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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ARTES, CIÊNCIAS E HUMANIDADES AUDREY DANIELLE BESERRA DE BRITO Os contos de fadas contemporâneos na versão fílmica e a construção psicológica de valores : um estudo exploratório na perspectiva dos Modelos Organizadores do Pensamento São Paulo 2011 2 AUDREY DANIELLE BESERRA DE BRITO Os contos de fadas contemporâneos na versão fílmica e a construção psicológica de valores : um estudo exploratório na perspectiva dos Modelos Organizadores do Pensamento Trabalho de Conclusão de Curso apresentado a Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de especialista em Ética, Valores e Saúde na Escola. Área de Concentração: Educação e Construção de Valores Orientador(a): Profª Ângela Esteves Modesto São Paulo 2011 3 RESUMO BRITO, A. D. B. et al (Ed). Os contos de fadas contemporâneos na versão fílmica e a construção psicológica de valores : um estudo exploratório na perspectiva dos Modelos Organizadores do Pensamento. 2011. 116 f. TCC - Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. A sociedade contemporânea passou a priorizar os valores hedonistas, principalmente, por influencia da mídia. Além disso, é fato que os meios de comunicação passaram a utilizar-se da linguagem sincrética para comunicar, seduzir, persuadir, distrair, informar e também para manipular. Mas, será que o sincretismo das versões fílmicas contemporâneas tanto dos contos de fadas tradicionais, como dos contos de fadas atuais, buscam construir nas crianças ensinamentos éticos e morais? Ou será que estas versões, por serem produtos midiáticos, constroem valores hedonistas? Estes questionamentos convergiram em uma grande inquietação, que nos levou a buscar descobrir como ocorre a representação da moralidade nos contos de fadas midiáticos voltados para crianças. Assim, o objetivo desta pesquisa foi investigar, por meio de modelos organizadores do pensamento, o aparecimento ou não dos valores morais generosidade e compaixão e do valor não-moral egoísmo, em crianças de 10 a 12 anos, a partir de conflitos de natureza moral presentes em cenas recortadas dos contos de fadas contemporâneos, na versão fílmica. Esta pesquisa justifica-se pelo fato de se fazer necessário analisar a essência dos contos de fadas contemporâneos, na versão fílmica, a fim de descobrir se eles ainda buscam construir valores morais ou se foram “contaminados” pelos valores hedonistas presentes na sociedade contemporânea. Palavras-chave: Valores morais e não-morais. Generosidade. Compaixão. Egoísmo. Modelos Organizadores do Pensamento. 4 Ao propor que se leve em conta a generosidade, para compreender a moralidade, estaremos concebendo o ser humano como um ‘saco de virtudes’? De modo algum. Uma teoria do ‘saco de virtudes’ pressupões justaposição entre diversas virtudes. Quanto a nós, propomos uma integração entre elas” Yves de La Taille (2004) 5 LISTA DE QUADROS Quadro 1 Deu a louca na Chapeuzinho Vermelho 53 Quadro 2 Deu a louca na Cinderela 62 Quadro 3 Deu a louca na Branca de Neve 71 Quadro 4 Enrolados 79 Quadro 5 Shrek I 88 Quadro 6 Shrek II 89 Quadro 7 Shrek III 90 6 LISTA DE TABELAS Tabela 1 Quantidade de recortes por filme 48 Tabela 2 Configuração dos Modelos Organizadores de Pensamento e sub-modelos referente ao filme “Deu a louca na Chapeuzinho Vermelho” 55 Tabela 3 Disposição afetiva em relação aos valores expressos no filme “Deu a louca na Chapeuzinho Vermelho” 58 Tabela 4 Configuração dos Modelos Organizadores de Pensamento e sub-modelos referente ao filme “Deu a louca na Cinderela” 63 Tabela 5 Disposição afetiva em relação aos valores expressos no filme “Deu a louca na Cinderela” 66 Tabela 6 Configuração dos modelos organizadores de pensamento e sub-modelos referente ao filme “Deu a louca na Branca de Neve” 72 Tabela 7 Disposição afetiva em relação aos valores expressos no filme “Deu a louca na Branca de Neve” 75 Tabela 8 Configuração dos modelos organizadores de pensamento e sub-modelos referente ao filme “Enrolados” 83 Tabela 9 Disposição afetiva em relação aos valores expressos no filme “Enrolados” 85 Tabela 10 Configuração dos modelos organizadores de pensamento e sub-modelos referente ao filme “Shrek I, II e III” 91 Tabela 11 Disposição afetiva em relação aos valores expressos no filme “Shrek I, II e III” 94 Tabela 12 Exemplos de respostas que ilustram o modelo 2 97 Tabela 13 Exemplos de respostas que ilustram o modelo 1 101 Tabela 14 Sentimentos morais e não-morais expressos a partir da análise dos recortes dos contos de fadas na versão fílmica 105 7 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 Construção de valores, em porcentagem, a partir do filme “Deu a louca na Chapeuzinho Vermelho” 57 Gráfico 2 Posição dos valores no filme “Deu a louca na Chapeuzinho Vermelho” 57 Gráfico 3 Presença dos valores nos protocolos de respostas do filme “Deu a louca na Cinderela” 64 Gráfico 4 Posição dos valores no filme “Deu a louca na Cinderela” 66 Gráfico 5 Presença dos valores nos protocolos de respostas do filme “Deu a louca na Branca de Neve” 74 Gráfico 6 Posição dos valores no filme “Deu a louca na Branca de Neve” 75 Gráfico 7 Presença dos valores nos protocolos de respostas do filme “Enrolados” 83 Gráfico 8 Posição dos valores no filme “Enrolados” 84 Gráfico 9 Presença dos valores nos protocolos de respostas do filme “Shrek” 92 Gráfico 10 Posição dos valores no filme “Shrek” 93 Gráfico 11 Agrupamento de sujeitos pelos valores construídos ou não construídos 96 Gráfico 12 Presença do Egoísmo em cada Filme 99 Gráfico 13 Egoísmo como valor central e periférico 100 Gráfico 14 Valor moral e valor não-moral como valor central e periférico. 101 Gráfico 15 Presença da Generosidade em cada Filme 104 Gráfico 16 Generosidade como valor central e periférico 105 8 LISTA DE FIGURAS Figura 1 Sujeito Psicológico 21 Figura 2 Comparação entre a Jornada do Escritor e a Jornada do Herói 33 9 SUMÁRIO 1 APRESENTAÇÃO ................................................................................ 11 1.1 A pergunta de pesquisa .......................................................... 12 1.2 Hipóteses................................................................................. 12 1.3 Objetivo geral.......................................................................... 12 1.4 Objetivos específicos...............................................................13 1.5 Justificativa.............................................................................. 13 1.6 Método e metodologia............................................................. 13 2 QUADRO TEÓRICO ............................................................................ 14 2.1 O sujeito contemporâneo: identidade e valores.......................... 14 2.1.1 Valores: conceito e processo de internalização................ 17 2.1.2 O sujeito psicológico e a construção de valores................ 21 2.1.3 A criança e o processo de internalização dos valores....... 27 2.1.4 Valores morais e não-morais............................................. 29 2.2 Os contos de fadas...................................................................... 30 2.2.1 A estrutura das narrativas maravilhosas........................... 31 2.2.2 Os contos e fadas e os valores morais e éticos................ 35 2.2.3 O longa-metragem animado.............................................. 39 3 METODOLOGIA DE PESQUISA......................................................... 43 3.1 Método......................................................................................... 43 3.2 A investigação da moralidade a partir dos modelos organizadores do pensamento.................................................... 45 3.3 Procedimentos metodológicos.................................................... 47 3.4 Procedimentos para a coleta de informações............................. 49 3.5 Procedimentos para a análise das informações.......................... 50 4 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS ........................ 51 4.1 Chapeuzinho Vermelho 51 4.1.1 Versão tradicional X versão contemporânea..................... 51 4.1.2 Apresentação dos modelos organizadores de pensamento relativos ao filme “Deu a louca na Chapeuzinho Vermelho” 53 4.2 Cinderela 59 4.2.1 Versão tradicional X versão contemporânea..................... 59 4.2.2 Apresentação dos modelos organizadores de pensamento relativos ao filme “Deu a louca na Cinderela”......... 62 4.3 Branca de Neve........................................................................... 68 4.3.1 Versão tradicional X versão contemporânea..................... 68 4.3.2 Apresentação dos modelos organizadores de pensamento relativos ao filme “Deu a louca na Branca de Neve”........................................................................................... 70 10 4.4 Rapunzel..................................................................................... 76 4.4.1 Versão tradicional X versão contemporânea..................... 76 4.4.2 Apresentação dos modelos organizadores de pensamento relativos ao filme “Enrolados”................................. 