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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PETRÓPOLIS CURSO DE MESTRADO EM DIREITO REFLEXÕES SOBRE AS FALSAS MEMÓRIAS E A PROVA TESTEMUNHAL Thaysa Navarro de Aquino Ribeiro Petrópolis – RJ 2020 UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PETRÓPOLIS CURSO DE MESTRADO EM DIREITO REFLEXÕES SOBRE AS FALSAS MEMÓRIAS E A PROVA TESTEMUNHAL Trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade Católica de Petrópolis como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito. Thaysa Navarro de Aquino Ribeiro Orientador: Prof. Pós Dr. Flávio Mirza Maduro Petrópolis / RJ 2020 Aos meus pais, Cristina e Caio, que não mediram esforços para tornar meu sonho em realidade, aos meus avós, que são minha fonte inesgotável de amor e ao meu companheiro de vida André por me incentivar e acreditar tanto em mim, mesmo quando eu não acreditei. AGRADECIMENTOS Tudo começou com um sonho. Há dois anos, eu não fazia ideia do quanto o Mestrado mudaria a minha vida. Sem dúvida, os melhores anos da minha vida profissional. Mas tudo isso não seria possível sozinha. Agradeço, primeiramente, a Deus, por me capacitar, guiar e amparar nos momentos difíceis. “Sei que os que confiam no Senhor, revigoram suas forças, suas forças se renovam, posso até cair, ou vacilar, mas consigo levantar, pois recebo Dele asas e como águia, me preparo pra voar. Eu posso ir muito além de onde estou, vou nas asas do Senhor, o seu amor é o que me conduz (...)”. Aos meus amados pais, Caio e Cristina, agradeço por nunca medirem esforços para a realização dos meus sonhos, com vocês eu sei que posso sempre contar. Pai, você é meu exemplo de honestidade e competência. Mãe, muito obrigada por me acompanhar, incansavelmente, toda semana, à Petrópolis, incentivando e me fazendo acreditar que tudo valeria a pena. Eu amo e sou eternamente grata a vocês! À minha irmã Danielle e ao meu cunhado Gustavo, pela amizade e torcida. À minha sobrinha e afilhada Helena, que mesmo na barriga, já desperta o maior amor do mundo dentro dos nossos corações. Aos meus avós Aloysio e Maria Helena, por se alegrarem com cada conquista, por menor que seja, por serem minha fonte inesgotável de amor, carinho e incentivo. Aos meus avós Lecy (in memorian) e João (in memorian), por permanecerem vivos em meu coração. Vocês me ensinaram que “saudade é o amor que fica!” Agradeço ao amor da minha vida, André Zem, que foi o grande responsável por tudo isso que estou vivendo. Foi você que me incentivou a ser Mestra em Direito, me fazendo acreditar no meu dom de professora. Obrigada por viver cada etapa comigo, por me entender nos momentos de ansiedade, aflição e muito mais que isso, por sempre me fazer acreditar que cada esforço valeria a pena. E, valeu! Agradeço ao meu querido padrinho Romero, aos meus tios e primos pelas mensagens de carinho e torcida. Aos meus amigos, pelos bons momentos vividos e por sempre acreditarem no meu potencial. Em especial, agradeço às amigas Riviane Laviolla, Isabella Ramos, Raíssa Carneiro por todo apoio no Mestrado, na Docência e na vida. Ao Alexandre Rezende, meu querido amigo, agradeço pela parceria desde o início da minha trajetória, não só no Mestrado, mas durante todo o Curso de Direito em Juiz de Fora. Aos colegas do Mestrado, por tornarem a caminhada muito mais prazerosa. Em especial, agradeço à amiga Aline Souto, que sempre esteve ao meu lado, incentivando, ajudando, torcendo e apoiando. Agradeço, imensamente, à Margarida Espósito, Coordenadora do Curso de Direito do Centro Universitário Unifaminas Muriaé que, desde o início, acreditou em mim, abrindo as portas da Docência e me incentivando a chegar até aqui. Você é um exemplo de profissionalismo e competência. A você, minha eterna gratidão! Agradeço também, à minha querida amiga, Cinthia Zem que, sempre, incentivou minha carreira de Docente, não medindo esforços para me ajudar. Aos meus alunos, agradeço pelo carinho e por me incentivarem a ser cada dia melhor. À Universidade Católica de Petrópolis, agradeço pelos melhores anos profissionais da minha vida. Agradeço aos professores do Mestrado por cada ensinamento. Agradeço ao Professor Rodrigo Garrido, por transmitir seus infinitos ensinamentos de forma tão simples. Em especial, agradeço ao meu querido Orientador Flávio Mirza, por me receber sempre tão bem, por ser exemplo de tanta sabedoria e humildade. Sem a sua ajuda, eu não teria chegado até aqui. Você, com sua extrema competência, tranquilidade e paciência, foi essencial para que este trabalho se concretizasse. A você, toda minha admiração e gratidão! Tenho muito orgulho em fazer parte da UCP! Não poderia deixar de agradecer também aos Professores e colegas da Pós Graduação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro por tanto conhecimento dividido e ofertado. Agradeço ao Professor e Coordenador Gaio Júnior, idealizador da Pós, por tanto empenho e dedicação para nos oferecer um ensino único e de qualidade. Seu amor pela Docência me inspira! Agradeço também de forma especial, à Professora Júlia Maurmo, por não medir esforços em me ajudar, mesmo em uma fase tão difícil da sua vida. Você, desde o primeiro momento que te procurei, me ofereceu muito mais do que ajuda no meu trabalho, me ofereceu palavras de incentivo, coragem e amizade. Minha gratidão a cada um de vocês! “Mas aqueles que esperam no Senhor renovam as suas forças. Voam bem alto como águias; correm e não ficam exaustos, andam e não se cansam”. Isaías 40:31 RIBEIRO, Thaysa Navarro de Aquino. Reflexões sobre as Falsas Memórias e a Prova Testemunhal. 2019. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Católica de Petrópolis, Programa de Pós Graduação em Direito, Petrópolis, 2019. RESUMO A prova testemunhal é considerada como um dos mais utilizados meios de prova no Processo Penal Brasileiro. O depoimento da testemunha resgata, na memória, as lembranças dos fatos ocorridos no passado, com a finalidade de dar conhecimento ao julgador sobre aquilo já ocorrido, cumprindo, assim, uma função retrospectiva e recognitiva no Processo Penal. No entanto, tal prova demonstra-se muito frágil. Não obstante, a prova testemunhal norteia a maioria das sentenças proferidas pelos juízos criminais. E sua fragilidade revela-se na dependência da recordação dos fatos, da memória das pessoas que os narra. O processo mnemônico não é fidedigno à realidade e a lembrança pode estar contaminada pelas Falsas Memórias. Assim, o objetivo do presente trabalho é tecer reflexões acerca das Falsas Memórias, bem como de sua falibilidade nos relatos testemunhais do Processo Penal Brasileiro, mormente quando a prova oral é aceita como exclusivo meio probatório para a resolução do litígio. Portanto, o estudo das Falsas Memórias no Direito se faz indispensável, na medida em que, ao entender o melhor funcionamento do fenômeno, podem ser tomadas atitudes que facilitam a identificação da problemática e, mais do que isso, medidas que visem à redução dos danos, a fim de que a prova testemunhal torne um meio de prova mais seguro. Trata-se de um trabalho qualitativo, com um estudo aprofundado acerca da Prova Testemunhal, bem como sobre o funcionamento da memória humana. Além disso, realiza-se reflexões que circundam o fenômeno das Falsas Memórias, tendo como consequência a fragilidade do testemunho, em virtude da falibilidade da memória e suas consequências negativas ao Sistema Processual Penal Brasileiro. Palavras-chave: Reflexões; Falsas Memórias; Prova Testemunhal. RIBEIRO, Thaysa Navarrode Aquino. Reflections on False Memories and Witness Test. 2019. Dissertation (Master in Law) - Catholic University of Petrópolis, Postgraduate Program in Law, Petrópolis, 2019. ABSTRACT Testimonial evidence is considered to be one of the most widely used evidence in the Brazilian Criminal Procedure. The testimony of the witness recalls, in memory, the memories of the facts that occurred in the past, with the purpose of informing the judge about what has already happened, thus fulfilling a retrospective and recognizable function in the Criminal Procedure. However, such proof proves to be very fragile. Nevertheless, testimonial evidence guides most judgments handed down by criminal judgments. And its fragility is revealed in the dependence of the memory of the facts, the memory of the people who tell them. The mnemonic process is unreliable to reality and the memory may be contaminated by False Memories. Thus, the objective of the present paper is to make reflections on False Memories, as well as their fallibility in the testimony reports of the Brazilian Criminal Procedure, especially when the oral evidence is accepted as the only probative means for the resolution of the dispute. Therefore, the study of False Memories in Law is indispensable, since, by understanding the best functioning of the phenomenon, attitudes can be taken that facilitate the identification of the problem and, moreover, measures aimed at reducing harm. only that the testimonial evidence makes it a safer means of proof. It is a qualitative work, with an in-depth study of the Testimonial Test, as well as the functioning of human memory. In addition, reflections are made that surround the phenomenon of False Memories, resulting in the fragility of testimony, due to the fallibility of memory and its negative consequences to the Brazilian Criminal Procedure System. Keywords: Reflections; False Memories; Witness Test. LISTA DE ABREVIATURAS ART Artigo CF Constituição Federal CPP Código