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transcendente Transcendente feita por: ? QUE ER O Q UE? CIS? TRA NS? GENDERLESS? HETERONORMATIVIDADE? BINARIO? NAO-BINARIO? PER FOR MAN CE? LGB TQI ? D IS C U R SO ? IDENTIDADE DE GENERO? CONSTRUCAO SOCIAL?DILDO? Editores: Carolina Andrade; Nathália Pereira; Rafael Polcaro; Rafaella Rodinistzky Projeto gráfico: Rafaella Rodinistzky Capa: Thalita Lefèr Convidados: Eduardo de Jesus; Jordana Andrade; Meryl Dith; Nathália Schiavon; Patrícia da Cruz; Ralf Prince; Sarah Queiroz; Thalita Lefèr Editorial ? QUE ER O Q UE? HETERONORMATIVIDADE? NAO-BINARIO? PER FOR MAN CE? D IS C U R SO ? Interrogações, conteúdos e propostas. Transcendente, em sua segunda edição, inicia uma reflexão sobre a identidade e os fatores que a constituem. A Teoria Queer fornece as lentes para encarar o gênero, a sexualidade e a identidade como performance, linguagem, comunicação. A partir dessa possibilidade interpretativa, Transcendente também investiga as interlocuções de as- pectos queer, LGBTQI e periféricos com a música, a arte, o cinema e a cidade. A teoria sai do ambiente acadêmico e navega pela cultura, pelo uso de diferentes linguagens para a construção da individualidade, seja por meio da poesia, do protesto, dos quadrinhos, das letras de música e riffs de guitarra, da moda ou do cinema. De que formas o uso e reconhecimento do segmento de roupas genderless (sem gênero) pode favorecer o recon- hecimento das identidades não-binárias? Como os corpos e, consequentemente, a identidade que eles constituem e representam podem navegar e interagir com a cidade? O curta cearense “Virgindade” (2014) utiliza a estética do cin- ema com o potencial de representar uma cidade vibrante pelo desejo e pela intensidade da experiência? Os espaços urbanos são únicos a cada quarteirão. A vivência queer pode ser fundamentalmente diferente entre a Praça da Liberdade e a Praça da Estação. O sarau no Baixo Centro de Belo Horizonte pode ser tão político quanto o movimento das paradas LGBTs. Os corpos - e individu- alidades que representam - ocupam, se materializam e se fazem vistos, presentes. Se fazem, também, ouvidos, entre riffs, rebeldia e muito glamour, em que a não-binariedade e as identidades autênti- cas ultrapassam as barreiras do gênero, seja ele musical ou sexual. Sem o som, a imagem, a ilustração e a linguagem, o queer não se constitui, não conversa. Entre essas e outras pautas, conheça, questione, transcenda. CONSTRUCAO SOCIAL? mergulhe transcenda 3 8 3 9 mergulhe transcenda PATRÍCIA DA CRUZ ILUSTRA O ÍNDICE behance.net/patricia_cruz Pisciana de 21 anos, estudante de Design Gráfico. Adoro me aven- turar na cozinha, fazer ilustrações de qualidade duvidosa, planejar viagens que (provavelmente) não vão acontecer e comer. Sonho que um dia vou poder unir o Design e a cozinha abrindo uma confeitaria hipster em Nova York. Eu já mencionei que sou pisciana? 0 6 Entre riffs, rebeldia e muito, muito glamour Rafael Polcaro Ralf Prince 3 0 Coliseu Queer Rafaella Rodinistzky Jordana Andrade 2 0 Sexo na cidade, mas não é sex in the city Eduardo de Jesus 2 4 Genderless: a revolução queer no mercado da moda Carolina Andrade 1 6 Genderless Nathália Schiavon 3 2 Sobre corpos, espaços e cores Nathália Pereira Sarah Queiroz 3 6 Ru Paul Rafaella Rodinistzky 3 8 Créditos Finais 3 9 Amor é aceitação Maryl Dith Entre riffs, rebeldia e muito, muito glamour Entre riffs, rebeldia e muito, muito glamour “Não tem nada a ver com opção sexual, mas com viri- lidade. Não tem nada a ver com machismo, mas com intensidade. O que seria de nós? Sem plumas ou paetês? Sem glam rock? Sem Ney Matogrosso? Sem David Lee Roth? Sem a vi- adagem, o rock seria o que? O que seria do rock? Sem Little Richard, o que seria do rock? Sem Freddie Mercury, o que seria do rock? Sem Rob Halford, o que seria do rock?” O primeiro parágrafo traz versos da canção “O Que Seria do Rock?”, do álbum “Todos os Dias a Cerveja Salva Minha Vida” (2014), da banda paulista Velhas Virgens, uma letra que ape- sar de apresentar palavras pejorativas, mostra como os LGBTTQ’s foram e con- tinuam sendo fundamentais para historia do rock e de todos os seus subgêneros, reafirmando mais uma vez que a música é um senti- mento sem identidade, que não precisa de rótulo algum, apenas de emoção e atitude. Uma evolução de vários rit- mos, mas principalmente um filho da música negra ameri- cana, o rock infelizmente cresceu e se consolidou como um estilo excludente, constituído em grande parte por músicos brancos, ho- mens e héteros. Por isso, resolvi escrever sobre al- guns importantes nomes do rock, que assumiram publi- camente a sua homossexu- alidade e desafiaram esse cenário machista e precon- ceituoso. COMO TUDO COMEÇOU (Tutti frutti, aw rooty) Para começar a nossa jor- nada, faço a você leitor, uma pergunta: quem é o rei do rock? Provavelmente 99% das pessoas infelizmente dirão que é Elvis Presley. Mas, para mim os verda- deiros pais e eternos reis sempre serão: Chuck Berry, negro e de origem simples, e Little Richard, negro, de origem simples e bissexual. Pessoas que não tinham apoio algum da sociedade em que viviam na época para chegarem ao estrelato, mas mesmo assim, pelo seu profundo talento e fé em si mesmos, presentearam o Por Rafael Polcaro Transcendente {07} mundo com belíssimas can- ções e melodias que inspi- raram gerações de músicos. Criado em uma família re- ligiosa, com dois tios e o avô pastores, Richard frequen- tava muito a igreja e por isso conseguiu lapidar bastante o seu talento musical ao participar de apresentações cantando música gospel, que acabaram o levando a aprender a tocar piano ainda jovem, mas seus pais nunca o apoiaram. Aos 13 anos de idade ele foi expulso de casa pelo pai, que não aceitava a sua sexualidade. “Ele me colo- cou para fora e me disse que de sete garotos que ele tinha, eu era o que estava estragando tudo, porque eu era gay”, diz. Assim, Richard foi adotado por uma família branca, dona do “Tick Tock Club”, onde mais tarde, ele faria sua primeira apresen- tação como músico. O começo foi difícil. Chuck Berry, Bo Diddley, Fats Dom- ino e Little Richard, os prin- cipais fundadores do estilo, eram taxados como “pes- soas de cor” nos Estados Unidos, que ainda vivia em uma sociedade com divisão racial explícita, e não con- seguiam ter suas canções tocadas nas estações de rá- dio, que eram presididas por homens brancos. Dessa maneira, o estilo gan- hou mais força só quando apareceram cantores como Gene Vincent, The Everly Brothers e Elvis Presley, que por não serem negros, tinham total apoio da mídia americana e por isso ainda são mais lembrados hoje em dia. Segundo Little Richard, os pais da época não queriam que “seus filhos reverencias- sem e tivessem como herói um cara negro”, pois em tempos de segregação racial era inaceitável que uma pes- soa negra fosse mais impor- tante que uma branca. Logo após Richard lançar duas de suas maiores can- ções: “Tutti-Frutti” e “Long Tall Sally”, Pat Boone, cantor romântico dos anos 50, fez covers dessas duas músicas e de outras feitas por músi- cos negros. As suas versões Dos ternos coloridos às camisas cheias de lantejoulas, Richard sempre chamou a aten- ção com seu visual {08} Transcendente w orldofw onder.net eram mais tocadas nas rá- dios, não porque eram mel- hores que as originais, mas porque o intérprete era bran- co. Segundo Richard, os jovenspreferiam a sua versão das músicas porque eram puro rock and roll, cruas e ras- gadas ao invés da melosa versão de Boone. Por isso, enquanto os garotos e garo- tas colocavam o seu single na agulha da vitrola para tocar, deixavam a capa do disco de Boone a vista, para