79 4.5 Shrek........................................................................................... 86 4.5.1 O filme................................................................................ 86 4.5.2 Apresentação dos modelos organizadores de pensamento relativos aos filmes “Shrek I, II e III” 88 4.6 Considerações sobre a análise dos resultados........................... 94 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................ 107 REFERÊNCIAS ........................................................................................ 112 11 1. APRESENTAÇÃO É fato que a sociedade contemporânea passou a priorizar os valores hedonistas1, principalmente, por influencia da mídia (VALDES, 2009, p. 33) e que os contos de fadas buscam transmitir valores e ensinamentos éticos e morais (COELHO, 2000, p. 154). Por outro lado, conforme declara Pierre Lévy (1998, p. 15) “vivemos em uma civilização da imagem e do audiovisual” e ainda, de acordo com Brito (2011, p. 21) “a preponderância visual é maciça e determinada pelos meios de comunicação que utilizam a imagem para comunicar, seduzir, persuadir, distrair, informar e também manipular”. As imagens são denominadas de linguagem não-verbal2 e, de acordo com Pais (2003, p. 1), quando a linguagem verbal se funde com a linguagem não-verbal numa mesma tecnologia, temos a presença da linguagem sincrética. Pais (2003, p. 12) cita o cinema, o teatro e a televisão como exemplos marcantes da linguagem sincrética. Mas, será que o sincretismo das versões fílmicas contemporâneas tanto dos contos de fadas tradicionais, como dos contos de fadas atuais buscam construir nas crianças ensinamentos éticos e morais? Ou será que estas versões, por serem produtos midiáticos, constroem valores hedonistas? Melo (2010, p. 4) destaca que os contos de fadas contemporâneos, na versão fílmica, colocam em primeiro plano a animação, o que leva o enredo a tornar-se secundário, pois, segunda ela, a tela do cinema conquistou rapidamente os jovens pela entrega da imagem pronta e perfeita, tirando-lhes o trabalho de “imaginar” as cenas. Segundo esta pesquisadora (2009, p. 4): [...] a trilha sonora, as cores vibrantes, os efeitos visuais e auditivos, a emoção concentrada na expectativa de uma sala de cinema e o conforto exercem um domínio em todos os sentidos do receptor [...] Entretanto, a sedução sensível do receptor pelo cinema constitui uma arma de manipulação deste suporte, o que sinaliza para o perigo junto aos jovens dessa visão aparentemente desvinculada da sociedade e dos valores expostos em um filme. 1 O hedonismo é uma doutrina que considera como bem possível o prazer imediato e individual, sendo este o princípio e o fim de uma vida moral (VALDES, 2009, p. 35). 2 Para a Lingüística, as imagens são denominadas de linguagem não-verbal. 12 Todas essas informações convergiram para uma grande inquietação, que nos levou a buscar descobrir como ocorre a representação da moralidade nos contos de fadas midiáticos voltados para crianças. Assim, apresentamos a seguir o nosso questionamento principal, as hipóteses, os objetivos e a justificativa desta pesquisa. 1.1 A pergunta de pesquisa Os contos de fadas contemporâneos, na versão fílmica, proporcionam a construção psicológica do valor moral generosidade e/ou do valor não-moral egoísmo em crianças de 10 a 12 anos? 1.2 Hipóteses Hipótese 1: Os contos de fadas contemporâneos, na versão fílmica, influenciam a construção psicológica do valor moral generosidade e do valor não-moral egoísmo em crianças de 10 a 12 anos; Hipótese 2: Os contos de fadas contemporâneos, na versão fílmica, não influenciam a construção psicológica do valor moral generosidade e nem na construção psicológica do valor não-moral egoísmo em crianças de 10 a 12 anos. 1.3 Objetivo geral Identificar, por meio de modelos organizadores do pensamento, o aparecimento ou não do valor moral generosidade e do valor não-moral egoísmo, em crianças de 10 a 12 anos, a partir de conflitos de natureza moral presentes em cenas recortadas dos contos de fadas contemporâneos, na versão fílmica. 13 1.4 Objetivos específicos a) Verificar os modelos organizadores do pensamento que as crianças, entre 10 e 12 anos, constroem sobre o valor moral generosidade; b) Verificar os modelos organizadores do pensamento que as crianças, entre 10 e 12 anos, constroem sobre o seguinte valor não-moral: egoísmo. 1.5 Justificativa Esta pesquisa justifica-se pelo fato de se fazer necessário analisar a essência dos contos de fadas contemporâneos, na versão fílmica, a fim de descobrir se eles ainda buscam construirvalores morais ou se foram “contaminados” pelos valores hedonistas presentes na sociedade contemporânea. 1.6 Método e metodologia Será utilizada como método indutivo e a pesquisa bibliográfica. Para análise dos dados colhidos, utilizaremos o instrumento teórico-metodológico da Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento. 14 2. QUADRO TEÓRICO 2.1 Sujeito contemporâneo: identidade e valores A busca pelo prazer imediato e individual numa sociedade que, segundo Lemos (2004, p. 84), é marcada por um imaginário dionisíaco, a exaltação dos microdesejos que é produto do desenvolvimento de uma cultura descartável, de uma ciência e de uma técnica voltadas para o consumo e para o fluxo de uma quantidade gigantesca de informações fragmentadas e o processo de ideologização que, de certa forma, cerca a reflexividade crítica a partir da distorção, estereotipação, manipulação e construção da realidade através da influencia cognitiva da mídia (WOLF, 2008, p. 144) transformaram o homem contemporâneo num indivíduo esquizofrênico que, segundo Harvey (2007, p. 49), é aquele que acredita numa realidade forjada. Ou seja, é aquele que consome, através dos veículos midiáticos, fatias de realidade influenciadas pelo caráter imediato dos eventos e pelo sensacionalismo do espetáculo que procuram forjar a consciência dos destinatários. Como um esquizofrênico, o indivíduo utiliza-se de informações desconectadas, velozes e isoladas, e que não se articulam em seqüências coerentes. Assim, o sujeito contemporâneo passa a ser composto por uma colagem esquizofrênica de pequenos fragmentos que significa uma espécie de desmembramento da realidade única em infinitas realidades simultâneas (HARVEY, 2007, p. 52). Edgar Morin (1999, p. 17) comenta que a fragmentação do saber tem como conseqüência um vazio de subjetividade. Nesse sentido, o desaparecimento da subjetividade, responsável pela construção de nossa identidade, resulta em esquizofrenia que seria a ausência de identidade. Esta esquizofrenia, num sentido não clínico, leva o sujeito contemporâneo, a substituir a sua subjetividade por presentes desconexos, ou seja, por uma cadeia de significantes sem significado (HARVEY, 2007, p. 52). 15 Desse modo, a sociedade contemporânea passa a agir a partir da ética da estética3, e não a partir de uma moral universalizante. Esta ética da estética vai impregnar todo o ambiente social e contaminar o político, a comunicação, o consumo, os negócios, as artes e espetáculos, ou seja, a vida quotidiana no seu conjunto (LEMOS, 2004, p. 86). O maior problema que Valdes (2009, p. 33) vê nisso tudo é substituição dos valores morais pelos valores hedonistas. Dalbosco (2005, p. 165) explica melhor esta observação de Valdes: O resultado mais imediato desse processo é a invasão das relações de dinheiro e poder naquele âmbito responsável pela socialização cultural espontânea das pessoas, no qual elas formam seu caráter, constroem os seus valores e, em última instância, atribuem significado à sua existência. Lombardi e Georgen (2005, p. 6) completam o raciocínio de Dalbosco: Com o enfraquecimento dos pressupostos da ética do dever e com o aumento das comodidades favorecidas pelo desenvolvimento da ciência e tecnologia bem como o destaque dado ao indivíduo, seus interesses e direitos, acentuou- se o hedonismo como uma das principais tendências da sociedade contemporânea e um dos critérios da orientação moral dos indivíduos. Diante dessas reflexões sobre o sujeito contemporâneo esquizofrênico, sem identidade e constituído por valores hedonistas, torna-se necessário e urgente à educação em valores, conforme prevêem Lombardi e Georgen (2005, p. 84): Há uma série de acontecimentos indicativos de que se inicia uma resistência contra o mercado tentacular e o frenesi consumista, contra o relativismo axiológico e o individualismo hedonista, contra a violência e a banalização da vida, contra a atomização social e a despolitização, contra a fabricação de falsas necessidades e promessas de felicidade pelo consumo. Esse movimento em prol da criação de valores éticos e morais pode ser identificado nos artigos 1º e 3º da Constituição Federal do Brasil de 1988: 3 Para Lemos (2004,p. 86) a ética da estética ocorre quando a sociedade elabora um éthos, uma maneira de ser, um modo de existência onde aquilo que é compartilhado com outros será primordial 16 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; Um amplo discurso sobre a importância e a necessidade de uma inversão de valores está inserido também na educação, conforme podemos notar nos Parâmetros Curriculares Nacionais, na apresentação do tema transversal ética (BRASIL, 1997, p. 26): [...] a reflexão sobre as diversas faces das condutas humanas deve fazer parte dos objetivos maiores da escola comprometida com a formação para a cidadania. Partindo dessa perspectiva, o tema Ética traz a proposta de que a escola realize um trabalho que possibilite o desenvolvimento da autonomia moral, condição para a reflexão ética. Para isso foram eleitos como eixos do trabalho quatro blocos de conteúdo: Respeito Mútuo, Justiça, Diálogo e Solidariedade, valores referenciados no princípio da dignidade do ser humano, um dos fundamentos da Constituição brasileira. Conforme já apontamos, a educação em valores passou a ser uma necessidade devido, principalmente, ao desenvolvimento de valores hedonistas. Desse modo, podemos dizer que três elementos da sociedade contemporânea se entrelaçam constantemente quando a temática é valor: mídia, educação e comportamento. A mídia, considerada um dos aparelhos ideológicos do Estado (ALTHUSSER, 1998) manipula o sujeito. De acordo com Brito (2011, p. 74): [...] é muito comum à manipulação da significação de uma mensagem, de modo a alcançar determinados efeitos comunicativos, ou seja, o receptor passa a acreditar no sentido de alguma coisa, mas a realidade recebe uma comunicação cuidadosamente elaborada por um emissor. 