de Processo Penal DJe Diário do Judiciário Eletrônico HC Habeas Corpus Min Ministro MP Ministério Público OAB Ordem dos Advogados do Brasil Rel Relator STF Supremo Tribunal Federal SUMÁRIO INTRODUÇÃO...............................................................................................................12 1 O PROCESSO PENAL E SEUS SISTEMAS PROCESSUAIS ................................14 1.1 PENA E PROCESSO PENAL: PRINCÍPIO DA NECESSIDADE ...............14 1.2 DOS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS ..................................................15 1.3 DO SISTEMA PROCESSUAL INQUISITÓRIO............................................17 1.4 DO SISTEMA PROCESSUAL ACUSATÓRIO .......................................... ..18 1.5 DO SISTEMA PROCESSUAL MISTO ...................................................... ...20 1.6 DO SISTEMA PROCESSUAL ADOTADO NO BRASIL ......................... ....22 2 DA PROVA ................................................................................................................25 2.1 CONCEITO E FUNÇÃO DA PROVA ...........................................................25 2.2 DA FUNÇÃO PERSUASIVA DA PROVA ....................................................29 2.3 DA VERDADE REAL...................................................................................30 2.4 DA DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA...............................................32 2.5 DOS PODERES CONCEDIDOS AO JUIZ NA BUSCA DAS PROVAS.......34 3 DA PROVA TESTEMUNHAL ................................................................................36 3.1 DA POLÊMICA ACERCA DO ARTIGO 212, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL ..........................................................................................................................36 3.2. QUEM PODE SER TESTEMUNHA? RESTRIÇÕES, RECUSAS, PROIBIÇÕES E COMPROMISSO ......................................................................... .......39 3.3 DA CLASSIFICAÇÃO DAS TESTEMUNHAS ...........................................43 4 DA MEMÓRIA ........................................................................... .............................45 4.1 NOÇÕES INTRODUTÓRIAS ACERCA DA MEMÓRIA ............................45 4.2 A MEMÓRIA E SUAS DEFORMAÇÕES ....................................................48 4.3 A MEMÓRIA E SUAS DIMENSÕES ...........................................................51 4.3.1 A memória sob o viés neurológico ...................................................53 4.3.2 Memória sob viés antropológico e filosófico ....................................55 4.3.3 A memória sob o viés social .................................................... ..........55 4.4 A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO .........................................................56 5 REFLEXÕES SOBRE AS FALSAS MEMÓRIAS E A PROVA TESTEMUNHAL 5.1 ASPECTOS HISTÓRICOS DAS FALSAS MEMÓRIAS ..................... ......58 5.2 FORMAÇÃO DAS FALSAS MEMÓRIAS ..................................................63 5.3 A PROVA TESTEMUNHAL COMO MEIO DE PROVA ...........................64 5.4 PROVA PENAL À LUZ DAS FALSAS MEMÓRIAS ................................66 5.5 DO REFLEXO DA FALSIFICAÇÃO DA LEMBRANÇA NO ATO DE RECONHECIMENTO ........................................................................ ...........69 5.6 DOS FATORES DE CONTAMINAÇÃO DA PROVA ORAL ................ .....75 5.7 DO SUBJETIVISMO DO JULGADOR................................................ .........78 5.8 DAS MEDIDAS DE REDUÇÃO DO DANO .................................... ...........81 6 ESTUDO DE CASOS E EXPERIMENTOS ........................... ................................85 6.1 OS ESTUDOS DE ELIZABETH LOFTUS .................. ................................88 6.2 OS EXPERIMENTOS DE ELISABETH LOFTUS......................................90 6.3 DOS EXPERIMENTOS REALIZADOS NO BRASIL ...............................92 6.4 CASO DA ESCOLA BASE EM SÃO PAULO ...........................................98 CONCLUSÃO................................................................................ .............................100 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................102 12 INTRODUÇÃO O termo “prova” origina-se do latim probatio, derivado do verbo probare, que significa ensaio, verificação, inspeção, exame, argumento, aprovação ou confirmação de todo e qualquer elemento que possibilite a compreensão de determinado fato. (NUCCI, 2016, p. 301). O objetivo da prova é reconstruir os fatos investigados, buscando a maior coincidência possível com a realidade, ou seja, com a verdade dos fatos. Busca-se, pois, a reconstrução da verdade. Sabe-se que a reconstrução histórica dos fatos delituosos é muito difícil, no entanto, esse deve ser, sempre, o compromisso do Estado enquanto detentor do monopólio da Jurisdição, haja vista a impossibilidade de qualquer forma de solução privada e unilateral dos conflitos. Desta forma, o Processo Penal, ainda que de maneira imperfeita deve ter como finalidade a reconstrução da verdade judicial, sobre a qual, após o trânsito em julgado da decisão final, incidirão todos os efeitos da coisa julgada, com todas as suas consequências. A prova testemunhal é considerada como um dos mais utilizados meios de prova no processo penal brasileiro. Não obstante sua imensa fragilidade, tal prova norteia a maioria das sentenças proferidas pelos juízos criminais. E suafragilidade revela-se na dependência da recordação dos fatos, da memória das pessoas que os narra. O depoimento da testemunha resgata, na memória, as lembranças dos fatos ocorridos no passado, com a finalidade de dar conhecimento ao julgador sobre aquilo já ocorrido, cumprindo, assim, uma função retrospectiva e recognitiva no Processo Penal. O processo mnemônico não é fidedigno à realidade e a lembrança pode estar contaminada pelas Falsas Memórias. Assim, o objetivo do presente trabalho é tecer reflexões acerca das Falsas Memórias, bem como de sua falibilidade nos relatos testemunhais do Processo Penal Brasileiro, mormente quando a prova oral é aceita como exclusivo meio probatório para a resolução do litígio. 13 No primeiro capítulo, analisa-se os diversos Sistemas Processuais Penais existentes, Sistema Acusatório, Inquisitório e Misto, enfatizando a divergência doutrinária acerca de qual Sistema é adotado no Brasil. No segundo capítulo, estuda-se a Prova, seu conceito e funções. Além disso, perquire-se acerca do instituto da verdade real, bem como da distribuição do ônus da prova. Posteriormente, passa-se ao exame de uma das espécies probatórias mais importantes no Processo Penal, qual seja a prova testemunhal, discorrendo sobre a polêmica do artigo 212, do CPP. Além disso, faz-se uma breve análise sobre quem pode ser testemunha. No último capítulo, inicia-se as reflexões acerca das falsas memórias e da prova testemunhal à luz do Processo Penal. Para entender como que o instituto das falsas memórias pode influenciar negativamente a produção da prova testemunhal, analisa-se a memória humana e suas possíveis deformações. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, baseada em doutrinas e estudos de caso. 14 1 O PROCESSO PENAL E SEUS SISTEMAS PROCESSUAIS 1.1 PENA E PROCESSO PENAL: PRINCÍPIO DA NECESSIDADE O surgimento do processo penal está intimamente ligado à história da pena, pois para sua aplicação faz-se necessária a estrita observância das regras do devido processo penal, ou seja, o processo penal é um caminho necessário para alcançar-se a pena. Esse é o núcleo do Princípio da Necessidade (LOPES JR, 2019, p. 35). Pode-se dizer que o direito processual penal define especificamente os contornos da pena, que adquire caráter de pena pública e com isso, o Estado passa a exercer sua autoridade, impondo que a pena seja pronunciada por um juiz imparcial, com poderes limitados. O Princípio da Necessidade demarca um dos pontos de ruptura do processo penal com o processo civil. O Direito Penal, diferentemente do Direito Civil, não prevê hipótese de solução de conflito em que a aplicação da pena se dê fora de um processo. Somente depois do processo penal teremos a possibilidade de aplicação da pena. Já o Direito Civil, todos os dias, se implementa, sem a necessidade de processo, que só existirá quando houver lide. Desta forma, pena, delito e processo estão, intimamente relacionados, pois não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo. Segundo Aury Lopes Jr Por fim, o processo não pode mais ser visto como um simples instrumento a serviço do poder punitivo (Direito Penal), senão que desempenha o papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forem rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal). Assim, existe uma necessária simultaneidade e coexistência entre repressão ao delito e respeito às garantias constitucionais, sendo essa a difícil missão do processo penal [...] (LOPES JR, 2019, p. 37). 15 Vale ressaltar que, atualmente, o Princípio da Necessidade está relativizado, cedendo lugar para a lógica negocial, que iniciou no Brasil com a Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95), ganhando mais enfoque com a Lei 12.850, de 2013, que disciplinou o instituto da Delação Premiada. Contudo, é necessária uma preparação técnica para tal relativização, bem como aprender a trabalhar na perspectiva negocial, independentemente do lugar que se ocupe na estrutura processual penal. 