que não levassem bronca dos pais, por estarem es- cutando a música de um rapaz que além de negro e usar maquiagem, era “afem- inado”. Além disso, a letra original de “Tutti-Frutti”, tinha um re- frão com conotação sexual que dizia: “Tutti Frutti, good booty! (boa bunda)”, que foi alterado para “Tutti frutti, aw rooty” (expressão que sig- nifica “tudo certo”), a par- tir do conselho de pessoas envolvidas na sua carreira, que queriam uma letra mais “pura”. Cheia reviravoltas, da tris- teza à felicidade, do vício à sobriedade e do fracasso ao sucesso, a vida de Little Richard é uma verdadeira confusão. Para você ter uma noção, em 1957, em seu auge, ele subitamente desis- tiu de sua carreira após uma turnê na Austrália. Ele teria tido uma visão em um so- nho, em que o “apocalipse” vinha até ele e que ele tinha visto a sua condenação. Nesse sonho, ele se via em um avião que era coberto pela escuridão e começava a pegar fogo, então ele ora- va a deus e prometia que se a aeronave conseguisse aterrissar em segurança, ele iria mudar seu compor- tamento. Alguns dias de- pois, ao fazer um show ao ar livre, ele presenciou no céu, o satélite russo “Spu- tinik” caindo. Relacionando esse momento com o sonho que havia tido, ele deu fim a sua carreira e se tornou um pastor, inclusive gravando em 1959 um disco gospel, chamado “God Is Real”, voltando ao rock apenas em 1964, mas sem sucesso, já que o mundo se rendia aos Beatles, que representavam a renovação do estilo. Já com mais 80 anos, ainda em atividade, mas sem pro- duzir canções inéditas, o músico ainda faz apresen- tações regulares que relem- bram sua carreira. O cantor se define como um “alien bissexual” e afirma que não há problema algum em ser religioso e homossexual: “Eu fui gay a minha vida toda e sei que deus é um deus do amor, não do ódio”. Little Richard e sua banda nos anos 50 Transcendente {09} sknazari1981.wordpress.com THE ROCKET MAN No fim da década de 60, os movimentos de contra- cultura ganhavam força e o moralismo instaurado nas sociedades começava a ser contestado de forma mais agressiva. Pensamentos lib- ertários e contra o precon- ceito já eram significativos e foram fundamentais para a mudança de pensamento principalmente das futuras gerações. Entre os princi- pais coletivos estavam o Flower Power, que defendia a não-violência e o fim da guerra do Vietnã, o movi- mento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos que lutava contra a segre- gação racial e a geração beat, inspirada no livro The Road de Jack Kerouac, que contestava a sociedade de consumo vigente. Em uma década tão impor- tante para a cultura mundial, a música não poderia ficar de fora. Além da evolução do rock com Beatles e Roll- ing Stones, surgia no fim dos anos 60, Reginald Ken- neth Dwight, ou apenas, Elton John, um dos artistas solo mais bem sucedidos da história do rock. O músico começou a tocar piano aos três anos de idade, pas- sando por várias academias de música em sua infância e adolescência. Com a ajuda de sua mãe e do padrasto, aos 15 anos, ele começou a se apresentar aos finais de semana em um pub próximo a sua casa, tocando covers de Ray Charles, Jim Reeves e já canções autorais. Logo, Elton formou a Blues- logy, que existiu de 1962 a 1967, tocando blues, soul e rythm & blues, mas não ob- tendo sucesso. Além de ser um grande aprendizado para o músico, foi dessa banda que ele tirou a ideia para o seu nome artístico, escolhi- do por ele a partir do nome dos integrantes: Elton Dean (saxofonista) e Long John Baldry (líder da banda). A sua estreia foi em 1969 com o disco Empty Sky, que já mostrava o potencial de Elton, mas não conseguiu conquistar o mercado. Já o começo da década de 70 representou o início da de- colagem do músico, que lançou 12 álbuns de estúdio, quase todos alcançando bons lugares nas paradas mundiais, com grandes hits como “Your Song”, “Tiny Dancer”, “Rocket Man” e “Crocodile Rock”. Mas foi com o disco “Good- bye Yellow Brick Road”, sua obra prima, que ele entrou na história da música como um dos maiores gênios quando se trata de melodia para as canções, já que Elton, quase não compõe letras, por isso, a sua parceira com o letrista Bernie Taupin que escreveu praticamente todos os seus sucessos, é uma das mais interessantes, pois um com- pleta a necessidade do out- ro na composição da canção como um todo. Na mesma época, Elton 1 {10} Transcendente Fo to 0 1: d is ne y. w ik ia .c om ; f ot o 02 : p er fo rm in gs on gw rit er .c om ; f ot o 03 : G et ty Im ag es LIKE A ROCKET MAN 1. Elton John ao vivo em sua fase Glam; 2. Elton em 1970, durante sua primeira turnê nos Estados Unidos; 3. Família completa: Elton, David e os dois filhos, Zachary e Elijah começou a transformar seu visual, se aproximando do movimento Glam Rock, sur- gido na Inglaterra e liderado por bandas como o T.Rex, The Sweet, Slade e David Bowie, que foi marcado pe- los trajes e performances com muitos cílios postiços, purpurinas, saltos altos, ba- tons, lantejoulas, paetês e trajes elétricos dos can- tores. Ligou-se muito essa expressão artística à an- droginia e ao glamour das estrelas que esbanjavam energia sexual. Desse disco, que está em praticamente em todas as listas dos maiores álbuns de todos os tempos, as faixas mais lembradas são “Good- bye Yellow Brick Road”, “Saturday’s Alright For Fight- ing” (que segundo o próprio Elton é um dos maiores riffs da história, feito por Davey Johnstone, guitarrista de sua banda até hoje) e “Candle In The Wind” que foi feita em homenagem a Marylin Mon- roe e que ganhou uma cu- riosa versão para o funeral da princesa Diana, em que Elton interpretou a música em homenagem a ela, que era sua amiga pessoal. O terceiro artista que mais vendeu álbuns nos Estados Unidos, ficando atrás ape- nas de Elvis e dos Beatles, não dedicou sua carreira ap- enas à música. Fã fanático do Watford Football Club, realizou seu sonho de infân- cia nos anos 70 ao comprar o time de futebol, investindo grandes quantias no clube, ajudando-o a subir três di- visões do campeonato in- glês, até alcançar o pelotão de elite do país. Em 1987, Elton vendeu o clube conti nuando presidente, com- prando-o novamente em 1997. Hoje, o artista contin- ua tendo uma parte do time, mas sem ter a mesma im- portância na diretoria. Em 1976, o astro se decla- rou bissexual em entrevista à Rolling Stone, tendo se casado em 1984 com a en- genheira de som, Renate Blauel, mas o casamento durou apenas quatro anos. Desde o início dos anos 90, Elton tem um relaciona- mento com o diretor de cin- ema David Furnish, que foi celebrado em 2005, quando os dois se casaram no civil e em 2014 quando oficial- izaram a união, celebrada com os dois filhos nascidos de uma barriga de aluguel: Zachary e Elijah. Em 2012, Elton explicou porque a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo é tão impor- tante: “Há uma grande difer- ença entre chamar alguém de “parceiro” e de “marido”. Parceiro é uma palavra reservada por exemplo, a uma pessoa com quem você joga tênis. Não chega nem perto de descrever o amor que sinto por David”. Além de grandes ativistas da causa LGBTTQ, o casal mantém a Elton John AIDS Foundation, criadaem 1992 para ajudar na conscienti- zação e combate à doença. 