17 Breton (1999, p. 21) ainda completa, afirmando que: [...] a manipulação consiste em entrar por efração no espírito de alguém para aí depor uma opinião ou provocar um comportamento sem que ninguém saiba que houve efração. Tudo está aí, nesse gesto que se oculta a si mesmo como manipulatório. Assim, percebemos que a mídia manipula o sujeito e que, por conta disso, torna-se necessária à educação em valores para que o comportamento do homem contemporâneo se transforme de hedonista para ético. 2.1.1 Valores: conceito e processo de internalização Percebemos que a educação em valores é uma exigência da sociedade atual, mas o que são valores? Etimologicamente, o termo valor provém do latim valorem que significa que tem valor, custo (Bueno, 1967). Bueno (1967) declara que até o século XVI, a palavra valor era utilizada apenas para quantificar preços e que somente por volta do século XVII é que a palavra valor passou a ser empregada para significar também a importância das pessoas. Thomas Hobbes4, no Leviatã, explica: O valor, ou a importância de um homem, talcomo de todas as outras coisas, é o seu preço [...] Portanto, não é absoluto, mas que depende da necessidade e julgamento de outrem [...] Porque mesmo que um homem (como a maioria faz) atribua a si mesmo o mais alto valor possível, o seu verdadeiro valor não será superior ao que for estimado por outros. Schwartz (2006, p. 56) define valor como: 1) uma crença; 2) que pertence a fins desejáveis ou a formas de comportamento; 3) que transcende as situações específicas; 4 HOBBES, T. (1588-1679) Leviatã,ou matéria, forma e poder de uma república eclesiástica e civil,organizado por Richard Tuck, tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, tradução de Cláudia Berliner, revisão de Eunice Ostrenky, São Paulo,Martins Fontes, 2003, parte I, do Homem, Capítulo X, Do poder,valor, dignidade, honra e merecimento. 18 4) que guia a seleção ou avaliação de comportamentos, pessoas e acontecimentos; 5) que se organiza por sua importância relativa a outros valores para formar um sistema de prioridades de valores. Cabral e Nick (2007, p. 319) posicionam-se da seguinte maneira quando se referem ao conceito de valor: Valor é um conceito abstrato, por vezes meramente implícito que define, em relação a um individuo ou a uma unidade social, quais são as finalidades desejáveis, ou os meios aconselháveis e apropriados para atingir essas finalidades. Esse contexto abstrato de valia não é o resultado de uma avaliação do próprio individuo, mas o produto social que lhe foi imposto e que ele só lentamente internaliza isto é, usa e aceita como seu critério pessoal de valor. Conforme podemos observar, Cabral e Nick afirmam que os valores são internalizados lentamente. Aristóteles (1985, p. 40) explica como isso ocorre: Não é, portanto, nem por natureza nem contrariamente à natureza que as virtudes se geram em nós; antes devemos dizer que a natureza nos dá a capacidade de recebê-las, e tal capacidade se aperfeiçoa como hábito. Sendo a virtude um hábito que se solidifica na ação, os valores devem então ser constantemente repetidos e exercitados para adquirir a força moral, logo, eles podem ser construídos. Araújo (2003, p. 158) declara que a construção de valores ocorre a partir da “projeção de sentimentos positivos que o sujeito faz sobre objetos, e/ou pessoas, e/ou relações, e/ou sobre si mesmo”. Para exemplificar esta teoria, podemos pensar numa pessoa que não aceita falsidades, de maneira nenhuma, logo, ela tem como valor moral a sinceridade. Além dos valores, Araújo também destaca que as pessoas também projetam sentimentos negativos sobre objetos, e/ou pessoas, e/ou relações, e/ou sobre si mesmas, construindo assim contravalores: “os contravalores referem-se àquilo de que não gostamos, de que temos raiva, que odiamos, por exemplo” (ARAÚJO, 2003, 158). 19 Para esclarecer melhor esta definição, Araújo (2003, p. 159) faz uma analogia com a escola: Se a criança gosta daquele ambiente [...] a instituição escolar pode tornar-se alvo de projeções afetivas positivas e tornar-se um valor para ela. Caso contrário [...] é bem provável que esse espaço seja alvo de projeções afetivas negativas, que não seja valorizado, que não se constitua em um valor para ela, e sim num contravalor. Há também os valores não-morais que são construídos quando um sentimento não ético é alvo de projeções afetivas positivas e passam a ser valorado. Araújo (2003, p. 159) exemplifica, declarando que “o traficante, a violência e o autoritarismo são valores para algumas pessoas” e ainda comenta: Ficava impressionado com cenas apresentadas em telejornais, mostrando pessoas que haviam cometido chacinas ou eram acusadas de grandes atos de corrupção e que, ao serem questionadas pelos repórteres sobre suas ações e seus sentimentos, demonstravam muita frieza e indiferença sobre os fatos. Como vimos, tanto os valores, morais ou não, como também os contravalores podem ser construídos e é neste ponto que detemos nossa atenção, pois, de acordo com os PCNs (Brasil, 2008, p. 33), “a aprendizagem de valores e atitudes é pouco explorada do ponto de vista pedagógico”, mas, por outro lado, a mídia pode transmitir valores morais, valores não morais e contravalores o tempo todo e numa linguagem muito mais atraente que a da escola, conforme declara Araújo (2003, p. 159): Podemos pensar, por exemplo, no papel da mídia que, empregando linguagens altamente atrativas e dinâmicas, normalizam a violência quando elegem como heróis personagens que são assassinos; quando normalizam a prostituição feminina e o culto a determinados padrões estéticos; quando apresentam de forma acrítica casos de corrupção. O autor (2003, p. 159) ainda completa: Se tais valores são transmitidos em linguagens interessantes, como a da televisão, da Internet e dos vídeos games [...] podemos pensar que aumentará 20 a probabilidade de que se tornem alvo de suas projeções afetivas positivas e sejam por eles valoradas. O problema é que os valores e os contravalores construídos são incorporados na identidade das pessoas (ARAÚJO, 2003, p. 160). Assim, o que se deve fazer é analisar criticamente o material veiculado pela mídia, tanto em jornais, revistas, livros, fotos, propaganda, música, programas de TV, filmes, para trazer à tona suas mensagens implícitas ou explícitas sobre valores. Além de analisar criticamente o material que a mídia veicula a fim de verificar se se constroem valores morais ou não, ou até mesmo contravalores, é necessário que a educação em valores passe a ser uma realidade para garantir a transformação do comportamento hedonista. De acordo com Martins (2009) há quatro maneiras de se ensinar valores: 1. Abordagem pela doutrinação de valores: dá-se através da disciplina, do bom exemplo, de enfatizar mais as condutas do que os raciocínios, destacando as virtudes do patriotismo, do trabalho, da honestidade, do altruísmo e da coragem; 2. Abordagem pela clarificação dos valores: consiste em ajudar, de maneira não-diretiva e de forma neutra, a clarificar, assumir e por em prática os seus próprios valores; 3. Abordagem pela opinião ou julgamento dos valores: consiste em acentuar os componentes cognitivos da moralidade. Esta abordagem propõe que a educação moral se centre na discussão de dilemas morais sem levar em conta, no entanto, as diferenças de sexo, raça, de classes sociais e de cultura, concentrando-se unicamente na atribuição de significados que pessoas dão à suas experiências ou vivencias morais; 4. Abordagem pela narração: envolve três dimensões da educação em valores – cognição, emoção e motivação. A abordagem pela narração ou narrativa reconhece que, na diversidade cultural, é comum a contação de histórias por parte das pessoas com o objetivo de transmitir valores de gerações mais velhas para as mais novas. A narrativa desempenha um papel na vida e na dimensão moral das pessoas. Vimos, então, que os valores podem ser construídos, tanto pela educação como pela mídia. Vimos também que a mídia pode também construir valores não morais/ hedonistas e contravalores. Além disso, observamos que há técnicas de se 21 construir valores, conforme as citadas por Martins (2009), mas, como os valores são construídos pelo psiquismo humano? 