1.2 DOS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS Sabe-se que a estrutura processual penal variou ao longo dos séculos, indo ao encontro da ideologia predominante à época, punitiva ou libertária. Contudo, antes de abordar, especificamente, os sistemas processuais penais é necessário entender a palavra “sistema”, para que tenhamos uma melhor compreensão do assunto. Como se pode observar, de um modo geral todas essas definições nos transmitem a ideia de que o conceito de sistema está ligado a algo amplo e complexo, onde um só princípio, regra, elemento ou parte não é suficiente para configurá-lo como tal. Entretanto, se há uma aparente tranquilidade em expor o significado de sistema na ciência do Direito para o leigo (através das definições existentes nos dicionários), não podemos dizer o mesmo quando iniciamos a análise da literatura científica sobre o tema (ANDRADE, 2008, p. 29). Ainda, o mesmo autor continua: Sem embargo, se compararmos aquelas definições dos dicionários com aquelas sugeridas pela doutrina especializada, observaremos que suas conclusões apresentam claros pontos de convergência. Em geral, os autores, em maior ou menor medida, também afirmam que os sistemas jurídicos estão formados pela reunião ou agrupamento de entes, conceitos, enunciados jurídicos, princípios gerais, normas ou regras jurídicas. 16 Isso nos leva a constatar que, para que um sistema jurídico possa ser considerado como tal, faz-se necessária a presença de mais de um elemento – receba esse elemento o nome que receber (princípio, norma, regra etc.) -, já que somente um deles, de modo isolado, não será suficiente para sua formação (ANDRADE, 2008, p. 30). Por fim, conclui: [...] o termo sistema jurídico pode ser inicialmente definido como a reunião, conscientemente ordenada, de entes, conceitos, enunciados jurídicos, princípios gerais, normas ou regras jurídicas, fazendo com que se estabeleça, entre os sistemas jurídicos e esses elementos, uma relação de continente e conteúdo, respectivamente (ANDRADE, 2008, p. 30-31). Assim, sistema é a reunião ordenada de normas, princípios ou regras. E, consequentemente, sistema processual penal é o conjunto de regras ou princípios constitucionais, de acordo com o momento político de cada Estado. Desta forma, faz-se importante avaliar o momento vivido politicamente por cada Estado a fim de interpretar seu sistema processual penal. O Sistema Acusatório foi predominante até o século XII, sendo substituído, paulatinamente, pelo modelo Inquisitório que prevaleceu até o final do século XVIII e, em alguns países, até parte do século XIX. A doutrina brasileira afirma, de forma majoritária, que o sistema brasileiro contemporâneo é misto, isto é, inquisitório na fase pré-processual e acusatório, na processual (LOPES JR, p. 43). Vale ressaltar que o mais importante é, antes de qualquer análise, reconhecer que não existe mais sistemas puros e, a partir daí, identificar o princípio predominante em cada sistema, para posteriormente, classifica-lo em inquisitório ou acusatório. Por fim, verifica-se a existência de três sistemas processuais penais, quais sejam sistema inquisitório, sistema acusatório e sistema misto, os quais serão analisados a seguir. 17 1.3 DO SISTEMA PROCESSUAL INQUISITÓRIO O sistema inquisitório é um modelo histórico, isso porque seu nascimentoteve procedência no período da decadência romana, não obstante, sempre esteve muito atrelado à Igreja Católica (DI GESU, 2019). Quanto à prova, no sistema processual inquisitório, imperava o sistema legal de valoração, a tarifa probatória. No transcurso do século XII foi instituído o Tribunal da Inquisição ou Santo Ofício, para reprimir a heresia e tudo que fosse contrário ou que pudesse criar dúvidas acerca dos Mandamentos da Igreja Católica. Inicialmente, eram recrutados os fiéis mais íntegros para que, sob juramento, se comprometessem a comunicar as desordens e manifestações contrárias aos ditames eclesiásticos que tivessem conhecimento. Posteriormente, foram estabelecidas as comissões mistas, encarregadas de investigar e seguir o procedimento (LOPES JR, 2019, p. 44). No Sistema Processual Inquisitório, o poder instrutório fica nas mãos do julgador, não existindo, assim, contraditório, imparcialidade, já que o mesmo juiz que produziu a prova é o que irá decidir. Segundo Jacinto Coutinho O actus trium personarum já não se sustenta, ao inquisidor cabe o mister de acusar e julgar, transformando-se o imputado em mero objeto de verificação, razão pela qual a noção de parte não tem nenhum sentido. Com a Inquisição, são abolidas a acusação e a publicidade. O juiz- inquisidor atua de ofício e em segredo, assentando por escrito as declarações das testemunhas (cujos nomes são mantidos em sigilo, para que o réu não os descubra) (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda, 2001, p. 23). Por fim, no Sistema Inquisitório, não há dialética instrutória, sendo o trabalho do instrutor solitário ao elaborar hipóteses, buscar provas e valorá-las. Trata-se de um Sistema que exclui os diálogos (DI GESU, 2019). 18 1.4 DO SISTEMA PROCESSUAL ACUSATÓRIO Pode-se afirmar que, à luz do Sistema Constitucional vigente, o Sistema Processual Acusatório apresenta uma clara distinção entre as atividades acusatórias e julgadoras. Como consequência, a iniciativa probatória deve ser das partes, mantendo-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio às atividades de investigação. Trata-se de um Modelo Processual que dispensa às partes um tratamento igualitário, isto é, igualdade de oportunidade no processo. Em regra, o procedimento é oral e em grande parte público. Além disso, não há uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença no Princípio do Livre Convencimento Motivado do Órgão Jurisdicional. As decisões podem ser impugnadas e submetidas ao duplo grau de jurisdição. Nas palavras de Aury Lopes Júnior É importante destacar que a posição do “juiz” é fundante da estrutura processual. Quando o sistema aplicado mantém o juiz afastado da iniciativa probatória (da busca de ofício da prova), fortalece-se a estrutura dialética e, acima de tudo, assegura-se a imparcialidade do julgador. O estudo dos sistemas processuais penais na atualidade tem que ser visto com o “olhar da complexidade” e não mais com o “olhar da Idade Média”. Significa dizer que a configuração do “sistema processual” deve atentar para a garantia da “imparcialidade do julgador”, a eficácia do contraditório e das demais regras do devido processo penal, tudo isso à luz da Constituição. Assegura a imparcialidade e a tranquilidade psicológica do juiz que irá sentenciar, garantindo o trato digno e respeitoso com o acusado, que deixa de ser um mero objeto para assumir sua posição de autêntica parte passiva do processo penal (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 46). Portanto, a separação de funções e, consequentemente, a iniciativa probatória apenas nas mãos das partes e não do magistrado, possibilita a efetivação da imparcialidade. Vale mencionar a importância do contraditório e ampla defesa para o Sistema Processual Penal, que somente é possível através da estrutura acusatória. 19 Segundo Aury Lopes Júnior O processo penal acusatório caracteriza-se, portanto, pela clara separação entre juiz e partes, que assim deve se manter ao longo de todo o processo (por isso de nada serve a separação inicial das funções se depois permite- se que o juiz atue de ofício na gestão da prova, determine a prisão de ofício etc.) para garantia da imparcialidade (juiz que vai atrás da prova está contaminado, prejuízo que decorre dos pré-juízos, como veremos no próximo capítulo) e efetivação do contraditório. A posição do julgador é fundada no ne procedat iudex ex officio, cabendo às partes, portanto, a iniciativa não apenas inicial, mas ao longo de toda a produção da prova (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 46). E, o autor continua, afirmando que É absolutamente incompatível com o sistema acusatório (também violando o contraditório e fulminando com a imparcialidade) a prática de atos de caráter probatório ou persecutório por parte do juiz, como por exemplo, a possibilidade de o juiz decretar a prisão preventiva de ofício (art. 311); a decretação, de ofício, da busca e apreensão (art. 242); a iniciativa probatória a cargo do juiz (art. 156); a condenação do réu sem pedido do Ministério Público, pois isso viola também o Princípio da Correlação (art. 385); e vários outros dispositivos do CPP que atribuem ao juiz um ativismo tipicamente inquisitivo. Todas essas práticas – incompatíveis com o papel do julgador – também ferem de morte a imparcialidade, pois a contaminação e os pré-julgamentos feitos por um juiz inquisidor são manifestos (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 47). Por fim, o autor finaliza, aduzindo que (...) a Constituição demarca o modelo acusatório, pois desenha claramente o núcleo desse sistema ao afirmar que a acusação incumbe ao Ministério Público (art. 129), exigindo a separação das funções de acusar e julgar (e assim deve ser mantido ao longo de todo o processo) e, principalmente, ao definir as regras do devido processo no art. 5º, especialmente na garantia do juiz natural (e imparcial, por elementar), e também inciso LV, ao fincar pé na exigência do contraditório (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 47). 20 Desta forma, o Processo Penal Acusatório caracteriza-se pela separação entre as partes e o juiz, que assim deve se manter ao longo de todo trâmite processual a fim de que seja respeitada a imparcialidade e efetivado o contraditório. 