2 3 Transcendente {11} THE METAL GOD! Se o Black Sabbath foi a banda responsável por criar o heavy metal e tudo o que veio depois do seu nasci- mento, foi o Judas Priest quem definiu o que seria o gênero visualmente e musi- calmente para as próximas décadas, permanecendo até hoje como uma das princi- pais bandas do estilo. O metal nada mais é do que a evolução do rock and roll para algo mais agressivo e pesado, que assim como o rock também serve como elemento de contestação e rebeldia, porém a níveis mais elevados, servindo de oposição principalmente à religião, discutindo a im- posição da moralidade religi- osa e a sua prática do medo, para angariar mais fiéis. Por isso, sempre ouvimos que o tal do “rock paulera”, é coisa do diabo. Não é possível falar de Ju- das, sem falar de Rob Hal- ford, sem dúvida um dos maiores cantores de metal de todos os tempos, que po- tencializou o talento de seus companheiros de banda, com a sua absurda capaci- dade de alcançar facilmente notas agudas. Ele se juntou á banda em 1973, após ser indicado pela namorada do baixista Ian Hill, que disse conhecer um irmão de sua amiga que cantava “divinamente bem”. Assim que a banda o con- heceu e ouviu a diversidade de timbres que Halford con- seguia alcançar, ele foi ime- diatamente aceito. Após um ano com o vocal- ista, a banda lança “Rocka Rolla”, seu álbum de estreia, que trazia uma pegada mais leve, que se aproximava do blues rock, mas que já mostrava o grande talento do grupo, que além de um grande vocal, contava com dois geniais guitarristas: K.K Downing e Glenn Tipton, METAL HEAD 1. Judas Priest na primeira metade dos anos 70; 2. “Eu sou um metaleiro e o fim do abandono de jovens LGBT’s depende de mim” {12} Transcendente Fo to 0 1: c ry pt ic ro ck .c om ; f ot o 02 : i ns ta gr am .c om /ro bh al fo rd le ga cy acompanhados também pe- los talentosos Ian Hill e John Hinch (baterista). Após o primeiro disco, a banda ainda lançou os óti- mos “Sad Wings of Des- tiny” (1976), “Sin After Sin” (1977), “Stained Class” (1978). Mas foi em “Kill- ing Machine” (1978), lan- çado nos EUA e em outros mercados menores como “Hell Bent For Leather” (Em tradução literal: “O Inferno se curva ao couro”) para ter um nome menos agres- sivo e mais comercial. A banda não só deixou o som mais pesado como também transformou seu visual, bem condizente com o título do álbum, influenciado por Rob Halford, passando a usar roupas de couro, com cor- rentes e spikes de metal. Dessa forma, a banda ini- ciaria uma grande trans- formação em todo o heavy metal, introduzindo um vis- ual a princípio interpretado pelo grande público como de motociclistas, mas que na verdade era fruto da cena gay sadomasoquista, frequentada por Halford, que após algumas compras em sex shops, trouxe o novo visual para a banda. Além disso, os músicos também introduziram o conceito das “guitarras gêmeas”, em que Downing e Tipton tocavam em sincronia o mesmo riff e faziam solos alternados e conjuntos, contrariando as bandas da época, que também tinham dois guitar- ristas, mas um responsável pelos solos e outro apenas pela base. Apesar disso, a banda ap- enas se consagrou mundial- mente com o álbum “Brit- ish Steel” (1980), que tem todas as faixas tidas como clássicos para fãs como eu, mas em especial “Break- ing The Law” e “Living After Midnight”, além de “Metal Gods”, que inspirou o ape- lido “Metal God” de Rob Hal- ford, carinhosamente dado pelos fãs. Já consagrado, o grupo foi uma das principais influên- cias para o início da New Wave Of The British Heavy Metal (A nova onda do metal britânico), movimento que chegava como uma resposta do metal ao punk que havia derrubado o estilo na época. Entre as principais bandas estavam o Iron Maiden, Saxon, Angel Witch, Tygers Of Pan Tang, Venom, Motör- head e Def Leppard. Com o sucesso mundial da banda, potencializado com o crescimento desse movi- mento, o Priest foi atacado constantemente nos anos 80 por grupos conserva- dores e religiosos, chegando METAL HEAD 1. Judas Priest na primeira metade dos anos 70; 2. “Eu sou um metaleiro e o fim do abandono de jovens LGBT’s depende de mim” 1 2 Transcendente {13} até a enfrentar uma extensa batalha judicial nos tribu- nais americanos que quase levou a banda à falência, onde eram acusados pelos pais de dois adolescentes pela tentativa de suicídio dos jovens, por terem su- postamente inserido mensa- gens subliminares no disco Stained Class, que teriam levado os dois fãs da banda a se suicidarem. Mesmo que os jovens Ray- mond Belknap, 18 anos, e James Vence, 20 anos, ten- ham cometido suicídio após uma noite de muita bebedei- ra e uso de drogas, ignoran- do esses fatos e outros pos- síveis fatores psicológicos, os envolvidos na acusação e a mídia americana prefer- iram valorizar o detalhe de que os garotos eram fãs da banda e a ouviam no fatídico dia. Como resolução o juiz do caso alegou que não es- tava comprovado que eles teriam inserido tais mensa- gens e que não era possível que algo do tipo poderia ter levado os garotos a se ma- tarem. Em declaração recente, Halford diz como o sensa- cionalismo feito pela mídia na época apoiado por gru- pos conservadores radicais só levou sofrimento a todos os envolvidos. “Havia essa tensão e tristeza na corte, porque bem no centro desse assunto, tinham dois ra- pazes que tinham perdido a vida de forma trágica. A parte mais profunda dessa história foi que a acusação estava em uma teia muito emaranhada. Nós ouvimos que exista infiltração de gru- pos cristãos extremos, que estavam pressionando para que fossem atrás desse caso, dizendo que éramos responsáveis.” Com toda a publicidade em cima do caso, a banda tam- bém acabou sendo vítima de mais um movimento con- servador, o Parents Music Resource Center, comitê cri- ado por esposas de políticos do alto escalão do governo americano, que propuseram a criação de uma etiqueta que seria colocada nos dis- cos que teriam músicas con- tendo conteúdo impróprio para crianças. O PMRC de- fendeu também que o rock e o metal eram os principais responsáveis pela deterio- ração dos valores familiares nos Estados Unidos, já que as bandas atuais traziam muitas letras com cono- tações sexuais, violentas e ocultistas. Sendo vítima de tantas acusações moralistas na dé- cada de 80, Halford preferiu não assumir publicamente sua homossexualidade para não inflamar mais ainda os ataques feitos principal- mente pela mídia americana contra a banda. Segundo ele, desde que descobriu a sexualidade, sempre soube que era gay e não tinha prob- {14} Transcendente lema algum com isso e que apenas teria a assumido em 1998 em entrevista a MTV, aos 46 anos de idade, pois a sociedade e o meio musi- cal no século XX ainda eram muito homofóbicos, o que levou ele a se privar de mui- tas coisas na sua primeira passagem no Judas Priest de 1973 a 1991. Na época da declaração de Halford, a MTV saiu às ruas questionando os fãs sobre o fato do cantor ter assumido ser gay. A maioria reagiu normalmente, dizendo que já desconfiavam disso e que não tinham problema algum, pois o importante é a música e não a opção sexual do músico. Mas infelizmente, algumas pessoas expuser- am a sua ignorância, dizen- do que “ele nunca deveria ter saído do armário, já que os fãs do Judas Priest não são homossexuais”. Em entrevista concedida ao The Guardian, o can- tor disse se arrepender por nãoter se declarado gay publicamente antes. “Foi a melhor coisa que eu po- deria ter feito por mim, me pergunto porque não o fiz antes. Acho que eu criei um medo ilusório de que eu iria me destruir, que ninguém iria me olhar mais como um cantor de metal e por minha conexão com o Judas, eu iria acabar destruindo tam- bém a carreira da banda, foi tudo uma paranoia criada por mim mesmo. Isso não afetou o Priest, as vendas de discos não caíram, o comparecimento aos shows não caiu. O amor incondi- cional aceitará você do jeito que você é, e eu acho que isso foi uma benção que eu tive dos fãs”. Após seguir carreira solo e montar duas bandas nos anos 90, Hal- ford retornou ao Priest e segue até hoje na liderança de uma das maiores bandas do