2.1.2 O sujeito psicológico e a construção de valores Sastre e Moreno (2003, p. 129) afirmam que os diversos cenários da vida cotidiana, com o entrelaçamento de seus múltiplos e diversos componentes, devem deixar sua marca na construção do psiquismo humano. Esses componentes que deixam marcasna construção do psiquismo humano são explicados por Araújo (2003) em seu modelo de Sujeito Psicológico: Figura 1: Sujeito Psicológico Físicas Interpessoais Socioculturais BIOLÓGICA COGNITIVA SOCIOCULTURAL AFETIVA Inconsciente Consciência Universo das Relações Fonte: (ARAUJO, 2003, p.156) 22 De acordo com este modelo, o sujeito psicológico é composto por todos esses sistemas que, em uma interação contínua, relacionam-se com o meio. Todos eles, segundo o autor (2003, p. 155), estão “inter-relacionados entre si de maneira sistêmica de tal forma que sua separação só é possível para efeitos de estudo e para facilitar sua compreensão”. Em relação a este modelo, Araújo (2003, p. 155) ainda explica que: a) a visão sistêmica de indissociabilidade entre as diferentes dimensões está representada por meio de setas bidirecionais que as ligam entre si; b) a representação de todos os sistemas constituintes é feita por meio de linhas tracejadas, indicando sua abertura e ausência de fronteiras bem definidas entre as diferentes dimensões; c) se a imagem fosse tridimensional, perceber-se-ia que a consciência e o inconsciente (ou não-consciência) encontram-se em planos distintos, paralelos, mas ligados entre si, de tal forma que pressupomos um inconsciente cognitivo, um inconsciente afetivo, um inconsciente biológico e um inconsciente sociocultural (grifo nosso). Se o inconsciente, conforme declara Araújo, liga-se a consciência e se o autor pressupõe que exista um plano inconsciente para as todas as dimensões do sujeito psicológico, há a necessidade de esclarecermos que, de acordo com Freud, o inconsciente é uma região da mente humana na qual ficam recalcadas a emoções, os sentimentos, os desejos e os conflitos do ser humano (NASIO, 1999). Nasio (1999, p.25-26) explica que o recalcamento é “uma barreira que impede a passagem dos conteúdos inconscientes para o pré-consciente”. Já Bergeret (2006, p. 85) define o recalcamento como um processo ativo, destinado a conservar fora da consciência as representações inaceitáveis, ou seja, que representam possíveis tentações ou castigos de exigências pulsionais censuráveis, quando não meras alusões a estas. Percebemos, então, que o recalque serve para impedir que os afetos e os desejos inconscientes passem para a consciência. Mas, os afetos que trataremos nesta pesquisa estão no plano consciente do sujeito psicológico. De acordo com Araújo (2003, p. 156), as emoções e os sentimentos fazem parte da dimensão afetiva e são influenciados pela dimensão biológica e pela dimensão sociocultural e pode influenciar a dimensão cognitiva: 23 [...] as emoções, pertencentes à dimensão afetiva, são conjuntos complexos de reações químicas e neurais (dimensão biológica); sua indução recebe forte influência da cultura, que molda os conteúdos que podem elicitar as emoções (dimensão sociocultural); e seu aparecimento ou sentimento permeia os processos cognitivos do pensamento (dimensão cognitiva). Diante dessas explicações, podemos perceber que a dimensão afetiva desempenha um papel funcional e organizativo no raciocínio humano, principalmente no que diz respeito à construção de valores e de identidade. Minha tese, e de autores como La Taille (1998, 2002) e Damon (1995),é de que os valores construídos são incorporados na identidade das pessoas. Quanto maior a carga afetiva vinculada a determinado valor, mais centralmente ele se “posiciona” na identidade (ARAÚJO, 2003, p. 160). Conforme já foi aqui discutido, o sujeito contemporâneo é desprovido de identidade e a educação em valores busca formar esta identidade. Todavia, a dimensão afetiva é que determinará os valores construídos e a identidade formada já que, a partir da declaração de Araújo, o valor só será construído e internalizado em sua identidade, se tocar a sensibilidade do sujeito através da afetividade. Assim, antes de prosseguirmos, torna-se necessário diferenciar emoção, sentimento e afeto. Sobre emoção, Mahoney e Almeida (2009, p. 17-18) explicam que: [...] é a exteriorização da afetividade, é sua expressão corporal, motora. Tem um poder plástico, expressivo e contagioso; é o recurso de ligação entre o orgânico e o social: estabelece os primeiros laços com o mundo humano e, através deste, com o mundo físico e cultural. As emoções compõem sistemas de atitudes reveladas pelo tônus (nível de tensão muscular). Combinado com intenções conforme as diferentes situações. Das oscilações viscerais e musculares se diferenciam as emoções e se estabelecem padrões posturais para o medo, alegria, raiva, ciúmes, tristeza, etc. Já, o sentimento corresponde à expressão representacional da afetividade e não implica reações instantâneas e diretas como na emoção (MAHONEY; ALMEIDA, 2009, p. 21). 24 Saconni (1996, p. 606) define a palavra sentimento como “um estado psicológico de longa duração”. Rodrigues et al. (1989, p. 15) apontam os sentimentos como “fenômenos afetivos estáveis que resultam, em regra, da intelectualização das emoções”. Damásio (2000, p. 57) também distingue emoção de sentimento: “sentimento (experiência mental da emoção) e emoção (conjunto de reações orgânicas)”. Percebemos, a partir destas definições, que a emoção é uma reação corporal (ativação fisiológica) e o sentimento é quando se atribui um valor aquilo que se sente (ativação representacional). Já, o afeto, de acordo com Codo e Gazzotti (1999, p. 48-59), é um conjunto de fenômenos psíquicos que se manifestam sob a forma de emoções e sentimentos, acompanhados sempre de impressão de dor ou prazer, de satisfação ou insatisfação, de agrado ou desagrado, de alegria ou de tristeza. Para Mahoney e Almeida (2009, p. 17), a afetividade “refere-se à capacidade do ser humano ser afetado pelo mundo externo e interno por meio de sensações ligadas a tonalidades agradáveis ou desagradáveis”. Rodrigues et al. (1989, p. 15) definem a afetividade como o “conjunto de emoção e sentimentos”. Isso significa dizer que a afetividade engloba tanto uma reação do corpo (emoção), como também uma experiência subjetiva (sentimento). Damásio (2000, p. 431) afirma que o “afeto é aquilo que você manifesta (exprime) ou experimenta (sente) em relação a um objeto ou situação, em qualquer dia de sua vida”. Bock et al. (1999, p. 193) enfatizam que: Os afetos ajudam-nos a avaliar as situações, servem de critérios de valoração positiva ou negativa para as situações de nossa vida; eles preparam nossas ações, ou seja, participam ativamente da percepção que temos das situações vividas e do planejamento de nossas ações ao meio. Se os afetos (emoções e sentimentos) influenciam a percepção e as ações do ser humano, eles também regulam suas interações sociais. É como se fosse um círculo: uma pessoa é afetada pela afetividade (Pinto, 2007, p. 12) e sua reação afeta as emoções e os sentimentos de outra pessoa, ou seja, um afeto (positivo ou negativo) 25 afeta um ser humano que afetará também a sua interação com o outro, e este outro será afetado, sucessivamente. Voltando a discussão da influência das emoções, dos sentimentos e dos afetos na construção de valores e na formação da identidade do sujeito, Araújo (2003, p. 160) declara: No processo de desenvolvimento psicológico, durante nossa vida, nossos valores se organizam em um sistema em que alguns deles são mais centrais e outros mais periféricos [...] as emoções e os sentimentos que chamamos morais, como a vergonha, a culpa e o remorso, aparecem (ou são sentidos) quando agimos e/ou pensamos contrariando os valores centrais de nossa identidade. Nesse sentido, atuam regulandonosso funcionamento psíquico. Assim, os valores pertencentes à dimensão afetiva, que são construídos como centrais na identidade das pessoas, sendo de natureza moral, atuarão regulando eticamente seus pensamentos e suas ações. Araújo5 (2007 p. 5-6) explica esta teoria: Tentando sintetizar essa discussão, entendo que no processo de desenvolvimento psicológico, durante toda a nossa vida, à medida que nossos valores vão sendo construídos, eles se organizam em um sistema. Nesse sistema de valores que cada sujeito constrói (que no fundo constituem a base das representações de si), alguns deles se "posicionam" de forma mais central em nossa identidade, e outros, de forma mais periférica. O que determina esse "posicionamento" é a intensidade da carga afetiva vinculada a determinado valor (ou contravalor) construído. Assim, nossos valores centrais são aqueles que, além de terem sido construídos a partir da ação projetiva de sentimentos positivos, a intensidade desses sentimentos é muito grande. Por outro lado, construímos alguns valores cuja intensidade dos sentimentos é pequena e, por isso, se "posicionam" na periferia de nossa identidade. Vale enfatizar, entretanto, que o posicionamento de valores como centrais ou periféricos é flexível, logo, um mesmo valor pode ser central ou periférico, dependendo da situação na qual o sujeito se encontra. Araújo (2003, p. 160) exemplifica esta declaração: Exemplificando, existem pessoas que vão à farmácia comprar um remédio que custa 10 reais e descobrem que só em 9 reais e 80 centavos na carteira. O 5 Fragmento de uma versão simplificada de capítulo publicado no livro “Educação e Valores: pontos e contrapontos” (Araújo, U.F.; Puig, J. & Arantes, V., Summus Editorial, 2007). 