1.5 DO SISTEMA PROCESSUAL MISTO O Sistema Processual Penal Misto, nada mais é do que “a junção dos sistemas tipicamente puros, quais sejam o sistema acusatório e o sistema inquisitório, visto os mesmos serem modelos históricos sem correspondência com os atuais” (LOPES JÚNIOR, 2007, p. 66). Tal Sistema surgiu com o fracasso da inquisição e com a adoção do Modelo Acusatório. Assim, as atividades do processo foram divididas em acusar e julgar por pessoas diferentes, continuando a acusação como monopólio estatal, porém, procedida por um terceiro contrário do juiz. O Sistema Misto nasceu em 1808 com o Código Napoleônico e a divisão do processo em duas fases, quais sejam fase pré-processual e fase processual, sendo aquela de caráter inquisitório e essa, acusatória (LOPES JÚNIOR, 2019). Guilherme de Souza Nucci define esse sistema como Surgindo após a Revolução Francesa, uniu as virtudes dos dois anteriores, caracterizando-se pela divisão do processo em duas grandes fases: a instrução preliminar, com os elementos do sistema inquisitivo, e fase do julgamento, com a predominância do sistema acusatório. Num primeiro estágio, há procedimento escrito, secreto e sem contraditório, enquanto, no segundo, presentes se fazem a oralidade, a publicidade, o contraditório, a concentração dos atos processuais, a intervenção de juízes populares e a livre apreciação das provas (NUCCI, 2013, p. 109- 110). O Sistema Misto uniu os Modelos Inquisitório e Acusatório, se caracterizou por duas fases processuais, sendo a primeira preliminarcom características inquisitórias, e a segunda, o julgamento com predominância do Modelo Acusatório. 21 Trata-se de definição utilizada, geralmente, pelo Sistema Brasileiro Misto, haja vista que muitos afirmam que o inquérito policial é inquisitório e a fase processual, acusatória. É lugar comum na doutrina processual penal a classificação de “sistema misto”, com a afirmação de que os sistemas puros seriam modelos históricos sem correspondência com os atuais. Ademais, a divisão do processo penal em duas fases (pré-processual e processual propriamente dita) possibilitaria o predomínio, em geral, da forma inquisitiva na fase preparatória e acusatória na fase processual, desenhando assim o caráter “misto”. Ademais, muitos ainda estão atrelados à reducionista concepção histórica de que bastaria a mera “separação inicial” das “funções de acusar e julgar” para caracterizar o processo acusatório (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 47). Segundo Rangel Entendemos que o sistema misto (juizado de instrução), não obstante ser um avanço frente ao sistema inquisitivo, não é o melhor sistema, pois ainda mantém o juiz na colheita de provas, mesmo que na fase preliminar da acusação. A função jurisdicional deve ser ao máximo preservada, retirando-se, nos Estados Democráticos de Direito, o juiz da fase persecutória e entregando-se a mesma ao Ministério Público, que é quem deve controlar as diligências investigatórias realizadas pela polícia de atividade judiciária, ou, se necessário for realiza-las pessoalmente, formando sua opinio delicti e iniciando a ação penal (RANGEL, 2017, p. 52-53). Por fim, percebe-se que o Modelo Processual Misto é uma combinação entre os Modelos Processuais Inquisitórios e Acusatórios, haja vista que a parte investigativa ou pré-processual se assemelha ao Sistema Inquisitivo, enquanto a fase processual se equipara ao Sistema Acusatório, proporcionando, inclusive, todas as suas garantias constitucionais. 22 1.6 DO SISTEMA PROCESSUAL ADOTADO PELO BRASIL Os doutrinadores brasileiros divergem acerca de qual Modelo Processual é adotado no Brasil, tendo em vista que há diversas formas de analisar o processo penal vigente. Os autores que adotam o Sistema Processual Acusatório como o modelo adotado no Brasil, defendem suas alegações baseadas naquelas em que o processo é contraditório, mesmo que na Fase do Inquérito Policial tenha características inquisitórias. Todavia, não adotam um Modelo Acusatório Puro, tendo em vista os resquícios do sistema inquisitorial. Neste sentido, Tourinho Filho aduz que O processo é eminentemente contraditório. Não temos a figura do Juiz instrutor. A fase processual propriamente dita é precedida de uma fase preparatória, em que a autoridade policial procede a uma investigação não contraditória, colhendo, à maneira do Juiz instrutor, as primeiras informações a respeito do fato infringente da norma e da respectiva autoria. Com base nessa investigação preparatória, o acusador, seja o órgão do Ministério Público, seja a vítima, instaura o processo por meio da denúncia ou queixa. Já agora, em juízo, nascida a relação processual, o processo torna-se eminentemente contraditório, público e escrito (sendo que alguns atos são praticados oralmente, tais como debates em audiências ou sessão). O ônus da prova incumbe às partes, mas o Juiz não é um espectador inerte na sua produção, podendo, a qualquer instante, determinar de ofício, quaisquer diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante (TOURINHO FILHO, 2003, p. 97). No entanto, alguns autores como Guilherme de Souza Nucci discorda desse entendimento, afirmando que o Sistema Processual Brasileiro é Misto, em virtude do enfoque constitucional e processual para analisar tal sistema. 23 O sistema adotado no Brasil, embora não oficialmente, é o misto. Registremos desde logo que há dois enfoques: o constitucional e o processual. Em outras palavras, se fôssemos seguir exclusivamente o disposto na Constituição Federal poderíamos até dizer que nosso sistema é acusatório (no texto constitucional encontramos os princípios que regem o sistema acusatório). Ocorre que nosso processo penal (procedimentos, recursos, provas, etc.) é regido por Código Específico, que data de 1941, elaborado em nítida ótica inquisitiva (encontramos no CPP muitos princípios regentes do sistema inquisitivo, como veremos a seguir). Logo, não há como negar que o encontro dos dois lados da moeda (Constituição e CPP) resultou no hibridismo que temos hoje. Sem dúvida que se trata de um sistema complicado, pois é resultado de um código forte de alma inquisitiva, iluminado por uma constituição federal imantada pelos princípios democráticos do sistema acusatório. Por tal razão, seria fugir da realidade pretender aplicar somente a Constituição à prática forense. Juízes, promotores, delegados e advogados militam contando com um Código de Processo Penal, que estabelece as regras de funcionamento do sistema não pode ser ignorado como se inexistisse. Essa junção do ideal (CF) com o real (CPP) evidencia o sistema misto (NUCCI, 2018, p. 110). Os autores defensores do Sistema Misto alegam que o juiz pode decretar certo procedimentos ex officio, a exemplo da decretação da prisão preventiva e da concessão do habeas corpus. Além disso, baseiam seu entendimento no fato do Sistema Processual Penal também ser regido pelo Código Penal, cuja criação se deu em 1941, com eminentes características inquisitórias, justamente por ser um Código anterior à Constituição de 1988 e, consequentemente, não atual. Nessa perspectiva, afirma o autor Geraldo Prado Se aceitarmos que a norma constitucional que assegura ao Ministério Público a privatividade do exercício da ação penal pública, na forma da lei, a que garante a todos os acusados o devido processo legal, com ampla defesa e contraditório, além de lhes deferir, até o trânsito em julgado da sentença condenatória, a presunção de inocência, e a que, aderindo a tudo, assegura o julgamento por juiz competente e imparcial, pois que se excluem as jurisdições de exceção, com a plenitude do que isso significa, são elementares do princípio do acusatório, chegaremos à conclusão de que, embora não o diga expressamente, a Constituição da República adotou-o. Verificando que a Carta Constitucional prevê, também, a oralidade do processo, pelo menos como regra para as infrações de menor potencial ofensivo, e a publicidade, concluiremos que filiou-se, sem dizer, ao sistema acusatório. Porém, se notarmos o concreto estatuto jurídico dos sujeitos processuais e a dinâmica que, pelas relações jurídicas ordenadas e 24 sucessivas, entrelaçam a todos, de acordo com as posições predominantes nos tribunais (principalmente, mas não exclusivamente no Supremo Tribunal Federal), não nos restará alternativa salvo admitir, lamentavelmente, que prevalece, o Brasil, a teoria da aparência acusatória, porque muitos dos princípios opostos ao acusatório são implementados todo dia. Tem razão o mestre Frederico Marques ao assinalar que a Constituição preconiza a adoção e efetivação do sistema acusatório. Também tem razão Hélio Tornaghi, ao acentuar que há formas inquisitórias vivendo de contrabando no processo penal brasileiro, o que melhor implica em considerá-lo, na prática, misto. O princípio e o sistema acusatório são, por isso, pelo menos por enquanto, meras promessas, que um novo Código de Processo Penal e um novo fundo cultural, consentâneo com os princípios democráticos, devem tornar realidade (PRADO, 2006, p. 49). Vale lembrar que, apesar de toda discussão doutrinária, bem como da nítida aplicação dos princípios constitucionais, ainda são encontrados resquícios inquisitórios no nosso SistemaProcessual. Por fim, faz-se importante compreender que a Carta Republicana define um Modelo Processual fundado nos Princípios do Contraditório, da Ampla Defesa, da Imparcialidade do Juiz e do Devido Processo Penal. Contudo, em razão dos inúmeros traços inquisitórios do Processo Penal Brasileiro, é necessária a realização de uma filtragem constitucional, isto é, uma releitura de tais dispositivos à luz da Constituição Federal de 1988. 