gênero. Transcendente {15} RALF PRINCE ILUSTRA FREDDY MERCURY ralfpart.tumblr.com Artista que usa da intimidade como principal fonte de criação para seus trabalhos e poesias. Em busca de manifestar o homoerotismo e suas adversidades, provoca reflexões acerca de tabus sociais e liberdade de expressão. Formado em Artes Visuais, possui linha de pesquisa voltada para questões de gênero e sexualidade. RAFAEL ESCREVE ENTRE RIFFS, REBELDIA E MUITO, MUITO GLAMOUR cinemafilia.tumblr.com + rocknrollgarage.tumblr.com Um filho do interior de Minas Gerais que não perde o sotaque. Jornalista, apaixonado por rock e heavy metal, cinema, batata frita e por tudo que acalme a alma e contribua para o descobrimento de novos pontos de vista sobre a vida. {16} Transcendente Genderless Por Nathália Schiavon Transcendente {17} NATHÁLIA SCHIAVON ILUSTRA GENDERLESS nataliaschi.tumblr.com + facebook.com/nataliaschiii Natália Schiavon, 20 anos, estudante de design gráfico em Bauru (SP). Ama ilustração, quadrinho e desenho animado. Tem mania de olhar pra uma câmera imaginária como se estivesse no The Office. {18} Transcendente ci da de -se xo , m as n ao e se x in th e ci ty - Po r E du ar do d e Je su s 0, 5 - ex pl ic an do tu do E ss e pe qu en o en sa io t om a o cu rta “ Vi rg in da de ” (C ea rá , 20 14 ) de C hi co La ce rd a co m o um p on to d e pa rti da e de c he ga da . A m em ór ia , a ci da de e a se xu al id ad e sã o te m as q ue v ão s er d e- se nv ol vi do s m ai s ad ia nt e, m as qu e an te s ilu m in am um a sé rie d e br ev es c om en - tá rio s, f or a de o rd em , so br e ci da de e c in em a. A i de ia é qu e o fil m e d e La ce rd a, a o m os tra r a c id ad e na s tra m as su bj et iv as d a se xu al id ad e e do d es ej o ac ab a po r ge ra r um a po te nt e vi sã o do u rb a- no . 0, 7 – C ur iti ba s C on he ço e st a ci da de co m o a pa lm a da m in ha pi ca . S ei o nd e o pa lá ci o se i o nd e a fo nt e fic a, S ó nã o se i d a sa ud ad e a fin a flo r q ue fa br ic a. S er , e u se i. Q ue m s ab e, os p od er es c on st itu íd os , a ci da de c on te m po râ ne a to r- no u- se o p al co d e um a m pl o si st em a de vi si bi lid ad e do ca pi ta l, do s m od os d e vi da gl ob ai s ho m og ên eo s (m as nã o un iv er sa is ) qu e se e s- pr ai am p el o m un do . E s ua im ag em ? 0, 9 – in fo rm aç õe s út ei s: a. O B ur j K ha lif a em D ub ai no s E m ira do s Á ra be s, ed - ifí ci o m ai s al to d o m un do , é um a in te rv en çã o ur ba na e ar qu ite tô ni ca qu e se rv e pa ra de m on st ra r o po de r ec on ôm ic o do ca pi ta l no m un do ár ab e, co ns tit ui nd o as si m um a im ag em qu e po de se r fa ci lm en te co lo - ca da em ci rc ul aç ão na s m id ia tiz aç õe s do e sp aç o ur - ba no . R ec eb e ce rc a de 4 ,7 m ilh õe s de tu ris ta s po r a no . b. “ A s ci da de s já n ão e s- pe ra m m ai s pe la c he ga da do tu ris ta – e la s ta m bé m e s- tã o co m eç an do a j un ta r- se à ci rc ul aç ão g lo ba l, a re pr o- S ão m ui to s os fil m es re - ce nt es q ue tr at am d a ci da de e da s qu es tõ es e sp ac ia is , co m o “A ve ni da B ra sí lia F or - m os a” ( 20 10 ) e “U m lu ga r a o so l” (2 00 9) d e G ab rie l M as - ca ro , “R ec ife f rio ” ( 20 09 ), “O s om a o re do r” ( 20 12 ) e “A qu ar iu s” ( 20 16 ) de K le be r M en do nç a, “O c éu s ob re os o m br os ” (2 01 1) de S ér - gi o B or ge s, “ A ci da de é u m a só ” (2 01 1) e “B ra nc o sa i, pr et o fic a” ( 20 14 ) de A di rle y Q ue iró s, “O po rto ” (2 01 3) de C la ris sa C am po lin a, J u- lia d e S im on e, L ui z P re tti e R ic ar do P re tti , en tre o ut ro s. A qu es tã o é em er ge nt e e pa re ce s in al iz ar u m d es ej o de a pr op ria r e d ar s en tid o ao es pa ço u rb an o co m o ut ra s ex pe riê nc ia s m en os l ig ad as ao s m er ca do s e es pe cu - la çõ es . A ss im c om o a “P ra ia da E st aç ão ” ( B el o H or iz on te ) e “O cu pe E st el ita ” ( R ec ife ) o ci ne m a ta m bé m d es ej a, o ut - ra c id ad e, c om o R ob er t P ar k no s en si no u. 1, 15 – s ob re a c id ad e do ci ne m a, e m p la no g er al A o co lo ca r o es pa ço u rb an o em pr im ei ro pl an o al gu ns fil m es fa ze m s ur gi r na s im a- ge ns u m a ou tra v is ão d a ci - dade . R ep re se nt aç õe s qu e ac io na m a s di ve rs as c am a- {20} Transcendente C ar ta z do c ur ta V irg in da de es ta c id ad e m e si gn ifi ca . (P au lo L em in sk y em L a vi e em c lo se ) 1 - c in em a e ci da de C id ad e e ci ne m a es tã o na m es m a tra m a, c om o pa rte de u m a m es m a ra iz d a m od - er ni da de l ig ad a ao u rb an o. O s m us eu s de ce ra , os pa no ra m as e a s ex ib iç õe s de c ad áv er es e m P ar is n o sé cu lo X IX at iv av am a ci - da de e p ar ec ia m p re pa ra r os se nt id os pa ra a ch e- ga da d o ci ne m a. P ar is , no úl tim o te rç o do s éc ul o X IX , se tra ns fo rm ou no ce nt ro eu ro pe u da j ov em i nd ús tri a do en tre te ni m en to . A o se in st al ar n a ci da de o c in em a re co nfi gu ro u es pa ço s de la ze r, m od os d e en co nt ro e fo rm as de en tre te ni m en to cr ia nd o no va s di nâ m ic as qu e, d e al gu m m od o, d a- va m p ro ss eg ui m en to a e s- se s pr im ei ro s es pe tá cu lo s. C id ad e- ci ne m a- es pe tá cu lo . E ss a é um a pa rte da es - tre ita r el aç ão e nt re c in em a e ci da de . O ut ra p ar te p os - sí ve l, é a ci da de fi lm ad a. A o lo ng o da h is tó ria d o ci ne m a a ci da de te m s id o pr ot ag on i- st a. M úl tip la , f ra gm en ta da e em te ns a re la çã o di re ta c om du zi r- se e m e sc al a m un di al e ex pa nd ir- se e m t od as a s di re çõ es ” (G R O Y S , 20 15 , 13 4) . c. O t ur is m o é um a lin ha d e fo rç a na c on st itu iç ão d as e x- pe riê nc ia s ur ba na s co nt em - po râ ne as . 2. im ag en s da c id ad e O lo ca l p as sa s er d is tri bu íd o gl ob al m en te , co m o já h av - ia afi rm ad o an te rio rm en te G ua tta ri: “a ci da de -m un do do c ap ita lis m o co nt em po râ - ne o se de st er rit or ia liz ou , se us d iv er so s co ns tit ui nt es se es pa rg ira m so br e to da a su pe rfí ci e de u m r iz om a m ul tip ol ar ur ba no qu e en - vo lv e o pl an et a” ( 20 00 , p. 17 1) . D is tri bu iç ão co m o se rv iç o e ar qu ite tu ra , m as so br et ud o co m o im ag em . N es se co nt ex to em er ge m m ui ta s vi sõ es d a ci da de n o ci ne m a. U m a qu e aq ui n os in te re ss a é aq ue la q ue f az da ci da de do ci ne m a um te rr itó rio d e re si st ên ci a, e x- pl ic ita nd o os po de re s qu e de u m l ad o, t ra ns fo rm ar am a ci da de e m u m c am po d e m úl tip la s es pe cu la çõ es e , d e ou tro , fa ze m d a ex pe riê nc ia ur ba na u m e st ra nh o co nf or - to in st al ad o em u m e sp aç o- lix o (ju nk sp ac e) . S ão m ui to s os fil m es re - ce nt es q ue tr at am d a ci da de e da s qu es tõ es e sp ac ia is , co m o “A ve ni da B ra sí lia F or - m os a” ( 20 10 ) e “U m lu ga r a o so l” (2 00 9) d e G ab rie l M as - ca ro , “R ec ife f rio ” ( 20 09 ), “O s om a o re do r” ( 20 12 ) e “A qu ar iu s” ( 20 16 ) de K le be r M en do nç a, “O c éu s ob re os o m br os ” (2 01 1) de S ér - gi o B or ge s, “ A ci da de é u m a só ” (2 01 1) e “B ra nc o sa i, pr et o fic a” ( 20 14 ) de A di rle y Q ue iró s, “O po rto ” (2 01 3) de C la ris sa C am po lin a, J u- lia d e S im on e, L ui z P re tti e R ic ar do P re tti , en tre o ut ro s. A qu es tã o é em er ge nt e e pa re ce s in al iz ar u m d es ej o de a pr op ria r e d ar s en tid o ao es pa ço u rb an o co m o ut ra s ex pe riê nc ia s m en os l ig ad as ao