26 balconista lhe entrega o remédio e ele diz que depois paga os 20 centavos restantes. Se a honestidade é um valor central na identidade desse cliente, ele poderá ir até sua casa pegar as moedas e voltar à farmácia para pagar os 20 centavos. Se não fizer isso, poderá sentir-se mal, incomodado. Por outro lado, conhecemos pessoas que primam por não pagarem suas dívidas e não se importam por ficar devendo aos outros. No primeiro caso, a honestidade é um valor central na identidade da pessoa em questão, o que significa que esse conteúdo possui uma forte carga afetiva para ele, enquanto que no segundo caso ela é um valor periférico, localizado na “periferia” de sua identidade, com pouca carga afetiva vinculada. O papel exercido nesse sistema, pela intensidade dos sentimentos no posicionamento dos valores, tem um papel importante na construção de valores e da identidade. Diante disso, Araújo (2007 p. 7) conclui: [...] o valor moral depende de uma certa qualidade nas interações, e não é, necessariamente, construído pelas pessoas. Vincula-se à projeção afetiva positiva que o constitui, ligada ou não a conteúdos de natureza moral. Se os valores construídos como centrais na identidade são de natureza ética, estamos falando que existe maior probabilidade de que os pensamentos e os comportamentos dessa pessoa sejam éticos. Pelo contrário, se os valores construídos como centrais na identidade baseiam-se na violência, na discriminação, etc, é provável que seus comportamentos e pensamentos não sejam éticos. Portanto, as situações que envolvem valores morais e/ou não morais, contravalores e identidade estão fortemente associadas às emoções positivas e negativas. Acreditamos que essas experiências emocionais entram em ação quando estamos considerando uma decisão. Sobre essas experiências emocionais, Bechara (2003, p. 196) declara que “a ativação desses estados somáticos oferece sinais automáticos que, de maneira explícita ou oculta, marcam diversas opções e situações com uma valoração”. Mas, quais são os valores morais que podem ser construídos como centrais na identidade do sujeito contemporâneo e que podem atuar em seu funcionamento psíquico, regulando eticamente seus pensamentos e suas ações? 27 2.1.3 A criança e o processo de internalização dos valores Segundo Araújo (2003, p. 104), Piaget vincula o desenvolvimento infantil ao desenvolvimento do juízo moral. Desse modo, Piaget divide a relação das crianças com as regras em 3 fases: anomia, heteronomia e autonomia. A anomia é a fase da ausência de regras, por exemplo, um recém-nascido desconhece a existência das regras sociais. A heteronomia é a fase em que a criança conhece as regras que são determinadas por outras pessoas e a autonomia é a fase em que a criança internaliza as regras e se submete conscientemente a elas (PIAGET, 1932). Assim, podemos compreender que, para Piaget, as crianças menores estão no estágio de heteronomia, isto é, as regras são impostas pelos adultos e as crianças maiores passam aos poucos para um estágio de autonomia, em que as regras são vistas como resultado de uma decisão livre e digna de respeito, aceitas pelo grupo. Lawrence Kohlberg (1984), ex-aluno de Piaget, insatisfeito com sua obra, ainda que aceitasse a abordagem cognitivo-evolutiva, dedicou-se a redefinição dos estágios de desenvolvimento moral estabelecendo seu próprio esquema, criticando aspectos fundamentais da teoria piagetiana. Segundo Kohlberg, existem seis estágios em ordem invariável, como os de Piaget, em que se desenvolve a moralidade. Kohlberg cita os estágios para que o indivíduo tem que passar para evoluir, porém, para ele, muitos adultos não passam do 3º estágio, onde está presente as expectativas interpessoais mútuas, relacionamentos e conformidades interpessoais. E através de uma série de estudos e pesquisas, a Teoria do Desenvolvimento Moral, onde estabelece um esquema de desenvolvimento definido em três níveis e seis estágios. 1º NIVEL PRÉ-CONVENCIONAL: A moralidade da criança é marcada pelas conseqüências de seus atos: punição ou recompensa, elogio ou castigo, e baseia-se no poder físico (de punir ou recompensar) daqueles que estipulam as normas. Estágio 1 - O que determina a bondade ou maldade de um ato são as conseqüências físicas do ato (punição). Respeita-se a ordem apenas por medo à punição, e não se tem consciência nenhuma do valor e do significado humano das regras. 28 Estágio 2 - A ação justa é aquela que satisfaz as minhas necessidades, a que me gera recompensa e prazer, e, ocasionalmente aos outros. As relações humanas são vistas como trocas comerciais. Mais ou menos assim "Tu me gratificas e eu te gratifico". A pessoa tenta obter recompensas pelas suas ações. 2º NÍVEL CONVENCIONAL: Nesse nível a manutenção das expectativas da família, do grupo, da nação, da sociedade é vista como válida em si mesma e sem muitos questionamentos ou porquês. É uma atitude de conformidade com a ordem social, mas também uma atitude de lealdade e amor á família, ao grupo, ao social. Estágio 3 - É bom aquele comportamento que agrada aos outros e por eles é aprovado. De certa forma, é bom o que é socialmente aceito, aquilo que segue o padrão. O comportamento é muitas vezes julgado com base na intenção, e a intenção torna-se pela primeira vez importante. É a busca do desejo de aprovação familiar e social. Estágio 4 - Há o desenvolvimento da noção de dever, de comportamento correto, de cumprir a própria obrigação. Há o desejo de manter a ordem social especificamente pelo desejo de mantê-la, isto é, por que isso é justo. 3º NÍVEL PÓS-CONVENCIONAL: Há um esforço do indivíduo para definir os valores morais, para definir conscientemente e livremente o que é certo e o que é errado, e porquê... Prescinde-se muitas vezes da autoridade dos grupos e das pessoas que mantém a autoridade sobreos princípios morais. Estágio 5 - É a tomada da consciência da existência do outro, da maioria, do bem comum, dos direitos humanos... A ação justa é a ação que leva em conta os direitos gerais do indivíduo, isto é, o bem comum. Valores pessoais são claramente considerados relativos, é a lei da maioria e da utilidade social. Estágio 6 - O justo e correto é definido pela decisão da consciência de acordo com os princípios éticos escolhidos e baseados na compreensão lógica, universalidade, coerência, solidariedade universal. Guia-se por princípios universais de justiça, de reciprocidade, de igualdade de direitos, de respeito pela dignidade dos seres humanos, por um profundo altruísmo, pela fraternidade. Os padrões próprios de justiça têm mais peso do que as regras e leis existentes na sociedade (RIBEIRO E SILVA. G, 2003, p. 06). Ribeiro e Silva (2003, p.06) conclui sua pesquisa afirmando que tanto no modelo de Piaget como no de Kohlberg, a moralidade de um indivíduo depende tanto de fatores psicológicos e biológicos (quem é a pessoa, quem são seus pais, qual sua bagagem genética...), como de elementos sociais e culturais (onde nasceu, em que época, quem são seus vizinhos, amigos, mestres, grau de instrução, condição financeira...). 29 2.1.4 Valores morais e não-morais Já vimos que Araújo (2003; 2007) destaca que sentimentos éticos, quando centrais, vão construir, psicologicamente, valores morais na identidade do sujeito, ao passo que os sentimentos não éticos vão construir valores não morais ou contravalores. Martins6 (2009) conceitua dez valores que, segundo ele, se construídos podem melhorar a vida em sociedade: autonomia, capacidade de convivência, diálogo, dignidade da pessoa humana, igualdade de direitos, justiça, participação social, respeito mútuo, generosidade e tolerância. Dentre os valores citados por Martins, analisaremos, nesta pesquisa o valor moral generosidade. Em relação à generosidade, Pinheiro (2009, p. 68) declara que ela “caracteriza- se por uma virtude por excelência altruísta [...] requer dar algo sem ser pelo cumprimento do dever”. Comte-Sponville (2009, p. 105-106) ainda comenta que “A generosidade é o contrário do egoísmo [...] ser generoso é ser livre de si, de suas pequenas covardias, de suas pequenas posses, de suas pequenas cóleras, de seus pequenos ciúmes”. Assim, pretendemos verificar se os contos de fadas contemporâneos, na versão fílmica, constroem o valor generosidade no público infanto-juvenil porque acreditamos que se trata de um valor moral extremamente necessário ao homem contemporâneo que, por viver rodeado por valores hedonistas/não-morais, necessita construí-lo em sua identidade, como valor central, a fim de combater o predomínio do egoísmo. Verificaremos também se ocorre à construção psicológica de valores não- morais, como o egoísmo. Em relação ao egoísmo, Borriello et al. (2003, p. 349), declara que este valor indica “amor excessivo a si próprio”. Esses autores ainda declaram que o egoísmo é uma: 6 MARTINS, V. A prática de valores na escola. Disponível em: http://www.abec.ch/Portugues/subsidios- educadores/artigos/categorias/artigos-ed paz/ARTIGO_A_PRATICA_DE_VALORES_NA_ESCOLA%20_Versao25_11_04.pdf. Acesso em 17 Ago 2011. 