25 2 DA PROVA 2.1 CONCEITO E FUNÇÃO DA PROVA O termo “prova” origina-se do latim probatio, derivado do verbo probare, que significa ensaio, verificação, inspeção, exame, argumento, aprovação ou confirmação de todo e qualquer elemento que possibilite a compreensão de determinado fato (NUCCI, 2016, p. 301). O objetivo da prova é reconstruir os fatos investigados, buscando a maior coincidência possível com a realidade, ou seja, com a verdade dos fatos. Busca-se, pois, a reconstrução da verdade. Faz-se importante mencionar que a reconstrução da verdade não é uma tarefa fácil, motivo pelo qual o Direito, ao longo de toda história, veio explorando diferentes métodos e formas jurídicas para a obtenção da verdade, como as ordálias e os juízos dos deuses, em que o acusado se submetia a determinada prova física e quando vitorioso, lhe era reconhecido a veracidade de sua pretensão (PACELLI, 2019, p. 338). Tourinho Filho cita os seguintes exemplos do método ordálico: Havia a prova da água fria: jogado o indiciado à água, se submergisse, era inocente, se viesse à tona seria culpado (...) A do ferro em brasa: o pretenso culpado, com os pés descalços, teria que passar por uma chapa de ferro em brasa. Se nada lhe acontecesse, seria inocente; se se queimasse, sua culpa seria manifesta (...) (FILHO, 1992, p. 216). Assim, o Processo Penal sempre se preocupou com a reconstrução dos fatos criminosos, perpassando de uma verdade revelada, inicialmente, através dos deuses a uma verdade obtida por meio da prova racional, submetida ao crivo do contraditório e confronto dialético dos interessados em sua valoração. Sabe-se que a reconstrução histórica dos fatos delituosos é muito difícil, no entanto, esse deve ser, sempre, o compromisso do Estado enquanto detentor do monopólio da Jurisdição, haja vista a impossibilidade de qualquer forma de solução privada e unilateral dos conflitos. 26 Desta forma, o Processo Penal, ainda que de maneira imperfeita deve ter como finalidade a reconstrução da verdade judicial, sobre a qual, após o trânsito em julgado da decisão final, incidirão todos os efeitos da coisa julgada, com todas as suas consequências. O processo, portanto, produzirá uma certeza jurídica, que pode ou não corresponder à realidade dos fatos, mas cujo objetivo é a de estabilização das situações conflituosas da jurisdição penal. Para a realização de tal tarefa, são disponibilizados os meios ou métodos de prova, com os quais se espera alcançar a realidade dos fatos investigados, submetidos, porém, à Constituição Federal (PACELLI, 2019, p. 338). Faz-se importante mencionar que os Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa são essenciais à prova. O conceito de contraditório limitava-se à garantia de participação das partes no processo, com direito à informação de toda prova feita no processo, bem como o direito de reagir em face delas. Atualmente, o contraditório além de todas essas garantias, deverá assegurar o critério da par conditio, ou seja, o sistema da paridade de armas. Com o Princípio da Ampla Defesa, a participação do acusado no processo penal se completa, pois passa a ser exigida não só a garantia de participação, mas sim, a efetiva participação, assegurando ao réu uma efetiva contribuição ao final do processo (PACELLI, 2019, 339). Vale lembrar que a ampla defesa abrange a defesa técnica, isto é, a exigência de um defensor devidamente habilitado na Ordem dos Advogados do Brasil para todos os atos processuais. E, por fim, é de se registrar, mais uma vez, que a ampla defesa autoriza até mesmo o ingresso de provas obtidas ilicitamente, desde que, é claro, favoráveis à defesa. Enem poderia ser de outro modo. Primeiro, porque, quando a obtenção da prova é feita pelo próprio interessado (o acusado), ou mesmo por outra pessoa que tenha conhecimento da situação de necessidade, o caso será de exclusão da ilicitude, presente, pois, uma das causas de justificação: o estado de necessidade. Mas mesmo quando a prova for obtida por terceiros sem o conhecimento da necessidade, ou mesmo sem a existência da necessidade (porque ainda não iniciada a persecução penal, por exemplo), ela poderá ser validamente aproveitada no processo, em favor do acusado, ainda que ilícita a sua obtenção. E assim é porque o seu não aproveitamento, fundado na ilicitude, ou seja, 27 com a finalidade de proteção do direito, constituiria um insuperável paradoxo: a condenação de quem se sabe e se julga inocente, pela qualidade probatória da prova obtida ilicitamente, seria, sob quaisquer aspectos, uma violação abominável ao Direito, ainda que justificada pela finalidade originária de sua proteção (do Direito) (PACELLI, 2019, p. 340). Faz-se importante mencionar que a prova ilícita, quanto ao seu aproveitamento, é totalmente distinta em relação à acusação, haja vista que ela é inadmissível quando o seu beneficiário for o Estado, justamente para proteger os direitos individuais daquele que pode ser atingido pela atividade persecutória. Assim, o fato da prova ilícita favorecer apenas à defesa tem como finalidade a manutenção da efetividade da norma constitucional. Portanto, os Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa são a base do Processo Penal, constituindo ao lado dos Princípios da Presunção de Inocência e do Devido Processo Legal instrumentos garantidores do indivíduo em face do Estado. Segundo Eugênio Pacelli Dignas de nota e de aplausos as modificações do art. 306, do CPP, primeiro com a Lei nº 11.449/07, e, depois, com a Lei nº 12.403/11. Embora o texto atual do citado art. 306 não determine expressamente a comunicação imediata de toda prisão (prazo máximo de 24 horas) à Defensoria Pública, fato é que o §1º do mesmo art. 306 estabelece o dever de encaminhamento a ela (DP), em até vinte e quatro horas, de cópia do auto de prisão em flagrante, caso o autuado não indique advogado. Não bastasse, é bem de ver que o atual art. 289-A, §4º, CPP, impõe a necessidade de comunicação imediata da prisão à Defensoria, sempre que o aprisionado não indicar advogado. A se criticar, no ponto, a exclusão do Ministério Público para fins de encaminhamento de cópias do auto de prisão em flagrante. O parágrafo único do citado art. 306 estabelece a necessidade do encaminhamento de cópias apenas ao juiz e à Defensoria Pública. Ora, ao parquet cabe, institucionalmente, a defesa da ordem jurídica, o que inclui o controle de legalidade dos atos prisionais (PACELLI, 2019, p. 340-341). Vale ressaltar que o Princípio da Identidade Física do Juiz é essencial na Teoria da Prova. De acordo com esse princípio “o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença” (art. 399, §2º, do CPP). 28 Trata-se de um princípio importantíssimo, haja vista que a coleta pessoal da prova, ou seja, o contato imediato com os depoimentos, das testemunhas, do ofendido e do acusado, é fundamental para a formação do convencimento judicial. Assim, quando a sentença for condenatória faz-se necessário um juízo de certeza. E essa certeza, como é de difícil obtenção, deverá cercar-se das maiores cautelas. Como consequência disso, surge a necessidade de aplicação do Princípio da Identidade Física do Juiz, isto é, a exigência de que o juiz da instrução seja o mesmo que irá proferir a sentença,valorizando-se, assim, o seu livre convencimento motivado e a sua persuasão racional, haja vista que a prova é um importante instrumento para a formação da convicção do magistrado e estará muito mais instrumentalizado para julgar, aquele juiz que participou da produção das provas feita pelas partes. O Princípio da Identidade Física do Juiz, por muitos anos, esteve presente na Legislação Processual Civil Brasileira, contudo, foi revogado a partir de 2016, com o Novo Código de Processo Civil. Segundo Eugênio Pacelli Algumas questões, antes solucionadas pelo revogado CPC (art. 132), penderão sem a previsão expressa das respectivas soluções. Exemplo: quando em férias o magistrado que instruiu o processo penal, dever-se-á aguardar o seu retorno para o julgamento da ação penal? E se houver preso? Pensamos que as respostas haverão de ser encontradas em outros princípios, igualmente relevantes no processo, tal como aquele que consagra a duração razoável do processo, a impedir a sua paralisação ou o seu imobilismo por ausência de regulação legal específica. Tratando-se de réu preso, então, a resposta é até bem simples: caberá ao substituto legal sentenciar, no prazo previsto em Lei. E pensamos que a mesma solução deverá ser dada aos demais casos de afastamento temporários do magistrado que instruiu o processo. Do contrário, e exatamente pela ausência de exceções legais ao princípio da identidade física, ressalvada a situação óbvia da aposentadoria do juiz, a ação penal restará sempre paralisada nos demais casos de quaisquer afastamentos do juiz. De igual modo, a remoção ou a promoção do juiz para outra jurisdição deverá ser suficiente para o afastamento do princípio da identidade física do juiz, ressalvando-se, sempre, ao substituto legal, a possibilidade de renovação da prova, para a formação de seu convencimento (PACELLI, 2019, p. 342). 29 Por fim, a importância do Princípio da Identidade Física do Juiz não se limita apenas à fase de julgamento, mas também à temática competência, obviamente que àquela de natureza territorial, qual seja a competência relativa, especificamente no que diz respeito à perpetuatio jurisdicionis. 