s m er ca do s e es pe cu - la çõ es . A ss im c om o a “P ra ia da E st aç ão ” ( B el o H or iz on te ) e “O cu pe E st el ita ” ( R ec ife ) o ci ne m a ta m bé m d es ej a, o ut - ra c id ad e, c om o R ob er t P ar k no s en si no u. 1, 15 – s ob re a c id ad e do ci ne m a, e m p la no g er al A o co lo ca r o es pa ço u rb an o em pr im ei ro pl an o al gu ns fil m es fa ze m s ur gi r na s im a- ge ns u m a ou tra v is ão d a ci - da de . R ep re se nt aç õe s qu e ac io na m a s di ve rs as c am a- da s de s en tid o em m úl tip - la s ac um ul aç õe s no e sp aç o ur ba no . H is tó ria e m em ór ia co le tiv a sã o at ra ve ss ad os po r vi sõ es s ub je tiv as e e x- pe riê nc ia s pe ss oa is . O in - vi sí ve l e o fo ra d e ca m po at ra ve ss am e ec oa m na im ag em , qu e ga nh a no vo s se nt id os . N asp ot en te s ex - pe riê nc ia s se ns ív ei s en tre nó s e a ci da de , at iv am os pr oc es so s de te rr ito ria li- za çã o e de st er rit or ia liz aç ão pa ra a lé m d os e sp aç os c on - st ru íd os m os tra nd o co m o a ci da de p od e re si st ir ao s co nt ro le s e se o fe re ce r em ou tra s ex pe riê nc ia s. A lg o se m pr e es ca pa e nt re n ós , o ou tro e a c id ad e lib er an do o s im ag in ár io s. I m ag en s da c i- da de q ue a m pl ia m o s en tid o e a im po rtâ nc ia d os e sp aç os co ns tru íd os , pa ra al ém do vi sí ve l. 2, 25 – c id ad e, c ity , c ité S ab en do d e to da s as fo rç as im pe rio sa s co m a s qu ai s o ca pi ta l m an ej a o es pa ço u r- ba no , é im po rta nt e ve rm os co m o o ci ne m a, a p ro du çã o au di ov is ua l e as pr óp ria s di nâ m ic as d a co m un ic aç ão gl ob al iz ad a co m o um t od o, re fo rç am e a ca ba m p or d ar os c on to rn os d a im ag em d a ci da de q ue s e qu er a tiv ar . Longe de inventar outra cidade ou de apontar out- ras formas de experiência, muitas vezes, o cinema e a produção audiovisual cel- ebram a produção do es- paço ligada exclusivamente ao consumo e ao entreteni- mento. Formas muito con- troladas e planejadas de se engajar no devir da ex- periência estética que o ur- bano pode nos permitir. Nesse sentido, estratégias e formulações do marketing como local branding e na- tion branding resultam em cidades imaginadas na força do planejamento estratégico para se orientarem a públi- cos bem configurados e a determinados tipos de ex- periência. 3,0 – o retorno a cidade subjetiva O curta de Chico Lacerda na aparentemente simplicidade e leveza de seus longos planos fixos e abertos da cidade, embalados por uma narração de tom pessoal, aciona uma visão potente do espaço urbano. No filme, a cidade torna-se uma espécie de confluên- cia de tempos e espaços atravessados pelo passado, trazidos pela memória, mas na visualidade do presente. É no atravessamento entre o que a cidade foi e o que ela é que descobrimos – acionando o fora de campo e as tensões da diferença entre o que vemos e o que é narrado – que pouco a pou- co a cidade em sua dinâmi- ca surge diante de nós. A descoberta da sexualidade é tramada em sintonia com as mudanças da cidade. Corpo, cidade e desejo em processos de descoberta. Uma cidade que ao contrário de monumentos ou atrativos turísticos revela-se no filme em imagens ordinárias de espaços comuns, que gan- ham um melancólico rel- evo pela experiência e pela memória. Territórios que pas- sam a fazer sentido porque integram-se fortemente às narrativas da vida, por isso significam e nos convocam a fabular as mudanças da cidade. Os elementos invi- síveis da cidade – memória, história, afeto, experiência – que parecem recobrir os espaços físicos, se mostram a nós pelo confronto entre a locução e o que vemos na imagem. As dinâmicas da ci- dade atravessam, junto com a memória pessoal, a narra- tiva do filme. Entre o que é narrado e o que vemos nas imagens emerge um potente fora de campo que nos fala da cidade e de suas dinâmicas. Onde era cinema, hoje supermercado ou loja de eletrodoméstico; a casa de Henrique, uma das paixões, que vivia perto da casa da avó, tornou-se um inóspito edifício. Assim em seu rigoroso con- junto de planos estáticos, sempre acompanhado da locução e de ruídos do am- biente, o filme passa a ex- plorar paisagens urbanas absolutamente comuns, que se constroem em uma narrativa que une suas es- pacialidades relacionais cheias de formas subjetivas e sexuais. Em certo mo- mento, esse rigor passa da {22} Transcendente C en a do c ur ta V irg in da de cidade aos corpos. É nítida a marca dessa passagem pela entrada da trilha sono- ra, que revela um outro fora de campo, desta vez tendo os corpos como formas de paisagem. Embalados pela suave e romântica canção de Gorky´s Zygot Mynci surgem muitos homens nus em diversas poses e en- quadramentos, espaços ur- banos e paisagens naturais. (I need your sweet, sweet love I need it in my heart I know I’ve taken And to give to you I can find so hard) Detalhes de uma nuca, um peito cabeludo ou uma bunda formam a multiplici- dade desses corpos, obje- tos de desejo que remetem ao tempo presente daque- las memórias ditas anteri- ormente. A sequência fun- ciona como uma espécie de videoclipe que no meio do filme – entre as paixões adolescentes e as diversas formas de buscar imagens e textos que pudessem ativar fantasias sexuais e trazer muita excitação – faz o tem- po presente do desejo emer- gir. Passado e presente se encontram no desejo e na cidade. Movimentos entre os tempos já que a cidade se mostra outra diante da memória que a locução aciona e o desejo ganha forma, sem maiores preocupações ou pudores. Relacionando o clipe no tempo presente com toda a força memorialista da locução e as imagens atuais da cidade o filme parece enfatizar que a experiência, o desejo e a memória são vetores centrais para perce- ber as potências relacionais do espaço urbano. Todo esse trânsito tanto entre o tempo passado e o presente, quanto entre as formas da fabulação da memória (na locução) e a eminência do presente (nas imagens) fazem da cidade do filme uma reterritoriali- zação da imagem da cidade. Percebida agora não mais na força do espetáculo ou da midiatização, tampouco na forma absoluta de seu espaço construído, a cidade atravessa e é atravessada pelo desejo entre os corpos e os espaços fazendo ecoar na imagem a intensidade da experiência. Referências GUATTARI, Félix. Restau- ração da cidade subjetiva. In: Caosmose – um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992. GROYS, Boris. A cidade na era da reprodução turística. In: Arte poder. Belo Horizon- te: Editora UFMG, 2015. EDUARDO DE JESUS ESCREVE CIDADE-SEXO, MAS NÃO É SEX IN THE CITY É graduado em comunicação social pela PUC Minas, mestre em comunicação pela UFMG e doutor em artes pela ECA/USP. É pro- fessor do programa de pós-graduação em Comunicação da Fa- culdade de Comunicação e Artes da PUC Minas. Atuou em diver- sas edições do Festival Videobrasil e em projetos da Associação Cultural Videobrasil. Entre suas curadorias estão FIF – Festival In- ternacional de Fotografia (Belo Horizonte, 2013 e 2015), esses es- paços (Belo Horizonte, 2010), Densidade Local, em parceria com Gunalan Nadarajan, para o Festival Transitio-MX (Cidade do Mé- xico, 2008) e Mostra Fiat Brasil (2006). Tem publicado textos, en- saios e resenhas em torno da produção artística contemporânea. Transcendente {23} Genderless: a revolução queer no mercado da moda Envolta em avanços, polêmicas e questionamentos, tendência de vestuário sem gênero parece “profetizar” o futuro da moda {24} Transcendente po pf as hi on lo rd.c om Genderless: a revolução queer no mercado da moda Envolta em avanços, polêmicas e questionamentos, tendência