30 Necessidade desproporcional de conservação e de valorização de si mesmo, ainda que com prejuízo dos outros, quase que a cristalização do indivíduo na própria realidade e na própria história; o ponto de referência de tudo é o próprio eu, como se fosse o centro do universo [...] busca exclusivamente a satisfação dos próprios interesses pessoais (BORRIELLO et al., 2003, p. 349). Por ser esse um valor não-moral expresso, geralmente, pela valorização do sucesso, da beleza, da popularidade, do status social, da fama, do dinheiro, do poder, entre outros, consideramos importante verificarmos se ele pode ser construído psicologicamente pelo público infanto-juvenil, através dos contos de fadas contemporâneos na versão fílmica. 2.2 Os contos de fadas Há dois tipos de contos muito semelhantes: os contos maravilhosos e os contos de fadas. De acordo com Todorov (1971, p. 120) “o conto de fadas é uma das variedades do conto maravilhoso, do qual se distingue por uma certa escritura e não pelo estatuto do sobrenatural”. Contudo, há outros teóricos que afirmam que o conto de fadas e os contos maravilhosos são diferentes, são dois gêneros distintos, ou seja, embora apresentem estruturas narrativas idênticas, eles são diferentes em relação a sua problemática central. Enquanto os contos de fadas apresentam uma problemática existencial: a busca de realização pelo amor, os contos maravilhosos apresentam uma problemática social: a busca de realização da personagem pela fortuna (COELHO, 2000, p. 109). Coelho (2000, p. 172-173) declara que há ainda duas diferenças básicas entre esses gêneros: a origem e o propósito: A forma do conto maravilhoso tem raízes em narrativas orientais difundidas pelos árabes [...] O núcleo da aventura é sempre de natureza material/social/sensorial (a busca de riquezas, a satisfação do corpo; a conquista do poder, etc) [...] Desse maravilhoso nasceram personagens que possuem poderes sobrenaturais; deslocam-se; contrariando as leis da gravidade; sofrem metamorfoses contínuas; defrontam-se com as forças do Bem e do Mal, personificadas; sofrem profecias que se cumprem; são beneficiadas com milagres; assistem a fenômenos que desafiam as leis da lógica, etc. O conto de fadas é de natureza espiritual/ética/existencial. Originou-se entre os celtas, com heróis e heroínas, cujas aventuras estavam 31 ligadas ao sobrenatural, ao ministério do além-vida e visavam a realização interior do ser humano. Daí a presença da fada, cujo nome vem do termo latino”fatum”, que significa destino Desse modo, podemos perceber então que os contos de fadas apresentam uma problemática existencial: o herói ou a heroína que precisa vencer obstáculos ou provas para alcançar sua auto-realização. Geralmente a aventura da busca parte de uma metamorfose ou de um encantamento. Já os contos maravilhosos apresentam um herói ou anti-herói que encontrará sua auto-realização na conquista de bens e de poder material. A aventura de busca, nesse caso, parte, geralmente, da necessidade de sobrevivência física ou da miséria dos protagonistas. Assim, embora narrativas maravilhosas, o conto de fadas e o conto maravilhoso expressam atitudes bem diferentes diante da vida: no primeiro, ligadas ao ideal, aos valores eternos, ao espírito; no segundo, ligadas ao sensorial, ao concreto, à vida prática. 2.2.1 A estrutura das narrativas maravilhosas Tanto os contos de fadas como os contos maravilhosos fazem parte dos gêneros narrativos, por isso, é importante compreendermos o conceito de narrativa. Para Siqueira (1992, p. 14), "[...] quando o fato se desenvolve a partir da criação de um conflito, temos uma narrativa", ou seja, o fato do leitor reconhecer o conflito é a principal característica da narrativa. A narrativa se inicia com um equilíbrio e este é quebrado, seja pela introdução de um elemento mágico, seja pelo falecimento ou afastamento de algum personagem. Essa quebra de equilíbrio gera o conflito, e a narrativa desenvolve-se na busca de uma solução. Uma vez resolvido o conflito, o equilíbrio que se restabelece não é mais o mesmo, embora possa ser parecido com o inicial (SIQUEIRA, 1992, p. 17). Segundo Todorov (1970, p. 40), temos: [...] dois tipos de episódios numa narrativa: os que descrevem um estado de equilíbrio ou desequilíbrio, e os que descrevem a passagem de um estado a 32 outro. O primeirotipo será relativamente estático e, pode-se dizer, iterativo: o mesmo tipo de ações poderia ser repetido indefinidamente. O segundo, em compensação, será dinâmico e só se produz, em princípio, uma única vez. Costa (2008, p. 67) explica as principais características do conto: [...] é breve e curto, com um número reduzido de personagens em cena com ação concentrada. As personagens geralmente são anônimas e culturalmente prototípicas (rei, princesa, dragão, padre, moleiro...) Enunciativamente, as fórmulas introdutórias do tipo “Era uma vez...” de localização temporal indefinida, acabam dando ao conto um caráter de permanência temporal (passado e atual), além de colocá-lo no mundo ficcional. Em relação à estrutura dos gêneros narrativos, Joseph Campbell criou, em 1949, em sua obra “O herói de mil faces”, uma estrutura textual básica que denominou de Jornada do herói. A partir desta jornada, Campbell divide a aventura do herói em três fases, que compreendem basicamente a partida, a iniciação e o retorno (MARTINEZ, 2008, p. 52). Segundo Mônica Martinez (2008, p. 56-57), a estrutura da Jornada do Herói de Campbell foi transposta para o cinema por Christipher Vogler nos anos de 1980: Até então, o analista de roteiros da Companhia Walt Disney preocupava-se em entender o mecanismo de uma boa história, daquelas que a pessoa tem a sensação de ter vivido uma experiência completa e significativa [...] Ao se deparar com o trabalho de Joseph Campbell, Vogler entende que o padrão que havia instituído estava mapeado no livro Q herói de mil faces, escrito pelo mitólogo norte-americano. Com o tempo, este conhecimento torna-se a base do metido empregado pelo especialista para diagnosticar problemas e prescrever soluções às películas cinematográficas. Em pouco tempo Vogler traça um memorando de sete páginas que intitula “Guia prático d’O herói de mil faces”, no qual exemplifica a idéia de Campbell por meio de filmes clássicos e contemporâneos. De acordo com Vogler (2006, p. 26) “todas as histórias consistem em alguns elementos estruturais comuns, encontrados universalmente em mitos, contos de fadas, sonhos e filmes”. Christopher Vogler (2006, p. 27) ainda declara: Ficou logo evidente para mim que a Jornada do Herói era uma tecnologia narrativa útil e empolgante, que podia ajudar diretores e produtores a eliminar grande parte dos riscos de tentar adivinhar e dos gastos de desenvolver as histórias para um filme. 33 Diante disso, o autor passou a utilizar esta técnica em produções cinematográficas, porém, atualizou-a de acordo com sua necessidade, modificando-a do original de Campbell. A jornada de Vogler é chamada de ‘Jornada do Escritor’. Figura 2. Comparação entre a Jornada do Escritor e a Jornada do Herói Fonte: VOGLER, C. A jornada do escritor: estruturas místicas para escritores. Tradução de Ana Maria Machado. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 34-35. Vogler (2006, p. 37-46) explica cada parte da Jornada: 34 1. Mundo Comum: A maioria das histórias desloca o herói para fora de seu mundo ordinário, cotidiano, e o introduz em um Mundo Especial, novo e estranho; 2. Chamado à Aventura: Apresenta-se ao herói um problema, um desafio, uma aventura a empreender; 3. Recusa do Chamado (o Herói Relutante): Agora é a hora do medo. Com freqüência, o herói hesita logo antes de partir em sua aventura, Recusando o Chamado, ou exprimindo relutância; 4. Mentor (a Velha ou o Velho Sábio): A função do Mentor é preparar o herói para enfrentar o desconhecido; 5. Travessia do Primeiro Limiar: Finalmente, o herói se compromete com sua aventura e entra plenamente no Mundo Especial da história pela primeira vez — ao efetuar a Travessia do Primeiro Limiar; 6. Testes, Aliados e Inimigos: Uma vez ultrapassado o Primeiro Limiar, o herói naturalmente encontra novos desafios e Testes, faz Aliados e Inimigos, e começa a aprender as regras do Mundo Especial; 7. Aproximação da Caverna Oculta: Finalmente, o herói chega à fronteira de um lugar perigoso, às vezes subterrâneo e profundo, onde está escondido o objeto de sua busca; 8. A Provação: Aqui se joga a sorte do herói, num confronto direto com seu maior medo. Ele enfrenta a possibilidade da morte e é levado ao extremo numa batalha contra uma força hostil; 9. Recompensa (Apanhando a Espada): Após sobreviver à morte, o herói, então, pode se apossar do