2.2 DA FUNÇÃO PERSUASIVA DA PROVA Sabe-se que o juiz é livre para formar o seu convencimento, isto é, ele não está comprometido com nenhum critério de valoração prévia da prova, podendo escolher aquela que lhe convencer. Nessa atividade, a instrução (preliminar ou processual) e as provas nela colhidas são fundamentais para a seleção e eleição das hipóteses históricas aventadas. As provas são os materiais que permitem a reconstrução histórica e sobre os quais recai a tarefa de verificação das hipóteses, com a finalidade de convencer o juiz (função persuasiva) (CORDERO, 2015, p. 11). Trata-se de um ritual de intimidação, reforçado pelas relações de poder e subordinação, deixando claro que o binômio crime-pecado nunca foi superado. O simbolismo, em relação às provas, também deve ser considerado em uma função persuasiva, como forma de atrativos a fim de tentar uma captura psíquica de quem está declarando, como também dar uma maior credibilidade para quem julga (CORDERO, 2015). Segundo Taruffo Além da função persuasiva em relação ao julgador, as provas servem para fazer crer que o processo penal determina a verdade dos fatos, porque é útil que os cidadãos assim o pensem, ainda que na realidade isso não suceda, e quiçá precisamente, porque na realidade essa tal verdade não pode ser obtida, é que precisamos reforçar essa crença (TARUFFO, 2014, p. 81). 30 Destarte, o primeiro destinatário da crença é o juiz. E, segundo Aragoneses Alonso1, “o conceito de prova, está vinculado ao de atividade encaminhada a conseguir o convencimento psicológico do juiz.” É inafastável que o juiz “elege” versões (entre os elementos fáticos apresentados) e até o significado (justo) da norma. Esse eleger também se expressa na valoração da prova (crença) e na própria axiologia, incluindo a carga ideológica, que faz da norma (penal ou processual penal) aplicável ao caso (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 344). Portanto, o Sistema Processual Penal tem uma finalidade retrospectiva, ou seja, por meio das provas são criadas condições para a atividade recognitiva do magistrado sobre um fato passado, sendo que o conhecimento acerca desse fato, legitimará o poder contido na sentença. 2.3 DA VERDADE REAL No Processo Penal, todos os métodos de prova passam, obrigatoriamente, pela análise do sistema processual adotado, no que se refere à definição das funções investigatórias e acusatórias e na distribuição do ônus probatório. A partir da Constituição Federal de 1988, o modelo adotado pelo Processo Penal se aproxima muito mais do Sistema Acusatório. No entanto, não foi este o perfil traçado pelo Código de Processo Penal de 1941, que permitia ao juiz amplos poderes probatórios. Porém, com o artigo 5º, da Constituição Federal de 1988 foi implementado um sistema de garantias individuais integrado por diversos documentos internacionais, como o Pacto de San José da Costa, que influenciou no redimensionamento do antigo modelo construído pelo Código de Processo Penal (PACELLI, 2019, p. 343). 1 ARAGONESES ALONSO, Pedro. Instituciones de Derecho Procesal Penal. 5. Ed. Madrid, Editorial Rubí Artes Gráficas, 1984, p. 251. 31 O Princípio da Verdade Real gera muitos questionamentos, haja vista que diante da grande relevância dos interesses tratados no Direito Processual Penal, muitos afirmam que isso justificaria uma busca mais intensa da verdade. Segundo Eugênio Pacelli Talvez o mal maior causado pelo citado princípio da verdade real tenha sido a disseminação de uma cultura inquisitiva, que terminou por atingir praticamente todos os órgãos estatais responsáveis pela persecução penal. Com efeito, a crença inabalável segundo a qual a verdade estava efetivamente ao alcance do Estado foi a responsável pela implantação da ideia acerca da necessidade inadiável de sua perseguição, como meta principal do processo penal. O aludido princípio, batizado como da verdade real, tinha a incumbência de legitimar eventuais desvios das autoridades públicas, além de justificar a ampla iniciativa probatória reservada ao juiz em nosso processo penal. A expressão, como que portadora de efeitos mágicos, autorizava uma atuação judicial supletiva e substitutiva da atuação ministerial (ou da acusação). Dissemos autorizava, no passado, por entendermos que, desde 1988, tal não é mais possível. A igualdade, a par conditio (paridade de armas), o contraditório e a ampla-defesa, bem como a imparcialidade, de convicção e de atuação, do juiz, impedem-no (PACELLI, 2019, p. 343). Faz-se necessário mencionar que toda verdade judicial é sempre uma verdade processual. E essa verdade será sempre uma verdade reconstruída, pouco importando os diferentes critérios que foram utilizados para a comprovação dos fatos alegados em juízo. Vale lembrar que no Direito Processual Civil, a simples ausência de impugnação dos fatos elencados na petição inicial gera uma certeza, uma presunção legal de que tudo narrado pelo autor é verdadeiro, enquanto no Direito Processual Penal, isso não é admitido, pois é exigida a materialização da prova. Assim, mesmo que não impugnados os fatos imputados ao réu, ou mesmo que eles sejam confessados, a acusação deverá produzir provas da existência do fato e comprovação da autoria. 32 Pacelli afirma que não é correto falar em verdade real E mais. Não só é inteiramente inadequado falar-se em verdade real, pois que esta diz respeito à realidade do já ocorrido, da realidade histórica, como pode revelar uma aproximação muito pouco recomendável com um passado que deixou marcas indeléveisno processo penal antigo, particularmente no sistema inquisitório da Idade Média, quando a excessiva preocupação com a sua realização (da verdade real) legitimou inúmeras técnicas de obtenção da confissão do acusado e de intimidação da defesa. Como vimos, a atual configuração do processo penal brasileiro não deve guardar mais qualquer identidade com semelhante postura inquisitorial, impondo-se o redimensionamento de vários institutos ligados à produção da prova, sobretudo no que respeita à iniciativa probatória do juiz. Esta, e aqui já o afirmamos, não deve constituir -se em atividade supletiva dos deveres ou ônus processuais atribuídos ao órgão da acusação (PACELLI, 2019, p. 344). Contudo, a verdade real continua sendo um princípio de suma importância para o Direito Processual Penal, principalmente em relação aos meios de prova. 2.4 DA DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA O Direito Processual Penal Brasileiro está em consonância com o Princípio da Presunção de Inocência do Réu, que está previsto na Constituição Federal de 1988, influenciando, assim, diretamente o Sistema de Provas. O Princípio da Presunção de Inocência estabelece que “ninguém poderá ser considerado culpado senão após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, implicando, desta forma, a transferência do ônus da prova para o órgão da acusação, devendo este provar a existência do crime, bem como a sua autoria. O termo “ônus” origina-se do latim onus ou oneris e significa carga, fardo, peso. Desta forma, ônus da prova não significa dever, mas sim o encargo de provar, o qual cabe às partes que têm o interesse de produzir provas, por meios lícitos e legítimos, com a finalidade de fornecer ao magistrado os elementos necessários que lhe convença das suas alegações (BRITO, 2015). 33 Vale lembrar que afirmar que cabe ao órgão da acusação provar a existência do crime, não significa dizer que ele deverá comprovar a presença de todos os elementos integrantes do conceito analítico de crime, quais sejam tipicidade, ilicitude e culpabilidade. A tipicidade e a ilicitude do fato não correspondem à matéria de prova, sendo mero juízo de valoração do fato em relação à norma penal, não se produzindo, assim, prova, mas unicamente um juízo de valor. Segundo Eugênio Pacelli Em relação especificamente à prova da existência do dolo, bem como de alguns elementos subjetivos do injusto (elementos subjetivos do tipo, já impregnado pela ilicitude), é preciso uma boa dose de cautela. E isso ocorre porque a matéria localiza-se no mundo das intenções, em que não é possível uma abordagem mais segura. Por isso, a prova do dolo (também chamado de dolo genérico) e dos elementos subjetivos do tipo (conhecidos como dolo específico) são aferidas pela via do conhecimento dedutivo, a partir do exame de todas as circunstâncias já devidamente provadas e utilizando-se como critério de referência as regras da experiência comum do que ordinariamente acontece. É a via da racionalidade. Assim, quem desfere três tiros na direção de alguém, em regra, quer produzir ou aceita o risco de produzir o resultado morte. Não se irá cogitar, em princípio, de conduta imprudente ou de conduta negligente, que caracterizam o delito culposo. Nesses casos, a prova será obtida pelo que o Código de Processo Penal chama de indícios, ou seja, circunstância conhecida e provada que, tendo relação com o fato, autorize, por indução (trata-se, à evidência, de dedução), concluir-se a existência de outra ou de outras circunstâncias (art. 239). Quanto à culpabilidade e, mais particularmente, em relação à imputabilidade do agente, isto é, de sua responsabilidade penal, a questão pode até exigir prova, qual seja, a de maioridade penal (18 anos), ou da capacidade mental do autor do fato (PACELLI, 2019, p. 345). Faz-se importante mencionar que não se exige do órgão acusatório a prova de que o acusado é capaz e mentalmente são, pois há uma presunção legal de que as pessoas maiores de idade, até que se prove o contrário, são efetivamente capazes. Desta forma, com fundamento no Princípio da Presunção de Inocência cabe à acusação a prova em relação à autoria e materialidade do fato, não se impondo o ônus de demonstrar a inexistência de qualquer excludente de ilicitude ou culpabilidade. 