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A pena de baquillo virtual ligeiras cons

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A pena de “baquillo virtual”: ligeiras considerações 
 
Interessante tema suscitado por advogado me fez voltar ao que 
escrevi em “Sistema Acusatório”, lá se vai mais de uma década. 
Com efeito, a partir da convergência entre oralidade, publicidade e 
documentação dos atos registrados em meio digital, no âmbito da Operação 
Lava-Jato, mas que pode tranquilamente referir-se a qualquer processo 
criminal no Brasil, constato a tendência de “enquadramento de câmera” das 
pessoas que prestam declarações em juízo, em especial os acusados, em um 
contexto de produção de sentidos que sinaliza para uma “culpabilização via 
imagem”, em contrariedade à presunção de inocência. 
Há muitas explicações que vão desde a mais singela, qual seja, a 
dificuldade com recursos tecnológicos que tenham maior abrangência, em 
termos de captação de imagem e som e permitam o enquadramento de todos 
os participantes da audiência, incluindo o MP e o juiz, até mesmo à adoção 
de estratégias que desequilibram a paridade de armas, ao expor o acusado 
em visível inferioridade diante do acusador e do juiz, de sorte a recuperar a 
conhecida "pena de baquillo", agora sob o formato de uma "pena de 
exposição ao banco dos réus virtual". 
Lembro que ao tratar do assunto, na obra Sistema Acusatório, 
invoquei o magistério de Habermas para rastrear a trajetória liberal do 
princípio da publicidade, “tornando as decisões políticas sujeitas à revisão 
perante a opinião pública”1, até chegar aos dias de hoje, quando o controle 
empresarial dos meios de comunicação de massas, a lógica da 
competitividade e do mercado que orienta a atuação deles e a distorção da 
própria noção de publicidade, antes de incentivar a participação democrática 
																																																													
1 HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 
235. 
da maioria das pessoas relativamente aos negócios da sua cidade e de seu 
país, anula essa participação, porque constroem uma nova realidade, 
paradoxalmente virtual ou espetacular. 
Na oportunidade igualmente invoquei a experiência de Garapon, que 
advertia para o poder (contrapoder) da mídia e a maneira como é empregado 
especialmente nos casos penais2, e de Pierre Bourdieu, que analisou a 
influência da sociedade espetacular, da ansiedade midiática e da informação 
como mercadoria de consumo sobre os juízes, destacando que há aqueles que 
nem sempre são os mais respeitáveis do ponto de vista das normas internas 
do campo jurídico mas que podem servir-se da televisão para mudar as 
relações de força no interior de seu campo e provocar um curto-circuito nas 
hierarquias internas.3 
Evidente que se a publicidade midiática do caso penal pode ser 
convertida em instrumento de alteração da percepção da realidade sobre as 
condições em que se desenvolve o processo penal, a associação dessa 
exploração midiática com imagens das audiências e sessões, fragmentos do 
procedimento impossíveis de serem encaixados no conjunto de provas 
produzidas, poderá servir para produzir ou consolidar pré-compreensões de 
natureza condenatória. 
Isso se deve ao fenômeno bem observado por Muniz Sodré, que diz 
com a representação de mundo própria de um tipo de conhecimento 
comunicacional acrítico, regido por uma consciência em tese atemporal, que 
substitui os critérios de verdade que devem orientar a decisão das causas 
penais. As pessoas não devem ser (pré)condenadas pelas aparências, que 
podem ser artificialmente elaboradas. Elas serão ou não condenadas após o 
																																																													