tesouro que veio buscar, sua Recompensa; 10. Caminho de Volta: Mas o herói começa a lidar com as conseqüências de ter-se confrontado com as forças obscuras da Provação; 11. Ressurreição: É uma espécie de exame final do herói, que deve ser posto à prova, ainda uma vez, para ver se realmente aprendeu as lições da Provação. O herói se transforma; 12. Retorno com o Elixir: O herói retorna ao Mundo Comum, mas a jornada não tem sentido se ele não trouxer de volta um Elixir, tesouro ou lição do Mundo Especial. Nelly Novaes Coelho também organizou uma estrutura básica para se analisar os contos de fadas e os contos maravilhosos. Ela extraiu cinco invariantes definidas por Wladimir Propp que estão sempre presentes nos contos de fadas e nos contos maravilhosos – aspiração (ou desígnio), viagem, obstáculos (ou desafios), mediação auxiliar e conquista do objetivo (final feliz) (COELHO, 2000, p. 109 -110): 35 1. Toda efabulação tem, como motivo nuclear, uma aspiração ou um desígnio, que levam o herói (ou a heroína) à ação; 2. A condição primeira para a realização desse desígnio é sair de casa; o herói empreende uma viagem ou se desloca para um ambiente estranho, não- familiar; 3. Há sempre um desafio à realização pretendida, ou surgem obstáculos aparentemente insuportáveis que se opõem à ação do herói (ou da heroína); 4. Surge sempre um mediador entre o herói (ou a heroína) e o objetivo que está difícil de ser alcançado; isto é, surge um auxiliar mágico natural ou sobrenatural, que afasta ou neutraliza os perigos e ajuda o herói a vencer; 5. Finalmente o herói conquista o almejado objetivo. Portanto, as narrativas – sejam elas maravilhosas ou não, seguem uma determinada estrutura – tanto para a escrita verbal, como para sua forma mais contemporânea que é a cinematográfica. Contudo, vale enfatizar que, diferentemente de qualquer outra forma de literatura, elas são capazes de contribuir diretamente para a construção da identidade e dos valores éticos e morais. 2.2.2 Os contos de fadas e os valores morais e éticos Dentre as narrativas maravilhosas, o foco desta pesquisa está nos contos de fadas e, em relação aos valores morais e éticos, esse gênero apresenta uma certa “complexidade das forças interiores” (positiva e negativa) sobre a dualidade maniqueísta que sempre caracterizou o comportamento das personagens tradicionais. Sobre isso, Coelho (2000, p. 154) declara: A intenção maior é dotar as personagens de ficção da ambigüidade natural dos homens e, através dela, revelar as forças polares ou contraditórias, inerentes à condição humana. Embora em algumas obras a lição de vida desemboque em horizonte “fechado” e enfatize as forças negativas ou o fracasso do viver, a grande maioria delas aponta para a esperança, para o entusiasmo e a importância de se participar dinamicamente da vida. Assim, podemos perceber que os contos de fadas, além de dar exemplos ou conselhos, propõem problemas a serem resolvidos, estimulando a capacidade de 36 compreensão dos fenômenos e provocando idéias novas ou uma atitude receptiva em relação às inovações que a vida cotidiana propõe (ou proporá), além de procurar capacitar as crianças ejovens a optarem, com inteligência, nos momentos de agir. Segundo o historiador Darnton (1996, p. 61), as primeiras versões dos contos de fadas, embora não tivesse a intenção de transmitir valores morais, sugeriam cautela: Sem fazer pregações nem dar lições de moral, os contos demonstram que o mundo é duro e perigoso. Embora, na maioria, não fossem endereçados às crianças, tendem a sugerir cautela. Como se erguessem letreiros de advertência, por exemplo, em torno à busca de fortuna: "Perigo!"; "Estrada interrompida; "Vá devagar!"; "Pare!" É verdade que alguns contêm uma mensagem positiva. Mostram que a generosidade, a honestidade e a coragem são recompensadas. Mas não inspiram muita confiança na eficácia de se amar os inimigos e oferecer a outra face. Em vez disso, demonstram que, por mais louvável quês seja dividir o seu pão com mendigos, não se pode confiar em todos aqueles que se encontra pelo caminho. Alguns estranhos talvez se transformem em príncipes e fadas bondosas; mas outros podem ser lobos e feiticeiras, e não há maneira de distinguir uns dos outros. Darnton (1996, p. 05) ainda declara que nestas primeiras versões, os contadores de histórias procuravam retratar um mundo de brutalidade: As outras histórias da Mamãe Ganso dos camponeses franceses têm as mesmas características de pesadelo. Numa versão primitiva da "Bela Adormecida", por exemplo, o Príncipe Encantado, que já é casado, viola a princesa e ela tem vários filhos com ele, sem acordar. As crianças, finalmente, quebram o encantamento, mordendo a durante a amamentação, e o conto então aborda seu segundo tema: as tentativas da sogra do príncipe, uma ogra, de comer sua prole ilícita. O "Barba Azul" original é a história de uma noiva que não consegue resistir à tentação de abrir uma porta proibida na casa de seu marido, um homem estranho, que já teve seis mulheres. Ela entra num quarto escuro e descobre os cadáveres das esposas anteriores, pendurados na parede. Horrorizada, deixa a chave proibida cair de sua mão numa poça de sangue, no chão. Não consegue limpá la; então, Barba Azul descobre sua desobediência, ao examinar as chaves. Enquanto ele amola sua faca, preparando se para transformá la na sétima vítima, ela se recolhe em seu quarto e veste seu traje de casamento. Mas demora a se vestir, o tempo suficiente para ser salva por seus irmãos, que galopam em seu socorro depois de receberem um aviso de seu pombo de estimação. Num dos primeiros contos do ciclo de Cinderela, a heroína torna se empregada doméstica, a fim de impedir o pai de forçá la a se casar com ele. Em outro, a madrasta ruim tenta empurrá la para dentro de um fogão, mas incinera, por engano, uma das mesquinhas irmãs postiças. Em "João e Maria", na versão dos camponeses franceses, o herói engana um ogre fazendo o cortar as gargantas de seus próprios filhos. Um marido devora uma sucessão de recém casadas, no leito conjugal, em "La Belle et le monstre" ("A bela e a fera"), uma das centenas de contos que jamais chegaram a ser incluídos nas versões publicadas de Mamãe 37 Ganso. Num conto mais desagradável, "Les trois chiens" ("Os três cães"), uma irmã mata seu irmão escondendo grandes pregos no colchão de seu leito conjugal. No conto mais maligno de todos, "Ma mère m'a tué, mon père m'a mangé" ("Minha mãe me matou, meu pai me devorou"), uma mãe faz do filho picadinho e o cozinha, preparando uma caçarola à lionesa, que sua filha serve ao pai. E por aí vai, do estupro e da sodomia ao incesto e ao canibalismo. As versões dos contos de fadas, conhecidas hoje, foram modificadas ao longo da história para se adequarem ao público infantil. Estas versões passaram a enfatizar os ensinamentos éticos e morais. Coelho (2000, p. 179) destaca alguns valores presentes nesse gênero narrativo: � Predomínio dos valores humanistas; preocupação fundamental com a sobrevivência ou com as necessidades básicas do indivíduo: fome, sede, agasalho, descanso, estímulo à caridade, solidariedade, boa vontade, tolerância... Valorização da palavra dada quem, em hipótese alguma, poderá ser quebrada; � Oscilação entre uma ética maniqueísta (nítida separação entre o Bem e o Mal; Certo e Errado) e uma ética relativista (o que parecia mau acaba se revelando bom; o que parecia errado resulta em algo certo...). Mas quanto às ações, a regra é: prêmio para o Bem e castigo para o Mal; � A esperteza/astúcia inteligente vencem a prepotência e a força bruta; inclusive através de atos que julgados rigorosamente são desonestos mas desculpados pela moral prática (é o caso das artimanhas do Gato de Botas para tornar o seu pobre amo um nobre senhor); � A ambição desmedida ou a insaciabilidade humana causam desequilíbrios sem conta; � Há uma ordem natural nos seres e nas coisas que não deve ser contrariada; � São sempre os mais velhos que detêm nas mãos o poder e a autoridade, de maneira absoluta e inquestionável. Enquanto os mais novos sempre os predestinados (apesar de no início parecer o contrário...) Os primeiros representam o passado, a tradição; os últimos, o futuro; � O indivíduo que consegue vencer as provas e passar do nível mais baixo da sociedade para o mais alto, é sempre alguém com dons excepcionais; � A grande mediadora da possível ascensão do homem na escala social é a mulher. Casando-se com a “filha do rei” ou do “nobre abastado”,o indivíduo pobre ou plebeu automaticamente enobrece e se torna poderoso; � As qualidades exigidas á mulher são: beleza, modéstia, pureza, obediência, recato ... e total submissão ao homem (pai,marido, irmão, etc). É dada muito maior ênfase às relações entre pai e filha, do que entre esposo e esposa. 