34 2.5 DOS PODERES CONCEDIDOS AO JUIZ NA BUSCA DAS PROVAS Sabe-se que um dos princípios informadores do Processo Penal é o Princípio da Verdade Real, que admite a participação excepcional do juiz na produção probatória, que atua de forma subsidiária e atípica na busca de provas, com a finalidade de se alcançar a verdade real. No entanto, Fernando Capez aponta algumas exceções a esse princípio A impossibilidade de leitura de documento ou a exibição de objeto que não tiver sido juntado aos autos com a antecedência mínima de três dias úteis, dando-se ciência à outra parte (CPP, art. 479, caput); compreende-se nessa proibição a leitura de jornais ou de qualquer outro escrito, bem como a exibição de vídeos, gravações, fotografias, laudos, quadros, croqui ou qualquer outro meio assemelhado, cujo conteúdo versar sobre a matéria de fato submetida à apreciação e ao julgamento dos jurados (CPP, art. 479, parágrafo único); b) a inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos (CF, art. 5º, LVI, e CPP, art. 157); c) os limites para depor de pessoas que, em razão de função, ofício ou profissão, devam guardar segredo (CPP, art. 207); d) a recusa de depor de parentes do acusado (CPP, art. 206); e) as restrições à prova, existentes no juízo cível, aplicáveis ao penal, quanto ao estado das pessoas (CPP, art. 155, parágrafo único) (CAPEZ, 2016, p. 80). Diante disso, o termo verdade real é criticado por alguns autores a exemplo do Eugênio Pacelli, que afirma que essa tal verdade é impossível de se alcançar, motivo pelo qual o melhor termo a ser utilizado seria verdade processual e não real, haja vista que o juiz não estava presente no momento em que ocorreram os fatos. Além disso, esta verdade é construída através de um processo legítimo, com as provas juntadas aos autos, juiz imparcial, com garantia da igualdade das partes, contraditório e ampla defesa (PACELLI, 2019). À luz do art. 156, do CPP, o ônus da prova caberá a quem alegar os fatos. No entanto, antes mesmo de iniciar a ação penal, durante a instrução ou antes de proferir a sentença, o juiz poderá de ofício, mediante à observância da necessidade, adequação e proporcionalidade, determinar a produção antecipada de prova, que for considerada urgente. 35 Portanto, o poder concedido ao juiz na busca de provas consiste em julgar com base nas provas que lhe são apresentadas, salvo exceções admitidas pela lei. O magistrado, assim, não detém o poder de instruir o processo, haja vista que seu poder é decisório e não acusatório. Além disso, sua imparcialidade não pode ser comprometida. Segundo Fernando Capez O processo acusatório é o que assegura todas as garantias do devido processo legal. Pressupõe a existência de garantias constitucionais decorrentes do respeito à dignidade humana e ajustadas ao perfil de um processo penal democrático, caracterizado pela constante mediação do juiz, principalmente quando houver restrição a algum direito ou garantia fundamental. Foi o modelo adotado no Brasil. A Constituição Federal de 1988 vedou ao juiz a prática de atos típicos de parte, procurando preservar a sua imparcialidade e necessária equidistância, prevendo distintamente as figuras do investigador, acusador e julgador (CF, arts. 129, caput, 144, §§ 1º, IV, e § 4º). O princípio do ne procedat iudex ex officio preserva o juiz e, ao mesmo tempo, constitui garantia fundamental do acusado, em perfeita sintonia com o processo acusatório. Devido processo legal é aquele em queestão presentes as garantias constitucionais do processo, tais como o contraditório, a ampla defesa, a publicidade, o juiz natural, a imparcialidade do juiz e a inércia jurisdicional (ne procedat iudex officio). Assim, colocar o julgador na posição de parte, incumbindo-lhe atribuições investigatórias e probatórias típicas de acusador, implica vulnerar sua imparcialidade e violar o due process of law. A colheita da prova pelo juiz compromete-o psicologicamente em sua imparcialidade, transformando-o quase em integrante do polo ativo da lide penal, colidindo frontalmente com diversas normas constitucionais. À vista do exposto, o juiz que participar da colheita da prova, atuando como verdadeiro inquisidor, não estará atuando na função típica de magistrado, ficando, destarte, sujeito ao comprometimento psicológico com a tese acusatória, tão comum às partes. Por essa razão, estará impedido de proferir qualquer sentença ou decisão no processo criminal que vier a se instaurar (CPP, art. 252, II). (CAPEZ, 2016, p. 154). Desta forma, é imprescindível o respeito do Princípio da Imparcialidade pelo magistrado. Isso não significa, obviamente, a sua inércia, mas que deve realizar sua função consubstanciado nas provas carreadas nos autos, exercendo, assim, o seu papel de garantidor da lei e da verdade. 36 3 DA PROVA TESTEMUNHAL Sabe-se que a prova testemunhal fundamenta a maioria das sentenças proferidas pelos juízos criminais. À luz do artigo 400, do CPP, a inquirição, no rito comum ordinário, se inicia com a tomada de declarações do ofendido, em seguida passa-se às testemunhas arroladas pela acusação e, somente depois, às testemunhas da defesa. Posteriormente, passa-se aos esclarecimentos dos peritos, às acareações, reconhecimentos e, por fim, ao interrogatório do acusado. Assim, quando a testemunha é arrolada pela acusação, incumbe ao acusador, primeiramente, as perguntas e, somente, após à defesa. Já em relação às testemunhas arroladas pela defesa, incumbe a ela elaborar suas perguntas e, após, ao acusador. Vale dizer que, de acordo com o art. 400, parágrafo único, do CPP, nenhum regra é imposta ao juiz, haja vista que ele pode questionar qualquer testemunha a qualquer momento do depoimento, desde que seja para complementação dos pontos não esclarecidos na inquirição. 3.1 DA POLÊMICA ACERCA DO ARTIGO 212, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL O artigo 212, do CPP teve seu texto alterado com a Reforma Processual de 2008, passando a ter a seguinte redação As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente às testemunhas, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida. Parágrafo único: Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição. 37 Essa mudança foi de suma importância para conformar o Código de Processo Penal à estrutura acusatória prevista na CF/88, que retirou do juiz o papel de protagonista da instrução. Ao separar a função de julgar da função de acusar e, principalmente, ao atribuir a gestão da prova às partes, o Modelo Acusatório deu um novo papel ao juiz no Processo Penal, que não é mais um juiz-autor (Sistema Inquisitório), mas sim de juiz-espectador. Assim, a responsabilidade pela produção das provas foi transferida às partes, como realmente deve ser num processo penal acusatório e democrático (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 458). Desta forma, o magistrado deixa de ser protagonista na realização das oitivas, passando a ter uma função subsidiária, apenas complementando a inquirição. Segundo Aury Lopes Júnior Neste novo modelo, o juiz abre a audiência, compromissando (ou não, conforme o caso) a testemunha, e passa a palavra para a parte que arrolou (MP ou defesa). Caberá à parte interessada na produção da prova efetivamente produzi-la, sendo o juiz – neste momento – o fiscalizador do ato, filtrando as perguntas ofensivas, sem relação com o caso penal, indutivas ou que já tenham sido respondidas pela testemunha. Após, caberá à outra parte fazer suas perguntas. O juiz, como regra, questionará ao final, perguntando apenas sobre os pontos relevantes não esclarecidos. É, claramente, uma função completiva, e não mais de protagonismo (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 459). Destarte, o magistrado preside o ato, controlando a atuação das partes a fim de que a prova seja produzida em conformidade com a lei. Vale frisar que o juiz poderá fazer perguntas para complementar os pontos não esclarecidos, à luz do então citado artigo 212, do Código de Processo Penal. Portanto, neste novo Modelo Processual em que as partes são os protagonistas, podemos vislumbrar nitidamente a eficácia da garantia do Princípio da Imparcialidade do Juiz. Faz-se importante mencionar uma situação mais grave e distinta, qual seja a ausência do MP na audiência, assumindo o magistrado o papel de acusador, formulando perguntas. Neste caso, mais do que protagonista, o juiz substitui o órgão acusador, em 38 flagrante incompatibilidade não só com o Sistema Acusatório, como também ao Princípio da Imparcialidade e a própria igualdade de armas (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 460). Por fim, a prova testemunhal deve respeitar as regras da oralidade e imediatividade, isto é, ela deve ser produzida de forma oral, em audiência e na presença do juiz que irá julgá-la (Princípio da Identidade Física do Juiz). Como explica a Ministra Maria Thereza de Assis Moura 2 O depoimento da testemunha ingressa nos autos, de maneira oral, de acordo com a própria dicção do Código de Processo Penal: ´Art. 203. A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado, devendo declarar seu nome, sua idade, seu estado e sua residência, sua profissão, lugar onde exerce sua atividade, se é parente, e em que grau, de alguma das partes, ou quais suas relações com qualquer delas, e relatar o que souber, explicando sempre as razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa avaliar-se de sua credibilidade´. (destaquei). Deste comando, retiram-se, em especial duas diretrizes. A primeira, ligada ao relato, que será oral, como reforça a regra do art. 204 (O depoimento será prestado oralmente, não sendo permitido à testemunha trazê-lo por escrito). A segunda refere- se ao filtro de fidedignidade. Tal peculiaridade, relativa ao modo pelo qual a prova ingressa nos autos, a meu sentir, é a que foi maculada pelo modo como empreendida a instrução, in casu. O depoimento, efetuado em sede policial, é chancelado como judicial, com uma simples confirmação. Não há como se aferir, penso, credibilidade desta maneira. E, mais, com a singela providência de ratificação, estar-se-á a enfraquecer a norma do art. 204, do CPP.” Portanto, tal decisão é correta, haja vista que tanto a oralidade como a imediação devem ser respeitadas quando da produção da prova testemunhal. Assim, não se pode admitir como lícita a mera leitura pelo juiz das declarações contidas no inquérito policial a fim de que as testemunhas apenas as ratifiquem, pois isso não é considerado produção de prova, mas sim fraude processual. 