2 GARAPON, Antoine. Juez y Democracia. Espanha: Flor del Viento, 1997, pp. 90-110. 
3 BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 81. 
balanço equilibrado e justificado do conjunto de provas que venha a ser 
produzido. 
O fragmento de imagem que se transmite, com “foco” no acusado 
inferiorizado e a voz ao fundo, da autoridade inquisidora, cobrando-lhe uma 
verdade que alega que o réu está deliberadamente suprimindo, tem o poder 
de substituir todas as atividades probatórias perante a opinião pública. 
Correndo o risco de sintetizar em demasia a opinião de Muniz Sodré, 
posta relativamente à ciência da comunicação, vale a transcrição da crítica 
que situa o desafio da construção do discernimento no lugar da ilusão de 
realidade: 
“Ao mesmo tempo em que se revela como indiscutível a importância 
das ciências no mundo tecnológico de hoje, aparece o imperativo ético-
político de se indagar sobre o estatuto de ser dos objetos e conceitos 
científicos, tendo-se em vista os macroefeitos de afetação que exercem sobre 
a vida humana quando conjugados à tecnologia planetária. No tocante à 
midiatização, é crucial a diferença entre olhar e ver, ouvir e escutar, assim 
como entre a pura emoção e o sentimento, que é a sensibilidade lúcida, 
porque nessa diferença se constrói o discernimento, ou seja, outro nome para 
a apreensão crítica do mundo.”4 
Alguns cuidados, todavia, podem ser tomados para evitar que o 
manejo das imagens produza uma desigualdade de posições e oportunidades 
no âmbito do processo penal. 
Vale lembrar aqui, com efeito, as lições de Hassemer, sobre a 
configuração do caso penal e a importância da compreensão cênica. 
Em obra clássica alertava o saudoso filósofo e penalista: 
																																																													
4 SODRÉ, Muniz. A ciência do comum: notas para o método comunicacional. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 
120. 
“A fase de produção [do caso] é caracterizada pela compreensão 
cênica, a qual, diferentemente da compreensão textual, tem que dar conta de 
uma série de complicações. Os princípios nela contidos e as regras 
individuais podem ser compreendidos como modelos de compreensão 
cênica.”5 
(...) 
“O modelo de compreensão cênica e o seu caráter obrigatório para 
os participantes, a sua ‘validade’ como regras jurídicas, são pressupostos 
necessários para que a compreensão tenha êxito e para que os direitos dos 
participantes no processo somente sejam colocados em perigo nos limites 
mais estritos possíveis. O Processo Penal, no qual se exerce a força em que 
se discutem consequências drásticas para as pessoas, é evento perigoso e 
precário – não só para o acusado, mas também por exemplo, para a vítima 
que deve se manifestar e ainda é interrogada agressivamente pelo defensor, 
para as demais testemunhas e para o próprio defensor, promotor e juiz.”6 
Para prevenir os efeitos de uma voluntária ou não alteração das 
condições de produção de sentido do conjunto dos atos processuais 
oralizados e registrados em meio digital, penso que existem apenas dois 
caminhos: a) ou a gravação/transmissão contempla todos os participantes do 
ato; b) ou se aplica ao processo penal a regra definida no §6º, do artigo 367 
do Novo Código de Processo Civil e se assegura às partes o direito de gravar 
a audiência com independência de autorização judicial. 
Ao consultar a doutrina do processo civil é possível observar a mais 
absoluta ausência de controvérsia, relativamente à gravação da audiência 
pelas partes. Ela é uma faculdade das partes. Os juristas da área, 
																																																													
5 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Porto Alegre: Sergio Antonio 
Fabris, 2005. p. 191 
6 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Porto Alegre: Sergio Antonio 
Fabris, 2005. p. 192 
praticamente, limitam-se a reproduzir o texto do mencionado parágrafo do 
art. 367 do CPC: “§ 6o A gravação a que se refere o § 5o também pode ser 
realizada diretamente por qualquer das partes, independentementede 
autorização judicial.”7 
A adoção desse procedimento, isto é, permitir a gravação do ato pelas 
partes, além de gozar de respaldo legal teria a virtude de viabilizar o controle 
das ações de todos os personagens do processo de modo a verificar o respeito 
aos requisitos de legitimação da jurisdição penal, entre eles os preciosos 
princípios da presunção de inocência e imparcialidade do julgador. 
Geraldo Prado 
 
																																																													
7 Por todos: MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo código 
de processo civil comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 388.

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