de vestuário sem gênero parece “profetizar” o futuro da moda Por Carolina Andrade “Para ser insubstituível, deve-se sempre ser difer- ente”, foi com esta premissa que Coco Channel criou, na década de 20, roupas para mulheres baseadas no ves- tuário masculino. Mal imagi- nava a estilista que tal frase seria tão atual um século após ser dita, e que princi- palmente tal ideal de moda seria tão debatido e polemi- zado em pleno século XXI. O conceito de uma moda fluida e sem gêneros tomou conta do imaginário cole- tivo do mercado mundial de moda nos últimos anos. E ao contrário de muitas out- ras tendências efêmeras, as peças sem gênero parecem ter chegado para ficar. Este fenômeno tem chamado muita atenção da mídia e dos sociólogos, afinal a moda sempre foi um excelente ter- mômetro social. Por meio dela é possível recontar histórias, transitar entre difer- entes culturas e tempos e entender o desenvolvimento político, econômico e cultur- al de diferentes civilizações. Não entenda mal, entrar em uma loja e procurar a seção feminina ou masculina de acordo com o sexo do con- sumidor ainda é a principal realidade no mundo contem- porâneo. Apesar das roupas unissex existirem a um longo tempo, as poucas e especí- ficas peças para ambos os sexos criadas com este ró- tulo são em sua maioria fei- tas com padronagens monó- tonas e neutras. Realidade que não acrescenta nem modifica em nada em um mundo dual de vestidos e saias cor de rosa para meni- nas e peças conservadora- mente azuis para meninos. Trabalhar o conceito de fundir as duas realidades em prol de um vestuário sem etiquetas é uma grande evolução que diz muito sobre a sociedade em que vive- mos hoje. Sociedade esta de maior consciência cole- tiva, que começa a desper- tar para as causas LGBTTQ com pautas que até então não haviam sido tão explora- das, como o questionamen- to da imposição social de ter que se vestir de acordo com a forma que a socie- dade julga mais adequada. Claramente, a moda é cí- clica e passível de difer- entes interpretações, o que torna todo o burburinho em torno da tendência gender- less algo questionável. Mas mesmo com todas as dúvi- das e polemicas uma coisa é claramente definitiva, o simples ato de repensar o guarda-roupa tradicional- mente aceito fomenta na produção de moda brasileira Transcendente {25} po pf as hi on lo rd .c om e mundial um debate im- portantíssimo sobre liber- dade de expressão, quebra de tabus, evolução social e fim das barreiras de gênero. MODA GENDERLESS Chamada de Agender ou Genderless a tendência de roupas sem gênero vai além dos rótulos, propondo uma produção de moda não- binária com peças livres de distinção de identidade de gênero. Diferente das produções padronizada- mente neutras que até então eram chamadas de unissex, a moda Genderlees propõe quase o caminho inverso. Nela não importa os rótu- los sociais ou as cores, pois saias, camisas, sapatos de salto alto, vestidos, acessóri- os, calças, são vestimen- tas para seres humanos, não peças destinadas es- pecificamente ao corpo dos homens ou das mulheres. As linhas que delineiam o formato desta tendência, assim como o mundo, ain- da são muito fluidas e mu- táveis. Mas o conceito sim- ples de gênero dado pelas sociólogas Raewyn Connel e Rebecca Pearse ajuda a entender este fenômeno. Segundo elas, “De maneira geral, gênero diz respeito ao jeito com que as socie- dades humanas lidam com os corpos humanos e sua continuidade e com as con- sequências desse “lidar” para nossas vidas pessoais e nosso destino coletivo”. Ter em vista este conceito ajuda a entender que, ao contrário de padronizar, a moda Genderless ques- tiona a imposição de for- mas, modelagens e cores para os sexos, afinal, não há nenhuma característica específica na constituição do corpo masculino que o impeça de usar vestidos, assim como não há nada na estrutura física feminina que a iniba de usar ternos. Há apenas o preconceito, a intolerância ao diferente e a perpetuação de julgamen- tos sociais retrógados. Vale lembrar ainda, que o conceito da tendência gen- derless não está necessari- amente ligado à orientação sexual de nenhum individuo. Apesar da demanda por roupas sem gênero ainda ser significativamente maior pelo público LGBTTQ, as peças genderless são uma forma de expressão que diz mais sobre a forma com que as pessoas se colocam no mundo e vivencia suas experiências, do que sobre suas preferências sexuais. A ODISSEIA DAS MARCAS DE MODA Homens e mulheres corren- do livres e nus na natureza, pegando peças de roupas ao longo do caminho sem se importarem com suas estampas ou modelagens. Casais de namorados de diferentes orientações se- {26} Transcendente bl og .re na ux vi ew .c om xuais trocando de roupa um com o outro por diversão e demostrando contentamen- to por poder se vestir de for- ma livre e inusitada. Entre- cortando as cenas, as frases de efeito, “Misture, ouse, divirta-se”, “Girls can be boys and boys can be girls”, “Tudo lindo & Misturado”. É difícil pensar tais cenas sendo transmitidas em emis- soras abertas e em horários nobres no Brasil. Principal- mente se levarmos em conta o destaque que as correntes políticas de extrema direita e as religiões conservador- as têm ganhado nos últimos anos. Mas por mais espan- toso que seja, estas são as premissas dos comerciais da C&A, uma das maiores, mais populares e rentáveis lojas de fast fashion (lojas populares de grande porte que tem uma política de mercado onde os produ- tos são fabricados, consu- midos e descartados rapi- damente) atuantes no país. Parece um pouco distante da realidade da maior parte da população quando ap- enas os poderosos nomes da moda como Saint Lau- rent, Louis Vuitton, Hermès, Commes des Garçons e Gucci começam a trabalhar o conceito de moda sem gênero em suas coleções. As peças de alta costura destas grifes são de difícil acesso e altos valores, por isso não parecem afetar tanto o vestuário popular. Porém engana-se quem acredita neste cenário. Mesmo não sendo consu- midas pela maior parte da população, as peças feitas pelas grandes grifes são in- dicadores de tendência do mercado. As lojas populares fazem todos os anos suas coleções inspiradas nos conceitos mostrados nos desfiles das grandes grifes nacionais e internacionais. Conhecendo este panora- ma, os ávidos por moda não tiveram nenhuma surpresa quando as araras das mul- timilionárias empresas de fast fashion C&A, Zara, Ria- chuelo, Topshop e Forever 21 foram discretamente sen- do preenchidas com peças genderless. Ironicamente, o fenômeno que começou tími- do acabou ganhando muita repercussão no Brasil justa- mente pela contra campan- ha feita por personalidades conservadoras do país. O debate acalorado que mobilizou as redes soci- ais foi intenso mas rápido, e ao contrário do que que- riam os conservadores só serviu para fomentar ainda mais a visibilidade queer no Brasil. Mesmo com toda a hostilidade dos avessos a tendência, o debate foi um grande passo para a so- ciedade brasileira, pois se é difícil debatermos este panorama hoje, é inimag- inável pensar tal cenário se quer sendo problemati- zado há poucos anos atrás. AVANÇO SOCIAL OU APROPRIAÇÃO CULTURAL? Fomentar o debate sobre questões de gênero e sexu- alidade é vital para que haja desenvolvimento social in- clusivo. Mas quando se trata da tendência de moda gen- derless tal debatetem sido extremamente problema- tizado, e até mesmo criti- cado nas redes sociais pela própria comunidade queer. Transcendente {27} blog.renauxview .com Diferente dos questiona- mentos dos grupos conser- vadores que se incomodam com a tendência pelo sim- ples fato dela não perpetuar um padrão social conhecido e