2 HC 183696, 6ª Turma, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 27/02/2012. 39 3.2 QUEM PODE SER TESTEMUNHA? RESTRIÇÕES, RECUSAS, PROIBIÇÕES E COMPROMISSO À luz do artigo 202, do Código de Processo Penal, toda pessoa poderá ser testemunha. Essa determinação surge como consequência da discriminação histórica em relação a escravos, mulheres, crianças e pessoas de má-reputação, como as prostitutas, drogados, travestis, dentre outros, que sofreram ao longo de anos restrições em termo de provas no Processo Penal. Segundo Aury Lopes Júnior Da mesma forma, não há que se falar em restriçãoao depoimento dos policiais. Eles podem depor sobre os fatos que presenciaram e/ou dos quais têm conhecimento, sem qualquer impedimento. Obviamente, deverá o juiz ter muita cautela na valoração desses depoimentos, na medida em que os policiais estão naturalmente contaminados pela atuação que tiveram na repressão e apuração do fato. Além dos prejulgamentos e da imensa carga de fatores psicológicos associados à atividade desenvolvida, é evidente que o envolvimento do policial com a investigação e (prisões) gera a necessidade de justificar e legitimar os atos (e eventuais abusos) praticados. Assim, não há uma restrição ou proibição de que o policial seja ouvido como testemunha, senão que deverá o juiz ter muita cautela no momento de valorar esse depoimento. A restrição não é em relação à possibilidade de depor, mas sim ao momento de (des)valorar esse depoimento (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 462). No entanto, o Ministério Público, constantemente, arrola como testemunhas apenas os policiais que participaram do inquérito policial, afrontando, flagrantemente o artigo 155, do CPP. Assim, diante da ausência de impedimento para que os policiais deponham, não se pode admitir uma condenação com base exclusivamente nos seus atos de investigação justificados em audiência. Faz-se importante mencionar que a pessoa jurídica não pode ser testemunha, haja vista que quem tem a capacidade de depor é a pessoa natural, que o faz na qualidade de diretor, sócio ou administrador (NUCCI, 2018). 40 De acordo com o artigo 206, do Código de Processo Penal, ninguém poderá se recusar a depor. No entanto, o mesmo artigo prevê que (...) poderão, entretanto, recusar-se a fazê-lo o ascendente ou descendente, o afim em linha reta, o cônjuge, ainda que desquitado, o irmão e o pai, a mãe, ou o filho adotivo do acusado, salvo quando não for possível, por outro modo, obter-se ou integrar-se a prova do fato e de suas circunstâncias. Tal artigo estabelece, assim, uma proteção àquelas pessoas, que em razão do parentesco não queiram prestar depoimento. Já o artigo 207, do CPP determina que “são proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho.” Trata-se, assim, da tutela do sigilo profissional, haja vista que aqueles profissionais estão proibidos de depor acerca de fatos que envolvam seus clientes, ora réus no processo. Por se tratar de um direito disponível, excepciona o artigo, permitindo que deponham, desde que desobrigados pelo interessado. Uma vez desobrigados pela parte interessada, esses profissionais são obrigados a depor, como qualquer testemunha. Essa autorização para depor deve ser expressa, exceto quando o profissional é arrolado como testemunha do próprio interessado, situação em que a autorização é tácita (decorrendo do próprio fato de ter sido arrolado como testemunha) (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 464). Vale lembrar que, à luz do artigo 207, do Código de Processo Penal, o advogado é proibido de depor acerca daquilo que teve conhecimento em razão de seu ofício. E tal proibição, conforme art. 26, do Código de Ética e Disciplina da OAB, permanece mesmo quando o advogado for desobrigado pelo interessado 41 O advogado deve guardar sigilo, mesmo em depoimento judicial, sobre o que saiba em razão de seu ofício, cabendo-lhe recusar-se a depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou tenha sido advogado, mesmo que autorizado ou solicitado pelo constituinte. Trata-se, assim, de uma proibição decorrente do imperativo ético da profissão, a qual impede o advogado de prestar depoimento acerca dos fatos de que teve conhecimento, em decorrência do processo que atuou. Em relação ao magistrados e membros do Ministério Público, esses também são proibidos de prestarem depoimento acerca dos fatos que tomarem conhecimento em razão dos autos que atuaram, pois existe um interesse público de que eles preservem o sigilo profissional. Destarte, mesmo que desobrigados pelo réu, eles continuam impedidos de depor. Contudo, isso não significa impedimento para que atuem como testemunhas, podendo prestar depoimento acerca de fatos que tomaram conhecimento por meio de fontes externas ao feito, isto é, extra autos, estando, todavia, impedidos de atuarem profissionalmente, de acordo com os artigos 252, II e 258, do CPP. Segundo Eugênio Pacelli Deve ser levado em conta o nexo causal entre o conhecimento do fato criminoso e a relação profissional, funcional, ministerial etc. mantida entre o acusado e a testemunha. Significa que a proibição de depor funda- se a partir de uma situação concreta e não hipotética ou genérica (PACELLI, 2019, p. 410). Desta forma, o conhecimento do fato criminoso pelo advogado, membro do MP e juízes deve ter relação direta com o exercício da profissão, isto é, tais autoridades só estarão impedidas de depor, pois tomaram conhecimento daquele determinado fato em razão de sua atuação no feito. 42 Segundo Aury Lopes Júnior Assim, além dos exemplos anteriormente referidos (advogado, analista, psiquiatra etc.), pensamos que nos crimes de sonegação fiscal e demais delitos econômicos o contador da empresa (independente do nome que a função receba) também está proibido de depor. Trata-se aqui de analisar a atividade efetivamente exercida pela testemunha, estabelecendo-se o nexo causal entre o crime fiscal ou econômico e o conhecimento profissional que a atividade proporciona. É inadmissível que em um processo dessa natureza o contador seja obrigado a depor contra a empresa, em decorrência dos conhecimentos obtidos pelo exercício de sua atividade profissional. A situação é similar à do psiquiatra ou advogado (LOPES JÚNIOR, 2019, p. 465). É importante, ainda, analisar a consequência daquele depoimento prestado pelo profissional impedido de depor. Para alguns doutrinadores, como Aury Lopes Júnior, o depoimento é uma prova ilícita, com uma dupla ilegalidade, quais sejam violação da norma de direito material imposta à profissão, ofício ou função e violação da norma de direito processual quando de sua produção em juízo (LOPES JÚNIOR, 2019). Logo, não poderá ser valorada, devendo ser desentranhada do processo. No entanto, caso isso não aconteça e a sentença condenatória a valore, deverá a parte interessada arguir sua nulidade como preliminar do recurso de apelação (LOPES JÚNIOR, 2019). Além disso, o artigo 208, do CPP relaciona os termos compromisso e juramento à figura da testemunha. Isso significa que ao fazer a promessa de dizer a verdade, a testemunha estará firmando um compromisso. Trata-se de uma formalidade necessária, por mais que não garanta a veracidade do depoimento, sendo um importante instrumento no complexo ritual de captura psíquica que ocorre no processo de recognição, atuante em uma dimensão simbólica (CORDERO, 2017). Vale ressaltar que ainda existe no Direito Penal discussão acerca da necessidade da existência do compromisso para uma possível configuração do crime de falso testemunho (art. 342, do CP). 43 De acordo com o art. 208, do CPP Não prestam compromisso de dizer a verdade, sendo portanto, meras testemunhas informantes, os doentes e deficientes mentais, os menores de 14 (quatorze anos) e as pessoas que se referem o art. 206 (ascendente ou descendente, o afim em linha reta, o cônjuge, ainda que desquitado, o irmão e o pai, a mãe, ou o filho adotivo do acusado. Cumpre, informar, que essas pessoas não estão impedidas de depor. Mas em razão de não serem compromissadas, suas declarações deverão ser recebidas com reservas e menor
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