38 Muitos e muitos dos núcleos dramáticos dessas histórias expressam problema entre pai e filha; � É enfatizada a ambigüidade da natureza feminina. Desde as narrativas primordiais, a mulher pe causa de bem e de mal, tanto pode salvar o homem, com sua bondade e amor, como pode pô-lo a perder com seus ardis e traições. Ela tanto pode ser a amada divinizada pela qual o príncipe luta como pode ser apenas o instrumento da procriação desejada pelo homem. Nota-se, porém, que a exploração dos aspectos negativos da mulher se dá, basicamente, nos contos jocosos; isto é, são aspectos realçados com comicidade: mulheres gulosas, perdulárias, teimosas, mentirosas, ignorantes, fingidas... Percebemos, portanto, que a essência dos contos de fadas, nas versões atuais, está na capacidade que esse tipo de texto tem em abstrair conceitos formadores de caráter, uma vez que estabelece relação entre “bem e mal”, “certo e errado”. No decorrer da história, os contos de fadas passaram a abordar, conforme vimos, questões existenciais e relevantes para a vida do homem. Não são histórias tenebrosas ou esvaziadas de significação, ao contrário, trazem hoje profundas reflexões acerca da conduta humana (DONÊNCIO, 2011, p. 90). E, a criança necessita de idéias sobre como colocar ordem sua “casa interior”. Ela necessita de uma educação moral que, de modo sutil e só implicitamente, a conduza às vantagens do comportamento moral, não por meio de conceitos éticos abstratos, mas daquilo que lhe parece tangivelmente correto e, portanto, significativo. Para Bettelheim (2007, p. 12) “a criança encontra esse tipo de significado nos contos de fadas”, já que estas histórias lidam com problemas humanos universais. As personagens e situações dos contos de fadas também personificam e ilustram conflitos íntimos, mas sempre sugerem sutilmente como esses conflitos podem ser solucionados e quais os próximos passos a serem dados rumo a uma humanidade mais elevada. O conto de fadas é apresentado de um modo simples, despretensioso; nenhuma solicitaçãoé feita ao ouvinte [...] Longe de fazer solicitações, os contos de fadas reassegura, dá esperança para o futuro e oferece a promessa de um final feliz (BETTELHEIM, 2007, p. 37). Bettelheim (2007, p. 16) esclarece também, com detalhes, como os contos de fadas contribuem para a educação moral da criança: 39 É característico dos contos de fadas colocar um dilema existencial de maneira breve e incisiva. Isso permite à criança apreender o problema em sua forma mais essencial, enquanto que uma trama mais complexa confundiria as coisas para ela.O conto de fadas simplifica todas as situações [...] Ao contrário do que acontece em muitas histórias infantis modernas, nos contos de fadas o mal é tão onipresente quanto a virtude. Em praticamente todo conto de fadas, o bem e o mal são corporizados sob a forma de algumas personagens e de suas ações, uma vez que o bem e o mal são onipresentes na vida e as propensões para ambos estão presentes em todo homem. É essa dualidade que coloca o problema moral e requer a luta para resolvê-lo [...] Não é o fato de a virtude vencer no final que promove a moralidade, mas sim o fato de o herói ser extremamente atraente para a criança, que se identifica com ele em todas as suas lutas. Devido a essa identificação, ela imagina que sofre com o herói suas provas e tribulações, e triunfa com ele quando a virtude sai vitoriosa. A criança faz tais identificações inteiramente por conta própria, e as lutas interiores e exteriores do herói lhe imprimem moralidade. Assim, podemos dizer que os contos de fadas levam a criança a construir sua identidade e seus valores morais e éticos, além de sugerirem experiências que são necessárias para desenvolver ainda mais seu caráter. 2.3 O longa-metragem animado Brito (2011, p. 21) declara que “estamos em um momento da cultura em que as imagens estão presentes em nosso cotidiano como nunca visto antes”. Lévy (1995, p. 15) também afirma que “vivemos em uma civilização da imagem ou do audiovisual”, pois a preponderância visual é maciça e determinada pelos meios de comunicação que utilizam a imagem para comunicar, seduzir, persuadir, destruir, informar e também manipular. Como vivenciamos uma forte cultura visual, os longas-metragens animados têm conquistado um grande público. Mas, o que é animação? Animação significa dar ânima, dar alma, dar vida. Pode-se dizer que a animação traz em si a essência do cinema. Manipulando sinteticamente o tempo e o espaço, a arte de animar expressa a criação de um universo próprio que faz parte do imaginário de todos que, desde a infância, se encantam com a possibilidade do lúdico. 40 É o terreno do absurdo e da fantasia, no qual a realidade é sempre reinventada e, muitas vezes, criticada7. Existem outras referências para a palavra animação, Vilaça (2006, p. 35) inicia com a definição: A palavra ANIMAÇÃO vem do latim Anima e significa Alma ou Sopro Vital. Animar significa dar vida a objetos inanimados. Em cinema é a arte de dar vida, de conferir movimentos a objetos inanimados através de recursos técnicos, onde cada situação é registrada individualmente em material sensível. Em 1937, o Walt Disney Studio lança o primeiro longa-metragem animado baseado em um conto de fadas dos Irmãos Grimm. Branca de Neve e os Sete Anões que surpreendeu o público. Três anos depois o estúdio lança continuadamente seus filmes animados que marcaram época, alguns deles são: Pinóquio (1940), Dumbo (1941), Bambi (1942), Cinderela (1950) e A Bela Adormecida (1959). Em 1991 estréia A Bela e a Fera, primeiro filme de animação a ser indicado ao Oscar de melhor filme, que apresentou cenas produzidas com a ajuda de computadores, como a dança de Bela e Fera no salão de baile. Em 1995, os estúdios Disney, em parceria com a produtora de animação digital Pixar, apresentam Toy Story, considerado o primeiro longa-metragem totalmente produzido por computação gráfica. A partir de então, a maioria dos filmes de animação utiliza as técnicas de três dimensões (VITA, 2009, p. 1-2). Hoje existem várias técnicas e utilidades para a animação. Podemos dividir esse gênero em três técnicas principais: 2D ou cell animation ou desenho animado: O que identifica essa técnica é a utilização de células de papel ou acetato onde são feitos os desenhos. Existem papéis especiais para animação e pencil test. Alguns animadores utilizam o papel sulfite 75 gramas, que dá um bom resultado e é mais facilmente encontrado. Depois da animação pronta, as células são fotografadas ou digitalizadas com um scanner. Stop Motion: Não utiliza células de papel como suporte. O animador nessa técnica trabalha geralmente com objetos inanimados: massa de modelar, objetos diversos, grãos, recorte de papel e outros. A imagem é captada utilizando a fotografia quadro a quadro. O pixilation é um stop motion com 7 Definição de animação contida na abertura do site (www.eba.ufmg.br/quadroaquadro), acessado dia 26/06/11 às 14:30h. 41 pessoas; elas têm que ter uma postura inanimada, como um boneco, o animador orienta as posições que elas têm que ficar para serem fotografadas. É uma animação com características visuais em três dimensões como um filme em live action e não pode ser confundida com a técnica 3D, toda criada virtualmente. 3D e CG (Computação gráfica): É, basicamente, a formação de objetos, personagens, cenários etc. através de softwares de computador específicos com ferramentas e efeitos avançados. Já existem sistemas de modelagem, animação e tratamento de imagens 3D que possibilitam a criação de imagens hiperealistas, semelhantes aos ambientes naturais. Suas aplicações são diversas: podem ser desenvolvidas narrativas em animação que explorem os recursos da técnica; utilizá-la para criar efeitos especiais em filmes em live action; a tecnologia aplicada à medicina a utiliza para criar ambientes orgânicos tridimensionais; aplicada na tecnologia espacial, em estratégias de guerra e outras (VILAÇA, 2006, p. 24-26). Vilaça (2006, p. 27) ainda afirma que “uma série de animações está sendo produzida de forma híbrida”, ou seja, desenha-se no papel, digitaliza-se a animação e finalizam-se os filmes em computação gráfica, ou capturam-se algumas cenas em stop motion que depois são finalizadas em 3D. A animação em 3D permite também a estruturação de um público fiel ao formato, além de contrabalançar a queda nas vendas e a pirataria crescente, já que o formato é hábil em resgatar o público ao cinema, por oferecer uma experiência exclusiva. Sobre o cinema de animação, D’Elia (1996, p. 163) declara: [...] o cinema de animação integra elementos de todas as outras formas de expressão. É plástico, musical, narrativo, cinematográfico e coreográfico. Empresta das outras artes seus códigos e elementos. Mas tem também seu repertório particular, onde se destacam: o timing; a dinâmica do movimento e o acting. O timing se refere ao número de imagens que devem ser fotografadas para cada segundo de animação. Também é o que determina a velocidade da ação. A dinâmica do movimento dá-se a partir da qualidade plástica, pois é esta a responsável pelo ritmo e pela métrica, fazendo com que a imagem possua uma relação direta com a música. O acting é fazer com que os personagens demonstrem emoções e personalidade. De acordo com Brito et al. (2011, p. 18): 42 O cinema, enquanto arte, parte do concreto para o visível, do imediato, do próximo, pois explora o ver, o ter diante de nós a situações, as pessoas, os cenários, as cores, as relações espaciais. Os filmes são sensoriais, visuais, onde a linguagem falada, a musical, a escrita interagem
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