tradicional, para ativistas queer a pergunta é: a moda genderless é um avanço para o movimento social LGBTTQ ou uma apropri- ação cultural desrespeitosa e efêmera do assunto feita pelo mercado capitalista? Tal questão que tem pertur- bado os ativistas é legitima, pois praticamente nada no mundo da moda é feito sem interesse comercial. Tal afir- mação pode ser facilmente comprovada pela multiplici- dade de etiquetas exploran- do exaustivamente o tema. Analisando apenas o último ano, por exemplo, é fácil encontrar nas peças pub- licitarias das grandes lojas, banners, outdoors, selos e etiquetas enfeitados com os termos plurissex, gen- derless, gender-bender, agender e unissex. Teorica- mente todos deveriam ter o mesmo significado e rep- resentar a mesma causa. Mas no competitivo mer- cado da moda cada marca se sente compelida a deix- ar sua “cara”, seu próprio conceito e principalmente seu nome nas tendências. Outros grandes problemas da tendência são a pouca variedade de estampas e {28} Transcendente jm en pl us .c om us fo rfa sh io n. co m .b r tamanhos, e principalmente a modelagem. Teoricamente a modelagem das peças deveriam servir tanto para mulheres, quanto para ho- mens. O problema é que várias marcas ainda não compreenderam que temos corpos com proporções diferentes e que as roupas genderless deveriam con- templar toda esta diversidade. Quando marcas utilizam das demandas da comunidade queer como forma de fazer dinheiro e promover uma im- agem politicamente correta para o mundo, o incomodo parece ser bem fundamen- tado. O principal temor está fortemente ligado ao con- ceito de uma apropriação cultural imoral, em que mais uma vez um grande nome mercadológico se sobrepõe a uma causa legitima. Em um cenário perfeito, o ideal seria que os grandes nomes do mercado incorpo- rassem causas sociais com o simples proposito de dar voz aos que não possuem o privilégio de tê-las. Contudo é ingenuidade acreditar que de apenas boas intenções vive o mundo. Assim sendo, entre vários possíveis males é fácil enxergar o lado posi- tivo e notar que o simples fato de haver um debate sobre o tema já abre portas para quebra de paradigmas. O otimismo não é infunda- do, pois parece que após um longo tempo de estag- nação no vestuário popular e excentricidades apenas performáticas nas passare- las, a moda de fato deu o primeiro passo significativo rumo a um mundo sem bar- reiras de gênero na forma de se vestir e comportar. CAROL ESCREVE GENDERLESS: A REVOLUÇÃO QUEER NO MUNDO DA MODA carolbandrade.wordpress.com Carolina Andrade é jorna- lista graduada pela PUC Minas. Viciada em música, moda, séries e livros desco- briu no jornalismo um nicho de mercado abrangente que a permite se reinventar con- stantemente e interagir com o mundo das artes por meio da escrita. Transcendente {29} Anfiteatro. Termo que deriva do grego antigo, amphi “em ambos os lados” ou “em tor- no” e theatron “lugar para a visão”. Coliseu, o maior an- fiteatro e mais conhecido de todos, era utilizado para combates entre gladiadores, simulações de batalhas marí- timas, execuções, caça a ani- mais selvagens e encenações dramáticas. As arquibanca- das da edificação eram dividi- das em três partes de acordo com a estratificação social: o pódio para as classes mais abastadas, a maeniana para a média e os pórticos para as mulheres e a plebe. O Baixo Centro de Belo Hori- zonte formou seu próprio Co- liseu com aqueles que com- põem os pórticos. A plebe da capital mineira é composta por poetas vagabundos, mu- lheres negras, travestis, “sa- patonas”, “viados”, hippies, favelados: os marginais. Mas não se engane, aqueles que vivem à margem não querem se adaptar ao padrão social imposto, mas desfrutar as diferenças de cada indivíduo ali presente, sem manual ou código de postura. A regra é uma só: tenha orgulho de quem você é. E às margens deste espaço que oferece um “lugar para a visão de ambos os lados”, o pórtico vai ao centro com a arma que tem: a voz. A mes- ma que não é ouvida quando seus representantes lidam com o preconceito e com a truculência militar – ah, às margens do teatro de are- na contemporâneo, guardas municipais e policiais acom- panham a movimentação, só que com outro tipo de arma. Porém, aqueles que portam a voz e que estão ao centro não se intimidam e atacam rima após rima os homens fardados que estão sempre à espreita e sem direito de res- posta. A resposta vem depois, em números, 77% dos jovens assassinados no Brasil são COliseu queer Por Rafaella Rodinistzky negros. Para uns dados, para outros mais um membro da família que é derrotado no teatro de arena da vida. Uma mulher negra, de dreads com- pridos e saia transparente pede respeito para “as mina, as mona, as mana, as gay, as trans”. O objetivo final do Coliseu da Antiguidade era matar o oponente. No coliseu queer de Belo Horizonte, o esforço é maior. Além de se manter vivo só com a fala, é preciso transportá-la além das arqui- bancadas, onde o lugar de discurso é dominado pela heteronormatividade. “Ma- chistas não passarão” é o grito daquela moça que pedia respeito e que agora se digla- dia contra a rima de um dos participantes que colocava as mulheres como objeto de seu prazer. “Não leve para o lado pessoal”, ela avisa. Aqui não há divisão social tri- pla, a diversidade do pórtico se mistura. Cabelos coloridos, penteados e cortes que cha- mam a atenção de quem não faz parte do meio, homens de vestidos e acessórios que são atribuídos às mulheres pelas normas da sociedade, roupas de comprimentos e cortes que do lado de fora seriam ta- chados como ousados, assim como demonstrações de afe- to entre pessoas do mesmo sexo, quase uma aberração para os seres humanos mais ortodoxos. “De nariz arrebitado, eu sou veado. De bunda empinada, eu sou veado. De barba gros- sa e unha feita, eu sou veado. De cintura fina e peito cabelu- do, eu sou veado”. Distribuin- do bananas às pessoas aco- modadas nas arquibancadas, duas figuras que confrontam a rigidez da binariedade, de- safiam a masculinidade dos homens cis que chegam ao centro. Uma folha com o con- teúdo das aspas acima, e muito mais, é entregue a eles, que interpretam da maneira que lhes convém os versos de reafirmação. Enquanto o público come as bananas, as performers fa- zem delas alimento de olha- res: chupam, lambem, andam por todo o círculo observando as reações, até que dividem a fruta com alguém. Aconte- ce ali um ritual antropofágico. Após vários homens interpre- tarem o texto - uns lendo ra- pidamente, outros em tom de deboche, de maneira séria, olhando nos olhos, desvian- do o olhar, parados, andando, tensos, relaxados - a autora, dona de cabelos verdes cur- tos e vestido vermelho, vem afirmar que é “viado” sim, de peito cabeludo, de unhas fei- tas, de veias aparentes, so- brancelhas finas, ombros lar- gos. “EU SOU VIADO”. Às 22h o sarau termina e o teatro de arena deve ser entregue às autoridades. Sob protesto, participantes e es- pectadores se levantam e se encaminham para a rua, onde realmente devem sobreviver com a única arma que têm: a voz. Porém, é melhor ser gladiador de teatro de arena do que escravo daquilo que é visto como padrão do lado de fora.RAFAELLA ESCREVE COLISEU QUEER jornalidades.tumblr.com + rafaellarodinistzky@gmail.com Jornalista com um pé na área criativa. Perseguidora de ocu- pações urbanas, amante do universo gráfico e, principalmente, das histórias em quadrinhos independentes. Você tem um minuto para ouvir a palavra dos fanzines? Transcendente {31} facebook.com/jordanaandrade Ilustradora, designer, tatuadora, fotógrafa, figurinista e bota na conta aí qualquer outra profissão “hype” mas que não dá dinheiro nenhum. Consegue ser