ao real, agora captado como real concreto ... como síntese de múltiplas determinações. Neste sentido, o método marxiano tem a prática social como referência nuclear da construção do conhecimento e nela residem os seus critérios de validação. Finalizando... A psicologia socioistórica representa os inúmeros esforços para a formulação de explicações acerca do psiquismo sem desgarrá-lo das condições objetivas que sustentam sua formação, encontrando no materialismo histórico dialético o aporte filosófico de suas proposições. Os postulados da epistemologia marxiana se concretizam nela tanto no plano teórico, como estofo de seus princípios e concepções científicas gerais, quanto no plano metodológico, isto é, nas articulações entre os fundamentos teóricos e os dados empíricos de investigação. Neste sentido, o estudo dos fundamentos epistemológicos da psicologia socioistórica representa o primeiro passo para a compreensão de seus postulados. Portanto, tendo em vista a orientação desse estudo, apresentamos algumas questões que possam auxiliá-lo: 1 – Em “O significado histórico da crise da psicologia” Vigotski destaca que o problema desta ciência não é de objeto mas de método. Explique esta afirmação. 2 – Para uma efetiva compreensão do desenvolvimento humano devem ser levados em conta, sempre, os seus constituintes bio – psico - sociais. Esta afirmação é representativa da lógica formal ou da lógica dialética. Justifique sua resposta. 24 3 – Na realidade, uma pessoa nunca é igual a si mesma, pois, todos os fenômenos mudam constantemente. Quais leis da lógica formal são contrariadas nesta afirmação. Explique-as. 4 - Interprete o poema musical indicado fundamentando-se nas leis da lógica dialética: “Debulhar o trigo. Recolher cada bago do trigo. Forjar do trigo o milagre do pão e se fartar de pão. Decepar a cana. Recolher a garapa da cana. Roubar da cana a doçura do mel, se lambuzar de mel. Afagar a terra. Conhecer os desejos da terra. Cio da terra, propícia estação, de fecundar o chão” (Cio da Terra, Milton Nascimento). 5 – Analise, fundamentando-se no estudo do texto em pauta: “O que eu acho é que nunca vivemos tanto na caverna de Platão como hoje. Porque as próprias imagens que nos mostram da realidade, de tal maneira, substituem a realidade. Nós estamos no mundo a que chamamos mundo audiovisual. Nós estamos repetidamente a repetir a situação das pessoas aprisionadas ou atadas na caverna de Platão, olhando em frente, vendo sombras e acreditando que estas sombras são realidade” (José Saramago). Referências Bibliográficas: Abrantes, A. e Martins, L.M. A produção do conhecimento científico: relação sujeito-objeto e desenvolvimento do pensamento. Botucatu: Interface – Comunicação, Saúde e Educação, v. 11, n. 22, p. 313/325. Duarte, N. A individualidade para si: contribuição a uma teoria histórico-social da formação do indivíduo. Campinas: Autores Associados, 1993. Kopnin, P.V. A dialética como lógica e teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. Kosik, K. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1976. Leontiev, A.N. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978. Lukács, G. Introdução a uma Estética Marxista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. Marx, K. Elementos fundamentales para la crítica de la economia política. México: Siglo Veintiuno Editores, 1986. Marx, K. Manuscritos econômico-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989. Novack, G. Introdução À Lógica Marxista. Belém: Universidade Federal do Pará, 1993. Saviani, D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1986. Sève, L. Marxismo e a teoria da Personalidade. Lisboa: Horizonte Universitário, v. 2, 1979. 25 Shuare, M. La psicología soviética tal como yo la veo. Moscú: Editorial Progresso, 1990. Tuleski, S. Reflexões sobre a Gênese da Psicologia Científica. In: Duarte, N. (org.) Crítica ao Fetichismo da Individualidade. Campinas: Autores Associados, 2004, p. 121/144. Vigotski, L.S. Obras Escogidas. Tomo I. Madrid: Visor, 1997.
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