acumuladora e maníaca de limpeza ao mesmo tempo, não perguntem como. Concilia sua agenda (e talvez até a sua vida) conforme as séries que tem de assistir. Muito feminista, tem até tatuagem sobre o assunto. JORDANA ANDRADE ILUSTRA VIADUTO DE SANTA TEREZA O cenário se compõe, a cidade cresce e se agiganta, lan- çando sombras sobre os corpos. Em uma fotografia, o indi- víduo é figurante, no seu dia-a-dia, é transeunte, perante os outros, é julgado. Ando por Belo Horizonte e observo suas paisagens, de ci- mento, carne e osso. Se a cidade pulsa com o frio bater do coração semafórico, cada identidade que circula por essas paisagens navega em um espaço de diálogo e coexistência. À primeira vista, inúmeras vidas se trombam, existências periféricas, sexualidades diversas e não binarismos surgem no horizonte. Na Praça da Liberdade, coração verde da capital, o preconceito fica à espreita. Liberdade, liberdade, um grito homofóbico à esquerda. Morte do espírito, luto em roxo, identidades expostas. A arte é resistência, pulsante e presente na cidade. Do vi- aduto às galerias, a expressividade questiona a heteronor- matividade. Publicações feministas e LGBTs ocupam feiras independentes, o jogo lúdico desafia o preconceito que surge na infância e ocupa o Parque Municipal, se transfor- ma em dança e música. Querem existir, querem dizer. Mas novamente, ouço. Ouço que a pintura de duas mulheres se beijando é suja, imoral. Tentam calar a arte, luto em azul. SOBRE CORPOS ESPAcOS E CORES O asfalto. O semáforo. A rua. {32} Transcendente SOBRE CORPOS ESPAcOS E CORES Por Nathália Pereira O preconceito exige silêncio, censura. Cria uma encenação odiosa e inventa uma agen- da, uma ideologia para culpar aqueles a quem quer sufocar. Nas escolas, as identidades têm de ser moldadas, assim desejam os censores. Autoritariamente acusam o debate aberto - dizem que as crianças não podem conhecer a existência LGBT, dizem que professor não é educador. As identidades queer nascem e crescem desamparadas, caladas, são torna- das diferentes, ostracizadas desde a escola. Calam sua própria natureza, luto em verde. E sobre os corpos periféricos? Negros, LGBTs, mulheres das favelas, têm seus gri- tos de existência ainda mais sufocados, aba- fados por uma convergência de injustiças históricas e ainda tão presentes. Chego ao baixo centro de BH, vejo e ouço a resistência. A periferia tem tanto a dizer, se desloca até o viaduto para ser reconhecida, faz rap, poesia, convive. Contra a norma vigente, a periferia tenta não ser obscurecida, e por vezes é su- focada dentro de sua própria comunidade. Carece de visibilidade, roubam-lhe o sol, luto em amarelo. Dia 17 de maio de 1990. Somente nesse dia a ho- mossexualidade deixou de ser tratada como patologia médica, por determinação da Organização Mundial da Saúde. Há menos de 30 anos, milhões de identi- dades eram marcadas, eti- quetadas como doentias. A gravidade desse discurso reverbera, há quem ainda pregue sobre curas e doen- ças. A saúde gay e lésbica é tabu. Os conhecimentos sobre saúde trans são gra- vemente precários. Saúde e vida, direitos básicos, luto em laranja. Vida. Há dois anos, um jovem era torturado em Betim, em nome da “purificação”. Ao ser socorrido, sobreviveu. Em BH, faltam estatísticas de mortes e espancamen- tos, ainda ofuscadas pelo preconceito que se escorre até mesmo nos números. Em 2015, segundo estatísti- cas do GGB (Grupo Gay da Bahia), 318 lésbicas, bissex- uais, transexuais, travestis e bissexuais morreram por ho- mofobia no Brasil. Estima- se que a cada 28 horas, um LGBT morre de forma vio- lenta no Brasil. Morte, luto em vermelho. Ainda assim, o movimento vive, supera o luto. Resistên- cia. Conquista. Reafirmação. Mobilização. Em roxo, azul, verde, amarelo, laranja e vermelho. O movimento LGBT é difuso, pode ter Q, I, TT e +. Identidades úni- cas se mobilizam sob uma mesma bandeira de arco-íris para lutarem por reconheci- mento, visibilidade e direitos. Em um dia comum na Praça da Estação, o vai e vem de pessoas é acinzentado. No dia 17 de julho de 2016, milhares se reúnem para reivindicar equidade. As seis cores são estendidas, lado a lado, em uma única marcha. O tema da 19a parada foi {34} Transcendente “Democracia é respeitar a identidade de gênero”, req- uerendo, especialmente, as pautas transexuais. As paradas LBGTs se con- solidaram na década de 1970, e até hoje são um dos movimentos da comunidade que mais recebem atenção e exposição midiática. A para- da belo horizontina foi criada por representantes de um coletivo lésbico, ainda nos A bandeira do arco-íris tem seus primeiros registros no século XVI. Já foi sinal de esperança, já foi símbolo de cul- turas e tribos andinas, é bandeira de uma divisão federal da Rússia. No movimento LGBTTQ, foi repaginada em 1978 pelo artista Gilbert Baker, e começou a ser amplamente u- sada nas paradas e movimentos. Existem no mínimo outros 20 símbolos e bandeiras para representar as mais diversas identidades, entre lésbicas, bissexuais, gays, transgêneros, travestis, intersexuais, genderqueer e não-binários, asse- xuais, pansexuais e outros. Ainda assim, como símbolo mais reconhecido do movimento, cada cor da bandeira do arco-íris tem um significado específico: ROXO – ESPÍRITO; AZUL – ARTES e o amor pelo artístico; VERDE – NATUREZA; AMARELO – SOL, a luz e a claridade da vida; LARANJA – SAÚDE e cura; VERMELHO – VIDA, vivaci- dade. anos 1990. A festa na Praça da Estação reacende o es- pírito, celebra a arte, músi- ca e dança, naturaliza as identidades contra a norma opressora, torna visível uma minoria, clama por direitos à saúde LGBTTQ e celebra a vida de cada identidade. Ainda há muito a ser feito. Enquanto a marcha segue para a praça Raul Soares, os contrastes são evidenci- ados. Cada pessoa ali pre- sente navega pela cidade de uma outra forma no seu dia-a-dia. Espaço e corpo. Espaço e identidade. O próprio corpo é um espaço, que está sempre em diálogo com o lugar que ocupa. A Raul Soares do fim de tarde daquele 17 de julho não é a mesma de um outro dia qualquer. A marcha segue, o movimento luta. Transcendente {35} NATHÁLIA ESCREVE SOBRE CORPOS, ESPAÇOS E CORES nathaliacomunic@gmail.com Jornalista que acredita na palavra como meio para a mudança. Pes- quisadora de causas, se interessa por uma nova dialética do gênero e da sexualidade. Se aventurou pela pesquisa em sustentabilidade, e (des)enquadra perspectivas transversais entre a ciência e o fazer político. SARAH QUEIROZ ILUSTRA SOBRE CORPOS, ESPAÇOS E CORES facebook.com/noventeiseis Estudante de artes plásticas da UEMG, participa, observa e questiona as interações: dos sujeitos na cidade, das perspectivas em si mesmas, da aquarela ao nanquim. Com proposta de trabalhos originais e manu- ais, ilustra a cidade, a Transcendente, e quem sabe, ilustra VOCê. {36} Transcendente “We all came into this world naked. The rest is all drag” RuPaul creditos finais THALITA LEFÈR ILUSTRA A CAPA DA TRANSCENDENTEamarelocriativo.com.br Thalita Lefèr é designer, ilustradora e a mente empreendedora por trás dos projetos de comunicação Amarelo Criativo, Diário dum Designer e The Creative Thinker. MERYL DITH ILUSTRA AMOR É ACEITAÇÃO (p. 39) pagina-1.tumblr.com Meryl Dith, 20 anos, ilustradora , fotografa e etc diz: “nunca se limite.” RAFAELLA RODINISTZKY ILUSTRA RU PAUL (p. 36) jornalidades.tumblr.com + rafaellarodinistzky@gmail.com Jornalista com um pé na área criativa. Perseguidora de ocupações urbanas, amante do universo gráfico e, principalmente, das histórias em quadrinhos independentes. Você tem um minuto para ouvir a palavra dos fanzines? {38} Transcendente
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